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O complexo e dramático processo de autocrítica de Pachukanis: PACHUKANIS, Ievguiénii. O marxismo revolucionário de Pachukanis: obras escolhidas. 1. ed. São Paulo-SP: Lavrapalavra, 2023. 368 p. ISBN 978-65-87311-48-7.
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e81308, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resenhas

PACHUKANIS Ievguiénii. O marxismo revolucionário de Pachukanis: obras escolhidas. 2023. São Paulo-SP. Lavrapalavra. 368pp.. 978-65-87311-48-7

Received: 25 February 2024

Accepted: 03 March 2024

DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2024/81308

Para iniciar

A editora LavraPalavra publicou, em 2023, um conjunto de 14 textos do jurista russo Evgeni Pachukanis sob o título O marxismo revolucionário de Pachukanis: obras escolhidas (368 p.). Com exceção do escrito de abertura da coletânea, intitulado Os primeiros meses de existência do tribunal popular de Moscou, já lançado em português pela editora Lutas Anticapital por ocasião da publicação do Léxico pachukaniano (Akamine Junior, Oswaldo et al., 2020, 272 p.), os demais escritos são inéditos e foram traduzidos para o português por Anna Savitskaia e Oleg Sevitskii.

Chama a atenção, de imediato, a tradução do nome de Pachukanis como Ievguiénii, ao contrário do já “consagrado” Evgeni. Apesar de nada ser dito a respeito do tema pelo(a)s editore(a)s e tradutore(a)s, a mudança parece se apoiar em regras mais adequadas de transliteração que fogem daquele processo simples, letra a letra. A opção por Ievguiénii, nesse sentido, apresenta maior proximidade com a fonética original da palavra russa “Евгений”, apesar de causar certa estranheza a todos nós, já habituados com Evgeni.

A arte de capa também merece um comentário. A ilustração da derrubada de um monumento tsarista em segundo plano, sob a figura de um trabalhador que aparenta dançar em comemoração à “derrocada” da “velha” ordem, acaba por contrastar com o conteúdo do livro na medida em que a maior parte dos escritos pertence ao momento da autocrítica imposta a Pachukanis, no qual se assiste à consolidação do stalinismo1 e do capitalismo de Estado2. Trata-se, assim, de uma etapa na qual as relações de produção capitalistas dominam a formação social e econômica soviética.

Em tal conjuntura, havia pouco para se comemorar no interior do movimento comunista internacional. Ademais, figuras antes exaltadas pelo tsarismo, e com forte apelo patriótico grão-russo, como é o caso de Aleksandr Niévski, seriam “reerguidas” em prol da defesa do fortalecimento do Estado soviético. Há, assim, no confronto entre arte, texto e conjuntura, um entusiasmo inadequado sugerido pela capa. Uma ilustração menos otimista e mais reflexiva para fins de análise do processo experimentado no decurso da década de 1930, entre os soviéticos, talvez seja a pintura Novaya planieta (“Новая планета”) de Konstantin Yuon.

Uma grande contribuição e um importante equívoco

O livro merece ser prestigiado por ampliar a quantidade de textos de Pachukanis disponíveis em língua portuguesa. Também merece ser exaltado por possibilitar à leitora e ao leitor de língua portuguesa um contato direto com os textos da fase de autocrítica de Pachukanis. Até hoje, somente fragmentos dos escritos que compõem O marxismo revolucionário de Pachukanis haviam sido apresentados em português, graças ao trabalho de Márcio Bilharinho Naves, que, após se dedicar à sua análise, lançou, há duas décadas, Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis (Ed. Boitempo, 2000 , 183 p.), livro no qual aborda, dentre outros temas, o problema da autocrítica.

É inegável que o trabalho do(a)s editore(a)s e do(a)s tradutore(a)s de O marxismo revolucionário de Pachukanis contribuirá para o desenvolvimento dos estudos no campo da crítica marxista do direito, permitindo, dentre outras análises, a retomada do debate em torno do período de autocrítica de Pachukanis e de sua relação com os estudos da transição socialista e do caráter da formação social e econômica soviética. Todavia, essa que seria uma dentre as grandes virtudes da publicação desses escritos de Pachukanis, acabou por encerrar, por outro lado, um grave e importante equívoco. Esse equívoco consiste na ausência de uma introdução ou mesmo de uma nota do(a)s editore(a)s a respeito da existência desse debate incontornável que envolve a trajetória intelectual e política de Evgeni Pachukanis.

