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Despejadas: um debate sobre Sujeito de Direito a partir do caso da ocupação Mulheres Guerreiras em João Pessoa
Evicted: a debate on Subject of Law based on the case of the occupation Mulheres Guerreiras in João Pessoa
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e87740, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Dossiê: Pachukanis, insurgências e práxis: 100 anos de Teoria geral do direito e marxismo - Volume 2


Received: 03 October 2024

Accepted: 19 October 2024

DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2024/87740

Resumo: Apresento uma discussão da categoria “Sujeito de Direito” a partir de um estudo de caso, o despejo da ocupação Mulheres Guerreiras, na cidade de João Pessoa/PB. As moradoras desta ocupação foram despejadas no ano de 2018 por força de uma decisão judicial em sede de liminar, após um intenso processo de resistência contra os órgãos de justiça e as forças de segurança locais. Quero aqui analisar certos aspectos dessa disputa que dizem respeito à noção de sujeito de direito, destacando a maneira tradicional segundo a qual esta noção é teorizada pelas lentes da dogmática jurídica, de um lado, e, de outro, trazendo aportes analíticos da crítica jurídica, em especial diálogo com as contribuições de Pachukanis quanto a esta temática. As opções metodológicas caminham no campo do estudo de caso devido ao esforço de problematizar a realidade conferindo-lhe prioridade analítica.

Palavras-chave: Teoria do Direito, Sujeito de Direito, Teorias Críticas do Direito.

Abstract: I present a discussion of the category “Subject of Law” based on a case study, the eviction of the occupation Mulheres Guerreiras, in the city of João Pessoa/PB. The residents of this occupation were evicted in 2018 due to an injunction court decision, after an intense process of resistance against the justice bodies and local security forces. Here I want to analyze certain aspects of this dispute that concern the notion of subject of law, highlighting the traditional way in which this notion is theorized through the lens of legal dogmatics, on the one hand, and, on the other, bringing analytical contributions from legal criticism, in particular dialogue with Pashukanis' contributions on this topic. Methodological options move in the field of case study due to the effort to problematize reality by giving it analytical priority.

Keywords: Theory of Law, Subject of Law, Critical Theories of Law.

1. Introdução: tratadas como bandidas.

Era madrugada quando a polícia veio fazer o despejo da Ocupação Mulheres Guerreiras na periferia de João Pessoa em 2018:

Foram mais de 400 policiais, 2 helicópteros, cavalaria, canil, choque, Gate, polícia federal, SEDURB, que chegaram no meio da madrugada com um trator já derrubando o muro, jogando bomba de gás, bala de borracha, batendo e expulsando os moradores, adultos e crianças. Muitos ficaram feridos, com pernas e braços enfaixados porque lutam por MORADIA DIGNA! (MOVIMENTO TERRA LIVRE: 2018)

Na ocupação viviam cerca de 250 famílias desde meados de 2017. Elas resolveram dar vida a uma obra abandonada há quatro anos pela Caixa Econômica Federal, que ali deveria ter construído um conjunto habitacional- o Residencial Vista do Verde, localizado no Bairro das Indústrias.

Iago Lucena Amorim, em monografia intitulada “A Ocupação Mulheres Guerreiras e o protagonismo feminino no movimento por moradia” (2023), explica que os prédios da Vista do Verde eram divididos em 24 blocos com 16 apartamentos cada. A responsabilidade pela execução da obra, no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, era da Caixa Econômica Federal (CEF), a quem também pertencia a titularidade do imóvel. Poucos meses depois do início da ocupação, a Caixa entrou com uma ação de reintegração de posse e obteve uma liminar para a retirada das famílias que tramitou perante a 3ª Vara da Justiça Federal da Paraíba (processo de número 0807918-88.2017.4.05.8200). Esta decisão só foi cumprida no dia 12 de julho de 20218, 09 meses depois de proferida.

O estudo do processo judicial indica várias tentativas dos órgãos envolvidos para uma saída negociada do imóvel, e uma primeira operação ostensiva para a retirada forçada antes de o despejo finalmente se concretizar, quando a ocupação tinha aproximadamente um ano. Nessa primeira operação, após sentir na pele a truculência da ofensiva policial, as moradoras ficaram indignadas. “Não temos para onde ir aí vem a polícia tratar a gente como bandido? Não existe isso, somos pai e mãe de família, se a gente está aqui é porque a gente precisa” (BACO: 2018), uma delas disse ao jornal Brasil de Fato em matéria publicada no dia 19 de maio de 2018.

As moradoras haviam decidido resistir. E contavam com o apoio de vários setores da sociedade paraibana (como partidos políticos, movimentos sociais, pessoas ligadas à assessoria jurídica popular, entidades sindicais e outras organizações populares), que se sensibilizaram em defesa do “direito à moradia” daquelas sujeitas, destacando a forte presença não só de mulheres, mas também de crianças e de pessoas idosas na ocupação. Por conta dessa mobilização, houve uma cobertura do despejo na mídia relativamente favorável às ocupantes, construindo uma narrativa de necessidade de responsabilização por parte do poder público sobre o que fazer com as pessoas despejadas, que inclusive, ocuparam por vários dias uma quadra esportiva ligada à prefeitura municipal de João Pessoa após o cumprimento da decisão.

Ao longo desse processo de resistência, narrativas relacionadas à condição de “sujeitos de direito” - o direito à moradia, o direito à proteção de crianças, adolescentes e idosos, o direito das mulheres - dessas pessoas foram sendo mobilizadas e funcionaram não só para a postergação do despejo, mas também para os desdobramentos que se deram posteriormente e garantiram a inserção dessas famílias em programas habitacionais do município de João Pessoa.

