Resumo: A Amazônia brasileira é uma região de desenvolvimento precário e altos índices de violência. A maioria dos especialistas em segurança e defesa aponta a falta de desenvolvimento e o abandono do poder público como a causa principal dos conflitos que assolam a região desde a primeira metade do século XX até o avanço contemporâneo das facções criminais de narcotraficantes. Neste texto pretendo demonstrar as limitações da aplicação dessa tese de caráter negativo a que chamo de discurso da ausência. Do ponto de vista da soberania brasileira jamais houve abandono normativo da Amazônia; bem ao contrário disso, o controle jurídico e político sobre a região sempre foi inflexível ao renegar sistematicamente autonomia a seus povos e comunidades. Minhas conclusões, com o suporte da analítica relacional do poder de Michel Foucault, apontam que a violência não é o excedente indesejável de relações naturais de poder, dadas as condições locais. Em contrário, ela é o efeito positivo da produção normativamente orientada de ilegalismos que mantém a complexidade amazônica sob o regime de uma governamentalidade colonial baseada no fracasso e na constante fragilização de seus melhores potenciais internos.
Palavras-chave: Amazônia, Violência extrema, Governamentalidade.
Abstract: The Brazilian Amazon is a region of precarious development and high rates of violence. Most security and defense experts point to the lack of development and the abandonment of public power as the main cause of the conflicts that plague the region from the first half of the twentieth century to the contemporary advance of the criminal factions of drug traffickers. In this text, I want to demonstrate the limitations of applying this negative thesis, which I call absence discourse. From the point of view of Brazilian sovereignty there was never normative abandonment of the Amazon; quite the opposite, the legal and political control over the region was always inflexible by systematically denying autonomy to its peoples and communities. My conclusions, supported by Michel Foucault's relational analysis of power, point out that violence is not the undesirable surplus of natural power relations, given the precarious contextual conditions. On the contrary, it is the positive effect of normative-oriented production of illegalisms that keeps Amazon’s complexity under the regime of colonial governmentality based on failure and the constant weakening of its best internal potential.
Palavras-chave: Amazon, Extreme violence, Governmentality.
Artigos Inéditos
A violência na Amazônia: uma governamentalidade baseada no fracasso
Violence in the Amazon: Governmentality based on failure
Received: 28 October 2024
Accepted: 03 November 2024
A Amazônia Legal sempre foi objeto do discurso normativo colonial ao longo da história do Brasil. A autonomia político-administrativa de povos e territórios sob condições efetivas de desenvolvimento jamais foi uma agenda de qualquer governo central do país. Mesmo nos dias de hoje seus 9 estados, 808 municípios, mais de 180 nações originárias, incontáveis comunidades tradicionais e seus quase 60% do território brasileiro permanecem a região mais precária e ameaçada do país, exposta a níveis tão elevados de violência que sobre ela parece incidir aquilo que Michel Foucault chamou em um de seus cursos no início dos anos 1970 de prática massiva de ilegalismos (Foucault, 2013, p. 148).
A fase mais recente dessa história conturbada parece ter iniciado na segunda metade da década de 2010, quando disputas entre organizações criminosas de narcotraficantes locais e provenientes do sul do país fizeram explodir as taxas de homicídios e os conflitos prisionais na maioria dos estados amazônicos. Nos últimos dez anos o diagnóstico de muitos especialistas aponta para o crescimento desse problema, com a atuação do narcotráfico na exploração de outras atividades criminosas como garimpo ilegal, grilagem de terras e desmatamento.
Haveria, em razão desse movimento, uma nova dinâmica da violência na Amazônia? Os impactos provocados por essas novas ondas de violência estão modificando o cenário conhecido dos conflitos amazônidas? A violência extrema dos tempos recentes é um obstáculo ao desenvolvimento econômico, social e mesmo político da região? Como a violência afeta a justiça socioambiental e as sociedades amazônicas como um todo? Neste texto vou demonstrar como a relação entre a violência e o desenvolvimento é constitutiva da precária identidade política amazônica há muito tempo e proponho redimensionar os impactos que as ondas mais recentes podem produzir no modo primordial de funcionamento dessa relação. Meu objetivo, com o suporte do modelo analítico relacional de poder de Michel Foucault, é auxiliar no entendimento daquilo que considero ainda mais fundamental do que a intensidade e a regularidade da violência: a função positiva que ela tem no quadro geral dos ilegalismos para manter povos e territórios amazônicos como objeto de uma governamentalidade colonialista insuperável.