Sem as devidas advertências a respeito da autocrítica, a leitura dos escritos de Pachukanis, especialmente dos textos A ditadura do proletariado e a oposição (p. 85-97), Sobre a questão da luta de classes no período de transição (p. 139-167), A reconstrução do aparato de Estado e aluta contra o burocratismo (p. 277-286), A Constituição de Stálin e a legalidade socialista (p. 327-346) e O Estado e o direito sob o socialismo (p. 349-363), tende a apresentar um Pachukanis que, tanto em termos teóricos quanto políticos, teria aderido, mediante um abandono injustificado de sua concepção original, às posições reducionistas e economicistas que marcaram o stalinismo.

Ora, caberia perguntar-nos, por exemplo, se esses textos revelam uma mudança de terreno, isto é, a modificação da problemática original contida em A teoria geral do direito e o marxismo? Essa é apenas uma dentre as questões que poderiam ser apresentadas e, até certo ponto, respondidas com a presença de uma introdução ou nota de abertura, evitando, assim, confusões e incompreensões que tendem a surgir da leitura dos escritos contidos em O marxismo revolucionário de Pachukanis.

Trata-se de um equívoco que, felizmente, poderá ser sanado numa segunda edição ou reimpressão da obra, seja para abordar adequadamente a tese da autocrítica de Pachukanis, seja para simplesmente apontar a sua existência e direcionar a leitora e o leitor para os materiais que tratam do referido tema. Sem isso, não é possível compreender a força e o terrível drama que está por trás desses escritos. É no interior dessa chave de análise, isto é, da autocrítica forçada, que apresentamos a presente resenha.

Os 14 escritos de Pachukanis

O texto de abertura, Os primeiros meses de existência do tribunal popular de Moscou (1922), aborda alguns dos desafios em torno do desmonte dos tribunais tsaristas, seguido da condução de operários eleitos para os cargos vacantes simultaneamente à tarefa de reconstrução de um novo aparelho judicial. O texto também constitui um relato da própria experiência de Pachukanis, nomeado para uma dessas funções. A frase final de sua reflexão contida nesse texto é inquietante, pois aponta para a permanência do “mundo burguês” que “circunda” o tribunal popular e o poder soviético (p. 12). Seria esta uma simples referência geopolítica aos países do bloco capitalista?

Sobre os momentos revolucionários na história do Estado e do direito inglês (1927), segundo texto da coletânea, é uma análise detalhada da primeira revolução inglesa, também conhecida como Revolução Puritana. Pachukanis volta sua interpretação especialmente para o nível das classes e das forças sociais em disputa no processo de transição capitalista inglês. Assim, consegue identificar, para além da coexistência de diferentes modos de produção e da superação das relações feudais, as defasagens que existem entre os interesses dessas diferentes forças sociais e seus representantes na cena política. É no interior dessa perspectiva que ele analisará a ascensão política de Oliver Cromwell.

O terceiro texto, A ditadura do proletariado e a oposição (1928), escrito na esteira do XV Congresso do Partido Comunista, merece ser encarado no interior das mudanças ideológicas e políticas que afetam o partido entre 1920 e 19273, isto é, entre o início das oposições abertas (IX Congresso) por Trotsky e Bukharin, de um lado, e da Oposição Operária, de outro, passando pela rejeição das teses de ambas as oposições e também pela defesa intransigente da unidade do partido e pelo fim das frações (X Congresso), até a criação de uma nova oposição unificada e a consequente expulsão de seus opositores, o que ocorreria no curso do XII, XIII, XIV e XV Congressos do PCUS.

Nesse sentido, A ditadura do proletariado e a oposição expressa a retórica assumida por Pachukanis no que diz respeito às teses do partido. A partir das posições oficiais firmadas no seio do XV Congresso, que consolidou o domínio de Stálin à frente do Partido Comunista, Pachukanis polemiza com a Oposição de Esquerda. O curioso é que essa polêmica permanece sobreposta pelo debate que Pachukanis trava nesse texto com Paul Levi, um dirigente social-democrata alemão. Os erros da Oposição e de Levi são analisados tendo como paradigma não as posições do partido bolchevique, mas aquelas desenvolvidas por Lênin.

