Dossiê: Pachukanis, insurgências e práxis: 100 anos de Teoria geral do direito e marxismo - Volume 2
Received: 23 October 2024
Accepted: 03 November 2024
DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2024/87840
Resumo: No presente trabalho, apresentamos uma hipótese de tradução da obra de Pachukanis que foi uniformizada por tradutores, teóricos e editores. Trata-se de uma distinção entre as expressões “forma prava”, “pravovaya forma” e “yuriditcheskaya forma”, normalmente traduzidas como “forma jurídica”. Tal como sugerido pelas origens etimológicas de cada palavra, intuímos que os dois primeiros termos fazem alusão a uma dimensão mais global do direito, enquanto o último relaciona-se a manifestações mais concretas e empíricas da experiência jurídica cotidiana. Colocamos essa percepção à prova a partir do cotejo dos originais e das traduções de capítulos emblemáticos das principais obras de Piotr Stutchka e de Evguieni Pachukanis. A partir dessa análise, os textos corroboram a hipótese inicial ao associarem o substantivo “pravo” e o adjetivo “pravovoi” à apreensão da totalidade do ser jurídico em seu máximo grau de abstração, enquanto o adjetivo “yuriditcheskii” aparece associado a manifestações e expressões fenômenicas, concretas e empíricas dessa forma jurídica acabada.
Palavras-chave: Forma Jurídica, Evguieni Pachukanis, Piotr Stutchka, Direito e Marxismo.
Abstract: In this paper, we present a translation hypothesis about Pachukanis’ work that has been standardized by translators, theorists and editors. It is a distinction between the expressions “forma prava”, “pravovaya forma” and “yuriditcheskaya forma”, usually translated as “legal form”. As suggested by the etymological origins of each word, we anticipate that the first two terms allude to a more global dimension of law, while the latter relates to more concrete and empirical manifestations of everyday legal experience. We put this perception to the test by comparing the originals and the translations of emblematic chapters of the main works of Piotr Stuchka and Evgeny Pashukanis. Based on this analysis, the texts corroborate the initial hypothesis by associating the noun “pravo” and the adjective “pravovoi” with the apprehension of the totality of the legal being in its maximum degree of abstraction, while the adjective “yuriditcheskii” appears associated with phenomenal, concrete and empirical manifestations and expressions of this finished legal form.
Keywords: Law Form, Evgeny Pashukanis, Piotr Stuchka, Law and Marxism.
1. Uma hipótese de tradução para a filologia viva de Teoria Geral do Direito e Marxismo
As discussões sobre o sentido e legado da crítica jurídica soviética e, em particular, sobre a obra principal de Evguieni Pachukanis ainda têm muito para durar. O livro Teoria Geral do Direito e Marxismo continua a ser lido e debatido por todo o mundo. No Brasil, temos talvez as discussões mais engajadas acerca do centenário dessa obra cuja publicação na língua portuguesa de origem brasileira teve quatro traduções: duas entre 1988 (pela Acadêmica) e 1989 (pela Renovar) e duas no ano de 2017, pelas editoras Boitempo (com tradução de Paula Vaz de Almeida) e Sundermann (traduzida por Lucas Simone).
Não há qualquer dúvida que as duas edições mais recentes indicam avanços imensos na divulgação do pensamento de Pachukanis. Elas foram as primeiras a lidar com uma tradução direta da língua russa, operada por tradutores experientes e talentosos, além de assessorados tecnicamente pelos mais célebres intérpretes do pensamento pachukaniano no Brasil1.
Nossa pesquisa, no entanto, parte de uma hipótese de interpretação do pensamento de Pachukanis que se ampara em uma possível diferenciação que não foi salientada nem por esse processo de tradutibilidade entre ideias escritas em russo para o português e nem pelos comentários posteriores de interpretação do pensamento jurídico crítico soviético. No caso, trata-se da distinção entre os termos pravovaya forma (правовая форма), yuriditcheskaya forma (юридическая форма) e forma prava (форма права). Nas edições brasileiras, os dois primeiros são agregados e uniformizados com o mesmo termo (“forma jurídica”) e o terceiro, por sua vez, ou é escrito como “forma do direito” (PACHUKANIS, 2017a) ou também se uniformiza como “forma jurídica” (PACHUKANIS, 2017b). De todo modo, os comentaristas da obra de Pachukanis lidaram com esse termo como se fosse mero sinônimo de “forma jurídica” e em referência direta, quase indistinta, à noção de “relação jurídica”.
