Artigos inéditos
Received: 10 May 2024
Accepted: 17 May 2024
DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2024/84274
Resumo: No conjunto de escritos de Kafka, O veredicto é considerado como o ponto de inflexão do autor para uma produção artística própria e singular. Em suas cartas e diários, o escritor descreve o fechamento do texto como um acontecimento marcado pela alegria, pelo êxtase e por uma sensação torrencial ligada a impressões viscerais e corporais. Neste artigo, pretendemos tratar esse emaranhado de impressões e a própria escrita de O veredicto como um processo ligado à conquista de uma nova existência. Para chegar a essa conclusão, propomos um percurso teórico que se desdobra em três análises distintas: a) a leitura de O veredicto realizada por George Bataille, a partir da relação entre transgressão pura e recusa soberana; b) a leitura do mesmo texto realizada por Deleuze e Guattari, incluindo-o de forma crítica no desenvolvimento mais amplo da escrita kafkiana (cartas, novelas, romances); c) por fim, a nossa proposta de estabelecer uma relação entre O veredicto e o conceito de advocacia das existências menores, tendo como inspiração a obra recente de David Lapoujade.
Palavras-chave: Direito, Literatura, Kafka, Existências mínimas, Advocacia das existências.
Abstract: Within Kafka's body of work, The Verdict is considered the turning point for the author's own unique and singular artistic production. In his letters and diaries, the writer describes the completion of the text as an event marked by joy, ecstasy, and a torrential sensation linked to visceral and bodily impressions. In this article, we intend to address this tangle of impressions and the writing process of The Verdict itself as a process linked to the conquest of a new existence. To reach this conclusion, we propose a theoretical journey that unfolds in three distinct analyses: a) the reading of The Verdict carried out by George Bataille, based on the relationship between pure transgression and sovereign refusal; b) the reading of the same text conducted by Deleuze and Guattari, critically including it in the broader development of Kafka's writing (letters, novellas, novels); c) finally, our proposal to establish a relationship between The Verdict and the concept of advocacy for minor existences, inspired by the recent work of David Lapoujade.
Keywords: Law, Literature, Kafka, Minimal existences, Advocacy for existences.
Introdução
O contexto básico a partir do qual Franz Kafka escreve O veredicto (1913) já está razoavelmente estabilizado pela crítica1. O primeiro dado consensual é que a narrativa define uma espécie de ponto de erupção do universo kafkiano, após alguns anos de tentativas fracassadas de escrita e pressões para a publicação de um texto com valor literário. Apesar de ter nascido de um só golpe, de dez da noite às seis da manhã, entre 22 e 23 de setembro de 1912, O veredicto é visto como a primeira fagulha de uma longa chama, atravessando a escrita do autor e deixando uma marca em seus colegas e no entorno literário de Praga. Trata-se do conhecido ritual de passagem através do qual um escritor inseguro, preso em revisões e rascunhos intermináveis, se revela confiante, límpido e preciso e imediatamente se dá conta disso. Kafka experimentaria pela primeira vez a força peculiar de seu estilo: a capacidade de forjar uma “perfeição em movimento” (Brod, 1995, p. 38), extraída da tensão entre um narrador onisciente, seletivo e implacável e o desfecho dramático que encerra um processo de reviravolta, arrastando todos os personagens para um turbilhão irresistível.
O segundo dado que é usualmente mencionado sobre a escrita de O veredicto se refere ao encontro de Kafka com a jovem Felice Bauer. Segundo o biógrafo Reiner Stach, a noite de 13 de agosto de 1912 não modificou apenas a vida daqueles que estavam no Café Savoy, mas constitui “um desses momentos que transformaram visivelmente a história da literatura alemã, e talvez da literatura mundial” (Stach, 2022, p. 116). Em seus diários, uma semana após o encontro, Kafka reconhece sua total falta de curiosidade com relação à Srta. Felice Bauer, emitindo o seu conhecido “veredicto inabalável”: aspecto de “criada”, roupa bem caseira, nariz quase quebrado, cabelos loiros, rijos e sem graça e um “rosto ossudo e vazio” que “exibia abertamente a própria vacuidade” (Kafka, 2021, p. 242).
Paradoxalmente, como já sabemos, o contato com essa suposta vacuidade será o disparador de uma intensa troca epistolar, perfazendo um total de quinhentos e onze cartas escritas no período de cinco anos, além de dois noivados frustrados2. No caso de O veredicto, contamos não só com uma dedicatória direta (“uma história para a senhorita Felice B”), mas também, como lembra Modesto Carone, a coincidência de iniciais entre a futura noiva real de Kafka e Frieda Brandenfeld, a pretendente fictícia do protagonista Georg Bendemann (Carone, 2021, p. 76).
Por fim, o terceiro aspecto lembrado pela crítica sobre o contexto da narrativa é a sensação final de satisfação sentida pelo escritor, intensamente associada a imagens viscosas e torrenciais. Max Brod, relembrando os seus diários da época, assinala que Kafka estava “em um inacreditável êxtase”, “em grande inspiração”, “escrevendo noites inteiras adentro” (Brod, 1995, p. 128, nossa tradução). Em seu diário, na entrada do dia 23 de setembro de 1912, Kafka registra que, em determinado momento da escrita, o cansaço se esvaiu por completo e ele passou a escrever “de corpo e alma”. Com o desfecho da narrativa, ele se vê tomado por uma vários sentimentos: “a alegria de ter algo de belo para a Arkadia de Max, pensamentos sobre Freud, é claro, sobre Arnold Beer em certa passagem, sobre Wassermann em outra, sobre Die Riesin (A gigante), de Werfel (...)” (Kafka, 2021, pp. 259-260).
Além disso, em carta para Max Brod, relata que sentiu como se sua mente tivesse sido tomada por uma “violenta ejaculação” (Brod, 1995, p. 129, nossa tradução). Ainda na entrada de 23 de setembro de 1912, Kafka registra no diário: “O cansaço terrível e a alegria com a história que se desenrolava diante de mim e com meu avanço como se por uma torrente” (Kafka, 2021, p. 259, grifo nosso). Alguns meses depois, no registro do dia 11 de fevereiro de 1913, lemos: “(...) a história saiu de mim como um verdadeiro parto, coberta de sujeira e muco, e só eu tenho a mão capaz de alcançar o corpo e a vontade de fazê-lo” (Kafka, 2021, p. 288).
