Resenhas
A crítica da economia política como teoria social: HEINRICH, Michael. Introdução a O capital de Karl Marx. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2024.
A crítica da economia política como teoria social: HEINRICH, Michael. Introdução a O capital de Karl Marx. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2024.
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e85050, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
| HEINRICH Michael. Introdução a O capital de Karl Marx. 2024. São Paulo. Boitempo |
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Received: 13 June 2024
Accepted: 09 August 2024
Após duas décadas da sua publicação original na Alemanha, a Boitempo oferece - com tradução de César Mortari Barreira e revisão de Guilherme Leite Gonçalves - a Introdução a O capital de Karl Marx, de Michael Heinrich, convertendo em título o subítulo da Kritik der politischen Ökonomie: Eine Einführung in ‘Das Kapital’ von Karl Marx. Livro que, segundo o próprio Heinrich em seu Prefácio à Edição Brasileira, “se tornou rapidamente a introdução mais vendida de O capital de Marx, sendo logo seguido por traduções em vários idiomas” (p. 17, todos os grifos em citações são de Heinrich). Além da Apresentação de Barreira, a obra é composta por dois Prefácios (da edição brasileira e da primeira edição alemã) e doze capítulos. Os dois primeiros capítulos dão uma “caracterização preliminar do objeto de O capital”, enquanto os demais, até o décimo, percorrem “de forma muito ampla o percurso argumentativo dos três volumes escritos por Marx: os capítulos 3 a 5 analisam o Livro I; o capítulo 6, o Livro II; e os capítulos 7 a 10, o Livro III” (p. 22). O capítulo 11 aborda “sucintamente” um possível conceito e “crítica do Estado” vinculada à “crítica do capital”, e o capítulo 12 faz “uma breve discussão sobre o que Marx entende por socialismo/comunismo - e o que isso não significa” (p. 22).
Saliento a qualidade da apresentação de Barreira porque ela, primeiramente, situa o contexto intelectual de emergência da obra. Trata-se de uma Introdução baseada em livro anterior de Heinrich, publicado em 1999, Die Wissenschaft vom Wert (A ciência do valor), que, por sua vez, se coloca como uma contribuição no interior da chamada Neue Marx-Lektüre (nova leitura de Marx) empreendida nos anos 1960 e 1970 por dois “alunos de Adorno” (p. 12), Hans-Georg Backhaus e Helmut Reichelt, mas igualmente por Helmut Brentel e, para mencionar um autor afim a essa nova leitura nos Estados Unidos, Moishe Postone (1993). Nova leitura que, no Brasil, tem marcante influência nos trabalhos de Mario Duayer (2023) e do próprio Barreira (2023), este elogiado por Heinrich por sua “importante contribuição à teoria de Marx com seu livro Teoria monetária do direito” (p. 18). Para de pronto apontar um aspecto crucial da nova leitura de Marx, que se vale amplamente da edição crítica das obras completas de Marx e Engels a partir de 1975 (MEGA 2), ela abandona qualquer imagem da obra de Marx como um ‘’sistema’ fechado” ou “’doutrina’ finalizada” e toma-a fundamentalmente como ‘um programa de pesquisa (categorialmente) inacabado, aberto” (p. 11). Logo, também O capital é lido como “um work in progress fragmentário, oscilante” e atravessado por “ambivalências” (p. 13).
Em segundo lugar, a Apresentação nos dá a chave do que destacarei ao resenhar a obra, quando indica que a nova leitura de Marx sedimenta “o caminho para a compreensão da teoria do valor enquanto teoria social” (p. 12). A crítica da economia política “pressupõe uma sincronização conceitual com diferentes realizações cognitivas para fins de construção de uma teoria da sociedade” (p. 15). A nível macro pergunta-se: “como é possível a ordem social?” (p. 15).
