Artigos inéditos
Received: 08 November 2023
Accepted: 15 September 2024
DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2025/80097
Resumo: Este trabalho busca analisar os argumentos expostos sobre a Lei n. 12.123/2015 pelos representantes dos Ministérios do Governo Federal envolvidos na sua elaboração como projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo, em audiência pública realizada no Senado Federal. Neste trabalho, a partir dos dados coletados e da teoria da colonialidade do poder e do saber de Aníbal Quijano, a pergunta de pesquisa é a seguinte: como podem ser analisadas as divergências nas falas dos representantes do Governo Federal, relativas à discussão do Projeto de Lei n. 7.735/2014, no que se refere ao seu conteúdo e à participação dos povos e comunidades tradicionais em processos legislativos que os afetem? Para isso, foram utilizados os dados coletados a partir das notas taquigráficas e vídeos das duas audiências públicas realizadas em âmbito do Senado Federal. Em conclusão, a pesquisa constatou indícios de que o Estado brasileiro pode ter falhado nos processos de consulta aos povos e comunidades tradicionais e de que não houve um consenso uniforme dentro do Governo Federal sobre o conteúdo do projeto de lei.
Palavras-chave: Marco legal da biodiversidade, Povos tradicionais, Processo legislativo.
Abstract: This essay analyzes the arguments regarding the Brazilian Act 12,123/2015 from the representatives of the Ministries of the Federal Government involved in its elaboration as a draft bill proposed by the Executive Branch, in a public hearing held in the Federal Senate. In this paper, based on the collected data and Aníbal Quijano's theory of the coloniality of power and knowledge, the research question is the following one: how can one analyze the divergences in the speeches of the representatives of the Federal Government, on the discussion of the Draft Bill 7,735/2014, regarding its content and the participation of traditional people and communities in legislative process that affects them? This study used data collected from the transcripts and videos of the two public hearings held in the Federal Senate. In conclusion, the research found evidence that the Brazilian State may have failed in the consultation process of the traditional peoples and communities, and that there was no uniform consensus within the Federal Government concerning the content of the bill.
Keywords: Biodiversity legal benchmark, Traditional people, Legislative proccess.
1. Introdução1
Muito se discute sobre o processo de elaboração do Marco Legal da Biodiversidade de forma a se contestar o modo pelo qual a agenda dos povos tradicionais foi negligenciada e, mesmo, descartada quando se analisam as discussões e os resultados do processo legislativo (Feres, Cuco, Moreira, 2018). Este Marco Legal da Biodiversidade tramitou no Congresso Nacional como PL n. 7.735/2015, denominado no Senado Federal de PLC n. 2/2015, que culminou na aprovação da Lei n. 13.123/2015. Esta lei regulamenta o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, sua proteção e a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade em âmbito nacional (Brasil, 2015a). O projeto de lei, de iniciativa do Poder Executivo, tramitou entre os anos de 2014 e 2015 no Congresso Nacional, em regime de urgência. Seu processo de elaboração foi marcado por questionamentos quanto à participação dos povos e comunidades tradicionais na construção do texto legal, tendo passado por uma tramitação célere no Congresso Nacional.
Nesse período, ocorreram, como única oportunidade de participação dos Povos e Comunidades Tradicionais, audiências públicas em duas Reuniões Conjuntas das Comissões Permanentes do Senado Federal, que pretendiam ouvir representantes dos diferentes segmentos interessados no projeto de lei. A audiência pública foi realizada a partir de requerimento aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária, para sessões conjuntas com a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, a Comissão de Assuntos Econômicos, a Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática e a Comissão de Meio Ambiente.
As audiências públicas nas comissões do Senado Federal são reguladas por seu Regimento Interno, para instruir matéria sob sua apreciação. Os oradores convidados possuem um momento para a leitura de seus depoimentos escritos e, ao seu fim, os senadores podem fazer questionamentos somente sobre o conteúdo exposto, no prazo máximo de 3 minutos (Brasil, 1970).
Assim, o presente trabalho visa a compreender as mais marcantes divergências presentes nos discursos dos representantes dos Ministérios do Governo Federal que trabalharam no projeto de lei n. 7735/2014 referente ao “Marco Legal da Biodiversidade”, tendo por foco os depoimentos prestados na audiência pública do Senado Federal. Questiona-se como podem ser compreendidas e analisadas as divergências nas exposições dos representantes dos Ministérios do Governo Federal, durante as audiências públicas no Senado, relativas à discussão do Projeto de Lei n. 7.735/2014, no que se refere ao conteúdo da norma e à participação dos povos e comunidades tradicionais.
Este trabalho tem como objetivo geral atingir uma maior compreensão sobre como se deu a elaboração do PL n. 7.735/2014 no âmbito do Poder Executivo, tendo em vista a participação dos povos e comunidades tradicionais em sua criação, por meio dos argumentos potencialmente divergentes dos membros dos Ministérios envolvidos quanto aos temas tratados na norma, presentes na audiência pública. Aplica-se a teoria da colonialidade do poder e do saber de Aníbal Quijano para a análise dos diferentes interesses considerados pelo Poder Executivo, divididos entre os Povos e Comunidades Tradicionais e a indústria como setor dominante da sociedade, como evidenciado no processo legislativo.
Ressalta-se que as audiências públicas foram escolhidas como unidades de análise porque representam o único momento de participação oficial dos Povos Tradicionais na tramitação do projeto pelo Poder Legislativo. Por isso, foram utilizados como dados empíricos os vídeos e as transcrições das duas Reuniões Conjuntas das Comissões Permanentes, em que se deram as audiências públicas no Senado Federal, obtidos por meio de consulta à plataforma digital do Congresso Nacional.
No aspecto teórico, aponta-se a Convenção 169 da OIT como postulado normativo, com o objetivo de verificar a aplicabilidade fática de suas determinações na elaboração do “Marco Legal da Biodiversidade”. Tal Convenção determina o direito desses povos de consentirem, uma vez informados e consultados, ainda que por meio de organizações representativas, sobre quaisquer medidas legislativas ou administrativas que possam os afetar diretamente (Organização Internacional do Trabalho, 1989). Assim, parte-se da ideia de Consentimento Livre, Prévio e Informado, conceituada por MacKay (2004), como um procedimento administrativo complexo em que o governo propositor de um projeto e os povos tradicionais afetados precisam chegar a um consenso por meio de uma sequência de atos administrativos. Esse direito não garante somente a mera consulta aos povos tradicionais, mas principalmente o respeito aos seus próprios processos de decisão, tempo e normas de costume, o que advém do princípio da autodeterminação dos povos (Colchester, Ferrari, 2007).
Ainda, o direito ao livre e prévio consentimento informado é de ser aplicado “em todas as medidas legislativas que tratem especificamente sobre aquele conjunto de direitos diferenciados reconhecidos na Constituição e nas leis dos povos indígenas e tribais” (Garzón, 2009, p. 307). Este parece ser o caso do projeto de lei em estudo. Desse modo, considerando que devem existir meios de efetivar a consulta tanto na tramitação legislativa quanto na elaboração no Poder Executivo de um projeto de lei de iniciativa governamental (Garzón, 2009), busca-se extrair e analisar os posicionamentos dos membros dos Ministérios envolvidos para investigar o que, de fato, ocorreu nesta etapa.