Essa é a tática que vai além da retórica aparente e que importa ressaltar. Trata-se de um mecanismo - seja ele inconsciente ou não - que caracterizará aquilo que há de mais profundo e marcante na fase da autocrítica pachukaniana. O aparente alinhamento ao dogmatismo staliniano recobre as posições que Pachukanis busca sustentar, inclusive recorrendo, eventualmente, a citações literais de Marx, Engels e Lênin. Por vezes, essa tática tende a se chocar com os elementos da ideologia stalinista, evidenciando uma certa ausência de coesão textual.

Isso se revela também no quarto texto da coletânea: As novíssimas revelações de Karl Kautsky... (1929). Ao eleger as reflexões de Kautsky para formular suas críticas, Pachukanis reúne esses dois elementos: a crítica a um nome renegado pelo stalinismo e, a uma só vez, a retomada das teses fundamentais dos clássicos do marxismo. Assim, chama atenção a seguinte ideia presente nesse texto: “[...] porquanto o proletariado se coloca diante da tarefa de socializar os meios de produção, ele vai além dos limites da democracia política, fazendo todo o possível para lograr a eliminação das classes, o que tornará desnecessário qualquer Estado” (p. 121, itálico nosso). Temos aqui o exemplo de como sua posição antagoniza a tese stalinista da manutenção do Estado mesmo diante da extinção das classes4.

Sobre a questão da luta de classes no período de transição (1930) tem como foco aparente de polêmica as posições de Bukharin, que é acusado de atentar contra a ditadura do proletariado no período que se segue à tomada do poder político. Na realidade, Pachukanis pretende chamar nossa atenção para o lugar da luta de classes no período de transição socialista. Ele dirá que a edificação do socialismo compete ao proletariado (e não ao Partido); da mesma forma, consignará que o período de transição é o período de agudização e prosseguimento da luta de classes (p. 144).

Esse texto também marca uma posição já registrada por Pachukanis em O aparato de Estado soviético na luta contra o burocratismo (1929)5. Vejamos o que ele nos diz: “a substituição da luta de classes concreta no nosso aparato estatal por apenas defeitos técnicos decorrentes da nossa falta de cultura é muito sintomática da compreensão bukhariana do caráter da luta de classes no período de transição” (p. 148). Uma tal posição evidentemente se chocava com a ideia de que “a técnica decide tudo!”, defendida pelo stalinismo. No centro da questão, portanto, está a permanência da luta de classe no período de transição socialista, tese que seria rechaçada pelo stalinismo a partir da segunda metade da década de 1930.

No escrito Hegel o Estado e o direito... (1931), para além da indicação dos usos políticos da obra de Hegel, Pachukanis apresenta alguma hesitação e dubiedade no que diz respeito à relação entre a filosofia hegeliana e o marxismo a partir da dialética (p. 180). Ao mesmo tempo que afirma que os clássicos do marxismo rejeitaram o sistema hegeliano e preservaram o seu método, Pachukanis também nos diz que a dialética materialista é fruto de uma aprofundada reelaboração feita por Marx e Lênin (p. 188-189). Conforme veremos, essa “vacilação” é superada num outro texto de 1935.

O desenvolvimento posterior do marxismo permitiu afastar qualquer ligação entre Hegel e Marx, na medida em que a dialética, para este último, detinha uma dimensão epistemológica, e não ontológica. Althusser (2015), nesse mesmo sentido, apontou a inadequação de se falar em “inversão” entre a dialética hegeliana e a dialética materialista, na medida em que esta última comporta algo muito diferente daquela: o processo de prática teórica, graças ao qual uma ideologia pode se transformar em ciência.

A dialética materialista é qualitativamente distinta da dialética hegeliana, que não concebe essa ruptura, essa descontinuidade entre as diferentes generalidades (Althusser, 2015, p. 153). A dialética materialista não comporta teleologismo; na medida em que ela parte de conceitos, tampouco concebe a redução do processo de pensamento ao processo de gênese do real, conforme registrado pelo próprio Marx (2008, p. 259). Exemplo de como essa distinção entre os métodos hegeliano e materialista afeta especialmente a análise do direito pode ser visto na obra de Celso Kashiura Jr (2014).