A integração dos territórios amazônicos à economia nacional era um objetivo político bastante relevante para o governo federal quando o presidente Getúlio Vargas esteve em Belém/PA, Manaus/AM e Porto Velho/RO em outubro de 1940. Em sua “Marcha para o Oeste”, política iniciada em 1938, o presidente pretendia desbravar o “inferno verde”, dominar a floresta e os povos originários para promover o desenvolvimento populacional e econômico da região (Guerra, 1953). Para cumprir esse objetivo, Vargas seguia firmemente a imagem de um ideal estruturado pelas narrativas dos engenheiros militares Euclides da Cunha e Alberto Rangel, fortemente baseadas no determinismo geográfico, no evolucionismo e no darwinismo social (Andrade, 2010). De acordo com Rômulo de Paula Andrade a “retórica do abandono” foi metodicamente manipulada pelos ideólogos de Vargas para convergir com sua política de intervenções e levar a Amazônia ao cumprimento do que seria o seu “destino histórico”. Por meio dessa narrativa, a Amazônia como um todo surgia formada por uma vastidão territorial praticamente desabitada, à exceção de umas poucas comunidades indígenas, muito rica e generosa em seus recursos naturais, mas relegada ao abandono por governos imperiais e republicanos anteriores (Andrade, 2010). Segundo o próprio Vargas, em seu “Discurso do Rio Amazonas”, as limitações impostas pelas longas distâncias, pelo clima e pelo ambiente inóspito poderiam ser superadas com a presença forte do poder central do país. Nas palavras do presidente da República uma “realização empírica”, pela “agricultura ou indústria extrativista”, transformada em “exploração racional”, poderia mostrar que a Amazônia não seria imprópria à civilização (Vargas, 1940). A condição para isso era a ocupação do espaço “imenso e despovoado”, porém, não mais apenas com imigrantes nordestinos e ribeirinhos, nômades e economicamente instáveis, dos tempos dos seringais. Agora, direciona Vargas, seria o caso de levar à Amazônia o “colono nacional” para ocupar núcleos de cultura agrária onde, “recebendo gratuitamente a terra desbravada, saneada e loteada, se fixe a família com saúde e conforto” (Vargas, 1940). O discurso de Vargas contrapunha ações de alocação de trabalhadores em projetos temporários, como aquelas que levaram os soldados da borracha para seringais no Acre, Rondônia e Pará, com a proposta de assentamento definitivo de colonos vindos de todas as regiões do país para desenvolver a agricultura e a indústria local. Em decorrência dos acordos fechados durante essa viagem Vargas criou, por meio do Decreto-Lei n. 5.812 de 13 de setembro de 1943, o Território Federal do Guaporé, que se tornou o estado de Rondônia em 1981, o Território Federal do Rio Branco e o Território Federal do Amapá, os quais foram convertidos nos estados federados de Roraima e Amapá após a Constituição de 1988.
As expectativas de Vargas, contudo, fracassaram. Após o fim de seu governo, e antes que qualquer projeto de colonização em massa tivesse início efetivo, a economia de base extrativista, dependente de mercados externos e de um governo central distante, acabou sendo substituída pelo Plano de Valorização Econômica da Amazônia em 1946. Esse plano fundamentava-se no intervencionismo econômico planejado para reduzir desigualdades regionais e apoiar atividades econômicas autossustentáveis (Théry, 1976). Contudo, a falta de compreensão das dinâmicas locais, de vontade política e de conhecimento científico resultaram no colapso dessas iniciativas (Oliveira, Trindade, Fernandes, 2014).
Em 1966, o Governo Castelo Branco criou a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e lançou a "Operação Amazônia" para transformar a economia regional e integrar o espaço amazônico ao território nacional. Sob o governo militar, novas iniciativas foram implementadas, incluindo a expansão da fronteira agrícola do Mato Grosso para Rondônia através do Plano de Integração Nacional (PIN) de 1970, que visava financiar infraestrutura nas regiões da SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e SUDAM (Teixeira; Fonseca, 2002). Para ajudar nesse objetivo, o governo federal criou em 1970 o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para explorar e colonizar terras públicas ao longo das rodovias federais (IBGE, 1979). Entre 1970 e 1976, o INCRA implementou vários Projetos Integrados de Colonização (PIC) e Projetos de Assentamento Dirigido (PAD) em Rondônia (Coy, 1986).
Mais uma vez, contudo, esses projetos de colonização falharam devido à falta de infraestrutura, dificuldades no escoamento da produção, ausência de suporte técnico e insegurança jurídica nos contratos entre o estado e os colonos/posseiros (Alston, Libecap, Mueller, 1999). Muitas famílias venderam irregularmente suas posições e retornaram às suas regiões de origem, deixando um grave problema de regularização fundiária, único em Rondônia e no sul do Pará (Coy, 1986). A falta de infraestrutura de suporte à produção agrícola levou ao desmatamento, venda ilegal de madeira e criação de gado em áreas protegidas (Jacarandá; Matzenbacher, 2017; Nascimento, 2010). Interessado em auxiliar na solução da falta de infraestrutura o Banco Mundial financiou, entre 1980 e 1985, a pavimentação da rodovia federal BR-364, que liga o sudoeste amazônico ao sul do país - Projeto POLONOROESTE (Wade, 2016) -, possibilitando o desenvolvimento de Rondônia e, ao mesmo tempo, acelerando o processo de degradação do meio ambiente, provocado pela migração descontrolada e pelo crescimento desordenado (Schwartzman, 1986). As consequências desse movimento forçaram o governo Sarney a criar em 1988 o “Programa Nossa Natureza” (Decreto Nº 96.944, de 12 de outubro de 1988 - Programa de Defesa do Complexo de Ecossistemas da Amazônia Legal), o qual tinha a finalidade de diminuir a devastação ambiental que já consumia as florestas em Rondônia e no Acre - verdadeira buffer zone entre a parte acessível e as partes mais profundas do território amazônico, já que boa parte do território do Amazonas é isolado por terra do restante do país.
Diferente de outros projetos que eram conduzidos nas fronteiras do norte do território amazônico (extremo norte do Amazonas, Roraima e Pará) - como o Projeto Calha Norte (Miyamoto, 1989; Brasil, 1986) - com enfoque na defesa e proteção territorial contra a ameaça de invasões estrangeiras, no sudoeste amazônico (noroeste do Brasil) o objetivo de explorar os recursos naturais para abastecimento da economia do sul do país nunca foi escondido (Becker, 1982; Becker, 1998; Nascimento, Silva, Santos, 2014). Mas a repercussão na imprensa internacional dos crimes ambientais e contra povos indígenas ocorridos durante a colonização de Rondônia impediu que o Banco Mundial estendesse para o Acre o financiamento de projetos semelhantes - apesar de muito dinheiro já ter sido investido em um plano chamado então de PLANACRE, com o mapeamento de recursos naturais e potenciais ecológicos (Souza, 2008). Antes, porém, que o novo “Programa Nossa Natureza” do governo federal e o apelo ambiental internacional provocado pelas imagens da destruição da floresta começassem a surtir efeitos práticos, Chico Mendes foi assassinado no quintal de sua casa, no fim do mesmo ano de 1988.