Heinrich nos oferece, inicialmente, uma sucinta definição de capital e de capitalismo. Capital, entendido como “uma determinada soma de valor cujo propósito é ‘valorizar-se’, isto é, gerar lucro” (p. 28), pode expressar-se como capital portador de juros (determinação de uma taxa de juros ao emprestar dinheiro), capital comercial (valorização pela diferença entre compra e venda) e capital industrial (valorização por meio da exploração da força de trabalho em interação com os meios de produção). Se o capital portador de juros e o capital comercial existiram antes do capitalismo, este só pode ser definido quando, na caracterização das relações de exploração e dominação, há a passagem: a) da predominância de relações pessoais (como no feudalismo) para uma “relação sistêmica” (p. 27), que se dá “por meio” (p. 26) da liberdade e igualdade formais dos indivíduos; b) e da primazia de uma produção orientada para “a satisfação de necessidades” para a primazia da “valorização do capital” (p. 27), de modo que esta torna-se um imperativo do sistema e não um ímpeto moral do capitalista x ou y. Como expressa a fórmula geral D-M-D’, capital é “valor que se valoriza”, “fim em si mesmo... desmedido e interminável” cuja finalidade é a produção de “mais-valor, um conceito que não é encontrado nem na economia política clássica nem na economia moderna” (p. 96).
Embora cite uma passagem bastante conhecida do capítulo sobre a acumulação primitiva, que evidencia o vínculo deste processo tanto com o sistema colonial e escravista como com os processos de cercamentos, Heinrich faz questão de enfatizar que o “capitalismo é... um fenômeno predominantemente europeu e moderno” (p. 28). Nisto revela uma definição de capitalismo ainda fortemente nucleada - o que também é claro no Cap. IV de O capital - em torno do primado da força de trabalho formalmente livre, prescindindo de diálogo com as diversas críticas a essa premissa evidenciadas pelas abordagens do subdesenvolvimento, do capitalismo dependente (Florestan Fernandes), da teoria da dependência e, mais recentemente, aquilo que Aníbal Quijano (1990) chama de “nova heterogeneidade histórico-estrutural”. Abordagens que trazem para a frente o vínculo, sempre presente, do capital com as mais diversas relações de produção e trabalho, no centro e na periferia.
Contra o que chama de marxismo como Weltanschauung (visão de mundo), Heinrich se localiza no lastro de um movimento de retomada da crítica da economia política a partir dos anos 1960/1970: “Louis Althusser e seus colaboradores” (p. 38), a popularização dos Grundrisse por Roman Rosdolsky e, como já vimos, a nova leitura de Backhaus e Reichelt. Contra a transformação de O capital em uma “economia política marxista” pelo marxismo como visão de mundo, a nova leitura relê com rigor filológico a “crítica da economia política” (p. 39). E qual é a teoria social que a crítica da economia política nos revela?
No capítulo 2, um primeiro aspecto para responder essa pergunta é o distanciamento explícito de Heinrich das leituras historicizantes de O Capital. Para o autor, a teoria social presente nessa obra não se concentra
nem na história do capitalismo nem em determinada fase histórica dele, mas em sua análise “teórica”: o objeto da investigação são as determinações essenciais do capitalismo, isto é, aquilo que deve permanecer igual em todas as transformações históricas para que possamos falar de “capitalismo” como algo geral (p. 43).
Numa afinidade não explicitada com a virulenta crítica dos autores de Lire Le Capital ao historicismo/empiricismo, a teoria social de O capital oferece, segundo Heinrich, uma “apresentação categorial”, ou seja, “fornece, em primeiro lugar, as categorias fundamentais para a investigação tanto de uma fase específica quanto da história do capitalismo” (p. 43). Faz-se não uma “história pura dos eventos”, mas “a história de uma sociedade em seu nível estrutural” (p. 43). A análise categorial do mais complexo é a chave para investigar o desenvolvimento que a ele levou, por isso os capítulos históricos de O capital sempre sucedem os capítulos teórico-categoriais: “As passagens históricas complementam a apresentação teórica, mas não a fundamentam” (p. 44). Nesse necessário complemento do categorial pelo material histórico, Marx se distingue da a-historicidade e tendência naturalizante de “grande parte da ciência econômica atual” (p. 44), que retira, a fórceps, a economia do tecido histórico, social, político e cultural.
Ademais, essa teoria social é uma crítica da totalidade dos “pressupostos categoriais de toda uma ciência” (p. 45), a economia política. A expressão maior dessa crítica categorial está na análise da forma valor: não se trata apenas de indicar que o trabalho humano é o conteúdo do valor, mas de perguntar-se por que esse conteúdo toma a forma de valor. Na crítica da economia política, é a análise categorial e não-historicizante da forma valor que permite fundamentar a radical historicidade do valor e do modo de produção nele fundamentado, por isso trata-se tanto de uma “crítica do conhecimento” como das próprias “relações de produção capitalista” (p. 47) e das expressões destas ao nível da consciência.