O Projeto de Lei n. 7.735/2014 consiste em uma iniciativa do Poder Executivo durante o governo Dilma Rousseff, em momento de desacordo entre os Poderes Legislativo e Executivo, porém em que o governo conseguiu elaborar e aprovar parte significativa de sua agenda legislativa (Pereira, Rubiatti, 2019). A determinação do regime de urgência pela Presidência da República, por meio da Mensagem n. 170/2014, fez com que a Câmara dos Deputados, onde não houve reunião da Comissão Especial sobre o assunto e nem instrução prévia da matéria, e o Senado Federal passassem a dispor de um prazo de 45 dias sucessivos para sua manifestação sobre o projeto, ficando a pauta legislativa liberada somente após a apreciação do projeto (Brasil, 2014; Távora et al., 2015).
Sobre a sua tramitação no Congresso Nacional, já existem estudos no sentido da ausência de legitimidade normativa da lei, tendo em vista que o processo legislativo não possibilitou condições efetivas para a participação de todos os setores envolvidos, existindo uma dominação por parte do setor empresarial (Ribeiro, Brito, 2018). Existem informações de que foram feitas 300 reuniões dos Ministérios do Meio Ambiente e de Ciência e Tecnologia com o setor empresarial, por meio da Coalizão Empresarial pela Biodiversidade para a elaboração do projeto de lei n. 7.735/2014 (Silva, Dallagnol, 2017).
Além disso, tem-se que não houve entendimento uniforme dentro do governo federal a respeito do projeto, não tendo sido identificados atos ou manifestações que indiquem a anuência dos povos tradicionais com a proposição, sendo apenas uma audiência pública incapaz de caracterizar uma consulta ampla e transparente (Távora et al., 2015).
Dessa forma, tendo como base os conceitos teóricos apresentados, é possível interpretar os dados coletados com vistas a compreender os argumentos orais dos membros dos Ministérios sobre o conteúdo do projeto de lei e verificar também se a ausência de livre e prévio consentimento informado dos povos tradicionais, nos termos da Convenção 169 da OIT, pode ser confirmada diante da análise de tais argumentos orais.
Assim sendo, este trabalho se divide em cinco seções que dialogam e se complementam. Na primeira parte, após a introdução com a apresentação do tema e da pergunta de pesquisa, tem-se a exposição de seu marco teórico, a teoria da colonialidade do poder e do saber de Aníbal Quijano, e, posteriormente, da metodologia utilizada no trabalho, com a demonstração dos caminhos adotados para a coleta e a análise de dados empíricos. O terceiro momento é dedicado à descrição dos dados referentes às manifestações dos oradores, representantes dos ministérios do Governo Federal, e parlamentares presentes nas audiências públicas sobre o PL n. 7.735/2014 no Senado Federal. Já o quarto momento se dedica às inferências alcançadas, tendo em vista as potenciais divergências existentes entre os representantes ministeriais sobre o conteúdo do projeto de lei e a participação dos povos e comunidades tradicionais na discussão. Por fim, expõem-se as considerações finais, com os resultados obtidos com base na presente pesquisa empírica.
2. A colonialidade do poder e do saber - um possível pressuposto teórico
No aspecto teórico, apresenta-se como marco referencial a teoria da colonialidade do poder e do saber de Aníbal Quijano (2000), que constrói a ideia de que as instituições e categorias que regem as relações de poder são “naturalizadas” como forma de imposição da dominação dos “colonizadores” sobre os povos tradicionais.
Assim, tem-se a noção da colonialidade como a imposição de uma classificação étnica entre as populações, uma relevante característica estrutural das relações de poder na América Latina. As relações passam a ser definidas de um ponto de vista eurocêntrico, em que o sujeito coletivo do colonizador - homem, branco e europeu - se impõe frente à população da América Latina por meio da dominação, considerando seus saberes como naturais, advindos de uma racionalidade pura. Na modernidade, por meio das classes sociais, a concepção de humanidade passa a se separar entre os “inferiores” e “superiores” e, mais especificamente, “tradicionais” e “modernos”, conforme expõe Quijano (2000).
Com isso, o autor propõe a classificação social como um processo de longo prazo em que as populações lutam pelo controle dos âmbitos mais básicos da sociedade, cujos resultados caracterizam um padrão de distribuição de poder centrado nas relações de exploração, dominação e conflito (Quijano, 2000). Tais âmbitos da sociedade seriam o trabalho e seus produtos; a natureza e seus recursos produtivos; o sexo, seus produtos e a reprodução da espécie; a subjetividade e seus produtos, como o conhecimento; e a autoridade e seus instrumentos para garantir a reprodução dos padrões sociais. A regulamentação do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado se enquadraria nos âmbitos de disputa dos recursos produtivos da natureza e dos produtos da subjetividade.
Em uma sociedade, todos esses âmbitos são lugares de disputa por controle. Para o autor, o Estado-Nação é uma sociedade individualizada entre as outras, provendo identidade aos seus membros, porém, como toda sociedade, é uma estrutura de poder, em que existe a imposição de um certo grupo sobre os demais (Quijano, 2005). Nos países da América Latina, essa estrutura de poder é organizada em torno do eixo colonial, com a construção nacional ocorrendo em oposição às populações tradicionais dos países. Portanto, a colonialidade do poder seria um fato básico na questão do Estado.
Essa teoria parece ser aplicável ao objeto em questão, tendo em vista se tratar das relações entre o Poder Público e os povos e comunidades tradicionais na construção de um projeto de lei de seu interesse, marcadas pelas instituições de que trata o autor quando aborda a dominação. Tais instituições do Estado regem as relações de poder na sociedade e, através disso, conseguem “naturalizar” a dominação de certos grupos perante os demais, os povos e comunidades tradicionais, sempre por meio do eixo colonial. Há uma persistente e insistente relação colonial que se incorpora aos sistemas normativos e aos processos legislativos, que aparenta suplantar normas procedimentais de proteção aos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, tal qual a Convenção n. 169 da OIT.
Além disso, com o projeto de lei visando a regulamentar o acesso ao patrimônio genético brasileiro e o conhecimento tradicional associado, tem-se o embate de tal conhecimento tradicional com o conhecimento racional da sociedade eurocêntrica, que aparenta ocorrer como uma relação de poder pela dominação, sob o eixo da subjetividade, como explica a teoria de Quijano (2000).
3. Teoria fundamentada nos dados - uma abordagem metodológica
Quanto à abordagem metodológica do trabalho de pesquisa empírica em direito, a pergunta de pesquisa foi formulada por uma operação prevalentemente indutiva, ou seja, partiu-se da observação dos dados coletados, sem uma hipótese anteriormente concebida, a partir da qual se gerou a dúvida sistemática da pesquisa (Cappi, 2017). Tais dados coletados foram os documentos relativos à tramitação do PL n. 7.735/2014 no Congresso Nacional, em específico, os das audiências públicas realizadas no âmbito do Senado Federal.