O assassinato de Chico Mendes em Xapuri, no Acre, define o início de uma nova fase da ocupação e exploração do território amazônico, marcada por conflitos intensos e muita violência. A partir daquele momento os conflitos socioambientais se tornariam mais frequentes e as disputas territoriais se misturariam às causas ambientais e à luta dos povos indígenas e tradicionais. Haveria, contudo, a partir daquele momento, mais atenção da opinião pública internacional, mostrando para todo o mundo como o problema do desenvolvimento na Amazônia era muito mais complexo do que se pensava ao longo das décadas anteriores. O assassinato do jornalista inglês Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari, no Amazonas, em junho de 2022, é uma tragédia que dá testemunho, portanto, de uma longa história1.
O próximo estágio nessa história de tragédias seria caraterizado pelas mortes coletivas. Durante os anos 1990, os conflitos agrários explodiram nos estados da região. Nos eventos conhecidos como o Massacre de Corumbiara, no sul de Rondônia, em agosto de 1995, e o Massacre de Eldorado do Carajás, em 1996, no Pará, dezenas de trabalhadores sem-terra foram mortos em operações policiais truculentas e abusivas. Esses conflitos deram origem a uma nova política federal de reforma agrária cuja ineficácia resultou em Rondônia e Pará se tornando os líderes regulares do ranking nacional de mortes no campo (Mesquita, 2003).
Desde o fim dos anos 1980, portanto, a tensão crescente nos conflitos de terras sempre manteve as autoridades amazônicas em alerta. Mas, ninguém poderia imaginar, no início dos anos 2000, que os presídios disputariam as atenções como focos permanentes de violência extrema. Já no início dos anos 2000, a chacina do presídio Urso Branco em Porto Velho, Rondônia, em janeiro de 2002, que resultou em 27 mortos, revelou uma nova face dos conflitos amazônicos. Entre 2002 e 2004, mais de 100 assassinatos foram registrados nessa unidade prisional, dando origem a um dos maiores casos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (Caso 12.568 perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos) (Carvalho, Garcia, Melo, 2007). Relatórios de monitoramento revelaram níveis alarmantes de violência, incluindo tortura, queimaduras, mutilações e decapitações. A chacina de 2022 chocou a opinião pública e marcou o início de uma rotina de violência prisional nos estados amazônicos sem comparação em nenhum outro lugar do mundo (Jacarandá et al, 2020). As imagens de decapitações e desmembramentos de corpos de presos sobre uma torre de caixa de água circularam o mundo todo e reforçaram a imagem de um território onde a barbárie e a falta de proteção legal imperam (Jacarandá, 2024a).
Esses massacres e chacinas parecem obedecer ao aprofundamento de uma trágica identidade lógica regional entre Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima que, juntos, formam a Amazônia Ocidental (segundo a definição do Decreto-Lei n. 291, de 28 de fevereiro de 1967). Os quatros estados possuem quase 10 mil quilômetros de fronteiras com Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela e Guiana e detêm 42,97% da extensão territorial da Amazônia Legal. Esses quatro estados, juntos, frequentam as primeiras posições no ranking nacional de homicídio de mulheres, feminicídio, homicídios em municípios, apreensões de cocaína, focos de queimadas, desmatamento, falta de saneamento básico, evasão escolar e ameaças contra defensores de direitos humanos. Essa correlação entre indicadores gerais de desenvolvimento ruins e crimes violentos pode ajudar a explicar a permanência dos estados amazônicos no topo da lista da criminalidade violenta do país, ao longo da série histórica de homicídios. Porém, para explicar o auge dos fenômenos que se tornaram recorrentes nos últimos cinco anos é necessário ampliar a análise para outros fatores, locais, regionais e globais.
Os conflitos que explodem nas cidades, presídios e áreas rurais e de floresta são parte da identidade amazônica das últimas décadas. Porém, a complexidade desse problema costuma ser negligenciada, na literatura científica, pelo reconhecimento de uma ideia antiga que vou chamar, genericamente, de discurso da ausência. O discurso da ausência afirma que, na Amazônia, a principal causa da violência é a falta, ausência ou a fragilidade natural das estruturas sociais, políticas e econômicas, especialmente daquelas cuja responsabilidade de implantação é do poder público.
Essa tese é bem simples: para explicar a complexidade dos conflitos amazônicos basta demonstrar a precariedade da infraestrutura das instituições públicas, comum nas partes mais distantes dos grandes centros decisões do país, e seguir adiante até afirmar que existe uma decisiva ausência do poder de estado que é a causa da violência sistêmica (FBSP, 2017, 2019 e 2021; Dias Balieiro, Nascimento, 2015). Esse discurso, contudo, utilizado sem prudência epistemológica, produz erros de pelo menos dois tipos diferentes: (a) ignorar a realidade do contexto amazônico; e, por isso, b) não identificar corretamente os elementos essenciais do problema; causando um mal ainda maior quando (c) apresenta como solução novas políticas intervencionistas que desconsideram as complexidades locais e a efetiva participação das comunidades afetadas.