Neste artigo, pretendemos tratar esse emaranhado de impressões e a própria escrita de O veredicto como um processo ligado à conquista de uma nova existência. A hipótese central é que Kafka em seu processo de escrita atua como um advogado de existências menores, conquistando o direito de existir através de procedimentos de instauração e intensificação de uma realidade ainda minoritária. Para chegar a essa conclusão, propomos um percurso teórico que se desdobra em três análises distintas: a) a leitura de O veredicto realizada por George Bataille, a partir da relação entre transgressão pura e recusa soberana; b) a leitura do mesmo texto realizada por Deleuze e Guattari, incluindo-o de forma crítica no desenvolvimento mais amplo da escrita kafkiana (cartas, novelas, romances); c) por último, a proposta de estabelecer uma relação entre O veredicto e o conceito de advocacia das existências menores, tendo como inspiração a obra recente de David Lapoujade. Para iniciar este percurso, no entanto, faremos um breve resumo da narrativa desenvolvida em O veredicto.
1. Breve resumo da narrativa:
Georg Bendemann está em seu quarto, em um prédio de construção leve, que acompanha outros edifícios enfileirados, formando uma sequência que segue o leito de um rio. É uma manhã de domingo, no auge de uma ensolarada primavera. Ele acaba de escrever uma carta ao amigo estrangeiro e, por um momento, inclina o seu corpo sobre a escrivaninha, olhando para o rio, para a ponte e para as colinas na outra margem. Em plena ascensão, está preparado para se consolidar na sociedade dos adultos, fazendo parte de um grupo de jovens bem-sucedidos que se manteve na cidade, prosperando no comércio herdado do pai. Essa herança indica que o personagem, até então, segue a linha de continuidade “natural” cujo legado vai do pai para o filho, compondo a passagem da infância/juventude para o mundo maduro dos negócios e dos assuntos sérios (Kafka, 2021, p.09).
Por sua vez, o retrato do amigo situado no estrangeiro indica um primeiro contraste. Insatisfeito com suas perspectivas na terra natal, ele se refugia na longínqua Rússia, inaugurando uma casa comercial na cidade de São Petersburgo. Essa casa, após um começo promissor, estava estacionada e ele se desgasta inutilmente fora do país, apresentando uma exótica barba que ocupa todo o seu rosto e uma pele amarelada que indica algum tipo de moléstia em evolução. Não mantém nenhuma relação com a colônia de seus conterrâneos e, tampouco, se entrosa com as famílias locais, encaminhando-se para uma vida de celibatário. Coloca-se, assim, como alguém que está no movimento oposto em relação a Bendemann, como um estrangeiro/solteiro incapaz de realizar a transição plena e saudável para a sociedade da época.
Tendo em vista os movimentos opostos, o narrador aponta que uma “comunicação real” entre o protagonista e seu amigo da Rússia seria impossível. O próprio amigo explica a sua ausência suscitando a incerteza da situação política na Rússia, embora milhares de cidadãos daquele país estivessem circulando pelo mundo todo. Georg Bendemann, considerando que ele “tinha saído dos trilhos” (ibidem, p.10), decide escrever apenas sobre incidentes insignificantes, na medida em que se acumulam fortuitamente nas manhãs de domingo. Em uma dessas descrições, ele anuncia por três vezes o noivado de uma pessoa sem importância “com uma moça igualmente sem importância” (Ibid, p.12), percebendo que o amigo se interessou por essa ocorrência notável.
Por outro lado, é o próprio Georg Bendemann que também está noivo, de uma senhorita chamada Frieda Brandenfeld, resistindo em contar a novidade para o amigo. A noiva, reclamando o direito de conhecer todos os amigos de Bendemann, afirma que, se ele tem um amigo assim, “não deveria ter ficado noivo” (Ibid, p.13). O protagonista, insistindo na negativa, explica a situação de seu amigo em terras estranhas, sua indisposição para viagens e eventos sociais e diz temer que o amigo se sinta ainda mais sozinho em seu retorno.
No entanto, acontece uma reviravolta na narrativa e tomamos conhecimento de que a carta que estava sendo escrita por Georg Bendemann, naquela manhã, é o anúncio de seu noivado para o amigo na Rússia. Ele informa que a sua noiva é uma jovem de família bem situada e que se estabeleceu na cidade após a partida do amigo, portanto, ambos não se conheciam. Deixando os detalhes para depois, Bendemann afirma que está muito feliz e que a única mudança que aconteceria na relação entre os dois é que agora o amigo distante teria não só um amigo comum, mas um amigo feliz. Além disso, deixa claro que sua noiva será uma nova e sincera amiga, algo importante para um solteiro, terminando com um convite para que o amigo faça uma visita à terra natal na ocasião do casamento.
O curioso é que o narrador faz intervir o pai, não por pura intromissão, mas por uma procura realizada pelo próprio Georg Bendemann. Ou seja, a rigor não há motivo algum para o compartilhamento da carta, pois ambos ainda trabalham juntos, como demonstra o próprio texto: “de resto, não havia nenhuma necessidade disso, pois sempre encontrava o pai na loja e almoçavam juntos em um restaurante” (Ibid., p. 14). No entanto, é a partir dessa procura que o personagem começa a notar e descrever a situação de seu pai em casa. O quarto é escuro, mesmo estando a manhã ensolarada; há uma enorme sombra causada por um muro alto e a janela não aponta para a vastidão da paisagem. Pelo contrário, o ambiente é totalmente claustrofóbico.
É neste momento que inicia a súbita investida do pai contra Georg Bendemann em uma espécie de confronto direto, facilitado pela ausência da mãe, falecida há dois anos. Ela começa com a negação da existência do amigo na Rússia: “você nunca teve nenhum amigo em São Petersburgo. Você sempre foi um trapaceiro e não se conteve nem mesmo diante de mim” (Ibid., p.18). O filho reage lembrando a visita realizada há três anos pelo amigo à casa da família, tendo este recebido grande interesse e atenção por parte do pai. No mesmo movimento, ele passa a acalmar o pai, despindo-o de sua camisa e meias de linho, censurando-se pelas roupas de baixo estarem sujas, indicando abandono, e colocando-o para repousar na cama com o corpo inteiramente coberto.
Aqui já é possível perceber a infantilização de Georg Bendemann diante da figura paterna. Quando o roupão pesado de seu pai se abre ele pensa: “meu pai continua sendo um gigante” (Ibid., p. 15). O anúncio do noivado “a São Petersburgo” é feito com “Georg buscando os olhos do pai”. Ao mesmo tempo, ele tenta exercer a sua tutela de filho diante do pai envelhecido: “(...) temos de encontrar um novo modo de vida para você. (...) Não, pai! Vou chamar o médico e nós seguiremos as prescrições dele”. (Ibid., p. 17). Na mesma linha, é o próprio filho que propõe uma substituição de lugares: “vamos trocar de quarto, você vai para o da frente, eu venho para este. (...) Se é assim, deite-se por enquanto na minha cama. Aliás seria uma coisa muito sensata” (Ibid., p. 18).