Com base na leitura das transcrições das duas sessões parlamentares, em conjunto com a observação de suas gravações, a análise inicial se deu como uma etapa de codificação aberta da Teoria Fundamentada nos Dados, em que foi feita a formulação de códigos a partir das falas dos oradores presentes nas audiências, ainda com um escopo bem amplo de observação. Segundo Kathy Charmaz (2009), a Teoria Fundamentada nos Dados oferece ferramentas para uma análise sobre como as ações e os significados são construídos, por meio de um exame minucioso das particularidades de uma situação ou de um processo para a construção de uma teoria formal.
Além da utilização de técnicas provenientes da Teoria Fundamentada nos Dados, principalmente sua codificação aberta - mesmo que toda a pesquisa não tenha sido construída por sua estrutura específica -, a análise documental também foi importante para a delimitação da metodologia da pesquisa. O processo de codificação qualitativa dos dados coletados se dá por meio da associação de marcadores a segmentos de texto representativos dos temas abordados nas manifestações orais (Charmaz, 2009). Essas etiquetas devem, simultaneamente, categorizar, resumir e representar cada parte dos dados, porque a codificação ocorre como uma etapa inicial para passar dos enunciados reais nos dados para a elaboração de interpretações analíticas. Como critério para sua formulação, pergunta-se o que aqueles dados representam e sugerem, do ponto de vista daqueles que o produzem e a qual categoria teórica podem ser reconduzidos.
Em um contato preliminar com os documentos, tendo em vista à limitação imposta pelas notas taquigráficas, atenta-se para a comparação entre a transcrição das atas com as falas reais feitas no vídeo, com o objetivo de observar incongruências entre o que foi realmente exposto e o que se passou para o documento escrito. Com isso, nota-se que a transcrição é, na maior parte, fidedigna ao que foi expresso nas manifestações, com exceção da correção de alguns erros de linguagem.
A etapa inicial foi realizada por meio de marcações de trechos destacados das falas observadas, utilizando-se dos códigos a fim de se expor a conexão com os temas abordados, enunciados nas próprias falas, como a “exclusão dos povos e comunidades tradicionais" e a “utilização da biodiversidade como fonte de riqueza”. De início, analisam-se as falas dos oradores nas duas audiências, a partir da elaboração de conceitos temáticos por meio de marcações de trechos dos discursos observados, utilizando-se de etiquetas para as informações que se destacaram, ainda sob uma visão ampla dos documentos. A partir da observação dos documentos coletados de forma mais ampla, torna-se capaz de gerar a percepção de um problema específico dentro desses dados, que se torna o foco da pesquisa em questão, a partir do qual são extraídas inferências descritivas sobre o objeto empírico para maior compreensão do problema (Epstein, King, 2013).
Nessa etapa, o software para análise de dados qualitativos MAXQDA foi utilizado como instrumento para realizar a codificação inicial dos dados. Por meio deste programa, foram separados todos os trechos das manifestações em que foram encontrados os temas destacados. Para isso, foi criado um projeto novo no programa, com os dois documentos da transcrição da 1ª e da 2ª Audiência Pública no Senado Federal. Dessa forma, torna-se possível a visualização de um documento final somente com os trechos destacados, categorizados pelos “códigos” criados pelo programa.
A partir disso, constatou-se, enfim, a existência de argumentos potencialmente divergentes entre os representantes dos Ministérios ouvidos quanto ao conteúdo do PL n. 7.735/2014, principalmente sobre pontos relativos à proteção dos povos originários, à participação de estrangeiros na exploração da biodiversidade brasileira e às formas de repartição de benefícios previstas na lei. Essa percepção inicial possibilitou a formulação da pergunta de pesquisa já apresentada, ou seja, a observação das transcrições das audiências públicas de forma mais ampla possibilitou a identificação de um problema específico dentro desses dados, que se tornou o foco da pesquisa em questão.
Partindo-se do problema de pesquisa, que tem como objeto as falas dos representantes dos Ministérios do Governo Federal, tem-se a separação dos códigos referentes às falas desses representantes e dos senadores na 1ª Reunião Conjunta das Comissões Permanentes, momento em que ocorreu a discussão com os membros do governo, por meio do MAXQDA. Durante a abordagem analítica dos dados coletados, o software foi utilizado como uma ferramenta de seleção de dados relevantes, possibilitando a marcação dos trechos destacados e, em seguida, a criação de seus códigos respectivos pelos temas abordados, com base nos quais foram gerados cruzamentos e tabelas para a análise do objeto principal do trabalho.
Na interpretação dos dados referentes à primeira audiência pública realizada no âmbito do Senado Federal, buscou-se separar as falas que demonstravam argumentos dos membros dos Ministérios envolvidos na elaboração do projeto de lei, além de indicações sobre a participação dos Povos e Comunidades Tradicionais na construção da proposta. Foram criadas tabelas com base nos códigos construídos a partir dos argumentos orais, com a devida sistematização dos trechos destacados, de seus oradores e das páginas em que se encontram no documento da transcrição da audiência pública.
Com a limitação das falas quanto à audiência pública com participação dos membros dos Ministérios, os trechos marcados com o código “exclusão dos povos e comunidades tradicionais” ganharam destaque por tratarem do momento de elaboração do projeto de lei dentro do Poder Executivo, em contraposição com a presença do código de “setor industrial”. A partir disso, com esses códigos, foi possível a observação quanto à temporalidade e à especificidade da participação dos diferentes grupos da sociedade civil neste momento.
Assim, pode-se observar a possível existência de argumentos divergentes entre os representantes dos Ministérios ouvidos quanto ao conteúdo do PL n. 7.735/2014, sobre pontos como a proteção dos povos originários e a participação de estrangeiros na exploração da biodiversidade brasileira.
4. Exposições reveladoras
Nas audiências públicas, estavam presentes representantes dos Ministérios do Governo Federal, da indústria, dos usuários do conhecimento tradicional e dos povos e comunidades tradicionais, além dos senadores membros das comissões, sendo assim, um momento representativo para se compreender como se deu a elaboração do projeto.
Os membros do Governo Federal presentes na primeira audiência pública foram os representantes dos sete ministérios convidados, a saber, a Ministra de Estado da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Nilma Lino Gomes; o secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Francisco Gaetani; o assessor de assuntos setoriais da Subchefia de Organização Americana do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas pelo Ministério da Defesa (MD), Paulo Cézar Garcia Brandão; o diretor de tecnologias inovadoras da Secretaria de Inovação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), Rafael de Sá Marques; o assessor do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Marco Aurélio Pavarino; o diretor de Cooperação Institucional do CNPq pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Paulo Sérgio Lacerda Beirão, e o secretário substituto da Secretaria de Desenvolvimento Rural e Cooperativismo do Ministério da Agricultura (MA) , Hélcio Botelho (Brasil, 2015c).