Sobre a realidade da violência no contexto amazônico (a), vejamos o caso mais recente do problema da intersecção entre narcotráfico e outros ilegalismos comuns na Amazônia, como o garimpo ilegal, o desmatamento ou a ameaça a povos originários. Muitos especialistas em segurança pública tem afirmado que a explosão da violência nas ruas e em presídios amazônicos nos últimos anos (sobretudo de 2015 em diante) causada pela migração de facções criminais do Sudeste para o Norte - especialmente do Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e do Primeiro Comando da Capital, de São Paulo (FSP, 2015; Ferreira, Framento, 2019; Couto, 2019) - alterou radicalmente o panorama da violência na Amazônia2. Para eles, os estados amazônicos seriam menos capazes de se defender da influência desses grupos criminosos. Logo, a proliferação dessas facções teria sido mais rápida e o controle sobre as redes de ilegalismos locais estaria se desenvolvendo de forma ainda mais hegemônica.
De fato, é inegável que a presença tanto do PCC quanto do CV esteja modificando o equilíbrio de forças nas grandes metrópoles e em cidades do interior na Amazônia (FBSP, 2018). Creio que seja correto até mesmo afirmar que a intensidade da violência aumentou muito por causa disso, em especial as taxas de homicídios e as mortes em presídios. Membros dessas facções nacionais estão identificados em praticamente todos os presídios dos estados amazônicos e certamente estão em ação em atividades como o garimpo ilegal em estados como Roraima e Amazonas (Chagas, 2024). Além disso, CV e PCC não lutam apenas para estender sua rede de negócios a novos mercados. Esses grupos também querem se apropriar das rotas de transporte de cocaína que saem dos países produtores nos Andes, atravessam o Brasil e chegam aos maiores locais de envio, como portos e aeroportos do Nordeste e do Sudeste (Dias, 2024; Jacarandá, 2024b). Não sabemos o quanto essas facções dividem a atenção de seus negócios entre o varejo e o atacado, e o quanto, portanto, se concentram na luta por hegemonia do mercado das ruas ou pelo controle de rotas de transporte de drogas. Mas sabemos que seu poder de atuação cresce vertiginosamente e atraem com a expansão de suas linhas de atuação outras fórmulas bem-sucedidas de criminalidade, como no caso de milícias bem-organizadas criadas por agentes de segurança pública3.
O ponto aqui, contudo, não é divergir do reconhecimento da presença dessas facções na economia das ilegalidades amazônicas, mas dimensionar corretamente seu impacto e sua importância para a identidade desses conflitos. Ainda não há estudos bons o bastante apresentando números sólidos sobre o alcance mais amplo desses impactos em atividades ilegais como extração de madeira, grilagem de terras ou mesmo garimpo ilegal na Amazônia como um todo.
E mesmo no caso de ambientes mais tradicionais de atuação para essas facções, como nos presídios, importa lembrar que os estados de Rondônia e Acre, por exemplo, já possuíam as maiores taxas de encarceramento do Brasil nos primeiros anos da década de 2000, quando internos divididos em grupos criminosos provocaram as primeiras chacinas entre presos em Porto Velho/RO. No mesmo sentido, o narcotráfico sempre foi um crime muito comum nos estados de fronteira da região e os dados da Polícia Federal demonstram como o Amazonas (Rota do Solimões) e Rondônia (Rota Guaporé-364) registraram ao longo das últimas décadas valores muito altos de apreensões sobretudo de cocaína (Jacarandá, 2024b). Seguindo um raciocínio semelhante, penso que nem seria sequer necessário comparar dados ao longo de décadas para afirmar, sem receios, que o garimpo ilegal ainda não sofreu modificações substanciais por causa do CV ou do PCC. Em resumo, pode haver intersecção de ilegalidades e modificações do cenário da violência por causa das disputas por hegemonia envolvendo sobretudo PCC, CV e grupos criminosos locais, mas a pergunta sobre uma transformação radical do cenário local permanece em aberto.
E as razões para isso são muito simples e evocam o segundo ponto da argumentação que proponho aqui, acerca dos (b) elementos mais característicos do problema amazônico da violência. Nesse caso, refiro-me à normalização da violência sistêmica de alta intensidade como modo de vida legitimamente amazônico. Como apontei na seção 1 deste texto, um breve recuo temporal de algumas décadas basta para encontrarmos fatos históricos que posicionam a Amazônia no centro de atenções globais com relação à violência contra povos e meio ambiente. Na Amazônia, integração e desenvolvimento se processam mediante violência sistêmica e destruição ambiental faz bastante tempo. Ou seja, nem a aparente novidade dessa pretensa invasão faccional, nem os números da violência extrema são o elemento distintivo para compreender o problema. Muito provavelmente, PCC e CV são apenas novos atores explorando condições favoráveis que sempre estiveram ali.
No auge da era dourada do primeiro ciclo da borracha, ainda no século XIX, metrópoles regionais como Manaus/AM e Belém/PA cresceram e viveram uma opulência econômica que jamais foi compartilhada com as regiões produtoras do interior de suas províncias. Meio século depois, os trabalhadores convocados pelo Governo Federal para retornar aos seringais sobretudo em Rondônia, Acre e Pará às vésperas da Segunda Guerra Mundial foram logo abandonados e seus eventuais direitos de exploração de terras foram completamente ignorados. Algo muito semelhante aconteceu em Rondônia, norte do Mato Grosso e sul do Pará com as mobilizações dos anos 1960 promovidas pela ditadura militar para levar colonos às terras férteis de seus rincões pretensamente despovoados. Sem incentivos econômicos reais, e sem garantia de direitos, comunidades e populações inteiras encontraram-se diante da necessidade de sobreviver por conta própria, usando dos meios à disposição. Esse cenário de abandono politicamente executado é o contexto ideal para o crescimento do banditismo sistêmico e do uso da força física para ocupar, explorar e enriquecer que fomentou a colonização do sul de Rondônia ao norte de Roraima.