A inversão proposta pelo filho acaba ocorrendo, mas não através do clima de comiseração e aceitação que ronda esses momentos, e sim através de uma intervenção violenta do próprio pai. Ele lança, ferozmente, o cobertor para o alto e recusa a ajuda do filho nos seguintes termos: “você queria me cobrir, eu sei disso meu frutinho, mas ainda não estou coberto. E mesmo que seja a última força que tenho, ela é suficiente para você, demais para você. É claro que conheço o seu amigo (...)” (Ibid., p. 20). É neste ponto que o pai afirma possuir total controle sobre a comunicação com o amigo da Rússia e acusa Georg Bendemann de traição, mencionando a decisão sobre o casamento. A imagem de pai, agora, aparece como aterrorizante e o amigo vagueia perdido na vasta Rússia, diante de sua loja vazia e saqueada.
O desfecho é acelerado pela figura do pai que se inclina para frente, afirma ser o mais forte da relação e diz dominar há tempos a interlocução com o amigo da Rússia: “é por isso que há anos ele não vem, ele sabe de tudo cem vezes mais do que você mesmo, amassa sem abrir as suas cartas na mão esquerda enquanto com a direita segura as minhas diante dos olhos para ler” (Ibid., p. 23). O mesmo ocorre com relação ao trabalho na loja. Georg Bendemann menciona, espantado, como o pai possui bolsos até em seu camisolão, de onde ele retira também o contato de toda a sua clientela. Um jornal velho é atirado contra ele, com um nome já totalmente desconhecido e indecifrável. Os espaços de comunicação e os movimentos de expansão já estão todos controlados pela figura paterna. Não à toa, Georg Bendemann permanece encolhido em um canto o mais distante possível do pai (Ibid., p.21).
É a partir da recuperação do domínio sobre o que caracteriza a sociedade dos adultos - a casa, a loja, a relação com o amigo e, por fim, a realização do casamento - que o pai, enfim, profere o veredicto de condenação à morte por afogamento: “na verdade você era uma criança inocente, mas, mais verdadeiramente ainda você era uma pessoa diabólica! Por isso saiba agora: eu o condeno à morte por afogamento!” (Ibid., p. 24). O cumprimento da sentença é acompanhado por uma resignação infantil do filho ao saltar da ponte em frente à casa, com o sussurro: “Queridos pais, eu sempre vos amei” (Ibid., p. 25). No momento do salto para a morte, o trânsito em cima da ponte era imenso e, curiosamente, a luz, a cidade, a água, os fluxos e até o apetite do protagonista retornam à cena, rompendo com as imagens anteriores de clausura e escuridão.
2. É preciso queimar Kafka?
De acordo com o resumo da narrativa, temos que a passagem para a sociedade dos adultos é bloqueada pela intervenção dominadora do pai, que recai sobre pontas distintas: de um lado, Georg Bendemann não consegue completar a transição almejada com o noivado em razão do veredicto paterno; de outro, o suposto amigo da Rússia resta isolado em terra estrangeira, assumindo-se celibatário e isolado do protagonista pelas intervenções do pai. A morte, portanto, é apenas a decorrência lógica dessa ausência de possibilidades, fazendo com que o próprio texto se desmorone em um fim abrupto. Resta uma espécie de clarão que opõe um jovem destinado à morte e a figura paterna que insiste por sua presença útil na sociedade dos adultos.
São essas considerações que estão presentes na análise do filósofo George Bataille sobre a literatura kafkiana e serão, inicialmente, objeto de nosso debate. Em seu ensaio É preciso queimar Kafka? (1957/2015), publicado logo após a Segunda Guerra Mundial, George Bataille não só argumenta que a situação infantil em Kafka é uma chave central para a compreensão de O veredicto, como mostra que ela se opõe às exigências das sociedades modernas (capitalistas ou comunistas), ligadas ao trabalho, à disciplina, à obediência e ao amor à pátria3. Inscrita no coração de sociedades onde há sempre uma tarefa a ser realizada ou um sacrifício a ser feito, o sopro angelical dos personagens kafkianos veicula uma recusa livre e verdadeiramente soberana, despida de qualquer meta ou finalidade. Para Bataille, Kafka “se conduzia de maneira a se tornar insuportável para o mundo da atividade interessada, industrial e comercial, queria se manter na puerilidade do sonho” (Bataille, 2015, p. 148).
No entanto, essa puerilidade do sonho não se traduz, em Kafka, em uma simples fuga da realidade, narrada, por exemplo, através das crônicas de juventude ou das narrativas de aventura. Para ser plena, a fuga kafkiana deve ser direcionada não para fora, mas para o interior do mundo utilitário, buscando ali mesmo uma liberdade soberana, ou seja: “para ser livre, ele teria de ser fazer reconhecer como tal pela sociedade dominante” (Ibid.). O combate, dramaticamente, assume a figura de uma luta mortal: uma busca por liberdade no exato lugar que é menos apto a permiti-la. Ora, a obsoleta sociedade feudo-patriarcal-austríaca poderia até permitir à criança os caprichos inerentes à infância, mas apenas como passagem para a sociedade paterna dos negócios, em especial no caso de judeus filhos de imigrantes em processo de assimilação.
Diante de aparatos tão poderosos e inescapáveis, trata-se, infelizmente, de uma fuga destinada ao fracasso. Mas que não deixa de ser iluminada por uma lucidez sem qualquer piedade e proporcional à violação de uma lei indestrutível. A fuga, em Bataille, é uma verdadeira experiência-limite de transgressão e de afirmação de uma soberania sem meta, voltada para o “nada”4. Quando se está no limite próprio da transgressão (uma experiência soberana), a clareza da solução só comporta um gesto: “a única saída era entrar pela morte, abandonando plenamente a particularidade (o capricho, a infantilidade) no mundo do pai” (Ibid., p. 149). Kafka sabia disso e chegou a escrever em seu diário, em 1917, que a morte era o caminho para o “grande dia de reconciliação”, para o dia da volta ao pai. Na reconciliação final, não faz mais sentido opor anjos e demônios, ou proliferar as demandas infernais que nos impelem à ação obediente. Existe apenas o artista e sua frágil escrita: tão somente os contornos e as cavidades de um entalhe na pedra: “AQUI JAZ”5.