Já no segundo dia de audiência pública, em sua primeira parte, estiveram presentes representantes da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Confederação Nacional da Indústria (CNI), do Grupo Farma Brasil (GFB), do Museu Paraense Emílio Goeldi, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em sua parte final, foram representados o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, o Conselho Nacional de Extrativistas, o Movimento dos Pequenos Agricultores Via Campesina, o Instituto Socioambiental (ISA) e a Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Brasil, 2015d).
Não houve interação entre os oradores convidados para as sessões da audiência pública em dias diferentes. Assim, não foi possível a contestação das falas dos representantes dos Ministérios do Governo Federal pelos representantes da sociedade civil presentes no segundo dia de audiência pública.
Dessa forma, a partir dos vídeos e das notas taquigráficas das audiências públicas no Senado Federal, foram coletadas as manifestações dos representantes dos ministérios do governo federal e dos senadores que os questionaram na reunião. A codificação dos trechos destacados dentro das manifestações gerou uma visão mais ampla dos temas discutidos na audiência pública, além de uma melhor divisão quanto aos argumentos de cada um dos oradores.
De início, a exposição de Nilma Lino Gomes, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, demonstra uma preocupação com a proteção dos Povos e Comunidades Tradicionais, ressaltando os quilombolas e as comunidades de matriz africana, em relação à biodiversidade e ao seu conhecimento tradicional, com a afirmação de que ocorreram diálogos desse órgão com tais povos no sentido de debater sobre a temática em questão.
Em sequência, a oradora apresentou a proposta de duas emendas ao projeto de lei, que não estavam incluídas na redação original da proposição. Solicitou que incluísse a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no § 9ºdo artigo 17. Além disso, considerando a importância das comunidades quilombolas no contexto dos conhecimentos tradicionais, requereu a inserção da palavra “quilombola” após a expressão “indígenas” ao longo do texto da lei. (Brasil, 2015c, p. 5).
O representante do Ministério do Meio Ambiente na audiência pública, Francisco Gaetani, apresentou uma defesa da aprovação do projeto de lei, destacando o argumento de que a legislação vigente até então se tornou ineficiente por inviabilizar a repartição de benefícios. Segundo Francisco Gaetani, a proposição foi produto de muitas negociações e concessões entre os envolvidos na sua elaboração. Afirma que muito mais era desejado dessa legislação, porém as intensas negociações entre Governo, setor privado e sociedade culminaram no conteúdo dessa proposta. Apesar disso, não descarta que há de se trabalhar para se viabilizar uma legislação que reflita, de modo adequado, o interesse da sociedade brasileira. (Brasil, 2015c, p. 8-9). Enfim, também ressaltou que o projeto de lei estava em consonância com os tratados internacionais, como o Protocolo de Nagoya e o Tratado de Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura (TIRFAA), por ser um anteparo às negociações internacionais do setor privado brasileiro.
Na sequência, Paulo Cézar Garcia Brandão, representante do Ministério da Defesa, após defender a aprovação do projeto por ser adequado com o Protocolo de Nagoya e ter adotado sugestões do setor agrícola brasileiro, fez a ressalva de que a proposta inovaria em temas caros ao Ministério da Defesa. Sobre tais temas, o membro do Ministério da Defesa requisitou três alterações na redação do projeto de lei, para obter maior controle governamental sobre o acesso ao patrimônio genético e sobre atividades de pesquisa e desenvolvimento realizadas por pessoas jurídicas estrangeiras. Nesse sentido, apresentou argumentos divergentes em relação a outras defesas contundentes do projeto de lei, demonstrando a necessidade de revisão do caput do art. 45 e no art. 47 com relação à utilização de expressões de técnica legislativa, a saber, a necessidade de suprimir a referência a “tratados internacionais” dos quais o País seja signatário, visto que estes são incorporados na ordem jurídica brasileira por regulamentos específicos (Brasil, 2015c, p. 13-14). Além disso, o representante questiona o fato de empresas estrangeiras pesquisarem o patrimônio genético brasileiro a partir de remessas efetuadas ao exterior por meio de simples cadastro realizado anteriormente, sem que isso contribua para capacitação de pesquisadores brasileiros ou viabilize transferência de tecnologia (Brasil, 2015c, p. 13-14). Enfim, o representante alerta para necessidade de incluir a anuência prévia do Conselho de Defesa Nacional e da autoridade marítima, de acordo com as suas competências constitucionais, como órgãos de controle do acesso e da remessa, além do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, com vistas a aumentar o grau de controle e de fiscalização sobre o território nacional (Brasil, 2015c, p. 13-14).
O ponto relativo à ressalva sobre atividades de pesquisadores estrangeiros com a biodiversidade brasileira recebeu o apoio do membro do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Paulo Sérgio Lacerda Beirão, em momento posterior. Em sua exposição, o representante do MCTI postulou pela participação de pesquisadores de entidades brasileiras nessas atividades, destacando que há acúmulo de experiência na área de pesquisa no Brasil e a possibilidade de absorção de conhecimentos científicos trazidos por pesquisadores estrangeiros (Brasil, 2015c, p. 22).
Em seguida, destaca-se a manifestação de Rafael de Sá Marques, representante do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que argumenta pela aprovação em regime de urgência do projeto de lei no estado em que se encontrava, focando em dois pontos principais: a inadequação da legislação anterior e a necessidade de desburocratização do acesso ao patrimônio genético. Ele também demonstrou a intenção de que a aprovação do projeto de tal forma deixaria diversos pontos abertos para posterior regulamentação pelo Poder Executivo, o que seria necessário desde logo. Assim, evidencia-se uma divergência entre os representantes dos ministérios, tendo os membros da SEPPIR e do MD postulado por emendas ao projeto, enquanto os atores do MMA e do MDIC defenderam sua aprovação como se encontrava, de forma célere. Há, inclusive, um trecho que demonstra a imagem da Medida Provisória n. 2.186/2001 em meio à elaboração do novo texto:
Hoje, vou dar um dado que muita gente acha... Quando a gente fala que a legislação é ruim, é péssima, que todo mundo fala mal dela, basta ver que existe até uma expressão - se os senhores não conhecem - entre as empresas que fazem P&D, especialmente as empresas que usam o patrimônio genético no Brasil e que tentam respeitar a legislação, em cujos centros de P&D há uma expressão que é "Cegen free". Ou seja, esse que é o produto bom, porque não dá dor de cabeça, não tem burocracia, não passa por uma série de processos que tem inseguranças jurídicas. Então, essa é uma MP, uma legislação muito ruim. (Brasil, 2015c, p. 14)
O representante do MDIC ainda reforçou a manifestação de Francisco Gaetani no sentido de que o projeto de lei enviado ao Congresso Nacional foi elaborado por diversos envolvidos e durante um longo tempo dentro do Poder Executivo, tendo ocorrido diversos debates com os setores industriais interessados. Ainda, existem indicativos de que ocorreram essas reuniões para a discussão com os setores empresariais da sociedade no âmbito deste ministério, cujo objetivo era a busca de um consenso entre as áreas produtivas. Reforça, pois, os dissensos entre os setores industriais envolvidos com uma longa explicação, enquanto destaca não ser o foco do MDIC a questão dos povos tradicionais, apesar de afirmar, sem maiores fundamentos, ter existido um grande esforço para que academia e povos tradicionais se sentissem contemplados (Brasil, 2015c, p. 16).