Pretendo problematizar neste artigo duas questões sobre a noção de “sujeito de direito” que podem ser articuladas a partir da experiência destas Mulheres Guerreiras. A primeira diz respeito à desfaçatez da teoria dogmática do Direito ao apresentar o sujeito jurídico como um ente universalmente apto a operar “créditos” e “débitos”, quando a existência material desses sujeitos corresponde a um grupo de pessoas específico, definido em termos de classe, de gênero, de sexualidade de “raça”, entre outros elementos das desigualdades sociais. O segundo aspecto relaciona-se ao tipo de crítica que devemos mobilizar para fazer frente a esta desfaçatez, num exercício de diálogo entre a experiência e o pensamento crítico, no caso, articulando certas formulações marxistas de base pachukaniana a outras matrizes epistemológicas do campo da crítica jurídica, em especial a de base feminista e antirracista.

Antes disso, três considerações de método.

A primeira delas diz respeito ao diálogo que aqui travo com Pachukanis. Mas qual Pachukanis? Não aquele que é conhecido pelas lentes althusserianas do “marxismo jurídico” da escola de São Paulo - sem querer desprezar a presença real de elaborações estruturalistas no pensamento do autor em questão. Prefiro, antes, o Pachukanis mais próxima do pólo “insurgente” (SOARES, 2024; PAZELLO: 2024; UCHIMURA: 2024), que salta diante de nós com a leitura de “Lênin e os problemas do direito” (2018), cujo engajamento nos processos revolucionários de seu tempo nos previnem contra o marxismo de gabinete . Importa não canonizar Pachukanis , nem Marx, muito menos Althusser, e continuar questionando o mundo a partir da própria realidade, implicando-se em transformá-lo.

Segunda consideração metodológica: a importância de valorizar a experiência. A cabeça pensa onde os pés pisam, já disse Frei Beto. Entendo que é nosso dever produzir saberes a partir do que se vive, do chão onde se pisa, em vez de reproduzirmos um academicismo infértil e conformado sob o signo das teorias críticas. Daí a opção pelo estudo de caso neste trabalho, como uma das metodologias possíveis para ajudar a pôr em diálogo a nossa realidade mais próxima com o arsenal teórico que temos à disposição, ciente dos desafios aí implicados - porque devemos admitir que não fomos ensinados a produzir conhecimento dessa forma. Fomos ensinados a colacionar fichamentos a partir de uma temática qualquer, sem o esforço de elaborar a realidade que nos circunda a partir dos questionamentos que esta temática e as teorias sobre ela nos provocam. Como material empírico para este estudo, fiz uso de matérias jornalísticas, notas políticas, outros tipos de materiais encontrados na internet que ajudaram a caracterizar o conflito em análise, e, principalmente, o estudo de documentos que compuseram o processo judicial nº 0807918-88.2017.4.05.8200, obtido por pesquisa simples na base de dados do Tribunal de Justiça da Paraíba.

Terceira consideração, sobre o lugar que deveria ocupar em nossas análises o que se tem chamado de “interseccionalidade” (HILL COLLINS e BIRGE: 2021) e também de “co-extensividade” e de “consubstancialidade” (HIRATA e KERGOAT: 2007; HIRATA:2014) das relações de gênero, “raça” e classe, entre outras. Não faz sentido pensar sobre as contradições entre capital e trabalho sem levar em contra que se constituíram desde sua origem de modo generificado, racializado, sexualizado e territorializado, por meio de “reciprocidades constitutivas” das relações sociais, no dizer de Roberto Efrem Filho (2016).

Não tem como discutir as implicações dessas reciprocidades para o direito unicamente dentro do “quadro teórico marxista”, ainda mais diante do potencial criativo das análises que tem sido mobilizadas pelas teorias feministas (SILVA: 2018; SEVERI e CAMPOS: 2022) e pelas teorias antirracistas do direito (PIRES: 2017 e 2019; PORTELA: 2021; BERTÚLIO:1989; PAZZELLO e OLIVEIRA: 2022).

A discussão sobre sujeito de direito que travo aqui, informada pela experiência das Mulheres Guerreiras, leva em conta a identificação de um sujeito periférico em oposição a uma idealização “central” de subjetividade jurídica - o sujeito das trocas mercantis, que, além de proprietário, sempre foi homem branco, sem deficiências, supostamente heterossexual e cristão. Tenho em mente o modo como, por meio da luta, as mulheres que lideraram essa ocupação se tornaram sujeitas da política pública que lhes destinou o “direito à moradia”, processo que deve ser entendido em termos de luta de classes, evidentemente, mas uma luta de classes generificada (mulheres, famílias), racializada (mulheres negras), territorializada (mulheres de periferia, disputando o território de um condomínio numa ocupação urbana) e geracional (mulheres, idosos, crianças).

2. Propriedade, individualismo, racionalismo: o sujeito do direito dogmático

Se a condição de sujeito jurídico é uma condição universal, isto significa que as pessoas da ocupação Mulheres Guerreiras são sujeitos de direito, certo? Vamos aos “manuais” de introdução ao Direito, de onde não encontraremos nenhuma linha que pareça fazer sentido quando contrastada com a realidade das protagonistas em questão. A noção de “sujeito de direito” costuma ser definida nos livros dogmáticos da seguinte maneira:

“As pessoas, às quais as regras jurídicas se destinam, chamam-se sujeitos de direitos, que podem ser tanto uma pessoa natural ou física quanto uma pessoa jurídica, que é um ente coletivo”, nas palavras de Miguel Reale (2002) em suas “Lições Preliminares de Direito”.

“O sujeito jurídico enquanto ser humano é aquele que é sujeito de um direito ou de um dever correspondente”, no dizer de Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2003) em “Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação”.

“Sujeito jurídico é o sujeito de um dever jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica…”, para Maria Helena Diniz (2009) no “Compêndio de Introdução à Ciência do Direito”.