O que estou indicando é que a economia das ilegalidades que sustenta o modo de vida amazônico há muito tempo não tem apenas nos seus agentes internos (ou, eventualmente exógenos, como no caso do PCC ou CV) a causa motriz de seu próprio modo de funcionamento. Essa economia funciona com base em redes de relacionamentos cujos modos de operação são antigos, porém, não foram criados a partir de si mesmas. Essas redes de relacionamento não encontram seu modo de existir numa espécie de autorreprodução natural e necessária em razão das dificuldades locais. Pelo contrário, essa autorreprodução sistêmica é uma imposição, política e juridicamente controlada, por atores políticos e econômicos que inventaram uma fórmula bastante eficaz de governar a Amazônia brasileira. O elemento distintivo da economia das ilegalidades amazônicas é, como em quase tudo o que diz respeito à realidade amazônica, (c) a falta de autonomia jurídico-política local inclusive para controlar o banditismo e a criminalidade. O PCC e o CV são apenas novos peões nesse imenso tabuleiro colonial e não é de causar espanto o fato de que essas duas organizações sejam verdadeiros players globais trabalhando com um dos ativos econômicos mais valiosos do mercado internacional contemporâneo, a cocaína (UNODC, 2023; CDE, 2022; UNODC, 2022).
Quando pensamos na grilagem de terras públicas, na extração ilegal de madeira e minérios e criação de gado em extensas áreas de preservação ambiental somos forçados a pensar nas condições locais de favorecimento para o surgimento de uma criminalidade organizada que vive às custas dessa exploração. Mas, como essas condições surgem e se perpetuam?
Uma boa forma de investigar o tema é observar a destinação de terras públicas na Amazônia. Em toda a Amazônia Legal há mais de 50 milhões de hectares de terras de florestas públicas federais ou estaduais não destinadas, ou seja, áreas que não estão classificadas em nenhuma categoria específica de uso ou preservação4. Esse território gigantesco e não-regulado, maior do que a Espanha, é um bom exemplo da insegurança fundiária que atrai criminosos, afasta pequenos produtores rurais que não conseguem investimentos para produzir e ameaça não apenas o bioma, mas as comunidades tradicionais que vivem da exploração sustentável dos recursos naturais. Uma forma de atuação criminosa muito comum é invadir terra pública, desmatar, informar a propriedade da área no Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado a partir da Lei de Gestão de Florestas, de 2006, e passar a explorá-la ou negociá-la como ativo econômico (Moutinho, Azevedo, 2023). A incerteza fundiária gerada e mantida pela criação de um instrumento como o CAR renovou caminhos para a especulação imobiliária, porque traveste a ocupação ilegal de um rito burocrático de regularização em andamento que permite a continuidade delituosa. Essa continuidade tem origem no desmatamento, com a extração ilegal de madeira, segue com a agropecuária e termina, por fim, com a venda ou arrendamento da área, geralmente para a produção de monoculturas como milho e soja (Fearnside, 2017). “Terra pública” nesse caso não significa um bem sem dono ou terra de ninguém. Essas terras são áreas da União ou dos estados federados e enquanto dura a indefinição sobre a sua destinação diversos agentes políticos e econômicos podem se apropriar dessas áreas e disputar a propriedade delas mediante a manipulação e controle das esferas públicas de decisão envolvidas.
A inexistência de estruturas de fiscalização e monitoramento dessas áreas não é o efeito de um abandono ou de um descaso: é um projeto de colonização. A aparente contradição surge quando refletimos sobre os custos elevados desse modelo de colonização, sobretudo quando estão envolvidos os danos causados pela destruição ambiental ou pela violência no campo, por exemplo. Mas a contradição se desfaz à medida que a descrição do modelo se detalha.
Seguindo as determinações de uma constituição democrática atualizada para a defesa dos direitos humanos, conforme a constituição brasileira de 1988, seria possível pensar numa ampla e irrestrita demarcação de terras indígenas e quilombos e criação rápida e inexpugnável de áreas de proteção integral com a finalidade de preservar e defender o patrimônio coletivo. A partir disso, seria dever do poder público organizar e executar uma reforma agrária definitiva, com entrega de títulos de propriedade a pequenos e médios produtores, com o suporte de políticas de apoio à produção sustentável. As pesquisas são inequívocas ao afirmar que a criação de terras indígenas e quilombos é uma excelente forma de proteger o meio ambiente e mesmo a distribuição de porções de terras para pequenos e médios agricultores pode funcionar bem para a consolidação de agricultura sustentável na Amazônia (Fearnside, 2020)5. Logo, soluções para o problema da “ausência” e do “abandono” não parecem tão difíceis.
Mesmo um poder de estado relativamente enfraquecido, sem recursos e sem pessoal, pressionado por déficits orçamentários e alto endividamento poderia defender o patrimônio público contando com o poder de comunidades locais fortalecidas e protegidas em seus direitos. Mas, esse não é o caso. O caso na Amazônia não é o da ausência da força do poder público; é o da colonização do poder público, por interesses particulares, para impedir o exercício da soberania popular sobre a região. Como as comunidades locais, povos originários e determinadas forças sociais insistem em resistir a esse processo de apropriação e destruição a reprodução da violência funciona perfeitamente para gerar insegurança e fragilização das condições sociais para o exercício de uma autonomia política efetivamente cidadã.