Para além dessa fácil sinonímia, propomos a possibilidade de pensar que esses três termos não são apenas diversamente grafados, mas expressam um diferente papel não apenas na teoria de Evguieni Pachukanis, mas também na de Piotr Stutchka2. Eles expressam não apenas planos de abstração distintos (forma social desenvolvida e momentos de expressão ou de encarnação na realidade), mas também possibilidades diversas de manejar, operar, distorcer e resistir à dinâmica da forma jurídica como continuidade e tentativa de perenizar as relações capitalistas de produzir e reproduzir a vida.
Assim, partimos da percepção de que o uso da palavra “forma” (форма, forma) assume um sentido peculiar quando acompanhado do adjetivo pravovoi (правовой), cujo radical está atrelado à palavra prav” [правъ] de origem do eslavo antigo oriental e que, atualmente, é empregada na língua russa para tratar do direito: pravo (право). Por sua vez, o adjetivo yuriditcheskii (юридический) origina-se da influência do termo alemão juridisch e do vocábulo latino iuridicus e à sua tradução específica do termo “direito” (ius), fazendo menção à noção de dizer ou declarar o direito (VASMER, 1986). Logo, o segundo termo associa-se amplamente com questões também concernentes à administração da justiça e de órgãos do judiciário3 (âmbitos nos quais o direito se manifesta, é dito ou declarado), enquanto o primeiro concatena-se mais diretamente com a noção de direito em si mesmo enquanto lugar de mediação de relações sociais de uma determinada sociedade4.
Esses elementos filológicos, supomos, não são triviais e, quando utilizados por Pachukanis e Stutchka, indicam, consciente ou inconscientemente, uma noção de aproximação ou distanciamento da forma jurídica como generalização acabada das relações mercantis de cunho capitalista. Nesse sentido, pravovaya forma (правовая форма) e forma prava (форма права) dizem respeito a uma visão de totalidade do surgimento e aparecimento do direito e da cosmovisão jurídica em real. De outro lado, o uso de yuriditcheskaya forma (юридическая форма) cumpriria o papel de lidar com expressões e manifestações do direito na realidade empírica5, isto é, quando a forma social do direito imprime a sua lógica e sua marca nos entes que a circundam, realizando-se e encarnando-se neles.
Trata-se de um processo de juridização dos outros âmbitos da vida comunitária, que passam a ser subsumidos pela pressão da forma social do direito: a forma jurídica (pravovaya forma) força elementos externos (ser humano vivente, riqueza social com valor de uso, apropriação de bens ou normas sociais estabelecidas pela coletividade por exemplo) a assumirem uma forma jurídica (yuriditcheskaya forma). A frase acima seria extremamente tautológica e talvez indecifrável sem a distinção entre os sentidos diversos de “forma jurídica” que propomos acima.
Essa, por certo, é uma aproximação ainda incipiente e que deve ser aprofundada. Quando escrevemos o presente artigo, temos consciência de que trata de um primeiro esforço de colocar essa intuição inicial à prova. Desse modo, optamos por centrar a análise do uso desses termos nos capítulos principais da obra dos dois autores fundantes da crítica jurídica soviética: Piotr Stutchka (1924, p. 46-62; 2023, p. 171-200), no capítulo Direito como Sistema de Relações Sociais de O papel revolucionário do Direito e do Estado e Evguieni Pachukanis (1980, p. 102-127; 2017a, p. 117-138; 2017b, p. 137-164), no capítulo Mercadoria e Sujeito, de Teoria Geral do Direito e Marxismo.