O sétimo texto da coletânea, A teoria da luta e da vitória do proletariado... (1931), é um dos mais significativos. Escrito em homenagem ao 50º aniversário de morte de Karl Marx, o que ocorreria apenas em março de 1933, o texto foi, por algum motivo, publicado praticamente dois anos antes. No nível da especulação, poderíamos dizer que o medo e a ousadia de Pachukanis justificariam essa publicação prematura. Afinal, nele está a denúncia - sem que seus alvos sejam nomeados - de que a falsificação do marxismo atingiu níveis surpreendentemente grandes (p. 194). Nesses escritos de Pachukanis, o silêncio e a ausência nos dizem muito! É muito expressiva, nesse sentido, a sua afirmação de que o espólio de Marx e Engels teria sido absorvido por Lênin (p. 195) - não por Stálin.

As citações de Marx a respeito da transição socialista e da forma política desse período de transição (p. 204-208) constitui o meio pelo qual Pachukanis “devolve” ao proletariado o protagonismo na luta de classes, então transferido ao Partido e ao Estado. No mesmo escrito, utilizando essa mesma tática, Pachukanis denuncia os revisionismos e as deturpações em torno da teoria do Estado de Marx (p. 220), remetendo a leitora e o leitor sempre aos temas da quebra do Estado burguês, da necessária construção de um novo aparato no período de transição e do seu processo de definhamento e extinção.

Claro que esse elemento não vem desacompanhado de algumas frases que apenas cumprem o papel de “amenizar” ou “recobrir” as contradições que Pachukanis, ainda que implicitamente6, aponta entre as teses clássicas do marxismo e as posições que vão se consolidando como parte do repertório stalinista. Dentro de tais limites é que afirmações como estas precisam ser encaradas: “Os 15 anos de existência da União Soviética puseram à prova a doutrina de Marx sobre o período de transição” (p. 192), “O marxismo em ação é a URSS” (p. 195). São fraseologias a que Pachukanis recorre para recobrir sua ousadia e preservar, dentro de todos os limites, a sua problemática original.

O leninismo segue triunfando (1934) evidencia uma outra dimensão da tática adotada por Pachukanis: aquela orientada a colocar questões que, a rigor, ficam sem respostas, mas cumprem o seu papel de serem lançadas ao público7. É o caso da pergunta formulada por ele a respeito do declínio do caráter revolucionário da Revolução de Outubro e da preservação do capitalismo na União Soviética (p. 230). O mesmo se verifica com relação à repressão do sistema soviético (p. 233), à tese do socialismo num só país e à invenção stalinista do “leninismo” (p. 237).

O ano de 1934, momento em que seu principal algoz, Andrei Vychinski, já ocupava o cargo de procurador adjunto e editor adjunto da revista editada pela Prokuratura8, exigiu de Pachukanis um pouco mais de cautela. É possível que seja essa conjuntura mais restrita que tenha feito com que ele adotasse, para além das fraseologias, posições abertamente economicistas nesse escrito. Nele localizamos posições ideológicas muito características do stalinismo, como aquela do definhamento do Estado através de seu fortalecimento, da viabilidade do socialismo num só país, da redução do problema do burocratismo à especialização dos quadros, da defesa da propriedade socialista como a base do socialismo soviético etc.

Entretanto, a integridade intelectual de Pachukanis atraiçoa a necessidade de sua autopreservação. Em termos teóricos, o que verificamos é a tentativa de Pachukanis de se manter fiel à sua problemática original, ao mesmo tempo que recorre à retórica do discurso ideológico stalinista, tal como constatou Naves (2008). O nono escrito, A propósito da questão da preparação de quadros da edificação soviética e do direito (1934), segue essa mesma característica. Aqui há ainda um outro componente até certo ponto inusitado. Pachukanis inicia seu escrito com uma quantidade enorme de dados estatísticos a respeito dos quadros e do problema da especialização. Ao final, é possível concluir que essa tática buscava inebriar um registro perigosíssimo feito por ele já nos parágrafos finais do texto.

Nesse escrito se destacam as passagens contendo posições típicas do stalinismo, assim como registros em que Pachukanis reconhece a existência de um direito soviético e defende a necessidade de profissionalização e especialização dos quadros - defesa que contrasta com a sua posição no já mencionado relatório de 1929. No entanto, ao final do texto, somos surpreendidos com uma brevíssima, mas profunda constatação: Pachukanis denuncia a existência de relações contratuais na União Soviética (p. 273). Essa simples passagem merece ser analisada no bojo da problemática teórica presente na obra A teoria geral do direito e o marxismo ([1924] 2017, 388 p.).