A morte aparece como um paroxismo ou o sonho de uma experiência-limite que não exige mais nada, nem mesmo da própria linguagem. Bataille recorre a Michel de Carrouges para destacar, na literatura modernista do início do século XX, uma proliferação de máquinas celibatárias, inúteis e delirantes, expressão que é derivada da obra Le Grand Verre (1915-1923), de Marcel Duchamp6. Carrouges, não por acaso, dá especial atenção ao valor poético contido no murmúrio final de Georg Bendemann - “sempre vos amei” - em sua relação com a alegria de seu duplo, o próprio Kafka, ao terminar o texto. Essa alegria tem um estatuto próprio, diverso do simples contentamento utilitários: ela é o resultado de uma liberdade em vertigem, uma violenta e solitária “ejaculação”, um impulso “de corpo e alma” destinado, como vimos, ao puro nada.
Ora, de início, Georg Bendemann realizava com sucesso a sua transição para a sociedade dos adultos, substituindo o seu pai nos negócios, conseguindo um noivado promissor e evitando, de certa forma, o caminho sem volta do amigo na Rússia. Mas com a sentença de morte o paradoxo está instalado: a figura paterna interrompe, utilizando as suas últimas forças, a possibilidade de continuação do seu próprio estatuto. A imagem paterna, assim, não será mais replicada, nenhuma criatura receberá o legado das sociedades produtivistas, cinzas e burocráticas. Para Bataille, a sentença de morte em O veredicto indica que, em Kafka, a literatura aparece como uma máquina celibatária, sem filhos e seguidores, sem demagogia para novas gerações ou ordens para crédulos seguirem.
Uma máquina curiosa, que se autodestrói. Um construto que é demoníaco em sua própria inocência, instalando-se no coração do triunfalismo que inaugura o século XX. Aqui irrompe o humor kafkiano, tão difícil, aliás, de ser apreendido: “só a morte era vasta o bastante, suficientemente esquiva à ‘ação-perseguindo-a-meta’, para excitar ainda, dissimulando-o, o humor endiabrado de Kafka” (Ibid., p.155, grifo nosso). Assim, o filósofo insere Kafka em seu repertório de autores malditos (Sade, Baudelaire, Blake etc.), aqueles que experimentam um excesso para além de qualquer lei e que atingem em seus pressupostos a sociedade dos adultos. A transgressão de Kafka é aquela que faz tremer a base das próprias instituições e da linguagem em geral.
Em O veredicto, Georg Bendemann inclina-se de forma sutil para o interior do próprio pai (que o nega) para ali depositar a sua força inútil e soberana: um fazer-se morrer que conclui o fechamento de todos os espaços. Inútil, porém livre: “ele se inclina amando, morrendo e opondo o silêncio do amor e da morte àquilo que não poderia fazê-lo ceder, pois o nada, que do amor e da morte não poderia descer, é soberanamente o que ele é” (Ibid., p. 157, grifo do autor). Os fluxos voltam ao final do texto kafkiano, mas como uma torrente sem utilidade, eis que a morte se protege de silêncio e de nada, ou seja, o ruidoso tráfego de automóveis retorna, mas para silenciar o momento da morte de Georg Bendemann. Tudo resta encerrado em um “aqui jaz”, cuja fulguração já ocorreu sem deixar herdeiros e testemunhas.
3. Kafka: uma literatura menor
Apesar da riqueza das provocações de Bataille, existe nelas um problema que permite redirecionar, a partir de um segundo tipo de análise, a leitura de O veredicto. Bataille não deixará de reconhecer, em seus escritores prediletos, que “a atitude soberana é culpada e infeliz”, mesmo se embriagada de uma “infância vagabunda” e de uma “liberdade inútil” (Ibid., p. 154). Igualmente, ainda que inovando na descrição do tipo de conflito, a análise da literatura de Kafka continua presa na figura do pai e na transgressão de uma lei. Por sua vez, o humor kafkiano só encontra um espaço de pleno exercício através da vastidão apontada pela morte.
No auge de sua pesquisa sobre Kafka, em parceria com Félix Guattari, o filósofo Gilles Deleuze afirmou que enxergava em Bataille uma espécie de seminarista ainda subordinado à lei dos padres ou às leis de um papa. A sua análise continuava muito francesa, fazendo do pequeno segredo (o típico tema ligado ao papai-mamãe, aos padres, à consciência culpada ou ao olhar vigilante e superior de um Deus) não só a essência da literatura, como um exercício provinciano de “triste masturbação narcísica e piedosa” (Deleuze; Parnet, 1996, p.57). Essa dura crítica7 ao trabalho de Bataille, nos leva à própria alternativa teórica criada por Deleuze e Guattari, no livro Kafka: por uma literatura menor (1977/2023).
Lançado em um ambiente de forte polêmica com a psicanálise e com as leituras religiosas, marxistas, existencialistas e “familistas”, o objetivo do livro é claro: recusar os infinitos clichês de interpretação que privilegiam, em Kafka, a presença de uma culpabilidade inesgotável, a inexorabilidade de uma lei transcendente e absurda, de uma realidade travestida de sonho ou pesadelo ou de um sofrimento atroz que assola o escritor solitário e atormentado. É preciso resgatar Kafka desse atoleiro de metáforas, símbolos, arquétipos e representações em que ele foi terrivelmente aprisionado. É urgente expulsar da crítica todo o culto impotente sobre culpa, Édipo, neuroses, confissões, fantasmas, labirintos religiosos que nos impedem de pensar a experiência em seus múltiplos deslocamentos e relações8. Nada de fuga onírica ou exposição à morte, mas sempre uma experimentação real, em todos os seus agenciamentos, engrenagens, fluxos, máquinas literárias, sociais e técnicas (Deleuze; Guattari, 2023, p. 23).
Nessa linha, o sopro de infância, que Bataille tão bem identificou em Kafka, deixa de ser apenas um princípio puro de transgressão (demasiado kantiano em sua semelhança com os imperativos) e se transforma em um protocolo pragmático de experimentação: “elas [as crianças] têm todo um mapa geográfico e político com contornos difusos, moventes, que seja em função das babás, das domésticas, dos empregados, do pai etc.” (Ibid., p.26). Kafka nunca deixou de se interessar pelas crianças, justamente porque elas podem ser ótimas intercessoras entre os mundos da casa, da família, da vizinhança, do trabalho, dos empregados, do comércio e, no limite, estão também inseridas nos grandes embates mundiais.