Antes de tudo, notemos o caráter tautológico destas conceituações. Elas querem dizer, no frigir dos ovos, que o sujeito de direito é um sujeito que tem direitos. Ao explicar, retornam à pergunta de modo redundante, pleonástico, circular. Por que o céu é azul? Porque a cor do céu é azulada. Há diversos tipos de azuis, que transitam numa gradação de tons claros a variações múltiplas de azul-escuro - Ah! Entendi, respondemos, e levamos adiante a explicação que não explica nada. Uma teoria dessas não tem nada a ver com ciência, como disse Pachukanis (1988, p.19), “não pretende de nenhum modo examinar o direito, a forma jurídica, como forma histórica, porque não visa absolutamente estudar a realidade”. Essa falta de compromisso com o estudo da realidade nos impede, de início, de travar um diálogo mais profundo entre a teoria dogmática e o estudo de caso para além dessa constatação negativa: o conceito de sujeito de direito dos livros dogmáticos não se refere às mulheres que lutam por moradia no país.

As teorias dogmáticas servem-se desse conceito em seu aspecto meramente formal, tomando como ponto de partida a relação jurídica como forma acabada, estabelecida aprioristicamente, sequer questionando “as razões em virtude das quais o homem se transformou de indivíduo zoológico em sujeito jurídico” (PACHUKANIS:1988, p.70).

Por meio de definições tautológicas, a ideologia dogmática cumpre a função de implicar o sujeito jurídico com a defesa dos detentores do poder e da riqueza, traduzida em “débitos e créditos” que alguém “deve” a outro alguém que está na posição de “credor”, postos sempre em termos de um indivíduo contra o outro.

Opera aqui, acima de tudo, o elitismo da intelectualidade jurídica brasileira. Ao oferecer formulações superficiais e aparentemente vazias de sentido, confiam no exato sentido a elas atribuído nas práticas do campo jurídico, que destinará esta condição, de sujeito de direito, àqueles que tem acesso ao poder, ao débito e ao crédito, que em geral se corporificam em homens brancos e ricos, sem deficiências, supostamente heterossexuais e cristãos, dentre outras características que compõe a dominação.

Não é o caso das Mulheres Guerreiras.

Estas foram tratadas pela polícia como “bandidas”, acordadas no meio da noite, baculejadas, contra elas lançaram bombas de gás lacrimogênio. Na decisão liminar que autorizou o despejo, foram chamadas de “invasores” e “esbulhadores” - no masculino. Bandidos, invasores, esbulhadores. Mas elas não eram sujeitas do direito à moradia? Não tinha também o direito das crianças e dos adolescentes e dos idosos e das mulheres no contexto desse litígio?

A propósito, quando a juíza analisou o pedido formulado pela defesa - somente meses depois, porque o despejo aconteceu em virtude de uma decisão liminar - de observar o Direito à Moradia das rés, determinando a inclusão delas em programas habitacionais e auxílio moradia, a juíza disse que aquele pedido extrapolava os limites daquele tipo de ação judicial, a reintegração de posse - uma possessória, isto é, unicamente voltada à discussão da posse/propriedade. Com o mesmo argumento, indeferiu o pedido da defesa para que as ocupantes pudessem voltar ao local no intuito de retirar os seus pertences.

A centralidade da figura do proprietário na definição do sujeito de direito conforma-se também a partir de seu caráter individualista. As pessoas são consideradas como detentoras de direitos e obrigações, de acordo com a visão dogmática, enquanto indivíduos, e não coletividades. Não estou tratando aqui da teoria da pessoa jurídica, que evidentemente considera a personalidade como ente coletivo para adquirir direitos e contrair obrigações. Mas no âmbito das pessoas físicas, quando se associam para compor organismos dos mais variados tipos não institucionais - como um coletivo de mulheres que dirigem uma ocupação urbana com o apoio de um movimento social -, não são inteligíveis em termos de “pessoas jurídicas”. Essa realidade simplesmente não diz respeito à teoria do direito.

Frente à noção dogmática de sujeito de direito, de caráter individualista e voltada à defesa de um sujeito proprietário, a crítica jurídica brasileira costuma contrapor o debate dos “novos sujeitos de direito” ou dos “sujeitos coletivos de direito” . Sendo assim, José Reinaldo de Lima Lopes (2010), por exemplo, argumenta em trabalho de referência sobre o tema, que a noção moderna de “direito subjetivo” funciona bem quando se trata de duas partes, dois indivíduos envolvidos em trocas interindividuais. Mas deixa de lado contextos que envolvem direitos de coletividades, os quais, de acordo com o autor, deveriam ser compreendidos enquanto direitos dotados de justiciabilidade, isto é, que deveriam poder ser cobrados na Justiça.

O direito de morar, de criar filhos que frequentem boas escolas e creches, o transporte público, o lazer, todos esses direitos entendidos como “direitos sociais”, somente podem ser usufruíveis por meio de políticas públicas voltadas a coletividades de sujeitos, sendo que o aspecto coletivo e não redutível a trocas patrimoniais dificulta a intelegibilidade destes direitos e de seus sujeitos no universo jurídico padrão. Importaria, portanto, reconhecer esses sujeitos coletivos e convencer os juristas da justiciabilidade de seus direitos sociais. No entanto, os saberes e práticas oficiais do campo jurídico estão longe de incorporar as consequências desta discussão - porque não podem fazê-lo sem confrontar os limites da ordem posta. Isso jamais acontecerá de maneira profunda e global dentro do capitalismo, muito menos no capitalismo dependente.