Como aponta Biondi (2019, p. 13), na teoria pachukaniana, o contrato se apresenta como “o momento mais elevado da mediação jurídica no interior do processo econômico capitalista”. E, ao final, percebemos que são precisamente essas relações contratuais que exigem, segundo Pachukanis, “atenção especial à preparação de especialistas em direito econômico soviético” (p. 273). Ou seja, não é, a rigor, a transição socialista que exige a preservação de todos esses elementos (fortalecimento do Estado, especialização de dirigentes que atuarão na frente de comando, um sistema original de direito), mas o reconhecimento explícito feito por Pachukanis a respeito da permanência das relações de produção capitalistas. É isso que sustenta o sistema e o direito soviéticos.

Tal conclusão se estende ao décimo escrito, A reconstrução do aparato do Estado e a luta contra o burocratismo (1934). Apesar de numa primeira leitura esse texto apontar para uma posição de antagonismo com o relatório de 1929, já que aqui se destaca a defesa da especialização dos quadros, o seu desfecho não poderia ser menos revelador: Pachukanis retorna à necessidade de que o aparato estatal seja reestruturado e que as massas assumam os postos de gestão e controle (p. 286). Registra-se, ainda, que esse escrito compartilha da mesma posição que Pachukanis defendia no relatório de 1929, e que certamente figuraria como uma sentença de morte àquela altura em que o stalinismo se movimentava rumo à defesa da inexistência de classes hostis: o jurista bolchevique aponta o burocratismo como um problema de luta de classes, isto é, de “reminiscência do capitalismo” (p. 278) e de influências burguesas e pequeno-burguesas no aparato de Estado (p. 285).

Em Engels como teórico do marxismo e lutador pelo marxismo revolucionário (1935), Pachukanis volta a reafirmar que Marx e Engels reformularam as contribuições fornecidas pela filosofia hegeliana (p. 290), ou melhor, “superaram a compreensão idealista de Hegel” e, como consequência fundaram uma “nova concepção do mundo” (p. 291). Diferentemente do texto de 1931, aqui há uma posição firme quanto à ausência de qualquer continuidade entre a dialética hegeliana e a dialética materialista. É sintomático que Pachukanis se dedique a escrever sobre Engels, em 1935, recuperando de suas obras passagens absolutamente impertinentes se considerada a conjuntura então dominada pelo stalinismo.

Pachukanis retoma ideias que colidem com o stalinismo. Exemplo forte é a tese do definhamento do Estado em geral (p. 296), da luta implacável de Engels contra o sectarismo dogmático que resultava no afastamento do movimento operário e do movimento de massas (p. 300), da necessidade apontada por Engels de que ocorra a vitória simultânea da revolução proletária nos países capitalistas (p. 304) etc. Ao final, Pachukanis ainda conclui que “o marxismo vive e viverá apesar de todas as perseguições sangrentas!” (p. 306).

O décimo segundo escrito, O bolchevismo e os soviets de 1905 (1935), está inserido num contexto mais amplo em que a ideologia stalinista busca estabelecer um elo evolutivo e de continuidade entre os processos revolucionários, elo que refletiria no suposto caráter proletário e socialista do sistema soviético. E isso na medida em que a conjuntura de 1930 seria a herdeira, o ponto de chegada, dos momentos anteriores, especialmente do legado político dos combatentes de 1905 e de 1917 e do legado teórico leniniano (passa a ser comum o uso do termo “Lênin-Stálin”). Assim, esse texto se destaca pela forte presença do teleologismo na análise de Pachukanis sobre a Revolução de 1905, percebida como gênese, ou seja, como o início genético, da Revolução de Outubro de 1917, sem qualquer margem para a contingência. É na Revolução de 1905 que encontram-se, segundo ele, as “origens profundas” da Revolução de Outubro de 1917.

A Constituição de Stálin e a legalidade socialista (1936), assim como O Estado e do direito sob o socialismo (1936), são os dois últimos textos que encerram a coletânea e os que mais se faz sentir a ausência de uma introdução que remeta a leitora e o leitor ao debate relativo ao complexo processo de autocrítica imposto a Pachukanis. Ambos os escritos evidenciam, num plano mais imediato, aquilo que poderia ser a imagem da dramática resignação de Pachukanis. Neles, verificamos afirmações que contrariam as ideias presentes n’ A teoria geral do direito e o marxismo. O reconhecimento do socialismo como um modo de produção original (p. 331), por exemplo, não encontra eco nos seus escritos anteriores. Ao contrário, essa tese é abertamente rechaçada:

[...] o período de transição não conhece relações de produção específicas [...]; quando a ditadura do proletariado realiza a transição revolucionária do capitalismo para o comunismo, não pode ser considerado como uma formação socioeconômica especial e completa [...]. Nós não temos um sistema acabado de relações de produção, porque estamos transformando-o a cada dia e a cada hora (PACHUKANIS, 1930, p. 42 apudNAVES, 2008, p. 99).

