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Três abordagens sobre o (novo) fascismo no debate marxista contemporâneo
Three approaches to (new) fascism in contemporary Marxist debate
Revista Direito e Práxis, vol. 16, no. 1, e88999, 2025
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Dossiê: Revisitando o debate sobre a teoria da derivação do estado


Received: 14 January 2025

Accepted: 28 January 2025

DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2025/88999

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar três abordagens atuais sobre o ‘fascismo de novo tipo’ no marxismo contemporâneo para compreender a complexidade envolvida no entendimento deste fenômeno. Logo, o texto está dividido em três seções. A primeira seção trata do fascismo desde a relação capitalismo-democracia-autoritarismo com o foco na forma jurídico-política, partindo-se desde a análise pachukaniana e incorporando os clássicos do marxismo brasileiro. A segunda seção aborda o fascismo desde a relação concreto-abstrato por meio da contribuição do debate da Escola de Frankfurt, em especial, pela crítica do valor e a leitura do Marx ‘exotérico’ e ‘esotérico’ em Kurz. A terceira seção trata do fascismo como ‘antagonismo social em processo’ por meio das ‘formas sociais’ capitalistas cuja base teórica está assentada no debate da derivação do Estado de inspiração hollowayana. Por fim, breves considerações finais são apresentadas.

Palavras-chave: Estado, Política, Economia, Neofascismo, Derivacionismo.

Abstract: The aim of this article is to present three current approaches to ‘new type of fascism’ in contemporary Marxism in order to understand the complexity involved in understanding this phenomenon. Therefore, the text is divided into three sections. The first section deals with fascism from the capitalism-democracy-authoritarianism relationship, focusing on the legal-political form, starting from the Pachukanian analysis and incorporating the classics of Brazilian Marxism. The second section addresses fascism from the concrete-abstract relationship through the contribution of the Frankfurt School debate, in particular, through Kurz’s critique of value and his reading of the ‘exoteric’ and ‘esoteric’ Marx. The third section deals with fascism as a ‘social antagonism in process’ through capitalist ‘social forms’ whose theoretical support is based on the Debate on Derivation of the State inspired by Holloway. Finally, brief concluding considerations are presented.

Keywords: State, Politics, Economy, Neo-fascism, Derivationism.

Introdução

O fenômeno da rearticulação da extrema direita na atualidade, oriunda de uma crise do capitalismo, é um processo global, relacionado a elementos essenciais do desenvolvimento do capitalismo enquanto modo de produção dominante. Compreender quais aspectos são estruturais e quais particularidades históricas são essenciais é um esforço analítico importante, já que o fenômeno fascista é, sem dúvida, um dos maiores desafios teórico-práticos que o marxismo vem se dedicando desde o início do século XX até hoje.

A gravidade e complexidade do fenômeno fascista tem desafiado o marxismo contemporâneo a propor abordagens mais precisas, por caminhos metodológicos mais profundos e criativos, mas sem negar o precioso acúmulo analítico que já se construiu por marxistas anteriores e por diversas correntes específicas.

Visando avançar no debate sobre como abordar o fenômeno fascista do século XXI (também chamado de ‘fascismo de novo tipo’) - e, ainda, mantendo a coerência com a tradição marxista, mas também tentando superar erros de análise e simplismos metodológicos que perduraram nos textos mais conjunturais sobre o tema -, este artigo visa compilar o debate mais contemporâneo sobre o fascismo como fenômeno permanente no capitalismo. Este debate foi realizado no ‘I Seminário do Debate da Derivação do Estado’ que teve lugar na Faculdade de Direito e na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), realizado especificamente na ‘mesa 5: derivacionismo, neoconservadorismos e neofascismos’. (para ver a mesa completa, acessar: https://www.youtube.com/live/5ehLEK8Tl-U)

Assim, este artigo sintetiza as três abordagens propostas por seus autores sobre o ‘fascismo de novo tipo’ no marxismo contemporâneo. Estas abordagens ajudam a compreender a complexidade envolvida no entendimento do fenômeno e que, por vezes, desencoraja uma parcela significativa dos marxistas em usar o termo “fascismo” para explicar o fenômeno da rearticulação mundial da extrema direita. Defende-se aqui, três abordagens que justificam o porquê usar o termo (neo)fascismo para explicar a ascensão do reacionarismo vivenciado pós-crise de 2007-2008.

Logo, o texto está dividido em três seções nas quais cada uma se refere a uma abordagem. A primeira seção trata do fascismo desde a relação capitalismo-democracia-autoritarismo com o foco na forma jurídica e política, partindo-se de Marx e da análise pachukaniana em direção à incorporação dos clássicos do marxismo brasileiro. A segunda seção aborda o fascismo desde a relação concreto-abstrato por meio da contribuição do acúmulo do debate da Escola de Frankfurt em especial pela crítica do valor em Kurz e sua leitura do Marx exotérico e esotérico. A terceira seção trata do fascismo como antagonismo social em processo por meio das ‘formas sociais’ capitalistas cuja base teórica está assentada no debate da derivação do Estado de inspiração hollowayana. Por fim, breves considerações finais são apresentadas.