Elaborar uma teoria jurídica dos trabalhadores não era o empreendimento de Pachukanis. Ele defendeu a importância de historicizar as elaborações da teoria burguesa do direito, mas sem o propósito de substituí-las por categorias de um suposto “direito proletário”, pois isso significaria eternizar a forma jurídica, em vez de compreendê-la através de seus vínculos constitutivos com a sociedade de classes. Ao escrever este trabalho, tenho em mente a tarefa pachukaniana de analisar a abstração das categorias burguesas em vez de simplesmente desprezá-las, “pôr em evidência sua verdadeira significação, descobrir o condicionamento histórico da forma jurídica” (PACHUKANIS: 1988, p.29).

Por fim, importa também problematizar o componente racionalista presente na noção de sujeito de direito. O que faz dele um sujeito que realmente pode negociar seus bens com outros sujeitos é certo padrão de racionalidade como pessoa adulta e mentalmente “capaz”, dotada de um livre querer, isto é, uma vontade autônoma. A matriz kantiana é a grande influência nessa ideia de razão apta a produzir vontade livre.

Esmiuçando o debate dogmático, temos que a noção de sujeito de direito é composta de outras duas noções que devem se combinar para produzir o pleno trânsito na administração livre de seu patrimônio: ele deve ser dotado de personalidade e de capacidade jurídicas. A personalidade é, por assim dizer, uma “aptidão genérica para contrair direitos e obrigações” (DINIZ: 2009), uma condição que todas as pessoas têm, bastando, para isso, nascer viva - com exceção do “nascituro”, para os quais, nos termos do Código Civil, a “lei põe a salvo os direitos” (BRASIL: 2002), apesar de não terem ainda nascido vivos e não serem, por isso, “pessoas” para a ordem jurídica.

Curioso o modo como a lógica formal dogmática aloca a figura do nascituro num âmbito instável e ambíguo - não é sujeito jurídico, porque ainda não nasceu vivo, porém, tem direitos. A ambiguidade se relaciona à reprovação jurídico-moral do aborto, o que por sua vez se relaciona à subalternização da posição de sujeito de direito das mulheres, que sequer possuem “vontade autônoma” em relação ao próprio corpo na ordem jurídica dos homens proprietários - porque nós também somos propriedade deles, nossos corpos, a vida que geramos, o nosso tempo e trabalho.

Já a capacidade diz respeito a uma “medida jurídica da personalidade” (DINIZ: 2009), conceito meio mal explicado que se relaciona ao preenchimento de certos requisitos indispensáveis para que o sujeito possa, por conta própria, manter o controle da parte civil de sua vida, sem os quais ele precisará de um representante legal para praticar seus atos jurídicos. Esses requisitos tem relação direta com o padrão de “razão’ considerada apta o suficiente para produzir “autonomia da vontade”.

O requisito mais definitivo e objetivo entre todos é a idade, um marco legal a partir de que o sujeito pode ser considerado mentalmente apto para transacionar seu patrimônio de maneira relativa - a partir dos 16 anos, quando poderá exercer alguns atos civis, mas não todos, e por isto é considerado relativamente incapaz - ou absoluta, a partir da maioridade, aos 18 anos. Daí as noções de “incapacidade absoluta”, isto é, a de quem tem menos de 16 anos, e de “incapacidade relativa” - a condição de quem possui entre 16 e 18 anos de idade ou apresenta algum tipo de limitação para os padrões racionalistas.

Tais limitações guardam uma boa dose de subjetivação para o seu enquadramento e relacionam-se à ideia que se tem de uma racionalidade “plena”: uma razão livre de vícios em drogas, incluindo o álcool; de alguém responsável para com seu próprio patrimônio - afastado da prodigalidade -, que não seja acometido de nenhuma condição ou doença circunstacial ou perene a lhe retirar a capacidade de expressão ou a confiança na sua autonomia da vontade. A “razão autônoma”, portanto, tem relação direta com os moralismos e as hipocrisias que compõe o padrão do “homem de bem”: adulto, saudável, probo, responsável, prudente, livre de vícios. Um padrão que, embora não exista na vida real, está bem reservado aos donos da ordem.

Dialogando com as noções de personalidade e de capacidade jurídica, o estudo do processo judicial contém uma petição direcionada à juíza, após a expedição da liminar, que solicita dela “a proibição do uso de força policial contra menores de 12 anos, deficientes físicos ou mentais, enfermos, idosos e gestantes”, e ainda, a “intimação do MPF para que se manifeste sobre a situação das crianças, adolescentes, deficientes físicos ou mentais, idosos, enfermos e gestantes que vivem no conjunto residencial” (BRASIL: 2019). Embora a preocupação aqui manifestada se relacione à vulnerabilidade desses sujeitos, entre eles também constam pessoas que não respondem por si, como “crianças, adolescentes, e, em alguns casos, o que a parte identificou como “deficientes mentais”, mas a condição vulnerável desses sujeitos de direito ou a restrição em sua capacidade jurídica não foi considerada como óbice para a autorização do uso da força policial tampouco para provocar um posicionamento de defesa por parte do Ministério Público.

Resumindo: o sujeito de direito objeto de conceituação dogmática consiste no indivíduo que tem bens para negociar com outro, e o fará diretamente, em nome próprio, caso possua uma “vontade autônoma”. Embora ele seja definido em termos universalistas, corresponde materialmente àqueles indivíduos que possuem bens a serem negociados entre si em termos de débito e crédito - importa que ele seja um proprietário.

Retomando o argumento de um trabalho anterior:

Há uma flagrante contradição entre a abstração generalizante segundo a qual a noção é definida - todas as pessoas parecem ser igualmente sujeitos de direito - e a imediata redução do seu sentido ao universo dos direitos patrimoniais - quando é possível identificar um “credor” e um “devedor” de uma dada obrigação. Se “todos” são sujeitos de direito, porque defini-los em termos de “credores” e “devedores”? (ALMEIDA e CAVALCANTI: 2022).