Além disso, por serem atravessadas por devires minoritários e perspectivas não usuais, facilmente as forças da inocência são capazes de fazer corpo com outros devires que habitam o universo kafkiano: homens-insetos, ratinhas cantoras, cães músicos, cavalos advogados, macacos artistas, nômades, bonecas viajantes etc. Em sua particular capacidade de associação disforme (p.ex. o agenciamento criança-empregada, ou criança-inseto), ou em sua articulação com as saídas animais (as tocas, os bandos, os ruídos do mundo animal), o devir-criança é diabólico porque “encosta em todos os agenciamentos sem se deixar prender em nenhum e leva sempre mais longe a inocência de uma potência de desterritorialização que se unifica com a saída (a lei-esquiza)” (Ibid., p. 110).
As crianças deixam de veicular apenas as forças negativas da inoperância - a liberdade do “nada” - e se abrem para toda uma micropolítica onde o diabólico não é uma liberdade que evanesce para morte, mas uma força capaz de arrastar o mundo para outro conjunto de relações e transformações. Se Kafka foge de uma representação da criança como reserva nostálgica de pureza, de ternura ou como um corpo neurótico já marcado pelo edito paterno, é para apreender verdadeiros blocos de infância, que nada tem a ver com um conjunto de lembranças ou com uma transgressão impossível e extemporânea. Nenhum “segredinho” a ser revelado, nenhuma morte tomada pelo lirismo da violação, apenas: “intensidades mais altas que a criança compõe com as suas irmãs, seus camaradas, seus trabalhos e seus jogos, e todas as personagens não parentais sobre as quais ela desterritorializa seus pais cada vez que pode” (Ibid., p. 141).
Quando o sopro infantil é trabalhado como capacidade de acoplar mundos de forma inesperada ou como intensidade que arrasta os mundos já codificados para um devir-outro (fazer fugir a tríade familiar pai-mãe-filhos, ou a tríade casa-família-negócios), é a própria ideia de máquina celibatária que muda radicalmente. O aspecto autodestrutivo, inútil ou delirante dessas máquinas não está mais encapsulado na pureza da transgressão, mas resulta de suas inúmeras possibilidades de agenciar, cortar, compor, articular, sobrepor, separar e fazer funcionar novos componentes maquínicos, evitando a paralisia da significação derradeira. Se ela não se entrega a um sentido último ou a uma interpretação definitiva, é porque há sempre - logo ao lado - um corredor, uma adjacência, um acoplamento ou novas entradas e saídas possíveis.
Por isso, se a máquina literária de Bataille ainda é uma máquina isolada, fazendo com que a morte (autodestruição) seja tomada como uma espécie de clarão envolto de silêncio, a máquina celibatária em Deleuze e Guattari já está inteiramente ligada “a um campo social de conexões múltiplas” (Ibid., p. 127). Qualquer tentativa de isolamento indica, tão somente, uma perda de intensidade, uma incapacidade de estender a relação. É o que acontece, por exemplo, com o retorno de ilusões ligadas aos ideais de pureza, à lei do Pai, ao familismo, à paralisia dos arquétipos, em suma, ao “provincianismo” que Deleuze atribui a Bataille e ao debate francês em geral9.
Neste aspecto, a morte também deve ser vista de outra maneira. Ambos os filósofos percebem o movimento kafkiano de fugir para dentro da máquina, mas em Deleuze e Guattari, o resultado fatal pode ser lido como uma mudança de estado, de acoplamento ou de rota ocorrida na própria fuga. É claro que Kafka, em seus momentos de fraqueza, se deixou atrair pela ideia religiosa de uma grande reconciliação obtida pela morte, mas na sua literatura é sempre a experimentação que prevalece: a linha de fuga, diz os autores, faz parte da própria máquina (Ibid., p. 17). Ela não leva ao confronto derradeiro, mas a um processo sem fim, cujo problema principal é “de modo algum ser livre, mas encontrar uma saída, ou bem uma entrada, ou bem um lado, um corredor, uma adjacência, etc.” (Ibid).
A fórmula “inocentemente diabólico”, nestes termos, não aponta para a reconciliação de uma morte que deposita, em contrapartida, o silêncio inútil no interior da sociedade dos pais. Ela é experimentada através de um fluxo contínuo de cartas que Kafka põe em circulação para evitar as armadilhas do casamento e da família, criando uma distância aparentemente segura e exercitando a sua força de escrita. Kafka, então, se aproxima de Dracula: para evitar a “cruz da família” e o “alho do contrato conjugal”, ele não dorme à noite, fecha-se em seu escritório-caixão e envia cartas sem cessar para Felice Bauer, esperando delas um pouco de sangue, de força e de vitalidade para escrever. Por isso, “o pacto faustiano diabólico é buscado numa fonte de força longínqua, contra a proximidade do contrato conjugal” (Ibid., p. 61).
Esse pacto diabólico, tão bem identificado pelo pai em O veredicto, tenta conjurar a captura pela conjugalidade, pela família, ou pela relação edipiana, através de um afastamento no qual o emissor da carta (o sujeito de enunciação) realiza um movimento aparente. Através dele, a apresentação plena (“este sou eu”) é substituída por uma trama que envolve perguntas incessantes, hábitos diários, questões sobre a própria escrita, avaliação sobre o sistema de correspondência, comentários sobre as diferentes cidades vividas pelos dois sujeitos ou a descrição detalhada de situações, exigências e obstáculos existentes na relação afetiva. Tudo para que uma distância segura seja estabelecida através do fluxo incessante das cartas, evitando a proximidade do pacto conjugal, edipiano e familiar. Para Deleuze e Guattari, é na duplicação produzida por esse movimento, entre uma vida real já normalizada e uma vida potencial obtida pela máquina das cartas, que mora o Diabo, ou seja, a fórmula “inocentemente diabólico”, presente em O veredicto.