Os efeitos da violência extrema podem causar embaraços e forçar reações governamentais mais duras por um tempo, como nos casos dos assassinatos de Chico Mendes, Dorothy Stang, Dom Philips e Bruno Pereira ou do Massacre de Corumbiara. Porém, eles são uma forma eficaz de manter as comunidades amazônicas na incapacidade para reagir frente à exploração indiscriminada e ilegal de bens e valores públicos. A violência exerce o mesmo efeito nas comunidades interessadas das cidades mais bem-organizadas, dado que o baixo desenvolvimento e a exposição constante a riscos mantém em níveis incipientes o esforço de forjar uma sociedade civil e lideranças políticas capazes de se posicionarem contra o avanço desse projeto predatório. A diferença de intensidade entre o aceitável das médias de violência, contudo, define a Amazônia: o governamentalidade colonial demanda níveis bem mais elevados de violência para se organizar e manter sua legitimidade.
O principal erro epistemológico ao analisar os altos índices de violência na Amazônia não tem a ver com descrever mal o potencial agressivo das relações de poder locais. O erro mais grave é assumir o fracasso das políticas governamentais de intervenção como sendo o outro lado de uma atuação normativa que teria o objetivo de resolver problemas e criar soluções para forjar um contexto de desenvolvimento, segurança e paz social. Essas políticas fracassam há muito tempo e com tanta regularidade que as ilusões produzidas pelo enorme volume de seus resultados negativos costumam enganar analistas de todas as áreas, absorvidos pelas armadilhas do circuito epistemológico normativo.
Nesse ponto, a analítica relacional do poder de Michel Foucault pode contribuir para um melhor entendimento do fenômeno6: todas as sociedades normativas instrumentalizam o uso da violência em seus cálculos governamentais para que se produza equilíbrio político e social (Foucault, 2015). Ambientes complexos e populações heterogêneas são mais difíceis de se governar. Com tantos interesses insubmissos em conflito arbitrar a violência exige um cálculo aprimorado para ajustar as contas dos ilegalismos em jogo. Em todos os casos, o resultado deve ser um tecido social formado por relações de poder que perpetuem, com todos os seus desequilíbrios eventuais, a capacidade de governar ali existente (Foucault, 2004). O arranjo depende de cada região, de cada comunidade e de sua história. No caso da Amazônia brasileira a conformação historicamente verificável é a de uma colônia sob controle. Altos índices de violência ferem de morte a capacidade de autoconstrução da independência político-normativa de povos e comunidades, os quais vivem permanentemente assujeitados por outros agentes do poder. Partícipes precários de relações de poder que jamais conseguem modificar, esses grupos locais dependem do que conseguem obter via ciclos de intervenções governamentais que chegam como recursos materiais ou concessões políticas meticulosamente calculadas que de tempos em tempos permitem a criação de áreas de preservação, projetos de assentamento, ou até estados e municípios. Tudo isso, claro, sem que haja, jamais, efetiva transferência do controle do território ou da produção da norma jurídica para regular os bens e direitos.
Acaso o discurso da ausência fosse realista, insubmissões regulares seriam capazes de tomar de assalto esferas públicas de poder e decisão, mesmo que episodicamente, e rupturas momentâneas teriam sido catalogadas, como no caso das revoltas populares que ilustram a história brasileira. O mais próximo a que se chegou desse ponto na Amazônia foi com a Cabanagem, ainda na província do Grão-Pará, entre 1835-1840, quando pela única vez na história pré-republicana brasileira um líder popular, o lavrador Eduardo Angelim, venceu combates militares contra tropas imperiais e assumiu o governo, mesmo que por pouco tempo, como um dos presidentes cabanos na província.
O que serve de elemento identificador, contudo, nos conflitos amazônicos contemporâneos são os indicadores de violência extrema que afetam a população civil e que surgem no discurso da ausência como tendo origem nela mesma. Ou seja, a violência seria o efeito dos ilegalismos populares acima da média nacional e daqueles provenientes da bandidagem comum em ebulição. Desmatadores atacam indígenas, que atacam rivais garimpeiros, que sofrem com narcotraficantes, que se aproveitam dos desmatadores e fazem explodir os confrontos nas periferias urbanas. São tantos ilegalismos e tantas ameaças que não sobram opções a não ser enunciar certo estado hobbesiano de natureza.
Mas esse estado de coisas selvagem e solo fértil para decapitações, genocídios e destruição ambiental não é o lado negativo de um projeto de civilização que está dando errado. Devemos enxergá-lo como um dos efeitos daquilo que Foucault chamou de funcionamento positivo dos ilegalismos e procurar entender sua função para o arranjo socioinstitucional específico que se utiliza da violência extrema como médium das relações de poder governáveis na Amazônia (2015, p. 134).
Quando o uso regular do discurso da ausência encontra os números de violência extrema, práticas intervencionistas justificam uma razão de Estado bastante tradicional que sustenta o colonialismo amazônico7. Essas práticas não são apenas aquelas provenientes das grandes obras predatórias ou dos grandes projetos de colonização. São também o intrincado conjunto normativo regulador de bens e atividades econômicas, sociais e culturais que mantém comunidades e povos reféns de decisões de que não participam efetivamente. O julgamento do marco temporal para terras indígenas é só o capítulo recente mais conhecido pela opinião pública do imenso catálogo do arcabouço jurídico-político que sustenta o estado geral de incertezas amazônicas (ISA, 2024). Na Amazônia, aquilo que Agambem chamou de “estado de exceção” pode ser mais bem compreendido por meio de uma leitura correta do pensamento de Foucault sobre a governamentalidade. A exceção é o estado geral de indeterminação em que uma sociedade é mantida e governada pela via da sua fragilização permanente. Por isso, volto ao ponto da marca distintiva da violência na Amazônia: o excesso de violência que a caracteriza é aquela condição necessária para que a sua heterogeneidade possa se manter governável, mediante a constante e irrestrita precarização das condições para o exercício de uma cidadania constitucional plena, dado o contexto.