Por que o sujeito de direito, que é tido como universal, é ao mesmo tempo definido como um devedor ou um credor de bens a serem negociados? As teorias dogmáticas do direito não podem nos socorrer na análise desta contradição, porque suas abstrações formalistas não estão nem aí para a realidade. Somente uma abordagem crítica é capaz de problematizar essa questão.

Coube a Pachukanis nos explicar, partindo de Marx, que o sujeito de direito aparentemente é todo mundo, mas na verdade, mesmo, corresponde ao proprietário das mercadorias - o sujeito das trocas mercantis. Foi o desenvolvimento do mercado, sob o capitalismo, que gerou a necessidade de “transformar o homem em sujeito jurídico” (PACHUKANIS:1988, p. 75). Eu concordo com a tese de que o sujeito de direito encarna nos proprietários das trocas mercantis.

Porém, nessa análise falta algo.

Especialmente porque os “proprietários de mercadorias” e “os trabalhadores” tem gênero, tem sexualidade, trabalham em países de capitalismo periférico ou central, são brancos ou não, são indígenas ou não, enfim, Pachukanis não poderia ter dito tudo, como Marx não disse nem ninguém jamais haverá de dizê-lo. Por isso, correndo o risco de ser chamada de “eclética”, trago a síntese de Thula Pires para enegrecer o debate do sujeito de direito - interpelando-o em “preteguês” - com o arsenal teórico de Lélia Gonzalez:

o sujeito de direito é a afirmação de uma pretendida uniformidade, forjada pela exclusão material, subjetiva e epistêmica dos povos subalternizados. A régua de proteção que determina o padrão a partir da qual bens como a liberdade passam a ser pensados deriva da afirmação da supremacia branca, masculina, cisheteronormativa, classista, cristã e inacessível a todos os corpos, bem como do resultado dos processos de assimilação e aculturação violentos empreendidos pelo colonialismo (PIRES: 2019).

Para levar adiante as análises sobre o nosso povo, nossos desafios, nossas lutas, temos de ir além de Pachukanis no debate do sujeito de direito. Retomando reflexões iniciadas há alguns anos atrás, entendo que existe uma duplicidade na categoria de “sujeito de direito”: de um lado, o sujeito jurídico central, típico, aquele para quem a forma jurídica foi criada e destinada historicamente - o povo da mercadoria, na expressão de Davi Kopenawa (2015: p.409) -, de outro, os não-sujeitos de direito ou sujeitos de direito periféricos, marginalizados, assujeitados, subalternizados, “cuja existência se constrói em função do domínio do sujeito de direito típico” (ALMEIDA: 2017).

Voltemos às Mulheres Guerreiras.

3. Despejadas: as desigualdades sociais na configuração das Mulheres Guerreiras como sujeitas de direito.




Quando a Ocupação Mulheres Guerreiras começou, o Residencial Vista do Verde não passava de uma obra abandonada. É como explica, em entrevista ao Brasil de Fato, uma moça de 27 anos que ganha um salário mínimo como funcionária pública e é mãe de cinco filhos:

No dia que ocupamos aqui, tinham aproximadamente trezentas pessoas, quando entramos o mato estava praticamente cobrindo os prédios, não tinha rede de esgoto, não tinha água, não tinha luz, estava praticamente tudo acabado. Nós entramos, tiramos o mato, arrumamos a rua, colocamos energia, água encanada e hoje em dia estamos aqui porque precisamos (BACO: 2018).

Necessidade, é o motivo de terem ocupado o residencial Vista do Verde. “Se não precisássemos não estaríamos aqui não. Quem ficou é porque não tem para onde ir”. A ocupação Mulheres Guerreiras, como todas as ocupações de sem-teto, são formas de resistência de trabalhadores e trabalhadoras em busca de melhores condições de vida. “Tem outras pessoas de outras ocupações que vieram aqui, mas porque moravam em barracos e quando chove estoura de água, só sabe quem mora nessas condições” (BACO:2018).

As outras ocupações mencionadas por ela eram também ligadas ao Movimento Terra Livre (MTL), que começou a participar da organização das Mulheres Guerreiras logo após o seu surgimento, entre setembro e outubro de 2017:

As primeiras conversas para essa articulação foram realizadas através de famílias que já conheciam o movimento de outras ocupações e que convidaram o MTL para fazer parte da construção. A partir desse momento a ocupação passou a se unir à outras duas ocupações que o MTL organizava na cidade: a ocupação Capadócia, no bairro 13 de Maio, e a ocupação Terra Nova, no bairro Alto do Céu (LUCENA: 2023).

As Mulheres Guerreiras e os integrantes do Movimento Terra Livre fazem parte da “classe que vive do trabalho”, na expressão de Ricardo Antunes (2009). Em diálogo com as ideias de Pachukanis sobre a subjetividade jurídica, não é que não sejam sujeito de direito, mas o são de outro modo.

Pachukanis não explorou bem essa dupla realidade do sujeito jurídico. Resultado das aspirações ideológicas universalizantes desta categoria, se, de um lado, o real sujeito de direito é o proprietário de mercadorias, de outro, os trabalhadores são “equiparados”, por meio do fetichismo jurídico, a esta condição. Os trabalhadores são, sim, sujeitos de direito, mas o são dentro da equiparação fetichista - vejam como ele é livre para trabalhar, como tem vontade autônoma para firmar um contrato de trabalho e dispor livremente de sua propriedade que é a sua própria força de trabalho!

A classe-que-vive-do-trabalho participa apenas formalmente da condição de sujeito de direito a partir da “mercadoria” singular de que é “proprietária”: a sua própria força de trabalho “trocada” por salários. Ocorre que não existe equivalência nesta troca, mas “apropriação da mais-valia sem equivalente”, como nota Moisés Alves Soares (2018) a partir de seus estudos dos Grundisse - nos quais Marx aprofunda um pouco mais do que n´o Capital a relação entre mercadoria e sujeito, a partir da qual Pachukanis desenvolveu a sua tese sobre a subjetividade jurídica. Tal equiparação “escamoteia a realidade de exploração da relação de trabalho e suas profundas implicações para as desigualdades sociais” (ALMEIDA e CAVALCANTI: 2022).