Mas o pacto diabólico ainda é demasiado estreito e sujeito a bloqueios, cansaços, logros e situações sem saída. Tudo ainda soa demasiado frágil. Entre o esforço permanente de duplicação, que demanda de Kafka uma escrita torrencial e exaustiva, e o reforço da dinâmica por Felice Bauer ou por outro destinatário, impõem-se inúmeras intromissões, reversões, processos paralelos e a impossibilidade de criar. É o “Tribunal de Berlim” que se instala, paralelamente às cartas, sobre o noivado com Felice Bauer e as verdadeiras intenções de Kafka, atraindo as famílias, os amigos e todo um jogo de defesas e acusações. Ou, então, mesmo antes, é a entrada da amiga de Felice Bauer, Grete Bloch, que subdivide novamente o duplo fazendo com que o procedimento vampírico entre em curto-circuito10
Por isso, Deleuze e Guattari consideram que O veredicto carrega já o pressentimento de que a máquina das cartas sofrerá uma reversão e uma decomposição irreversível. O pai na narrativa não é aquele que apenas sentencia à morte, diante de uma transgressão pura. Ele investiga, anula a existência do amigo russo como destinatário, depois reivindica para si um fluxo de cartas com o mesmo amigo, sem o conhecimento de Georg Bendemann. Por sua vez, o amigo usaria esse canal para denunciar a traição do protagonista. O duplo virtual criado através das cartas, para diferir o casamento iminente e a presença esmagadora do pai, fracassa diante da facilidade pela qual os fluxos são bloqueados, revertidos e convertidos em processo: “o perigo do pacto diabólico, da inocência diabólica, não é de modo algum a culpa, é a armadilha, o impasse no rizoma, o fechamento de toda saída, a toca entupida por todo o lado. O medo. O diabo é, ele mesmo, pego na armadilha” (Ibid., p. 64).
É que o pacto diabólico não oferece uma linha de fuga ativa e criadora, pelo contrário, reenvia, facilmente, o escritor para dentro da armadilha (Ibid., p. 71). Se a passagem para as novelas já constitui um avanço maquínico com relação às cartas, em O veredicto ainda temos um conflito edipiano que impossibilita a linha de fuga, caracterizando uma novela sem invenção. Não há no texto nenhum indício de devir-animal ou de um deslocamento para novos mapas de força (como em A metamorfose) e a entrada no vasto mundo do amigo russo resta definitivamente bloqueada. Portanto, a morte de Georg Bendemann ao final indicaria, para Kafka, um limiar que só será transposto pelo enriquecimento da própria máquina de escrita. Será preciso passar pelas novelas e, ao mesmo tempo, experimentar os romances inacabados onde já estamos em um ambiente repleto de agenciamentos sociais e políticos complexos, que não mais demandam uma tríade edipiana para se consolidar.
Com esse movimento, a própria análise de Deleuze e Guattari sobre Kafka não está mais presa à tríade infância-Diabo-morte, mas se desloca para o terreno mais vasto das literaturas menores, marcadas por uma desterritorialização da língua, por uma relação direta entre o individual e o político e a presença de um agenciamento coletivo de enunciação. A máquina celibatária kafkiana, ao contrário de Bataille, não se deposita mais no interior do seio paterno, aquilo que Deleuze denomina de uma transgressão ainda muito provinciana. Ela busca um mundo mais vasto, composto de povos potenciais, novos regimes de sensibilidade, novas intensidades, devires inacabados e agenciamentos mais complexos. Na alternância simultânea entre cartas, novelas e romances, o que existe é a experimentação dessa multiplicidade.
4. A advocacia das existências menores
Vamos agora propor uma terceira leitura possível de O veredicto, a partir de um incômodo que se refere à leitura de Deleuze e Guattari. A nosso ver, apesar da proposta de uma leitura rizomática11 já constar logo na abertura de Kafka: para uma literatura menor, o livro ainda mantém um viés evolutivo que caminha da experiência de uma escrita mais frágil (cartas) para uma mais complexa (romances). Um sintoma desse viés, aliás, reside justamente no desaparecimento progressivo de O veredicto do livro, na medida em que os capítulos avançam para os romances inacabados. Outro sintoma é a pouca reflexão sobre o papel exercido pelo amigo da Rússia na novela, personagem que sucumbe rapidamente quando é visto como simples elemento de um triângulo edipiano, na sequência da captura das cartas pelo pai12.
A estratégia que propomos para ultrapassar os limites da leitura de Deleuze e Guattari de O veredicto parte da premissa oposta. É preciso valorizar a posição ambivalente ocupada pelo amigo da Rússia como uma espécie de limiar que impede o fechamento do próprio texto, seja pela morte redentora de Bataille, seja na reversão do procedimento das cartas realizada pelo pai. O nosso argumento principal, neste ponto, é que essa valorização exige outra reflexão sobre a função do celibatário na narrativa kafkiana. Não estamos mais tão ligados ao aspecto da inutilidade, nem à capacidade da máquina em se agenciar por multiplicidade, mas ao celibatário como alguém que clama por uma advocacia de existências menores.
Em suas leituras sobre Kafka e Beckett, que não deixam de guardar uma evidente continuidade com Deleuze e Guattari, o filósofo David Lapoujade retoma o personagem do celibatário, descrevendo-o como aquele que está “sozinho, sem nenhum círculo, sem posses, privado dos direitos mais elementares. No mapa do mundo, ele ocupa um ponto minúsculo, quase invisível” (Lapoujade, 2017a, p. 105). Ele é aquele que está destituído de tempo, de espaço, de linguagem e não sabe nem mesmo se possui um corpo. O celibatário é, então, o despossuído por excelência: “ele vive em mundo onde está despossuído de todos os direitos” (Ibid., p. 106). E, citando diretamente os diários de Kafka, Lapoujade relembra: “o celibatário não tem nada diante dele e, por isso, não tem nada atrás. No instante, isso não faz diferença, mas o celibatário só tem o instante” (Lapoujade apud Kafka, 2011, p. 105).
Em suas análises sobre a obra de Henry James, Lapoujade retoma a definição de celibatário, com marcas mais negativas. Ele é aquele que sofre com a despossessão do tempo e, por isso, “vive separado de seu próprio presente no qual ele poderia agir” (Lapoujade, 2022, p. 300). Diante dessa separação, o estatuto do celibato traduz a própria percepção de si mesmo como um isolado e pertence a uma série de personagens que James denomina de “pobres homens sensíveis” (Ibid., p.301). Em aproximação direta com a obra de Kafka, Lapoujade afirma que o escritor americano não se interessa pelo celibato como uma realidade social, à maneira de Balzac, mas como uma “condição de existência” (Ibid.). Nesse sentido, a existência do celibatário não seria a mesma daquela de um excluído, aproximando-se mais da figura de um recluso que, mesmo mantendo algum vínculo com os seus próximos, não é capaz de transmitir nada.
Adquirindo tons negativos, ele vive em um permanente tempo de espera, que acaba coincidindo com uma vida inteira. Essa espera, no entanto, tem uma marca própria: “não está no tempo, ela é uma disposição em relação ao tempo inteiro; o tempo se confunde com a forma de espera infinita” (Ibid., p. 303). Com isso, o próprio tempo se dilui em uma espera pura sem qualquer experiência do presente, tornando-se apenas uma forma transcendental. O celibatário está recluso neste tempo vazio e precisa de um acontecimento para que uma experiência efetiva da vida seja retomada. Trata-se, nesse caso, de romper com a despossessão do próprio tempo e de conquistar um direito à experiência real, no exato sentido que o pragmatismo americano conferiu ao termo: uma conquista concreta de capacidade de agir, de acreditar e de compor relações em universo sempre inacabado e pluralista13.