A partir dessas considerações, chegamos ao terceiro capítulo que, segundo Heinrich, “não apenas constitui o pressuposto para tudo o que se segue como evidencia um alinhamento com a ‘nova leitura de Marx’” (p 22). Reitero que, como sugere Barreira, lerei esse capítulo e o restante da obra a partir de uma pergunta básica da teoria social: como a ordem social é possível?
Nesse sentido, destaca-se uma primeira formulação após as definições conhecidas de mercadoria, valor de uso, valor de troca: “Atos de troca isolados acontecem em todas as sociedades que conhecemos. Mas o fato de que quase tudo pode ser trocado é uma característica específica das sociedades capitalistas” (p. 52). Quando “a troca é a forma normal pela qual os produtos são transferidos, as relações de troca individuais devem, de algum modo, se ‘adequar’ umas às outras” (p. 52-3). Disso deriva o que podemos chamar de um amplo e generalizado sistema relacional das coisas:
nas sociedades capitalistas, os diferentes valores de troca da mesma mercadoria devem também constituir valores de troca entre si. Se uma cadeira é trocada por dois lençóis, de um lado, e por cem ovos, de outro, então dois lençóis devem também ser trocados por cem ovos (p. 53).
O que permite que mercadorias tão distintas sejam trocadas é que elas partilham valor e esse valor é determinado pela quantidade de trabalho nelas cristalizado. Mais precisamente, pelo tempo de trabalho socialmente necessário, atributo historicamente variável por uma diversidade de fatores materiais, históricos, políticos e culturais. Lições que Marx apreende e aperfeiçoa a partir de A. Smith e D. Ricardo, a chamada teoria do valor-trabalho. Mas ora, logo adverte Heinrich, “se fosse apenas isso, Marx não teria ido muito além da economia política clássica” (p. 57).
Antes de abordar essa questão, importa salientar uma importante passagem na qual Heinrich enfatiza que entre “bens e serviços há apenas uma diferença material. Se eles são mercadorias ou não é algo que diz respeito à sua forma social, que, por sua vez, depende da troca” (p. 55). Essa observação polemiza explicitamente com os outrora afamados diagnósticos de época sobre a sociedade pós-industrial (Bell) ou sobre a “transição da produção ‘material’ para a ‘imaterial’” (p. 56) em Hardt e Negri. Tais transformações não romperiam com a forma valor e com os atributos categoriais da sociedade capitalista. E é exatamente na análise da forma, sabemos bem, que Marx vai além dos clássicos da economia política.
Falar em forma social é, primeiramente, conforme a exposição de Heinrich, romper com o mito do homo oeconomicus (as robinsonadas) transversal à economia clássica e neoclássica, que “tomam o indivíduo e suas estratégias de ação como evidentes, um princípio a partir do qual o contexto social é derivado” (p. 56). Em oposição, para Marx, “o fundamental não são as reflexões dos indivíduos, mas as relações sociais nas quais eles se inserem” (p. 57). Na feliz formulação de Heinrich, as relações sociais “estabelecem uma racionalidade específica à qual os indivíduos devem aderir se quiserem existir nelas” (p. 57). Numa sociedade em que a troca é normal e generalizada, “todos devem seguir a lógica da troca se quiserem sobreviver” (p. 57). Assim, na teoria social que é a crítica da economia política, busca-se “revelar uma determinada estrutura social que os indivíduos devem seguir, independentemente do que pensam a respeito disso” (p. 57)1. Nesse quadro, o problema não é o da transformação de múltiplos trabalhos individuais em trabalho social, num movimento que vai das ações individuais à estrutura social, mas de “como o trabalho individual se torna parte constitutiva do trabalho social total” (p. 58), num movimento que enquadra e articula as ações individuais à estrutura social.