Cabe antecipar, desde já, que nossa impressão inicial sai fortalecida dessa primeira aproximação. No entanto, nosso objetivo mais amplo não consiste em uma dissecção asséptica do sentido autêntico das palavras empregadas pelos autores soviéticos. A diferenciação apresentada não é a busca por um passado exato, mas sim o seu renascer com os olhos do presente, como horizonte que pode animar a práxis insurgente da crítica marxista ao direito no Brasil contemporâneo, como filologia viva que mantém o pensamento de Pachukanis atual e perigoso6.
2. Formas do direito e relações jurídicas em Stutchka
Embora nosso tema central seja o centenário e a abertura de outras chaves interpretativas no interior da obra Teoria Geral do Direito e Marxismo de Pachukanis, o exercício de uma “filologia vivente” exige a remissão a seu precursor letão por basicamente duas grandes razões: 1) a compreensão que uma leitura integral do debate jurídico revolucionário envolve, especialmente, o entrelaçamento do pensamento de Piotr Stutchka e Evguiéni Pachukanis - compreendidos como dois grandes teóricos, mas também juristas de uma práxis insurgente (PACHUKANIS, 2018); 2) do ponto de vista de nossa hipótese de trabalho, é fundamental o recurso ao primeiro deles, pois, na dinâmica de apreensão do direito em suas formas, as categorias usadas por Stutchka são pontos de diálogo ou mesmo de partida para as reflexões de Pachukanis, fomentando o exame da forma jurídica em seus diversos níveis de aparição, concretude, totalidade e generalidade (SOARES, 2024, p. 84-85).
Em outro momento, na Introdução Brasileira à obra O Papel Revolucionário do direito e do Estado, em apertada síntese, tratou-se de como o “Lênin Letão” constitui uma obra que possuía um diagnóstico e uma projeção. O diagnóstico estaria em pensar o direito como uma relação social constituída por uma pluralidade de formas de concreção em diferentes períodos históricos. A projeção estava centrada na ideia de, a partir dos dilemas próprios da Revolução de Outubro, constituir respostas precisas num campo tão antirrevolucionário quanto o delineado pelos séculos de jurisprudência (SOARES; PAZELLO, 2023).
O ponto que nos interessa aqui é seu diagnóstico e a expressão de sua metódica, isto é, as formas decifradas por Stutchka “são de duas naturezas: forma jurídica concreta (constituída no campo da produção e apropriação) e formas jurídicas abstratas (as leis - compreendidas como normas emanadas do poder político organizado - e a ideologia jurídica)” (SOARES; PAZELLO, 2023, p. 30). O que foi visto, por alguns intérpretes, como uma fraqueza em sua construção teórica, assim não nos parece, pois Stutchka, ao entender o direito na dinâmica entre formas jurídicas, acaba proporcionando uma teoria que nega qualquer tendência economicista e permite um mergulho a formas concretamente situadas.
Nesse sentido, tomamos como nosso laboratório o capítulo cinco de sua principal obra já referida, o qual é denominado Direito como Sistema De Relações Sociais, uma vez que é nesta parte que o jurista letão articula os “pivots” que constituem o direito. Cabe ressaltar, em primeiro lugar, que neste trecho, uma vez que Stutchka pretende analisar o direito como uma relação social tal como Marx a viu em O Capital, há um incontável número de expressões do direito em sua concretude como diversos tipos relações jurídicas - “relações de propriedade” (отношения собственности, otnocheniya sobstvennosti), “contrato de compra e venda” (договор купли-продажи, dogovor kupli-prodaji), “contrato pessoal de trabalho” (договор личного найма, dogovor litchnogo naima), entre outros.
Em Stutchka (2023), em maior nível de abstração, encontraremos menções a “sistema jurídico” (правовая система, pravovaya sistema) ou somente ao termo “direito” (право, pravo), quando ele se refere à totalidade das relações jurídicas em movimento. Ao elaborar seu movimento metódico, tal como Pachukanis o fará posteriormente, ele estrutura sua teorização em diálogo literal com os excertos da Introdução de 1857. E, nesse sentido, apenas os termos “direito” ou “sistema jurídico” acabam por expressar o conjunto dessa multiplicidade de fenômenos que configurarão a especificidade da forma do direito. Importante lembrar que é neste capítulo que, de forma heterodoxa até para a compreensão atual, na metáfora limitada entre base e superestrutura, Stutchka dirá que, nestes termos, o direito fará parte da base ou infraestrutura, uma vez que tem raízes profundas nos mecanismos de produção e reprodução do mais-valor.