Difícil não notar que a descrição do celibatário é perfeitamente coerente com a qualificação ambivalente que o narrador Kafkiano realiza do amigo perdido na Rússia. Ele rompe com todos os seus laços, se torna estrangeiro em seu próprio país, seu rosto se torna irreconhecível e seu corpo amarelado. A sua despossessão possui um duplo sentido: por um lado, é um personagem que se afasta do confronto ruidoso e exagerado entre pai e filho na mesma casa, em torno do legado da ordem (a sociedade dos adultos); por outro, está dramaticamente confrontado com a possibilidade da morte, do isolamento egoísta e da ruína plena. Em suma, está salvo dos perigos de sua vida anterior, mas ainda incapaz de se apropriar do tempo e de uma experiência efetiva de vida. Para não sucumbir na vastidão devoradora de uma Rússia desértica, precisa conquistar o elementar direito de existir.
É preciso, portanto, iniciar um outro procedimento, com toda uma série de novas consequências. Lapoujade denomina de anáfora, o processo pelo qual uma existência tenta conquistar mais realidade. A anáfora, por seu turno, está sempre acompanhada de um gesto, chamado de instauração, pelo qual uma existência afirma o seu direito de existir (Lapoujade, 2017a, p. 103). Logo, anáfora e instauração são inseparáveis porque a intensificação da realidade deve vir acompanhada de uma conquista de direitos ligada à existência. Para o filósofo, a pergunta de Kafka é estética e política por colocar a seguinte questão: “Mas o que acontece quando estamos totalmente despossuídos do direito de existir segundo determinado modo? Quando não há mais nenhuma saída?” O que equivale, também, a dizer: “você tem o direito de existir, é claro, mas não dessa maneira, nem dessa outra maneira, nem de nenhuma maneira...” (Ibid).
Se o celibatário não pode desdobrar a sua existência a partir de um fundamento já dado (a sociedade dos adultos e suas repartições de sentido, de tarefas e de ordem), mas também não pode permanecer no tempo vazio e perigoso da espera infinita, então só resta substituir essa espera formal por um processo efetivo. Nesse sentido, Lapoujade resgata a mesma importância atribuída por Deleuze e Guattari ao processo diferido (ilimitado) kafkiano. É preciso iniciar e manter o processo para afastar a proximidade de uma condenação, seja à morte ou à espera sem vida. Enquanto o processo tramitar não há veredicto, não há culpados, não há inocentes e nem corredores por onde circula um vazio sem presente. O soberano é mantido à distância e, com isso, as sentenças de morte são evitadas.
Em uma ênfase que consideramos decisiva, essa atividade é associada, por Lapoujade, à tarefa do advogado. É o advogado que atua para contestar a arbitrariedade do tutor dos fundamentos (o juiz) e é capaz de reencontrar os direitos do espoliado, incluindo o direito a repossuir o próprio tempo, colocando em movimento o processo enquanto tal. Esta advocacia, por sua vez, não pode ser descrita como uma atividade limitada ao círculo profissional dos advogados, pois ela surge do contato entre estética e política. Logo, o processo é sempre um processo artístico e o que está em jogo é, invariavelmente, uma pluralidade de artes da existência.
Ao retomar a filosofia da arte de Étienne Souriau, em especial o livro Diferentes modos de existência (Souriau, 1943/2020), Lapoujade (2017a) afirma que estamos diante de uma filosofia do direito que é também filosofia da arte, percorrendo as figuras estéticas como verdadeiros personagens jurídicos. Se criamos dispositivos para ver, sentir e pensar existências frágeis, atuamos como uma espécie de testemunha que atesta o valor de algo. Se convocamos essa testemunha para que esse valor seja defendido em um “processo”, nos tornamos advogados daquilo que, talvez, estivesse já condenado a não existir, a não ser visto, a não ter realidade. Quid Iuris? Cada existência precisa encontrar a sua autenticidade e vencer a disputa contra as condenações vindas do ceticismo, da suspeita e do isolamento.
Por isso, os artistas ou os filósofos, sejam quais forem os seus estatutos, são, ao mesmo tempo: “advogados cujos diversos sistemas discorrem a favor de novas entidades que instauram e cuja legitimidade querem atestar. Eles fazem existir novas realidades, onde antes ninguém tinha visto nada, imaginado nada (...)” (Ibid., pp. 22-23). Por se direcionar às existências frágeis e evanescentes, essa advocacia requer uma atenção especial ao que Souriau denomina de modo de existência virtual, ao lado de outros modos descritos por ele, como os dos fenômenos, das coisas e dos imaginários. Os virtuais formam o universo mais rico e mais amplo, uma nuvem que está sempre à nossa volta, mas que é também o mais evanescente e mais próximo do nada (Ibid., p. 38). Eles não definem uma arte por si mesmos, mas exigem que uma arte seja criada, que gestos possam lhe dar uma existência mais real.
Aqui podemos retomar a “situação infantil” em Kafka, agora na forma de um advogado-criança que é capaz de perceber virtualidades em mundo estático marcado pelo acabamento e pelas constantes sentenças de morte. Lapoujade recupera o exemplo da mãe que desarruma os objetos cuidadosamente compostos por uma criança em cima da mesa, fazendo-a chorar. O que faltou a mãe? O que ela não viu? Como ela sentenciou? Por certo, criança e mãe enxergam a mesa e todos os objetos sobre elas dispostos. Mas faltou a mãe perceber o modo de existência próprio desses objetos, com suas arquiteturas e virtualidades, do ponto de vista da criança. É por trabalhar com outro conjunto de dados e uma forma específica de ocupar o tempo - a exigência de limpar a mesa, organizar a casa, garantir a ordem do mundo - que ela não vê e não é capaz de explorar outras possibilidades (Ibid., p. 44). O advogado-criança, por outro lado, é aquele que é capaz de percorrer as inúmeras aberturas e fendas desenhadas pelos virtuais na ordem das coisas, tanto para percebê-las, como para traçar a partir delas um espaço de criação.