A condição de sujeito de direito das classes e grupos subalternizados resulta não de sua posição nas trocas do mercado, mas de um violento processo histórico que possibilita aos proprietários terem bens para trocar. Nas palavras de Guilherme Uchimura (2023: p.162), contraditoriamente, “ser sujeito de direito é ter sido historicamente assujeitado, a força ou não, e estar relacionalmente sujeito ao domínio do capital”. No argumento do autor, os violentos processos de sujeição são uma dimensão constitutiva do sujeito de direito, no caso dos trabalhadores.

O debate tem a ver com o que a tradição marxista costuma nomear como “acumulação primitiva”, cujos significados precisamos continuar desvendando a partir do chão de nossa terra, ainda que isto provoque alguns tensionamentos teóricos. Por exemplo: resenhando a obra “A dívida impagável”, de Denise Ferreira da Silva, Ana Laura Vilela e Juliana Araújo Lopes (2023) chamam atenção para a necessidade colocada pela autora de revisitar a noção de mercadoria em função do “apagamento da expropriação da capacidade produtiva de corpos escravizados e terras nativas pela tese marxista” (VILELA e LOPES: 2023). Daí resultaria, inclusive, um repensar sobre o suposto momento pré-capitalista em que as relações escravocratas, isto é, a propriedade sobre os corpos negros, não costuma ser compreendido como “capitalismo”, visto não se tratar de uma “relação contratual”.

Em todo caso, em nossas terras latino-americanas ou, na expressão de Lélia González, ladino-amefricanas, a condição de sujeito de direito é constituída pela experiência violenta da colonização. Existe, portanto, uma dimensão colonial e dependente no modo como o sujeito de direito se constitui por aqui, associada à superexploração da força de trabalho:

Uma subjetividade jurídica à imagem da corporalidade latino-americana, forjada pela violência colonial, pela espoliação, pela despossessão, pelo desterro, pelo etnocídio, pelo rapto, pelo escravismo, pelo estupro, pelo aldeamento, pelo apagamento de memórias e pelo contínuo avançar das fronteiras da transformação de tudo em mercadoria e de subsunção de tudo ao processo de acumulação do capital (UCHIMURA: 2023).

Em grande parte, é por meio da violência que se faz a subjetividade dos sujeitos dos movimentos sociais populares. Primeiro pelas próprias condições precárias de sobrevivência, como relatam as Mulheres Guerreiras - nos barracos das ocupações urbanas, “quando chove estoura de água, só sabe quem mora nessas condições”. A atitude da polícia é de intimidação, ameaça, uso direto da força. “Como eles viram que com a gente não tem acordo, o negócio é ameaçar”. Foram na ocupação e disseram que voltariam, “já ameaçando com bomba, bala de borracha, spray de pimenta e que se não sair por bem vai sair por mau”. Essa espera, na ocupação, é envolvida em grande tensão. “Aqui ficamos todos apreensivos, o mental fica a flor da pele. Não temos para onde ir aí vem a polícia tratar a gente como bandido? Não existe isso, somos pai e mãe de família, se a gente está aqui é porque a gente precisa” (BACO: 2018).

Generificando a compreensão dessa violência a partir do nosso caso, concordamos com Valéria Pinheiro (2017) ao notar que “a experiência de um despejo coloca sobre as mulheres uma sobrecarga de preocupação, responsabilidade e problemas que, somados aos pesos já relatados do cotidiano da vida urbana, parece intransponível”.

Mas aqui nos deparamos com mais uma contradição. Ela se relaciona ao modo como as Mulheres Guerreiras reivindicam não ser tratadas como “bandidas” só porque não têm pra onde ir - “Não existe isso, somos pai e mãe de família, se a gente está aqui é porque a gente precisa”. Mobilizando a noção de “família”, isto é, “gente de bem”, “honesta”, o oposto de “bandidos”, elas querem dizer que têm direitos a serem respeitados.

A despeito do processo violento de sujeição atrelada à subjetividade jurídica, a noção de “luta por direitos” e de “sujeito de direito” é uma realidade nas narrativas dos movimentos sociais e demais setores da classe-que-vive-do-trabalho. Existe um uso dessa categoria que está totalmente inscrito nos processos de mobilização e enfrentamento à ordem dominante.

Como notou Miguel Pressburguer - um intelectual ligado à tradição da crítica jurídica insurgente que promoveu um interessante diálogo com as ideias de Pachukanis - a subjetividade jurídica também se manifesta em situações de lutas por direitos por meio de “uma grande capacidade de mobilização política” (PRESSBURGUER: 1993, p. 27). Essa capacidade de mobilização é impulsionada na “luta por direitos”, na revolta que mobiliza - “não existe isso”, esse tratamento contra nós como se não tivéssemos direito algum, “somos pai e mãe de família”, isto é, temos direitos, somos sujeitos de direitos. A conscientização a respeito dessa condição não cai do céu, vem, antes, junto com processos de organização e luta. Luta de classes, mas uma classe que tem gênero, tem “raça”, tem sexualidade, inscreve-se num dado território etc.

A estrutura organizativa da ocupação Mulheres Guerreiras se baseava na realização de assembleias quinzenais para discutir questões internas e decidir como seria o diálogo com as instituições com as quais passaram a lidar. Essas assembleias elegiam membros para compor uma comissão interna com função de representar a ocupação no trato com as autoridades. Segundo Iago Lucena (2023, p.21), houve um momento de conflito quando alguns moradores homens que estavam na comissão começaram a ter atitudes contrárias aos interesses do movimento, negociando com representantes da Caixa sem a autorização do restante da ocupação. Foi então que as mulheres depuseram esta comissão e tomaram a frente do processo. “A importância das mulheres aqui é fundamental, porque fomos nós que tomamos a frente. Decidimos ficar só mulheres na comissão. Eu acho que as mulheres têm é tomar a frente de tudo” (BACO: 2018), disse uma das lideranças.