Já Marco Aurélio Pavarino, representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário, se posicionou pela aprovação do projeto de lei, afirmando se tratar de uma evolução à legislação vigente. Em sua manifestação, porém, apresentou sugestões para alterações ao texto da proposta. Logo, retornou à questão da Lista de Classificação de Repartição de Benefícios, posta pelo art. 17, § 9º, da proposta normativa, que já havia sido contestada pela representante da SEPPIR, Nilma Lino Gomes, que argumentou pela inclusão da secretaria no rol de responsáveis pela regulamentação da lista. O orador demonstrou preocupação sobre a aprovação desse dispositivo da forma como se encontrava:
O art. 17, no seu §9º, trata da lógica da lista de produtos que deverá ter a repartição de benefícios (...) Nosso entendimento é de que essa lista, no momento em que traz quais os produtos cujos benefícios deverão ser repartidos, enquanto ela não tiver sido editada, enquanto ela não tiver sido definida, não haverá repartição de benefícios no que não está na lista. Portanto, é uma mudança simples na lógica de que seja uma lista que diga quais os produtos cujos benefícios não devem ser repartidos. (Brasil, 2015c, p. 18)
Como ponto principal da exposição, foi destacada a necessidade de adequação da proposta normativa com o ordenamento jurídico brasileiro, especificamente em relação ao tratamento das sementes crioulas, como posto pela Lei n. 10.711/2003, e à conformidade com tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como o TIRFAA e a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Nesse sentido, o representante do MDA afirmou:
Respeitar esses tratados internacionais é de fundamental importância para garantir a credibilidade que o Brasil tem conseguido assegurar em âmbito internacional. Portanto, no art. 47, entendemos que é necessário mudança em relação ao que está estabelecido, sob o risco de desconsiderarmos alguns tratados internacionais de que o País é signatário. (Brasil, 2015c, p. 19)
Finalmente, Hélcio Botelho, representante do Ministério da Agricultura, aborda como se deu o processo de elaboração do projeto de lei dentro do Poder Executivo, informando que o debate sobre um novo marco regulatório para o acesso ao patrimônio genético já ocorria em seu ministério em 2008, por requerimento da Casa Civil da Presidência. Segundo o orador, o projeto apresentado tem o consenso do governo federal, estando as alterações que possam ocorrer no Congresso Nacional dentro do esperado na medida em que, para ele, as mudanças estão dentro das funções de ambas as Casas Legislativas (Brasil, 2015c, p. 23).
Após as exposições iniciais dos membros dos ministérios convocados para participação na audiência pública, foram feitos questionamentos pelos senadores presentes na sessão. O foco principal das questões propostas pelos legisladores é a exclusão dos povos e comunidades tradicionais do processo de elaboração do projeto de lei pelo Poder Executivo. Baseiam-se em manifestos divulgados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e por reuniões realizadas com representantes de grupos de comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas.
Além disso, foi reforçada a exposição da representante da SEPPIR, Nilma Lino Gomes, como forma de corroborar a ocorrência da exclusão dos povos quilombolas do processo de discussão, por não estarem nem citados nominalmente no projeto de lei. Em uma manifestação, o senador João Capiberibe, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), afirma que ocorreram reuniões da Ministra do Meio Ambiente para tratar do projeto de lei com diversos setores industriais e que não houve reuniões deste Ministério com os povos e comunidades tradicionais:
Levantei que a Ministra Izabella Teixeira reuniu representantes da indústria de cosméticos, de fármacos, mas não houve esse mesmo tipo de reunião, de preocupação com os povos indígenas, com as comunidades tradicionais, porque eles são os detentores. Foi dito aqui: se a lei não os agradar e eles imaginarem que vão ter prejuízo, vão saltar fora desse projeto. Acho que se deve também dar atenção especial porque o desenvolvimento brasileiro precisa ser mais equânime. Temos um histórico de segregação, de exclusão social absurdo. Um projeto de lei que ouve só o andar de cima da economia aumenta a exclusão. (Brasil, 2015c, p. 32)
Assim, em resposta aos questionamentos, os representantes do MMA e do MDIC, Francisco Gaetani e Rafael de Sá Marques, defenderam a redação do projeto de lei e sua aprovação, inclusive a respeito dos pontos levantados pelos outros representantes do governo federal.
Francisco Gaetani afirmou que a tramitação do projeto de lei foi dificultada na Câmara dos Deputados, onde não houve discussão da matéria com a criação de comissões - como ocorreu no Senado Federal. O representante ministerial alega que a primeira versão do projeto de lei enviada ao Congresso Nacional não foi adotada, sendo que, nesta etapa, foi aprovado um projeto de lei substitutivo apresentado pelo relator, Alceu Moreira, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com a rejeição de todas as emendas apresentadas pelos deputados (Távora et al, 2015):
Primeiro, eu queria colocar para informar o Senador Randolfe que algumas das questões que o senhor coloca foram encaminhadas no PL do Governo para a Câmara e foram alteradas na Câmara. O Governo perdeu na Câmara. Entre elas a questão de povos, a questão de agricultura familiar, que fazem parte desse elenco de questões cuja posição do Governo não foi contemplada na Câmara. (Brasil, 2015c, p. 44)
Cabe ressaltar que Rafael de Sá Marques tratou dos pontos levantados pelo representante do Ministério da Defesa e pelos senadores, reforçados por outras manifestações ao longo da audiência, especificamente quanto ao consentimento prévio e informado dos povos indígenas para utilização do conhecimento tradicional, às atividades realizadas por pesquisadores estrangeiros, à Lista de Classificação para Repartição de Benefícios e à adequação do projeto com leis relativas aos cultivares.
Em tais pontos, o orador afirmou que existem, sim, as proteções demandadas no projeto de lei, quanto à repartição de benefícios e ao acesso de estrangeiros ao patrimônio genético. Ele também explicou que a lista para repartição de benefícios foi uma demanda do setor industrial, por meio da Confederação Nacional da Indústria (CNI), confirmando em manifestação oral que ocorreu a escuta de demandas de tal grupo para o conteúdo da proposição normativa. Segundo o Representante, a CNI temia que aqueles setores mais habituados ao processo de acesso, como o setor farmacêutico e cosmético, fossem privilegiados, ao passo que os demais se sentissem inseguros com relação aos ditames da legislação, por isso a necessidade de uma lista de classificação (com vistas a uma maior segurança jurídica) (Brasil, 2015c, p.49).