Essa perspectiva do socialismo como passagem, isto é, como período de transição, e não como um modo de produção no qual dominariam relações de produção socialistas, seria mais tarde desenvolvida, no interior do marxismo e de modo muito preciso, por Balibar (1977; 1980), que formula suas posições a partir do “primado das relações de produção” (ALTHUSSER, 2008; LA GRASSA, 1975; PANZIERI, 1976; 2016). O mesmo pode ser dito sobre a própria compreensão do direito, que, nessas páginas que conservam os últimos suspiros de Pachukanis, é reduzido à vontade do povo (p. 337), concepção que seria aprofundada por Vychinski nos anos seguintes9.

Esse terrível processo se revela especialmente na frase final do texto: “a edificação com base nela (na Constituição soviética de 1936) de um sistema íntegro do direito socialista - eis a tarefa imediata dos juristas soviéticos” (p. 346). Apesar disso, num último ato de bravura, Pachukanis surpreende-nos. Pachukanis coloca em primeiro plano a defesa de suas formulações originais. O meio encontrado para realizar tal perigosa tarefa consiste, conforme suas próprias palavras, em “submeter, mais uma vez, à crítica merecida as proposições errôneas que o autor destas linhas apresentou no livro A Teoria Geral do Direito e o Marxismo” (p. 356).

A partir dessa aparente autocrítica explícita, Pachukanis retoma, inclusive com passagens literais, os eixos centrais de sua concepção sobre o direito, especialmente aquele que o concebe como uma forma burguesa cuja determinação mais profunda reside na troca de equivalentes no modo de produção capitalista (p. 358), de tal sorte que a superação das relações de produção capitalistas levaria à extinção da forma jurídica (p. 357). De acordo com Naves, isso revela o caráter artificial do “ajustamento” feito por Pachukanis à sua obra original:

De qualquer forma, é significativo que Pachukanis não apenas recupere suas antigas ideias, mas que possa citar o seu livro A teoria geral do direito e o marxismo, de modo a sustentar a sua exposição, quando esse livro já havia sido ‘oficialmente’ banido [...]. As referências que Pachukanis faz a seu trabalho maior apenas demonstram o quanto o seu ‘ajustamento’ tem de artificial, de submissão forçada à pressão política, administrativa e policial da direção stalinista, e a sua resistência a ela [...] (NAVES, 2008, p. 148-149).

Para concluir

Após esse caminho, é preciso atribuir razão à afirmação de Márcio Naves (2008, p. 123) de que “a concepção jurídica pachukaniana é, no âmbito teórico, um dos únicos obstáculos à consolidação do direito burguês no período de transição”. Um exemplo significativo dos combates travados por Pachukanis para preservar o marxismo científico e o caráter revolucionário de sua obra pode ser localizado no prefácio que ele escreve para a edição alemã de A teoria geral do direito e o marxismo. Vejamos o que ele nos diz já no ano de 1929:

Mas as experiências da Revolução de Outubro mostraram que, mesmo depois do desmoronamento dos fundamentos da velha ordem jurídica, mesmo depois que as antigas leis, prescrições e regulamentos se transformaram em um monte de papel descartável, os velhos modos de pensar ainda revelam uma assombrosa resistência. A luta contra a visão de mundo jurídica burguesa ainda hoje se apresenta como uma tarefa para os juristas da República Soviética. (PACHUKANIS, 2017, p. 66, itálico nosso).

Quando se debruçou sobre parte dos textos que agora passam a compor a obra O marxismo revolucionário de Pachukanis, Márcio Naves (2008, p. 125) concluiu que após 1930 a concepção teórica de Pachukanis passou por uma modificação substancial. Naves (2008, p. 127-128) identificou nesse período de autocrítica dois momentos: no primeiro, haveria um desiquilíbrio entre as novas posições assumidas por Pachukanis e a sua concepção original, que, de algum modo, manter-se-ia preservada; no segundo momento, o que se dá a partir de 1936, Pachukanis teria assumido uma teoria do direito e do Estado em conformidade com a orientação stalinista, o que se chocaria com sua obra A teoria geral do direito e o marxismo.