Esse movimento é esclarecido por meio daquilo que Marx enuncia como uma descoberta: o duplo caráter do trabalho objetivado na mercadoria, trabalho concreto e trabalho abstrato. Se o primeiro tem uma objetividade física, material - o trabalho da padeira, do carpinteiro, da costureira etc. -, o segundo - embora seja uma “abstração real” e não mental - tem uma “‘objetividade espectral’” (p. 60). Tais considerações são importantes para afastar qualquer interpretação substancialista do conceito de trabalho abstrato: a sua realidade espectral não é a realidade de uma substância, mas uma realidade relacional que depende inteiramente da realização concreta do valor por meio da troca, “que ocorre no comportamento efetivo das pessoas, saibam elas ou não” (p. 61). É essa objetividade espectral que explica como o trabalho individual se torna parte constitutiva do trabalho social total ou como as ações individuais são enquadradas e articuladas à estrutura social (não redutível àquelas, mas que, ao mesmo tempo, não existe sem aquelas). O modelo transformacional de Roy Bhaskar (1979) pensa essa relação entre sociedades e pessoas em termos ontológicos.
A formulação de Heinrich é precisa: o trabalho abstrato “constitui uma relação social de validação que só existe na troca...” (p. 64). A substância do valor, portanto, não existe antes da troca real, “a noção de objetividade intrínseca dá lugar à ideia de relação” (p. 65), o que define a sua objetividade espectral ou fantasmagórica. Isso não significa que o valor seja um atributo pertencente à esfera da circulação, pois “essa relação social se constitui precisamente na produção e na circulação” (p. 66), “é o modo como o trabalho individual se conecta com o trabalho social total” (p. 67).
Também a análise da forma valor não é uma análise histórica, dado que, em Marx, “’gênese’ não remete ao surgimento histórico do dinheiro, mas a uma relação de desenvolvimento conceitual” (p. 68). Após uma didática exposição das determinações específicas da forma simples, da forma total, da forma universal e da forma dinheiro, Heinrich reitera, como já se percebia na própria análise do trabalho abstrato e do valor, a centralidade da forma ao tomar a crítica da economia política como uma teoria social relacional e radicalmente antissubstancialista: “O valor... não só necessita de uma forma de valor objetiva, como também faz necessária uma forma de valor que expresse esse caráter social - o que só é possível com a forma de valor universal”, ou seja, “a dimensão social do valor se expressa em uma forma de valor especificamente social” (p. 72).
Nos termos do binário ação/estrutura, o que a análise formal demonstra é “a necessidade da forma de valor universal”, estrutura social dada no interior da qual se movem as supostamente livres representações e “ações dos proprietários de mercadorias” (p. 74). Se a forma dinheiro nada mais é do que a forma universal objetivada em uma mercadoria específica (p. ex., ouro ou prata), conclui-se daí, como uma síntese do antissubstancialismo presente em todo o argumento, que
o dinheiro não é apenas um meio auxiliar para simplificar a troca (nível prático) ou um mero apêndice da teoria do valor (nível teórico). A teoria do valor de Marx é, fundamentalmente, uma teoria monetária do valor: sem a forma de valor, as mercadorias não podem ser relacionadas umas às outras como valores; e somente a forma-dinheiro constitui a forma adequada do valor (p. 75). [...] a mercadoria e o valor não podem existir e não podem ser apreendidos conceitualmente sem referência ao dinheiro (p. 173).
O fetichismo - longe de uma falsa consciência ou de uma alienação em relação a uma suposta essência humana - expressa “um estado de coisas real” (p. 84), define essa dinâmica complexa em que a aparente liberdade da ação dos proprietários revela-se como inteiramente enquadrada pela estrutura relacional que é a forma valor, em que as relações pessoais ou entre os agentes individuais (e seus trabalhos individuais) efetivamente se realizam por meio de uma relação entre coisas (as mercadorias e o dinheiro como expressões de trabalho social). Fetiche que chega ao limite no capital portador de juros, já que na “forma aparentemente não mediada dessa valorização D-D’: o dinheiro parece se multiplicar por si só” (p. 166). Em outra manifestação, o fetiche é apreendido no modo como a as fontes de renda (capital, propriedade fundiária e salário) - a chamada fórmula trinitária - aparecem “para os agentes da produção (capitalistas, proprietários de terras e trabalhadores)”: não como repartições de um mesmo “produto anual” criado “sob condições capitalistas”, mas como “três fontes distintas e independentes do valor produzido anualmente”, como se cada agente recebesse “como renda exatamente aquela parte do valor que seu ‘fator de produção’ agregou ao produto” (p. 190).