Por fim, o representante do MMA, em resposta à questão da exclusão dos povos e comunidades tradicionais, reconheceu a sua ocorrência no âmbito do Ministério do Meio Ambiente para a elaboração do projeto. Francisco Gaetani reconheceu não ser possível corrigir o que já estava posto na elaboração, apenas prometendo maior participação dos povos indígenas no processo de regulamentação do projeto de lei por meio de audiências mais estruturadas e qualificadas (Brasil, 2015c, p. 57).
Assim, ambos os representantes do governo federal prometeram uma melhor consulta aos povos e comunidades tradicionais no momento posterior à aprovação da lei. Desse modo, encerrou-se a sessão em que se deu a primeira audiência pública sobre o projeto de lei no Senado Federal. Em sua segunda reunião, foram ouvidos representantes dos setores da sociedade civil interessados na proposta, único momento em que ocorreu a escuta formal dos povos e comunidades tradicionais durante a tramitação do projeto de lei no Poder Legislativo.
5. Construindo a teoria a partir das exposições
Nesse momento, parte-se para a retomada das informações dos dados coletados, quais sejam, os códigos criados a partir das manifestações dos senadores e oradores presentes nas audiências públicas realizadas no Senado Federal durante a tramitação do PL n. 7.735/2014, com foco na macro categoria de “divergências” expostas entre os representantes ministeriais. Utiliza-se dos códigos temáticos elaborados com base na Teoria Fundamentada nos Dados para, em conjunto com a teoria da colonialidade do poder de Quijano, construir inferências teóricas sobre os dados. Nesse sentido, com o objetivo de se analisarem as divergências entre os argumentos expostos nessas exposições e manifestações, é importante focar nos pontos tratados pelos presentes na audiência pública.
Com base na interpretação das exposições coletadas, há uma percepção de argumentos convergentes de todos os membros do Governo Federal a favor da necessidade de aprovação do Projeto de Lei o mais rápido possível, com ressalva para a representante da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que demonstrou preocupação com a proteção aos povos e comunidades tradicionais. Como argumento de defesa da aprovação do projeto de lei em regime de urgência, destacam-se principalmente o que seria a necessidade de desburocratização e de maior acesso ao patrimônio genético brasileiro para geração de riquezas, códigos que foram observados com maior frequência nas manifestações dos representantes dos Ministérios. No rito de urgência a pedido do Poder Executivo, o projeto de lei deve ser apreciado no prazo de 45 dias para cada casa legislativa sucessivamente, devendo ficar interrompida a pauta das demais deliberações legislativas pelo decorrer do prazo até a sua votação (Brasil, 2014; Távora et al., 2015). Com isso, o devido processo legislativo de discussão e consulta da sociedade civil no âmbito do Poder Legislativo pode ter sido prejudicado.
Assim, tais convergências entre esses agentes públicos demonstram a patente divergência entre os demais e a Secretária da SEPPIR, reforçando a macro categoria “divergências” entre as manifestações dos agentes pertencentes aos quadros da burocracia governamental naquele período quanto ao projeto de lei em discussão. Pode-se perceber que, mesmo com tais divergências dentro das instituições governamentais, os interesses dos órgãos mais alinhados com a indústria foram predominantes em detrimento dos argumentos dos órgãos que buscaram defender os interesses dos Povos e Comunidades Tradicionais, como uma persistência da colonialidade do poder na perspectiva estatal (Quijano, 2005).
Nesse sentido, parecem existir contradições significativas em relação a temas específicos, entre eles, a possível contradição do projeto de lei em relação a tratados internacionais adotados pelo ordenamento jurídico brasileiro, o que serve de confirmação da macro categoria supracitada. Os representantes do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Defesa apontam que a proposta normativa estaria em conformidade com o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação (TIRFAA) e o Protocolo de Nagoya - ainda não incorporado na legislação pátria naquele momento -, ponto usado como argumento pela aprovação do projeto. De outra parte, o representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário afirmou que deveriam ser feitas mudanças no texto do projeto, de sorte que se possam respeitar os tratados internacionais ratificados pelo país, sendo citados o próprio Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação (TIRFAA) e a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB).
Nesse sentido, constata-se, com a aprovação do projeto de lei, que a norma afronta dispositivos da CDB, do TIRFAA e do Protocolo de Nagoya, no que diz respeito, principalmente, às negociações sobre a repartição de benefícios (Dourado, 2017). Observa-se um possível beneficiamento dos usuários do patrimônio genético, não se percebendo uma repartição justa e equitativa, como determinam os tratados internacionais, assim como a ausência de consentimento prévio e de participação de representantes dos povos tradicionais, tendo a norma atribuído tal papel a instituições governamentais como a FUNAI e a Fundação Palmares, e não às próprias organizações representativas dessas comunidades. Nesse sentido, as formas de repartição de benefícios previstas no projeto foram outro ponto específico de “divergências” nos argumentos apresentados pelos expositores na audiência pública. Tais pontos podem ser considerados como exemplos de interesses dos Povos e Comunidades Tradicionais que foram efetivamente violados pelo conteúdo final da norma.
Os representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial questionaram o dispositivo da Lista de Classificação de Repartição de Benefícios, tal qual exposta pelo art. 17, § 9º, do projeto de lei (Brasil, 2015b), propondo emendas à proposta normativa e apontando essa determinação, como se encontrava, como um impeditivo à efetividade da repartição de benefícios. A emenda proposta pela representante da SEPPIR requer a inclusão da Secretaria no rol dos órgãos designados para elaboração da lista, o que não foi incorporado à versão final do projeto de lei. O representante do Ministério da Defesa também postulou por uma maior participação estatal nas negociações de repartição de benefícios, propondo uma emenda nesse sentido.
Em contrapartida, o representante do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio defendeu a medida, expondo que a lista foi uma demanda do setor industrial, por meio da CNI. O expositor apresentou os argumentos de que a proteção aos direitos dos povos tradicionais está garantida pela lei e de que tal medida seria necessária para trazer maior segurança jurídica para as empresas, outro código muito presente nos argumentos favoráveis ao projeto de lei. Segundo Sheila Dourado (2017), tal argumento de “segurança jurídica” aparenta representar somente a segurança financeira das empresas exploradoras de biotecnologia.
Em sua normativa sobre a repartição de benefícios, a lei vincula sua necessidade ao retorno financeiro obtido com o produto explorado, enquanto tal instrumento legislativo, de acordo com os tratados internacionais, deveria proteger a biodiversidade dos danos e riscos trazidos por tal exploração (Martins, Almeida, 2017). Assim, apesar das normativas internacionais, os interesses da indústria, tido como o setor representante da “modernidade”, são tratados como superiores aos do setor “tradicional” no momento de disputa travada nas instituições estatais, a saber, a colonialidade do poder e do saber expressas na ação pela prevalência da vontade da indústria por meio da aderência a um saber científico colonial (Quijano, 2000).