Ao tentar desvendar o complexo funcionamento do direito como um sistema de relações sociais (правовая система, pravovaya sistema), Stutchka vai elaborar um segundo nível de abstração através de uma dialética das formas do direito. De um lado, há a “forma jurídica concreta” (конкретная правовая форма, konkretnaya pravovaya forma), que está associada ao mundo da produção, das relações econômicas, sendo a contraface desse processo; de outra parte, as formas abstratas (абстрактные формы, abstraktnye formy) do direito, representadas na legislação garantida por um poder político organizado e por sua expressão ideológica. Cada uma dessas formas compõe o direito enquanto totalidade e todas elas encontram sua concreção em outras formas jurídicas.
Mesmo que singelamente é possível falar do mergulho ao concreto dessas três formas e afirmar que Stutchka vê o “sistema jurídico” ou o “direito” na interrelação entre elas, sendo que, a depender do momento histórico determinado, formas abstratas podem assumir um papel determinante - ele dá o exemplo da ideologia jurídica na revolução francesa. A “forma jurídica concreta” encontra concreção nas dinâmicas relativas ao mundo do trabalho e de produção do mais-valor e como formas jurídicas são capazes de produzir, reproduzir e impulsionar os mecanismos de apropriação e expropriação. Na “forma abstrata” do direito, que o jurista letão observa como derivada de um poder político organizado, tendencialmente do Estado, há um papel importante na regulação legislativa e judiciária, nas diferenças de sistemas legislativos e de administração da justiça. E, por fim, em sua “forma abstrata” representada pela ideologia, há uma nítida importância das formas não escritas de direito em suas diversas noções de justiça, por exemplo, e sua potência na difusão de uma cosmovisão jurídica de mundo.
Como hipótese, neste último nível de concreção do direito, encontramos um uso abundante - presente de modo central em Pachukanis - do conceito de relação jurídica, mas em seu radical latino (юридические отношения, yuriditcheskie otnocheniya). Aqui, em geral, Stutchka está a tratar da dinâmica em suas “formas abstratas” ou, como usa de maneira recorrente, das “expressões jurídicas” (юридические выражения, yuriditcheskie vyrajeniya) de outras relações sociais. Portanto, nesse nível, aparecem o conteúdo legal de documentos, regras jurídicas, a linguagem jurídica, expressões ideológicas, entre outras relações que Stutchka considera como parte da totalidade do direito. Aqui já temos uma harmonização com o que presumimos em nossa hipótese: o uso do adjetivo yuriditcheskii implica aproximar-se das formas de manifestação da forma jurídica na realidade imediata e cotidiana, em seu nível máximo de empiria, enquanto o adjetivo provovoi associa-se à categoria “sistema jurídico” como um concreto pensado apreendido em movimento de totalidade.
Ao ver esses momentos em Stutchka, em nosso laboratório do capítulo Direito como Sistema de Relações Sociais, é possível ter um ponto de partida para compreender possíveis outros movimentos não capturados pela recepção tradicional da obra de Pachukanis. Em O Papel Revolucionário do direito e Estado, é possível passar pelo nível mais de alto de abstração, posteriormente chegar ao das formas concretas e abstratas e, por fim, à esfera das relações jurídicas e suas diversas expressões. A partir de agora, observaremos como a análise desses termos que comumente são uniformizados na tradução pode dar abertura para uma filologia viva em Pachukanis.