A partir desse quadro é que Naves (2008) se põe a analisar o período de autocrítica de Pachukanis, sempre de modo conjugado com a teoria científica da transição socialista e a crítica da formação social e econômica soviética, especialmente porque, dirá Naves (2008, p. 141), “o reconhecimento de um direito socialista depende de uma concepção a respeito da natureza do período de transição”. A importância da análise inovadora de Naves reside na complexidade por ele captada em torno do processo de autocrítica de Pachukanis. Em linhas gerais, sua conclusão caminha no sentido de reconhecer uma modificação substancial na concepção do jurista bolchevique, assim como a persistência da problemática teórica original, ainda que esta permaneça encoberta por uma outra problemática de natureza ideológica própria do discurso stalinista.

Na falta de um obituário adequado da vida e obra de Pachukanis, os textos traduzidos para a língua portuguesa contidos em O marxismo revolucionário de Pachukanis constituem uma novidade que merece ser muito comemorada. Afinal, esses escritos são, em definitivo, o testemunho da luta de Pachukanis pela sobrevivência e da integridade teórica de um pensador marxista que foi esmagado pelo capitalismo de Estado soviético e pelo stalinismo. Para além dessa dimensão moral e política, em termos teóricos, a coletânea ora publicada permitirá que o debate em torno da concepção pachukaniana no período de autocrítica, inaugurado no Brasil por Márcio Naves (2008), seja retomado no interior de uma discussão ainda mais abrangente, que passa pela teoria da transição socialista e pela crítica ao stalinismo.

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______. Sobre o uso capitalista das máquinas no neocapitalismo. In: Crítica Marxista. nº. 42, Campinas: Unicamp, p. 129-144, 2016.

STÁLIN, Iosef. O proyekte Konstitutsii Soyuza SSR: Doklad na Chrezvychaynom VIII Vsesoyuznom syezde Sovetov (1936). Discurso de 25 de novembro de 1936. Disponível em: http://grachev62.narod.ru/stalin/t14/t14_40.htm. Acesso em: julho de 2020.

VYCHINSKI, Andrei. The fundamental tasks of the science of Soviet Socialist Law. In. Soviet Legal Philosophy. p. 303-341. Trad. Hugh W. Babb. Cambridge - Massachusetts: Harvard University Press, 1951.

Notes

1 Por “stalinismo” designamos o período em que Stálin esteve à frente do Partido Comunista da União Soviética e a problemática ideológica em que suas formulações teóricas estão inseridas. O termo também designa um momento da formação ideológica soviética que se identifica com a ideologia da burguesia de Estado. O desenvolvimento dessa concepção pode ser conferido em O stalinismo como ideologia do capitalismo de Estado de Bettelheim e Chavance (2005, p. 75-112). Por outro lado, o termo “staliniano”, de acordo com o fim que atribuímos a ele, designa as obras e as posições que são próprias de Stálin.
2 A respeito da caracterização da formação social e econômica soviética como um capitalismo de Estado, conferir Bettelheim (1976; 1978; 1983).
3 Para uma análise detalhada das mudanças ideológicas e políticas ocorridas no interior do partido bolchevique, conferir Bettelheim (1976; 1983).
4 A respeito desse tema, conferir Stálin (1936).
5 Referido texto, traduzido por Lucas Simone, integra a edição de A teoria geral do direito e o marxismo publicada pela editora Sundermann em 2017 e coordenada por Marcos Orione. Conferir Pachukanis (2017, p. 303-347).
6 Vejamos, por exemplo, a constatação feita por Naves (2020, p. 86) com relação ao “reconhecimento implícito [de Pachukanis] de que o Estado soviético não teria uma natureza proletária”.
7 De acordo com Naves (2008, p. 149), Timasheff teria notado essa tática num texto intitulado The Crises in the Marxian Theory of Law (in New York University Law Quarterly Review, v. XVI, nº. 4, 1939).
8 A propósito da vida e do caráter ideológico da obra de Vychinski, conferir nosso trabalho “Crítica do direito e do Estado soviéticos: um estudo sobre Andrei Vychinski” (Ed. Enunciado, no prelo).
9 Conferir Vychinski (1951).


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