As tragédias no sistema prisional de estados como Rondônia, Amazonas e Roraima são uma excelente referência para entender melhor como esse mecanismo funciona. Nesses eventos o discurso da ausência é utilizado com muita frequência. Em outro estudo comparei a opinião de especialistas estrangeiros sobre a forma de relacionamento entre os presos organizados em cadeias paulistas, fluminenses e em estados amazônicos (Jacarandá, 2024a). Ao contrário do surgimento do CV, no Rio de Janeiro, com o fim de promover a autoproteção dos presos contra autoridades corruptas e abusivas (autogoverno); e do PCC em São Paulo, criado para negociar proteção para os presos e abrir espaço para o empreendedorismo criminal (co-governança); os presos amazônicos seriam bárbaros lutando loucamente entre si, numa disputa sem sentido que termina em matança generalizada, sem que as autoridades públicas consigam atuar (SKARBEK, 2016; DARKE, 2018). Essa narrativa despreza, contudo, mais uma vez, diversos elementos intrínsecos ao problema. Despreza o fato de estados amazônicos como Rondônia, Acre e Roraima serem líderes nacionais de encarceramento, com taxas que chegam a ser duas vezes e meia superiores à média nacional, e possuem uma estrutura prisional no mínimo no mesmo nível da maioria dos outros estados brasileiros - em vez de completamente inferior. No caso do Amazonas, o complexo prisional alvo das maiores chacinas era, inclusive, privatizado e seus custos de manutenção estavam entre os mais altos do país, dentre os presídios estaduais. Os presos dessas cadeias, em sua enorme maioria detidos por crimes contra o patrimônio ou crimes de drogas, estão ali não por conta do puro e simples aumento da criminalidade nas ruas, mas pelo tipo de relacionamento estabelecido entre Poder Judiciário, Ministério Público e estruturas de segurança pública locais. E em nenhum desses estados o encarceramento em massa jamais ajudou a diminuir a criminalidade. Pelo contrário, muito provavelmente produziu o efeito contrário, contribuindo decisivamente para a generalização da faccionalização dos presos que hoje em dia está em todas as unidades prisionais. Do comportamento simbiótico e suspeito das instituições do sistema de justiça criminal e de segurança pública, à corrupção generalizada dos aparatos institucionais carcerários é impossível alegar ausência de força pública nesse contexto.
Observando o problema a partir da sua lógica interna, é possível superar a condição de inferioridade que mantém os povos amazônicos reféns da violência que domina a região? Penso que a resposta a essa pergunta é negativa e não há qualquer sinal histórico razoável de que alguma mudança esteja no horizonte. As reflexões propostas por Foucault sobre gestão dos ilegalismos podem nos ajudar a entender as razões para o sucesso das estratégias de governamentalidade na Amazônia.
Na aula de 21 de fevereiro de 1973, do curso “A sociedade punitiva”, Michel Foucault apresenta um esquema de interpretação da transformação do sistema jurídico pré-revolucionário francês de 1789 na sociedade normativa liberal e burguesa pós-revolução. Foucault argumenta que a burguesia francesa foi hábil ao se apropriar do sistema jurídico e político para converter as ilegalidades que sustentavam seu modo de vida em uma nova ordem jurídica que lhe fosse favorável (Foucault, 2018, p. 135). Naquele cenário, a criação do sistema penitenciário, afirma Foucault, atendeu à necessidade de regular o jogo político das ilegalidades em disputa, encarcerando os agentes principais de ilegalismos inaceitáveis para o novo sistema econômico capitalista, e disciplinando sob ameaça constante o comportamento dos demais agentes sociais, fora dos muros das prisões. O ilegalismo burguês venceu o ilegalismo nobiliárquico feudal e inventou as prisões para manter sob controle o ilegalismo popular, de quem a própria burguesia tinha se aproximado para conseguir seus objetivos com a ruptura revolucionária.
Na Amazônia, é possível divisar nitidamente um vasto conjunto de ilegalismos populares na forma genérica do ilegalismo popular ambiental. Dada a sobreposição normativa supercomplexa e indisponibilidade das capacidades decisórias nas mãos de agentes locais, praticamente ninguém consegue cumprir com as determinações da legislação ambiental e demais normas incidentes (Jacarandá, Matzembacher, 2018). Nas áreas rurais, camponeses, pescadores, garimpeiros artesanais, ribeirinhos, indígenas, quilombolas, pequenos e médios produtores rurais vivem todos, quase que indistintamente, às margens da obediência integral à legislação em vigor. Quilombolas vivendo em áreas de proteção ambiental integral sofrem com dificuldades para pescar e plantar, indígenas em áreas de fronteira sofrem com a influência de militares sobre seu território e assim por diante. Essas pessoas não estão, contudo, na mesma posição que os agentes do ilegalismo ambiental privilegiado, ocupado pelos grandes produtores rurais e players do agronegócio global que extrapola as fronteiras agrícolas do Centro-Oeste em direção à Amazônia profunda por Rondônia, norte do Mato Grosso e sul do Pará. A capacidade econômica e política de interferência na regulação dos conflitos amazônicos promovida pelos agentes desse ilegalismo de privilégios é muito maior e o seu avanço sobre áreas protegidas atende a interesses globais que só possuem alguma rivalidade econômica com os narcotraficantes.