3. Forma do direito e formas jurídicas em Pachukanis
Por questões de tempo e de operacionalização, limitaremo-nos a analisar o emprego dos termos pravovaya forma, forma prava e yuriditcheskaya forma no capítulo Mercadoria e sujeito de Teoria Geral do Direito e Marxismo. Essa escolha não foi acidental e ampara-se na percepção de que esse trecho específico da obra de Pachukanis não apenas é quiçá o mais relevante de todos os seus escritos (uma vez que expressa o momento em que o jurista soviético coloca em prática seu projeto de reler o direito tal como Marx depura o capital), mas também está entre aquelas seções nas quais há a maior recorrência dos termos selecionados para estudo7.
No entanto, como pré-requisito para compreender o papel cumprido por cada um dos termos selecionados para análise, parece-nos necessário enfatizar o que se quer dizer quando se fala de “forma” dentro da arquitetônica do pensamento de Pachukanis.
A noção de “forma jurídica”, em um sentido geralmente adotado pela literatura preocupada em estudar a obra do jurista soviético, tem assumido o sentido de uma generalização das relações sociais de sujeitos de direito que trocam mercadorias. Nesse sentido, o constante reiterar das relações de troca de valores entre sujeitos culmina na possibilidade de pensar tanto na forma-valor quanto na forma jurídica como formas sociais que naturalizam o modo de ser e de viver na sociedade burguesa, comprimindo o horizonte de ação das pessoas à reprodução da lógica geral do capital.
Uma síntese dessa percepção é a operada por Dussel, quando aborda a questão da lei do valor como a:
esencia misma del capital como fundamento que rige, regula u obliga, con la necesidad de la propia naturaleza, al fenómeno de la existencia real del capital, en el capital en general, en todos los capitales individuales o en el capital global (nacional o mundial). Es una relación de la esencia que regula y el fenómeno regulado. […] La totalidad de los momentos de la vida económica (producción, mercado, precio, ganancia, acumulación, transferencia de valor de un país a otro, etc.), todo, está regulado esencialmente por la ley universal del capital; la ‘ley del valor’. Es la esencia hecha regla que rige internamente a los fenómenos como su propia naturaleza” (DUSSEL, 1990, p. 427-428).
Esse trecho específico se associa harmoniosamente com a delimitação da forma-valor como forma social, tal como pode ser discernida em interpretações que a constatam ao lado da coerção das formas sociais naturalizadas e reiteradas na existência social (com o emprego de termos como “devem adotar”, “pressões”, “constrangimento”, “coerção inconsciente”), o que dialoga diretamente com a tríade de verbos (reger, regular e obrigar) empregada por Dussel para delimitar a operação da lei do valor (HIRSCH, 2005, p. 166; CATINI, 2019; MASCARO, 2013).
Por isso, a problemática da forma na crítica marxista (seja ao valor ou ao direito) não é conexa à separação entre forma e conteúdo como se este fosse o elemento central e aquele, o enganoso, mistificador. Na verdade, a forma é resultado da generalização e densificação8 do conjunto de relações capitalistas e é justamente ela que pode servir como a chave para superar a questão da especificidade do valor e do direito. Isto é, a noção de forma expressa a conformação de uma substância trans-histórica universal (produtos do trabalho, trabalho concreto, normas estabelecidas em conjunto por uma coletividade) a um complexo de relações reiteradas, que, a partir desse incessante repetir-se, apresentam-se como uma segunda natureza. Chega-se ao ponto de haver uma confusão dessa forma particular com o próprio elemento geral-universal: a forma-mercadoria imiscui-se à noção de produto do trabalho, a de trabalho abstrato à de trabalho concreto e a de sujeito de direito à de ser humano vivente (FERREIRA, 2024).
Com essa introdução, fica nítido que a questão da forma jurídica é central em todo o argumento pachukaniano e que, no fim das contas, depurá-la a partir de sua separação em três termos diferentes complexificaria um debate que já não é simples. No capítulo em discussão, por exemplo, esse trio de termos é empregado em um total de 17 vezes, dos quais cinco são referentes à pravovaya forma; seis, à yuriditcheskaya forma; e, enfim, cinco à forma prava. De início, nossa percepção de diferenciação já é reforçada pela ordem de aparecimento dos termos ao longo do texto: em vez de estarem espalhados de maneira igual ao longo do argumento de Pachukanis (o que seria o caso se a adoção dos termos diferentes fosse motivada apenas pela não-repetição estilística da mesma palavra), elas demonstram uma predominância do uso de pravovaya forma no início, de yuriditcheskaya forma no meio e de forma prava no final do capítulo.