Na audiência pública, o último ponto sobre o conteúdo da proposta normativa que apresentou “divergências” entre os membros do governo federal foi a participação de estrangeiros no acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa. O representante do Ministério da Defesa, apoiado pelo expositor do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, apresentou proposta de emenda ao projeto, tendo em vista que ocorreria uma grande facilitação do acesso ao patrimônio genético por pessoas jurídicas estrangeiras, bastando um simples cadastro, o que não traria contrapartidas por tal uso. Assim, o representante do MCTI também postulou pela necessidade de participação conjunta de institutos de pesquisa brasileiros quanto ao acesso para fins de pesquisa por pesquisadores estrangeiros.
Em resposta direta a essas ponderações, o representante do MDIC, Rafael de Sá Marques, apresentou o argumento de que não há previsão no projeto para que empresa estrangeira ou pesquisador individual possa pesquisar livremente, somente por meio de cadastro em associação com instituição de pesquisa nacional. Decerto, ele defende essa medida como uma forma de desburocratização para o acesso ao patrimônio genético.
A desburocratização defendida se dá pela retirada da exigência de autorização prévia pelo Estado para pesquisa, como estava determinado na legislação anterior. Porém, isso torna o controle do acesso para pesquisa mais frágil e incentiva a realização de parcerias dos institutos de pesquisa com empresas privadas e instituições de pesquisa estrangeiras como um mercado, não como uma troca de conhecimentos (Miranda, 2017).
Averíguam-se argumentos orais dos próprios membros os quais parecem reforçar o fato de que houve muitas concessões sobre os interesses tutelados pelos diferentes Ministérios, o que torna o projeto de lei, tal qual enviado pelo Poder Executivo, como uma tentativa frágil de conciliação de todas as demandas ministeriais, com aparente predominância dos interesses dos órgãos ligados ao setor empresarial.
Nesse sentido, cabe ainda apontar argumentos, advindos de representantes do Governo Federal, que parecem revelar a possível não participação dos povos tradicionais na construção do projeto de lei, tal qual exigida pela Convenção 169 da OIT. A macro categoria “consulta aos povos e comunidades tradicionais” também foi levantada pelas exposições dos agentes públicos presentes na audiência. Segundo a representante da SEPPIR, em interlocução da Secretaria com movimentos sociais representativos, foi demonstrada a preocupação dos povos originários com o tema da biodiversidade e da proteção do conhecimento tradicional no projeto de lei (Brasil, 2015c). Este tema foi levantado em falas de parlamentares, que utilizaram manifestações públicas realizadas pela APIB, associação que esteve representada no segundo dia de audiência pública. Tais manifestações, em conjunto com os argumentos dos representantes dos povos tradicionais na outra sessão de audiência pública, mencionam especificamente o descumprimento da Convenção 169 e da Constituição Federal, normas que devem ser seguidas para a adequação do devido processo legislativo. Assim, nota-se que os povos e comunidades tradicionais possuem conhecimento sobre seus próprios direitos e conseguem articulá-los quando têm a oportunidade de fala.
Porém, a sua não participação pode ser inferida por meio de discursos que demonstram a admissão de falhas em relação à consulta aos povos tradicionais por parte do Ministério do Meio Ambiente. Os representantes do MMA e do MDIC ainda fizeram promessas de consultas futuras quando da regulamentação do projeto. Esse ponto também foi assunto de muitos questionamentos dos senadores aos oradores presentes. Por outro lado, foram sistematizados argumentos que demonstram o atendimento a demandas passadas pelo setor industrial, existindo indicações de maior participação das empresas nas discussões dentro do Poder Executivo.
Assim, ao se analisarem as demonstrações de consulta à sociedade civil nas falas dos representantes ministeriais do ponto de vista temporal, existem indicações de que a proposta já estava sendo discutida dentro do governo desde o ano de 2008, além de afirmações de que houve a participação de setores da indústria em reuniões, inclusive com sugestões incluídas no conteúdo final do projeto de lei. Enquanto isso, ao tratar da consulta aos povos e comunidades tradicionais, os membros dos Ministérios reconhecem a sua não ocorrência no âmbito da discussão no Poder Executivo para construção do projeto no passado. A despeito disso, reafirmam a necessidade de sua aprovação no estado em que se encontrava. Ocorreram somente as propostas de consultas para a futura regulamentação da lei, de modo a ter como superado o que fora elaborado até então.
Dessa forma, partindo do conceito apresentado de Consentimento Livre, Prévio e Informado como um procedimento administrativo complexo de consulta por parte do governo que busque atingir o consenso com os povos indígenas (Mackay, 2004), pode-se notar nos argumentos dos representantes ministeriais indícios de que a Convenção 169, da OIT, não foi respeitada na construção normativa da Lei n. 13.123/2015. A previsão do direito à consulta prévia pela Convenção da OIT, apesar de ratificado pelo Brasil, ainda não teve o procedimento regulamentado e nem as consequências jurídicas por seu descumprimento determinadas no país, entretanto tal participação deve ser realizada com respeito às particularidades de cada grupo culturalmente diferenciado (Peruzzo, 2017).
Assim, a participação de representantes dos povos potencialmente afetados nas audiências públicas não basta para a conformidade do processo legislativo com a exigência de consulta. Tal procedimento não se dá como uma mera formalidade a ser cumprida, mas como um processo que ofereça uma oportunidade real de influência dos povos no resultado final da legislação (Figueroa, 2009).
Destaca-se que as audiências públicas no Senado Federal foram o único momento de consulta formal a representantes dos povos e comunidades tradicionais durante o processo legislativo. Nessas audiências, como descrito nos argumentos dos representantes ministeriais, apresentam indícios de que o projeto de lei foi amplamente discutido no âmbito executivo, com concordância sobre a necessidade de sua aprovação apesar de claras divergências entre os interesses e os objetivos das pastas dos diferentes ministérios, não existindo entendimentos uniformes (Távora et al., 2015). Em contrapartida, os representantes dos ministérios envolvidos na elaboração da proposta admitem abertamente que o governo falhou em consultar os povos e comunidades tradicionais, além de terem exposto a ocorrência de reuniões com representantes da indústria e sugestões ao projeto de lei, advindas desses setores. Demonstra-se que, quando confrontados, a dominação imposta pelo eixo colonial prevalece sobre os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, mesmo quando estão explícitos na ordem jurídica nacional.
Nesse sentido, a relação do Estado brasileiro com os povos tradicionais é influenciada por uma relação histórica de genocídio e extermínio, sendo desigual de tal forma que penaliza esses povos mesmo com um disfarce de aparente benefício (Milanez et al., 2019). Com estudos sobre a elaboração do projeto de lei n. 7.735/2014 apontando o descumprimento da Convenção 169, tem-se que o Brasil pode ser responsabilizado nacional e internacionalmente pela ausência de adequado processo de consulta aos povos tradicionais (Távora et al., 2015).
A possível violação à Convenção 169 da OIT no Marco Legal da Biodiversidade, assim, se daria não só em termos procedimentais, como admitido pelos representantes ministeriais, mas também nas questões materiais do projeto, como na redução do alcance do direito à consulta para a repartição de benefícios (Silva, Dallagnol, 2017). Assim, retoma-se a discordância observada entre os representantes ministeriais sobre a Lista de Classificação de Repartição de Benefícios, com a proposição de emendas que buscavam sua alteração, enquanto outros a apresentavam como uma ideia necessária sugerida por setores empresariais.