Esses últimos fazem parte do grande leque de grupos de ilegalismos criminais tradicionais. Perante condenados que decapitam seus pares o ilegalismo ambiental aparece como um problema menor, mais administrável, enquanto o ilegalismo econômico privilegiado permanece quase intocado. O discurso do preso bárbaro age em favor da moderação sobre a forma de governar o ilegalismo popular ambiental e da imunidade sobre o ilegalismo econômico. Presos que de tempos em tempos se matam funcionam no discurso geral da violência como uma espécie de alívio da pressão midiática e normativa que incide sobre outras formas de ilegalismo local e regional. Talvez por esse motivo a violência criminal tradicional tenha tanta importância na Amazônia: altas taxas de homicídios e constantes chacinas em presídios reorganizam a balança da urgência interventiva. A expansão do narcotráfico organizado também contribui para deslocar atenções da opinião pública da devastação ambiental.
É interessante ver como o discurso da invasão organizada da Amazônia pelo CV e PCC assumiu a agenda de políticos e até de alguns intelectuais amazônicos. Não é difícil entender por que especialistas sudestinos encamparam a defesa quase incondicional desse movimento - até com certa empolgação. Afinal, grandes e muito bem estruturadas facções criminais avançando do Sul para conquistar o Norte é uma narrativa cujo encantamento e poder de venda parece ter nascido pronto. Também não parece difícil concluir, para quem observa de longe, que os traficantes de cocaína que foram à Amazônia atrás de rotas de transporte da droga tenham chegado à conclusão de que seria um bom investimento controlar negócios tão díspares como garimpo de ouro, extração ilegal de madeira e grilagem de terras. Como já demonstrei, não ignoro que, de fato, agentes dessas organizações criminosas estejam diversificando seus empreendimentos na Amazônia. O questionamento aqui é, mais uma vez, o tamanho desse impacto em razão da atenção que esse fenômeno recebe da mídia e dos governos. Dadas as dimensões amazônicas, quanto algumas centenas ou mesmo alguns milhares de homens que afirmam pertencer ao PCC ou CV podem realmente afetar ou modificar a grilagem de terras ou o desmatamento em áreas que chegam a quase 60% do território nacional?
A principal consequência político-econômica desse movimento de deslocamento do discurso da ausência para instituições e áreas de atuação da segurança pública parece-me bastante óbvia. Quando o ilegalismo criminal clássico se torna o centro das atenções governamentais interventivas, existe um alívio da pressão sobre o ilegalismo ambiental privilegiado. Além disso, ocorre uma espécie de conversão de papeis funcionais na economia política dessas ilegalidades. Diante do pretenso fracasso das condições locais para o enfrentamento da violência, certos atores deixam ser vistos como parte do problema e se transformam em parte da solução. É nesse ponto que o discurso da ausência se encontra com o discurso do desenvolvimento. E é nesse ponto que desmatadores contumazes como produtores de carne e grandes traders de soja ganham legitimidade para avançar sobre áreas ambientalmente protegidas. Afinal, diferentemente de traficantes de cocaína, em troca da devastação ambiental eles prometem ajudar a economia do país.
Evidentemente, alterar esse quadro geral de violência normativamente orientada exige mudanças muito profundas. Foucault argumenta na mesma aula de 21 de fevereiro de 1973 que um quarto ilegalismo teve papel central na formação da nova ordem constitucional francesa, o ilegalismo do poder público e de seus agentes. Na Amazônia, o ilegalismo do poder público é facilmente identificável. Nas prisões, a corrupção de servidores públicos de todas as instâncias governa o cotidiano carcerário. No campo, inúmeros agentes das forças policiais são responsáveis pela segurança privada de áreas gigantescas, em grande número fruto de grilagem de terras públicas. O ilegalismo político é um componente praticamente essencial das lutas sociais amazônicas e a própria associação entre políticos, a invasão de terras públicas e o narcotráfico também sempre foi muito comum.
Mas há um papel ainda mais característico reservado ao Poder Judiciário, afinal, com níveis tão elevados de insegurança jurídica a participação do Poder Judiciário na solução de grandes conflitos sociais é elevadíssima. O Judiciário tem óbvia participação na formação da massa carcerária, na fiscalização e julgamento dos excessos do poder político, dentre outros temas, mas é no controle dos crimes ambientais e da apropriação ilegal de terras públicas que sua função dentro da arquitetura normativa amazônica ganha protagonismo ainda maior8. Vejo sobre o Poder Judiciário uma pressão ainda maior provocada pelo discurso da ausência para agir como regulador de ilegalismos, em vez de instância decisória a favor da legislação em vigor. E por essa via, o Poder Judiciário acaba vulnerável ao ilegalismo de privilégios e sua capacidade de oferecer sustentabilidade econômica e política diante da ameaça de caos enfatizada pelo discurso da ausência. Um problema muito comum em todos os estados amazônicos acaba sendo a própria disputa por competências entre judiciário estadual e federal para dirimir conflitos e decidir sobre ocupação de terras públicas, desmatamento em áreas de proteção ambiental, autorizações para minerar, construir usinas hidrelétricas e estradas.
Sem autogoverno dos povos, comunidades e populações tradicionais amazônicas são mantidas distantes das posições de decisão sobre suas vidas, bens e costumes. Sob a pressão da violência extrema elas se socorrem do discurso autoritário que pede por intervenção, redução de direitos e uso da força para controlar o caos. Esse cenário só irá mudar com a percepção de que a ausência de poder que se manifesta nos conflitos amazônicos não passa de uma estratégia político-normativa de governo de relações sociais baseadas no assujeitamento e precarização da existência dos cidadãos amazônicos como agentes políticos integrais.
Sobre o desmatamento e o avanço das fronteiras do agronegócio na Amazônia recomendo a leitura de Fearnside, “Deforestation of the Brazilian Amazon”, publicado em Oxford Research Encyclopedias (2017).