Com pravovaya forma, lida-se com a discussão geral sobre o “exame da forma jurídica” ou a “análise da forma jurídica”, trata-se da “forma jurídica em seu aspecto mais desenvolvido”, aborda-se que a propriedade torna-se um “desenvolvimento fundamental da forma jurídica” apenas quando expressa a noção de liberdade da categoria de sujeito. Mas é no último uso dessa expressão que seu sentido talvez fique mais explícito:
No desenvolvimento das categorias jurídicas, a capacidade de realizar atos de troca é apenas uma das manifestações concretas das características gerais da capacidade de ação e da capacidade jurídica. Contudo, historicamente, é de fato o ato de troca que dá a ideia de sujeito como portador abstrato de todas as pretensões jurídicas possíveis. Somente em situações de economia mercantil nasce a forma jurídica abstrata [абстрактная правовая форма, abstraktnaya pravovaya forma], ou seja, a capacidade geral de possuir direitos se separa das pretensões jurídicas concretas. Somente a transferência contínua de direitos que tem lugar no mercado cria a ideia de um portador imutável. No mercado, aquele que obriga simultaneamente se obriga. Ele passa a todo momento da posição de credor à posição de obrigado. Dessa maneira, cria-se a possibilidade de abstrair as diferenças concretas entre os sujeitos de direitos e reuni-los sob um único conceito genérico (PACHUKANIS, 2017a, p. 124-125).
Ora, com esse trecho específico somos direcionados à percepção de que a pravovaya forma atrela-se a um maior grau de abstração teórico: ela faz referência a uma situação em que nasce uma forma abstrata, decorrente da reincidência (“transferência contínua”) e generalização das relações jurídicas entre sujeitos que trocam mercadorias. Por isso, o uso do termo nos momentos anteriores também faz referência a uma situação na qual já se está em uma etapa mais completa do processo de análise e de destrinchamento da forma jurídica. Em outras palavras, já estamos nos degraus superiores do processo ascendente de descoberta do Ser e do fundamento do direito. Em analogia com a crítica da economia política, estamos naquele mesmo ascenso dialético (Cf. DUSSEL, 2010, p. 164-170, 503, 512-513) que culmina na descoberta da forma-valor como processo incessante de valorização do valor por meio da extração de mais-valor do trabalho, mas que, no campo do direito, significa atrelar a forma jurídica a essa generalização abstrata das relações jurídicas entre os sujeitos que trocam equivalências dentro do solo do modo de produção capitalista.
Quando a forma jurídica transmuta-se em yuriditcheskaya forma, no entanto, não nos deparamos com o mesmo processo. Deixamos de lidar com termos como “em geral”, “abstrato” ou mesmo com a noção de exame/análise, para nos deparar com a sua associação a outras “formas” mais concretas e específicas do direito. Fala-se quatro vezes em “forma jurídica da propriedade”, uma vez em “forma jurídica do contrato” e uma vez em “formas jurídicas de circulação dos bens econômicos”. Como tônica geral, há, portanto, uma vinculação desse uso da palavra a institutos específicos da forma jurídica, isto é, quando ela começa a se espraiar para outros âmbitos da vida humana. A recorrência da menção à propriedade explica-se justamente pelo interesse de Pachukanis em demonstrar a Razumovsky como a “forma jurídica da propriedade” diferencia-se completamente da noção de “apropriação” que este propõe como o verdadeiro ponto de partida adequado para a crítica marxista do direito.