O protagonismo das mulheres na organização de ocupações urbanas é um dado que vem recebendo a atenção de vários estudos. Contraditoriamente à divisão generificada das tarefas dentro de uma ocupação - segundo a qual as mulheres são mais facilmente alocadas em funções diretamente ligadas à reprodução como alimentação, limpeza, gestão das crianças etc. -, ocorre que elas também vêm assumindo a liderança política nas ocupações, como discuto noutro trabalho, junto com Maria Joaquina da Silva Cavalcanti (ALMEIDA e CAVALCANTI: 2022).

No argumento de Valéria Pinheiro (2017), embora sejam os homens que dominam as instâncias de representação responsáveis pelas políticas públicas, são as mulheres que se põem na luta de corpo inteiro. “Na disputa pela manutenção da família, no cuidado com os filhos, na demanda por políticas públicas, nas barricadas, nas longas e cansativas reuniões com poder público, com o movimento...” (PINHEIRO:2017). Este protagonismo das mulheres nas lutas por território é anterior às lutas tradicionalmente associadas aos trabalhadores, como chama atenção Irene Maestro:

Dos quilombos aos levantes e retomadas indígenas, passando pelas ocupações de terra no campo e na cidade, até às mães que lutam por justiça por terem a vida de seus filhos ceifadas pela polícia, podemos afirmar que as mulheres cumprem um papel fundamental nos territórios onde estão inseridas e que ajudam a organizar e mover, para que elas, seus filhos e sua comunidade possam ter melhores condições de vida (MAESTRO: 2017).

Esta agência se relaciona à “poética negra feminista” de Denise Ferreira da Silva, questionando o lugar destinado nas análises das teorias do direito às mulheres negras, aprisionando-as a “cenas de sujeição: clientes do sistema penal, trabalhadoras sem direitos reconhecidos, vítimas de violência e outras imagens que recriam a violência racial e colonial” (VILELA e LOPES:2023).

O questionamento me leva a pensar nas Mulheres Guerreiras: processadas pela Justiça, sim - “esbulhadoras”, “criminosas” - mas, sobretudo, insubmissas. Descumpriram a ordem de despejo até o limite de sua resistência, mas ainda assim continuaram reivindicando o seu “direito à moradia” e acabaram conquistando-o pela luta. Tanto que o processo organizativo da Ocupação Mulheres Guerreiras não se encerra com o despejo. “Ele começou em agosto de 2017, com a ocupação dos prédios, e terminou com a conquista dos apartamentos pela última parcela dos moradores que estavam inicialmente na ocupação em fevereiro de 2023” (LUCENA:2023).

Quero aqui chamar a atenção para o modo ativo como essas mulheres - e também homens - se organizam e vão atrás dos seus direitos. Essa ação, essa luta, é o que faz delas sujeitas de direito.

Tem a ver com que Silvia Aguião (2020) retrata como o processo de “fazer-se no Estado”, analisando as configurações do movimento LGBT(QIAPN+) na conquista de “direitos sexuais”. O modo como os LGBT+ foram se tornando sujeitos de direito relaciona-se aos processos de luta pelos quais o “Estado” foi regulamentando direitos para eles, por causa da luta deles. Eles não eram “sujeitos de direito” a priori, nem se tornaram apenas depois.

A expressão “fazer-se no Estado” chama atenção “não só para as formas através das quais o Estado produz os sujeitos que governa (administra), mas também para o processo de constituição desses sujeitos como parte de um fluxo contínuo de produção do próprio Estado” (AGUIÃO: 2020, p.146). A autora também chama a atenção para o caráter complexo, inacabado, contínuo e contraditório desses processos que envolvem as disputas no campo do direito, que não ocorrem de modo linear e se dão por meio de “estratégias múltiplas e, por vezes, contraditórias” (AGUIÃO: 2020, p.158,159).

É no processo de luta pelos direitos, em conexão com as conquistas jurídicas que resultam dessas lutas, que vai se conformando um grupo social a que se pode denominar, coletivamente, como sujeitos de direitos, e que vão fazer uso dessa condição para conseguir mais direitos, por necessidade. Para melhorar de vida.

A questão se relaciona às análises de Nêgo Bispo (2018) sobre a condição de “sujeito de direitos” dos quilombolas. Afinal, antes da Constituição de 1988 os quilombolas e os indígenas eram vistos somente como criminosos ou preguiçosos, segundo ele. Depois que se criaram mecanismos de titulação de terras para estes sujeitos, eles tiveram de lidar com a grande tristeza de ter que possuir um documento pra poder viver na terra onde queriam só continuar vivendo, sem possuí-la, porque na verdade, segundo os saberes quilombolas, eles é que são da terra - “Somos da Terra” -, e não a terra que é deles. Mas ou era isso, ou era ser expulso do canto deles. Assumir-se como “sujeito de direito quilombola”, portanto, faz parte da contracolonização, outro conceito de Nêgo Bispo: é lutar com as armas do inimigo colonizador para se defender da colonização.

As Mulheres Guerreiras contra-atacam, frente ao despejo, lutam como “sujeitas” do direito à moradia. Cobram da polícia que não as tratem como bandidas, porque estão ali porque precisam. Dizem à justiça que não vão sair de suas casas, apesar da ordem da juíza da 3ª Vara Federal, porque elas também tem direitos que precisam ser respeitados.