O fundamento dessa inversão reside no fato de que parece não haver nenhuma diferença essencial entre trabalho e trabalho assalariado. A separação entre o trabalho e suas condições materiais é considerada natural. Mas se não existe diferença essencial entre trabalho e trabalho assalariado, então também não há diferença entre meios de produção e capital, em oposição ao trabalho, tampouco entre terra e propriedade fundiária (p. 191).
Logo, uma totalidade apreensível teoricamente é estilhaçada e naturalizada nas práticas sociais e nas representações dos agentes, dando lugar a um “fetichismo das relações sociais” (p. 193) - a maneira como “o modo de produção capitalista gera uma imagem específica de si mesmo” (p. 206). Por isso, a partir das três expressões apresentadas (mercadoria/dinheiro, capital portador de juros, fórmula trinitária), poderíamos definir o fetiche como a aparência real ou necessária, para os agentes sociais, da imediação, atributo fundamental da reificação. Termo utilizado por Marx, no livro III, exatamente para indicar a “’reificação das relações de produção” quando estas “não são mais percebidas como relações históricas determinadas entre as pessoas” (p. 192). Ora, “como as mercadorias não são trocadas por valores, mas por preços de produção, essa aparência não pode ser eliminada, pelo menos não no que diz respeito à mercadoria individual” (p. 192). E continua Heinrich:
Isso não é de forma alguma apenas uma questão de “falsa consciência”. É a práxis social da sociedade capitalista que produz constantemente a independência dos “fatores de produção” e a coesão social enquanto coação objetiva, da qual os indivíduos só podem escapar sob pena de ruína econômica. Nesse sentido, as coisas personificadas [personifizierten] possuem plena força material (p. 193).
O que é a livre ação racional para o agente (homo oeconomicus) revela-se como constrangimento social (forma valor). O valor das mercadorias trocadas é “a expressão tangível de uma sociabilidade que as pessoas produzem, mas não compreendem” (p. 84). À pergunta sobre a possibilidade da ordem social - não em geral, mas da ordem social capitalista - ganha a seguinte resposta: “Nessa sociedade, as pessoas (todas elas!) estão efetivamente sob o controle das coisas: as relações decisivas de dominação não são pessoais, mas ‘objetivas’”, isto não porque as coisas têm poderes intrínsecos (naturais ou sobrenaturais), mas “porque as pessoas se relacionam com as coisas de uma maneira específica - como mercadorias” (p. 85). E a “racionalidade de suas ações é sempre uma racionalidade dentro da estrutura estabelecida pela produção de mercadorias” (88). É em razão dessa primazia da forma sobre a ação que o capital pode ser definido como o sujeito do processo, “sujeito automático” (p. 98). Automatismo tão bem exemplificado pelas “leis imanentes do capital, como a tendência a prolongar a jornada de trabalho e desenvolver a força produtiva”, que “são independentes da vontade dos capitalistas individuais” (p. 117).
Manter-se na análise do conteúdo do valor é manter-se no nível de objetividade espectral (e não ilusória ou falsa) do fetichismo, é persistir na crença (doxa) de que o valor é uma substância. Somente a crítica da economia política - uma teoria social da forma e, portanto, das mediações - pode nos mostrar de modo radical o caráter relacional do valor. E se o valor não é uma substância (imediata), se ele só o é na troca e por meio do dinheiro (teoria monetária do valor), é o próprio valor que é passível de negação histórica. Mais uma prova de como a análise categorial, não-historicista, alia-se estreitamente com uma afirmação da historicidade. E de como uma análise que evidencia o primado da forma sobre a ação no capitalismo é o preâmbulo necessário para reivindicar o retorno da ação sobre a forma. Para isso, é necessário desenvolver tanto uma teoria social do político no capitalismo (do Estado), como uma teoria social crítico-emancipatória, orientada para a construção efetiva, e não utópica, do comunismo2.