Aqui, forma jurídica (yuriditcheskaya forma) parece fazer referência ao momento específico em que a forma jurídica geral (pravovaya forma) apodera-se de alguma categoria ou elemento trans-histórico, subsumindo-o à lógica ou à razão9 mercantil-capitalista. Esse é o caso da posse ou apropriação trans-formada em propriedade jurídica:
a apropriação de um produto produzido no interior de dada formação social e por meio de suas forças é um fato fundamental - se preferirmos, uma lei fundamental. Mas essa relação admite [принимает, prinimaet, assume] apenas a forma jurídica da propriedade privada [юридическую форму частной собственности, yuriditcheskuyu formu tchastnoi sobstvennosti] em determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas e da divisão do trabalho a ele relacionada (PACHUKANIS, 2017a, p. 118).
Por fim, o emprego de “forma do direito” (forma prava), para além de sua descrição como um fim compreensivo para o qual a investigação de Pachukanis caminha (“compreensão da forma do direito”), começa a despontar com maior frequência justamente quando a discussão de Pachukanis passa a se centrar na questão do definhamento [отмирание, otmiranie] do direito. O trecho a seguir é um bom exemplo a ser destrinchado dos usos dos termos selecionados:
A tomada do poder político pelo proletariado é a premissa fundamental do socialismo. Contudo, como a experiência demonstrou, a produção e a distribuição plenamente organizadas não podem substituir, de um dia para o outro, as trocas mercantis e as ligações mercantis entre unidades econômicas distintas. Se isso fosse possível, a forma jurídica da propriedade [юридическая форма собственности, yuriditcheskya forma sobstvennosti] já teria sido historicamente superada. Ela completaria o ciclo de seu desenvolvimento, retornando ao ponto de partida, aos objetos de uso comum e imediato - ou seja, seria novamente uma relação elementar da prática social. Com isso, também estaria condenada à morte a forma geral do direito [форма права вообще, forma prava voobshche, forma do direito em geral]. Enquanto a tarefa de construção de uma economia planificada unitária não estiver realizada, enquanto perdurar a conexão mercantil entre empresas separadas e grupos de empresas, também perdurará a forma jurídica [форма права, forma prava] (PACHUKANIS, 2017a, p. 135).
Perceba-se que, aí, há o uso tanto da forma jurídica como subsunção de um fenômeno à lógica da forma do direito quanto a menção à forma do direito acabada e abstrata, considerada em geral e como uma forma que existe e se mantém por conta própria na medida em que as relações que a sustentam ainda se reproduzem no tecido social. Nesse sentido, forma prava e pravovaya forma parecem mais proximamente conectadas, com a primeira assumindo primordialmente um sentido ontológico de existência (ou de não-morte, de não-definhamento) de uma forma, enquanto a segunda aponta mais para o processo de descoberta da fundamentalidade essencial que será deduzida da análise da profundidade das categorias jurídicas fundamentais que Pachukanis se propôs a analisar.
Assim, as hipóteses lançadas inicialmente parecem se sustentar e se fortalecer com a análise do presente capítulo da obra de Pachukanis. Temos, de um lado, dois sentidos mais completos e acabados da forma jurídica como desenvolvimento de relações entre sujeitos de direito (pravovaya forma e forma prava); de outro, temos a passagem dessa lógica mais geral e abstrata a fenômenos concretos e empíricos da existência social, quando enfim os momentos “naturais” ou “elementares” da existência coletiva assumem [prinimat’10] uma forma jurídica (yuriditcheskaya forma).
4. Considerações Finais
O esforço deste escrito, desde já alertando que se trata de um campo em aberto e sugestivo de novas chaves interpretativas, não se encontra na ideia da construção de um léxico ou de uma verdadeira leitura de Pachukanis. Mas sim transitar da tradução à tradutibilidade e, sobretudo, como já situado no campo de uma filologia viva, que pretende extrair elementos do texto produzido na periferia da Europa para as margens da América Latina.
A lógica é de abertura do texto, de apropriação, até de heterodoxia - por que não dizer? -, uma vez que seguindo a trilha do marxismo, quando o pensamento perde incidência na práxis, ele costuma se ossificar com altas doses de erudição e abstração quase inacessíveis inclusive à academia, porém brutalmente asséptico aos dilemas concretos da vida. Nessa toada, o marxismo jurídico brasileiro entrou num debate profundo e relevante sobre as formas sociais, não à toa o leme pachukaniano deu essa guinada, porém numa perspectiva absolutamente abstrata e dissociada da formação social brasileira. A forma parece ser o lugar da ausência da luta de classes.