Noutro trabalho, em conjunto com Maria Eduarda Pessoa e Renata Oliveira Barbosa, a propósito da reescrita dessa decisão judicial das Mulheres Guerreiras, analisamos a generificação desse conflito. Desde a reivindicação da noção de “família” - “somos pai e mãe de família, não somos bandidos” para justificar a proteção jurídica, como também a defesa das crianças, dos idosos e das mulheres, que formavam um grande contingente na ocupação. Esta defesa, que se torna inteligível através do modo como as mulheres são socialmente responsabilizadas pelo cuidado com a “família”, foi um dos motivos para que as forças de segurança tivessem mais dificuldade de expulsá-las. Assim, mobilizaram os direitos das crianças e os direitos dos idosos, cobrando do Ministério Público e dos órgãos assistenciais que protegessem essas pessoas, e assim, no contexto da resistência articulada com outros sujeitos que conseguiram fazer, ganharam mais tempo e mais força para as negociações que resultaram na inclusão delas na política de habitação da cidade. O gênero grita alto na luta dessas trabalhadoras.

Evidentemente, o gênero não opera aqui sozinho - se faz na “classe” (diante das experiências de criminalização e resistência de mulheres trabalhadoras), nos processos de racialização (que levam a vida de mulheres pretas e pardas a “valer menos”), nas relações que perfazem os territórios desse conflito (inscrito na periferia de uma, reivindicando uma “moradia”, isto é, um território para viver), bem como nas relações geracionais (que diferenciam mulheres adultas, que podem ser responsabilizadas por uma luta, de crianças e idosos, que devem ser protegidos das consequências dessa luta), entre outras relações sociais que podem ser analisadas como constitutivas do gênero nesse conflito específico (ALMEIDA, PESSOA e BARBOSA: 2023).

Pensando a partir das “múltiplas formas em que a colonialidade se impôs às culturas não brancas” (PIRES: 2017), identificamos a luta das Mulheres Guerreias como uma fissura no padrão de sujeito de direito. A luta delas é tratada como um desvio - esbulhadoras, criminosas -, porque representam, de fato,

a subversão da ordem, da harmonia social e dos valores que sustentam o projeto de poder colonial. E é isso mesmo. Afirmar a humanidade do não europeu, das mulheres, de povos negros e indígenas, dos não cristãos, dos que desafiam formas heteronormativas de viver e se relacionar e das pessoas com deficiência, é subverter a naturalização das estruturas de poder e dominação que foram violentamente construídas pelo exercício de poder colonial escravista que se impôs nas Américas (PIRES: 2017).

O enfrentamento ao despejo travado pelas Mulheres Guerreiras exemplifica a singularidade da experiência da nossa amefricanidade, na expressão de Lélia González, que se produz “a partir da resistência e criatividade que a luta negra em diáspora, protagonizada por mulheres, conduziu a partir da experiência colonial que por aqui se forjou” (PIRES:2019).

Para estas mulheres, é a luta que diz se elas são sujeito de direito ou não, porque elas não pertencem àquela condição fácil do sujeito de direito proprietário. É somente na luta que elas conseguem os direitos, os poucos que têm, que muitas vezes expressam conquistas reais na vida delas. Por isso a linguagem jurídica é tão comum nas narrativas de luta dos sujeitos subalternizados.

Conforme a discussão que faço noutro trabalho, podemos chama-las de “intrusas” no direito, com seus trânsitos incômodos no terreno jurídico, perturbando os donos da casa (ALMEIDA: 2017) - sequer obedecer a ordens judicias elas queriam. Os sujeitos sem-direitos, que também podemos chamar de “sujeitos de direito periféricos”, são todos intrusos. Não foram convidados para usufruir das benesses da ordem jurídica, se o fazem, o mínimo que seja, é a custo de muito suor e sangue. Mas esse suor e esse sangue negociam os direitos que o “Estado” vai inscrever como potencialmente seus, e, dialeticamente, as inscrições das práticas de Estado é parte dos processos que os constituem como sujeitos.

Considerações Finais

Ao contrário da narrativa universalista da teoria dogmática sobre o sujeito jurídico, esta noção, na realidade, se aplica aos homens brancos, adultos, proprietários, sem deficiências, supostamente heterossexuais e cristãos. O “povo da mercadoria”, como diz Davi Kopenawa. Aos demais, os intrusos como as Mulheres Guerreiras, cabe a rua, com suas crianças e idosos, visto que tomaram para si as coisas dos outros - “bandidas”, “invasoras”, “esbulhadoras”.

Retomando as ideias de Pachukanis, entendo haver uma vida dupla do sujeito jurídico: o proprietário das trocas mercantis é a sua carne, mas aos trabalhadores também se aplica essa categoria, de modo distinto. De um lado, como assujeitamento, constituído dos processos violentos que produziram e produzem o capitalismo, de outro, como luta, como dispositivo para a ação mobilizante que pode resultar em melhora de suas condições de vida através de conquistas no mundo jurídico. Eles estão em movimento, na “luta por direitos”, fazendo dessa sua condição - a de “sujeito de direitos” um pressuposto para ampliar o seu acesso a melhores condições de existência.

Neste trabalho busquei um diálogo entre a experiência e o pensamento crítico produzido no direito para analisar a realidade. Mas é necessário aprofundar os estudos sobre o pensamento insurgente de mulheres, de intelectuais pretas e dos pretos, de indígenas, de quilombolas, de LGBTQIA+ e demais sujeitos marginalizados na sociedade de classes. Sinto falta, por exemplo, de um levantamento sobre os estudos de mulheres que estão discutindo o marxismo no direito, porque às vezes parece que há somente homens formulando nesse campo. Afora o marxismo, senti muita falta nesse trabalho, por limites de minha formação, de acessar estudos de indígenas e quilombolas, em especial mulheres, que ajudassem a refletir sobre o tema da subjetividade jurídica.

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