Para Heinrich, uma crítica da política e do Estado fundamentada na crítica da economia política precisa, antes de qualquer coisa, livrar-se de uma “concepção instrumentalista do Estado” (p. 210) e começar pela determinação da especificidade do Estado burguês, que se baseia na separação entre “exploração econômica” e “dominação política” (p. 212). Após a sua função histórica crucial e diretamente coercitiva durante a chamada acumulação originária, o Estado burguês delineia-se como: a) Estado de direito, “instância neutra”, que “trata seus cidadãos como proprietários privados livres e iguais” e exatamente dessa forma “assegura os fundamentos das relações capitalistas de dominação e exploração” (p. 213); b) Estado com função de “‘capitalista global ideal’”, no sentido engelsiano, garantindo as “condições materiais gerais da acumulação de capital” (p. 215), passível, assim, de tensões variáveis com frações do capital e capitais individuais; c) Estado social, que coage a venda e disciplinamento da força de trabalho por meio de serviços, seguros, infraestrutura, salário indireto etc., garantindo assim a reprodução da força de trabalho contra a tendência do capital a destruir “o objeto de sua exploração” (p. 216).
Essa complexidade do Estado burguês só pode ser entendida, contra a concepção instrumentalista, quando se leva em conta as práticas efetivas de conflito, construção de consenso e legitimação que abarcam tanto “as frações mais importantes do capital” como “as classes mais baixas”, em relação às quais o Estado busca legitimar-se para garantir “a reprodução das relações capitalistas” (p. 218). Práticas que ocorrem “dentro e fora das instituições do Estado: tanto na esfera pública burguesa (televisão, imprensa) quanto nas instituições de tomada de decisões democráticas (partidos, parlamentos, comitês)” (p. 219).
Tal complexidade, porém, deve sempre partir do entendimento de que a “base material do Estado está... diretamente ligada à acumulação de capital: nenhum governo pode evitar essa dependência” (p. 221). A acomodação às coisas como elas são, a Realpolitik (seja para chegar ao governo seja para manter-se nele), não abarca apenas os políticos, mas também a “maioria da população”, que “normalmente não critica as exigências pouco razoáveis da política e a promoção do lucro, mas sim o fato de que, com isso, ela não se beneficia dos resultados esperados” (p. 221). O que “mostra a relevância política do fetichismo, que estrutura a percepção espontânea dos atores da produção capitalista (p. 221). Em outros termos, uma crítica do Estado a partir da crítica da economia política toma o Estado como um modo de fetiche que, tal como mercadoria/dinheiro e a fórmula trinitária, aparece como autônomo e independente, “um terceiro neutro que deve cuidar do ‘todo’” (p. 221).
Se é o fetichismo que também aparece como chave para a compreensão do Estado, e se de modo algum a crítica de Marx é uma crítica moral, o comunismo, a partir da crítica da economia política, também não pode ser pensado como ideal ético ou como nacionalização dos meios de produção, submetidos ao planejamento estatal. O comunismo aparece como a antítese das mistificações reais centralizadas na exposição crítico-introdutória de Heinrich a O capital. Logo, como “emancipação de um contexto social que se autonomiza e se impõe ao indivíduo enquanto coação anônima” ou como “a liberação das coações autoproduzidas” (p. 231), o que significa suprimir o fetichismo das relações sociais (expresso por meio da mercadoria/dinheiro, do capital portador de juros, da fórmula trinitária) e suprimir também o Estado como “força autônoma da sociedade que organiza (até certo ponto) uma determinada forma de reprodução e a impõe (pela força, se necessário)” (p. 232).
Se uma sociedade como a capitalista existe e se reproduz, apesar de todas as patologias que gera, se esse tipo de ordem social é possível, por que seria impossível imaginar e construir uma ordem social sem mercadoria, sem dinheiro e sem Estado, mas com novas formas de regulação da vida social?
Referências bibliográficas
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DUAYER, M. Teoria social, verdade e transformação. São Paulo: Boitempo, 2023.
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QUIJANO, A. La Nueva Heterogeneidad Estructural de America Latina. Hueso Humero, 26, p. 8-33, 1990.
SILVA, L. T. da; FREITAS, C. E. A contemporaneidade dos clássicos: viradas praxiológicas em Marx e Durkheim. Revista Sociedade e Estado, v. 38, n. 2, e47329, 2023
Notes