Nós consideramos Teoria Geral do Direito e Marxismo um ponto de partida e não uma fronteira. Neste texto, há um pulsar da historicidade, apesar do alto grau de generalização, o direito em suas formas. Como o direito não é eternizado, sua forma está aberta às lutas sociais. Por isso, identificamos, no marejar das edições, uma hipótese de interpretação que já encontrava lastro no jurista que foi o pioneiro da crítica marxista do direito: Piotr Stutchka. Uma lógica de concreção dialética dessas formas até suas expressões mais concretas.
Em Stutchka, conseguimos observar, ao menos, três níveis de movimento das formas do direito. No plano da totalidade, o jurista letão designa a dinâmica resultante dessas multiplicidades de relações como “sistema jurídico” ou somente como “direito”. Em sua formulação mais conhecida, falará de “forma jurídica concreta” e “formas abstratas”. Nesse entrelaçamento entre forma concreta, vinculada a produção e mecanismos de apropriação do valor, com as formas abstratas, estruturadas em torno de normas estipuladas por um poder político organizado e pela ideologia jurídica, podemos visualizar qual o seu momento predominante a depender do momento histórico particular. Por fim, um último nível, onde a “expressão jurídica” das relações sociais se apresentam sobre diferentes formas da relação jurídica: contrato de compra e venda, contrato de trabalho, institutos de propriedade, teorias de justiça, etc.
Por sua vez, em Pachukanis, levantamos a hipótese de uma outra chave de leitura para além da fórmula forma jurídica - relação jurídica em conceituação quase tautológica, que constitui a base do pensamento pachukaniano. E, para algumas interpretações, consolida a ideia de um elemento genético na forma jurídica que impossibilita qualquer tipo de luta política e social ou estabelecimento de contratendências à logica do capital. Nesse sentido, é possível avaliar momentos de sua construção teórica em Teoria Geral do Direito e Marxismo, a partir da distinção entre pravovaya forma e forma prava. A última expressão absorvendo a forma do direito em sua totalidade e finitude, bem como o segundo mostrando essa forma do direito ou jurídica em movimento ascendente, em seus momentos constituintes no interior do circuito de trocas e da produção do valor. Por fim, particulariza-se também a yuriditcheskaya forma, que, assemelhada ao delineado por Stutchka, acaba por expressar as diversas relações jurídicas instituídas em diversos graus de concretização no movimento do capital.
Para uma interpretação vivente, latino-americana e insurgente, essas considerações são sugestivas. Permitem pensar a forma jurídica em sua politicidade concreta e nos fazem perceber a sobreposição dessas diversas dimensões. Afinal, se a noção de forma apresenta-se de maneira unívoca, imóvel e como mera força coercitiva oriunda da lógica do capital, como explicar os diversos contornos que essa lógica assume na realidade concreta e, em especial, nas sociedades dependentes afligidas pela chaga do colonialismo? A apreensão da totalidade do ser jurídico em seu máximo grau de abstração (forma prava) não pode nos furtar de examinar o descenso dessa forma completa à realidade imanente e imediata que nos circunda, procriando-se em diferentes colorações de formas jurídicas (yuriditcheskie formi) assumidas pelas relações materiais peculiares a cada formação social.
A abertura para uma filologia viva de Pachukanis, nesse caso, uma nova chave de leitura de sua principal obra, redimensiona e complexifica as mediações em torno da forma jurídica. O delineamento em torno da forma jurídica (yuriditcheskaya forma) à forma do direito (forma prava) não é direto e imediato, pelo contrário, é cheio de bifurcações em que se situam lugares de resistência e mesmo de insurgência. Revisitar Pachukanis, mesmo na leitura árida a partir do russo que fizemos, significa visitar novos lugares e levar a teoria para práxis, como foi a vida do camarada Pachukanis.
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