Desse modo, partindo da teoria do poder e do saber de Quijano, as divergências expostas pelos representantes ministeriais e a sobreposição das posições em favor do conteúdo do projeto de lei demonstram o funcionamento institucional movido pelo eixo da dominação. Demonstra-se que, sendo o projeto de lei um produto do Estado brasileiro, a sua discussão está adstrita a uma estrutura de poder em que há imposição dos interesses dos grupos dominantes sobre os demais (Quijano, 2005), o que parece ter ocorrido inclusive na etapa de elaboração da norma dentro do Poder Executivo.
O conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, como evidenciado pela divergência quanto à repartição de benefícios, é tratado como uma contribuição inferior ao produto final obtido pelas empresas. O “conhecimento científico alicerçado na razão ocidental” se sobrepõe ao conhecimento tradicional, considerado como um saber inferior, assim como explica Quijano. A hegemonia eurocêntrica impõe a sua predominância da produção de conhecimento sobre o imaginário da população mundial, sendo desse modo, um meio de colonização (Quijano, 2000). Dessa forma, tal dominação justificaria a possível predominância da consulta aos setores industriais em relação à consulta aos povos tradicionais, já que sua contribuição seria vista como de maior valor para o produto final.
Todos os argumentos orais extraídos das audiências públicas expõem a possível exclusão dos povos e comunidades tradicionais da elaboração do projeto de lei, que é garantida por tratados internacionais ratificados pelo Brasil, enquanto existem indícios de grande colaboração dos setores empresariais na construção da proposta. Assim, tal exploração é possível pela naturalização da “colonialidade do poder”, com o funcionamento das instituições que se ordenam pelas relações de poder impostas pelo lado dos dominadores, mesmo com a existência de compromissos legais quanto à participação dos povos tradicionais (Quijano, 2000).
6. Considerações finais
O presente trabalho teve como objetivo sistematizar as divergências presentes nos argumentos dos representantes dos Ministérios do Governo Federal, extraindo dessa sistematização possíveis incoerências e contradições no posicionamento do Governo Federal sobre o conteúdo do “Marco Legal da Biodiversidade” e o seu processo de elaboração, principalmente no que toca à participação dos Povos e Comunidades Tradicionais. Dessa forma, sob à luz da teoria do poder e do saber de Quijano, torna-se possível uma melhor compreensão de como se deu a construção de tal proposta normativa. Isso porque a teoria é aplicada para analisar como as instituições estatais, guiadas pelo eixo da colonialidade do poder estatal e econômico e do saber científico, teriam lidado de forma desequilibrada com os diferentes grupos interessados na norma, com preponderância do setor industrial, composto por organizações empresariais nacionais e por multinacionais.
Com base na interpretação dos dados coletados, pode-se concluir que existem significativos pontos divergentes entre os argumentos apresentados pelos membros dos Ministérios envolvidos sobre o conteúdo do projeto de lei, organizados no presente trabalho pela macro categoria “divergências”. Dos argumentos coletados, extrai-se a constatação dos agentes públicos de que a aprovação do projeto, no estado em que se encontrava, era necessária e urgente. Todavia, essa afirmação inicial se demonstrou apenas aparente, tendo em vista a existência de pontos relativos a temas específicos, alvos de discordância dentro do Governo Federal, com a sugestão de emendas ao projeto por alguns dos representantes, além de indicações de que a exigência de consulta prévia aos Povos Tradicionais não fora cumprida durante a elaboração do projeto de lei pelo Poder Executivo.
Os pontos divergentes principais foram sobre os temas da possível incoerência do projeto de lei com tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como o CDB, o TIRFAA e o Protocolo de Nagoya, a maior abertura para participação de empresas estrangeiras em pesquisa sobre patrimônio genético e as formas de repartição de benefícios pelo conhecimento tradicional associado determinadas pela lei. Enquanto os representantes ministeriais da SEPPIR, do Ministério da Defesa, do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Ministério do Desenvolvimento Agrário contestaram e apresentaram emendas sobre esses tópicos, os representantes do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio apresentaram justificativas em defesa do estado da proposta no momento. Torna-se claro que existia um frágil consenso entre os Ministérios envolvidos a favor da aprovação do projeto como estava posto. Esse consenso, forjado pela predominância dos interesses do setor industrial sobre as demandas dos Povos e Comunidades Tradicionais ainda na construção da norma no Poder Executivo, dispõe a lógica estrutural colonial por meio da qual o saber científico e o poder econômico apressam em justificar as regras flexibilizadas para o acesso ao patrimônio genético e a limitação da repartição de benefícios, além da alegada violação ao direito de consulta livre, prévia e informada.
Quanto à questão da consulta dos povos e comunidades tradicionais, observam-se argumentos dos representantes ministeriais reconhecendo que ocorreram falhas quanto à participação no momento de elaboração do projeto no âmbito do Poder Executivo, que já era discutido desde 2008, sendo que a obrigatoriedade de consulta livre, prévia e informada também engloba essa etapa da construção normativa. Tendo em vista que as audiências públicas analisadas foram o único momento de participação dos povos tradicionais durante a tramitação legislativa, foram somente feitas promessas de que haveria uma consulta adequada no momento posterior de regulamentação da lei.
Nesse sentido, há indícios de que o Estado brasileiro pode ter descumprido as disposições da Convenção 169 da OIT, como já amplamente discutido no estudo sobre o tema. As divergências, percebidas entre as falas dos representantes ministeriais, também incluíram cobranças por parte da SEPPIR a respeito das demandas não ouvidas dos povos tradicionais. Isso pode demonstrar que, mesmo existindo uma aparente concordância sobre a necessidade de aprovação do projeto entre os ministérios envolvidos, tal consenso não é uniforme nem quanto à forma que a construção da proposta se deu no âmbito do Poder Executivo. Os Povos e Comunidades Tradicionais são efetivamente alijados do processo por meio do uso de formalidades jurídicas fruto da lógica colonial, não sendo, por isso, seus interesses devidamente considerados durante o processo legislativo.
A possível exclusão dos povos tradicionais e o atendimento explícito de demandas do setor empresarial no conteúdo da norma podem ser relacionados à teoria da colonialidade do poder e do saber de Aníbal Quijano. O projeto de lei foi elaborado em uma estrutura de poder desigual, em que há a imposição dos interesses dominantes sobre os direitos dos povos originários. O conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético acessado pelos usuários seria considerado um saber “inferior” em relação ao conhecimento científico eurocêntrico, imposto por meio das relações de dominação entre esses setores. Assim, passa-se a ser aceitável a desvalorização da proteção aos povos tradicionais, operado pelas próprias instituições que teriam a obrigação de respeitar tratados internacionais como a Convenção da OIT, seja pelo procedimento de construção da norma, seja pelo conteúdo da lei quanto à repartição de benefícios.
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