Portanto, em O veredicto, diferentemente da leitura de Deleuze e Guattari, o processo já está instaurado: juízes, testemunhas e advogados já comparecem e uma nova existência reclama os seus direitos. Em razão da violência abrupta que permeia a história, os leitores são facilmente conduzidos a dar atenção à dualidade pai e filho, conflito tão presente no imaginário neurótico moderno. Mas o que resta do amigo da Rússia? De certa forma, a senhorita Frieda Brandenfeld já havia alertado: Georg Bendemann não deveria ter um amigo assim. É ele que produz o desvio ambivalente ao se deslocar para a vastidão de uma pátria desconhecida, onde uma existência clama por um processo (artístico) para ter direito à vida. É ele que nos atrai para fora dos conflitos da casa e do trabalho e modifica os termos do problema: ou a reclusão da espera infinita, ou as possibilidades de um processo artístico ilimitado, que está apenas começando.
E São Petersburgo não seria, por acaso, e perigosamente, a pátria dos escritores? Em carta para Felice Bauer, tendo decorrido um ano da escrita de O veredicto, Kafka menciona Dostoievski, não como uma inspiração qualquer, mas como um verdadeiro parente de sangue. Reiner Stach nota como nos anos decisivos, entre 1911 e 1914, Kafka se lança em busca de uma existência como escritor, tentando forjar uma própria linhagem da qual faria parte: “ele cria uma tradição para si próprio, uma linhagem, atrela a sua própria existência, que é única, à corrente sanguínea da história” (Stach, 2022, p. 374). Nessa busca, Kafka vislumbra a existência de uma terra dos escritores, um “eterno inferno” onde poderia encontrar os seus parentes: Kleist, Grillparzer, Kierkegaard e Flaubert, além de Dostoievski.
Em Kafka, existe, portanto, uma invenção diabólica ligada, não apenas ao fluxo de cartas, mas à própria terra em sua virtualidade: trata-se de vislumbrar uma pátria, mesmo que “infernal”, para os escritores. Estamos longe, agora, de uma situação pueril ou angelical. O celibatário brota deste inferno coberto de sujeira e muco, alegria e exaustão e sem nenhuma pureza a ser contemplada. O único risco que o ameaça é a despossessão absoluta, isto é, o inferno como terreno hostil, indiferenciado e vazio de existência. É preciso, assim, invocar toda uma astúcia - uma astúcia dos advogados? - para que a nova terra se configure, não como uma nova morada do ser, mas como uma verdadeira arte de viver.
A partir dessa perspectiva, a sentença de morte que conclui O veredicto não deixa de ilustrar uma redundância miserável e banal. Ambos, pai e filho, se aniquilam porque são simplesmente os mesmos, incapazes de qualquer novo gesto e impossibilitados de qualquer criação. O trânsito, o rio, a paisagem, as montanhas, tudo permanece igual. Nenhum rito ou cerimônia tenta dar dignidade à terrível dramaticidade do momento. Aliás, nem o som do sacrifício é possível de ser escutado, tudo flui normalmente. Estamos circularmente de volta ao início da narrativa, observando a mesma paisagem contemplada por Georg Bendemann em sua busca sem arte e invenção. Aliás, o “humor endiabrado” kafkiano ri e faz deboche da mesmice contida em todo esse rol de banalidades e destemperos irrelevantes14.
Mas do ponto de vista do advogado, essa morte não é inútil. Ela põe termo a uma fase (a)processual onde só há sentenças a serem cumpridas e não uma arte a ser praticada. A própria máquina celibatária carrega essa ambivalência: inútil sim, mas ainda uma obra de arte em movimento. Como lembrou Max Brod, “Kafka está em êxtase”, ele havia descoberto, não só o seu próprio estilo, mas uma forma de advogar em favor dos que ainda não conquistaram um direito a existir. De agora em diante, o processo já estará correndo e toda uma população de existências menores será convocada a comparecer a um universo que é irredutivelmente jurídico, político e estético.
Conclusão
É comum pensar a atividade literária de Kafka como algo que ocorre de forma isolada ou conflitante com a sua atividade jurídica realizada na Assicurazioni Generali de Praga. O próprio escritor contribuiu para essa visão, já que em suas cartas, diários e testemunhos constam sinceros relatos de sofrimento, e até desespero, sobre o efeito esmagador de seu cotidiano profissional. Por outro lado, não podemos deixar de perceber que o escritório de Kafka também servia como um espaço de confluência entre escritores amadores, apreciadores da literatura, como local de crítica artística, de trocas de livros e de especulação sobre o destino das artes em geral.
Ao contrário, porém, de muito dos seus colegas de trabalho e de convívio, que buscavam extrair da língua uma prosa poética e rebuscada, Kafka decide utilizar o alemão jurídico-burocrático em sua áspera simplicidade. A essa crueza da língua, se soma a figura de um narrador que é “implacável” (Carone, 1998; Stach, 2022) ao encadear todos os fatos e expor a lógica do personagem, como se estivéssemos percorrendo fases processuais determinadas por lei. Os personagens, por sua vez, são planos o suficiente para deslizar de etapa em etapa, sem causar a mínima interrupção na sequência pretendida.
Isso poderia caracterizar Kafka como um questionador visionário da burocracia das sociedades modernas, ou seja, um escritor a ser consumido pela necessidade infinita de crítica que marca a própria modernidade. Em nossa leitura, Kafka é, antes de tudo, um advogado-artista. Em sua arte, os encadeamentos passam a seguir uma lógica anômala para nos levar à vastidão de terras pouco habitadas e de existências frágeis, evanescentes e ainda virtuais. O Kafka-advogado não é um acusador (crítico), nem um juiz (que sempre antecipa o mesmo veredicto), mas simplesmente um artista em processo: aquele que desvia as sequências de sua previsibilidade para conquistar outra visibilidade.
Se O veredicto é o texto consensualmente estabelecido para definir a estreia de Kafka como escritor, isso não se deve apenas pela descoberta de um “estilo”. Trata-se do início de um processo artístico que se confunde com o próprio direito a existir. Para dar mais intensidade a esse movimento, Kafka se aproveita da superficialidade jurídica, percorrendo com leveza as suas sequências narrativas anômalas. Durante esse percurso, o que está em questão não é apenas introduzir o “inútil” no coração do utilitarismo moderno, ou produzir um duplo (uma farsa) ainda insuficiente, mas iniciar uma arte da existência em todos os seus direitos.
Se, em nossa leitura, o personagem do amigo da Rússia é tão relevante, é porque ele empurra a lógica binária entre pai e filho para outro lugar, abrindo uma sequência menor que deve ser prolongada artisticamente. Nesse caso, processo jurídico e processo artístico se confundem e compartilham a mesma anomalia: a prática errante de uma advocacia que coloca em seu centro o clamor pela existência, algo que, sem dúvida, interessa a nós e a todas as minorias.
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Notes