1. Relação capitalismo-democracia-autoritarismo: foco na forma jurídica e política

Autoritarismo e democracia são conceitos clássicos na ciência política. Ambos conceitos possuem uma acepção dominada pelo conteúdo restrito de liberdade contido no liberalismo. Quando se fala de ‘democracia’, refere-se frequentemente à democracia liberal como procedimento eleitoral cujo respeito é respaldado pela regra. Assim, se pensarmos que toda democracia liberal tem como um limite finalístico a regra, é possível de dizer que todo movimento da sociedade que visa ampliar o conteúdo da democracia para além dos limites da liberdade de mercado (liberal) encontrará como anteparo a autoridade da regra. Quando esta ampliação é frequentemente tensionadora da regra, visando o avanço da regra além de seus limites, percebe-se a passagem da ‘autoridade da regra’ para o ‘autoritarismo da mesma’ (FERNANDES, 2022).

Aqui é pertinente lembrar que a democracia liberal surge com a ascensão da burguesia enquanto classe dominante. Ela inaugura um novo sistema de dominação e exploração através do capitalismo cujo exercício de dominação necessita da restrição da liberdade em sua concepção. Não se trata da liberdade como ampla possibilidade das relações sociais, mas, sim, da liberdade restrita a relações sociais muito específicas, ou seja, as relações sociais das ‘trocas mercantis’. Na sociedade capitalista, a liberdade reduzida à “liberdade do trânsito das mercadorias” se universaliza e torna-se utopia a ser alcançada. Contudo, a universalização desta ideia tacanha de liberdade, esconde o fino tecido de opressão que sustenta essa forma política. Ou, em outras palavras, a descontextualização histórica da democracia e do autoritarismo que permitiram a construção de uma ideologia burguesa que liberta ao mesmo tempo em que aprisiona em sua noção de liberdade.

Em seu icônico livro sobre a dinâmica da luta política de classes, “O 18 de Brumário...”, Marx (2011) identifica um movimento incongruente da burguesia em relação a sua própria revolução. Trata-se de um movimento contrarrevolucionário que buscou garantir a preservação da própria ordem burguesa. Ele afirma que, para conter o avanço das insígnias de liberdade e igualdade para a classe trabalhadora, preconizadas por essa revolução, foi necessário o seu contrário, ou seja, uma saída autoritária, organizada pela própria burguesia, para controlar e reprimir as frações de classes despossuídas e garantir a hegemonia política da burguesia.

É neste contexto que o debate acerca do Bonapartismo (e da forma política autoritária), ganhou contornos relevantes no marxismo desde então, em especial, após o aparecimento do fascismo na primeira parte do século XX. No entanto, independentemente das suas características peculiares do seu tempo, o autoritarismo ainda é tratado como ‘intervalos históricos’ de um caminhar retilíneo do desenvolvimento da democracia liberal no capitalismo. Transcorridos mais de 200 anos desde a análise feita por Marx “n’O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, aquilo que aparecia como saídas pontuais contrarrevolucionárias da própria burguesia para controlar a abrangência da sua revolução e se instituir como classe hegemônica e dominante (ou, mais à frente, para impedir a organização da classe e a revolução socialista), em verdade, é uma tensão inerente da dinâmica do próprio capitalismo.

Transcorridos dois séculos, a história produziu vários “Bonapartes”, não apenas o tio e o sobrinho franceses, mas uma gama inesgotável de personas (ou movimentos) que impunham a contradição dos valores anteriormente mencionados (democracia-autoritarismo) como necessários para a salvaguarda da: “...propriedade, [d]a família, [d]a pátria e [da] religião” (MARX, 2011, p. 36); tanto em países considerados capitalistas centrais, quanto periféricos, ou ainda, em toda a parte do globo (considerando as sensibilidades e variedades culturais decorrentes da formação social e econômica específica de cada sociedade).

Isso significa que aquilo que foi identificado por Marx em 1799 e 1851 não era apenas a história como tragédia e como farsa se repetindo, mas uma tendência contraditória da própria dimensão da revolução (ou dominação) burguesa. Essa tendência à contradição tem relação direta com o padrão de acumulação do capital em determinado período sócio-histórico e suas contradições com a forma política democrática em conjunto com os valores alicerçados como hegemônicos pela ideologia burguesa.

Mais do que isso, de certa forma, essa aparente dissociação entre autoritarismo e capitalismo presente no referencial utilizado como pressuposto na ciência política (e até mesmo na reflexão marxista hegemônica), parecem não levar em consideração uma tensão permanente do capitalismo e de sua classe dominante em relação a forma política da dominação de classe. Essa dificuldade de reconhecer essa tensão tem relação também com a crença de que a revolução burguesa, efetivamente, abriu a modernidade para a era da ‘igualdade’ (formal) e da ‘liberdade’ (liberal). Ou seja, a modernidade é produto de uma incorporação da própria ideologia burguesa que reforça esses valores. Estes últimos ao serem organizados principalmente pela forma jurídica, são efetivamente a finalidade do capitalismo (igualdade diante da lei, liberdade para o mercado). Também se pressupõe que a forma política republicana é organizadora da sociedade burguesa, tendo na democracia liberal seu ápice.

O problema dessas premissas é que elas escondem exatamente o que a burguesia quer dissimular sobre o conteúdo de sua revolução: a sua dominação específica de classe. O curioso é que essa dominação “democrática” não é antagônica ao autoritarismo, porque ela carrega na sua gênese uma forma excludente e exploratória das relações sociais de produção que podem (e devem), quando necessário, garantir a ordem burguesa manifestando-se na sua forma política. Em outras palavras, não há nada de incongruente entre o modo de produção capitalista e uma forma política autoritária. A incongruência está naquilo que a revolução burguesa evoca como universal, mas que se restringe a sua classe dominante. A igualdade e a liberdade irrestrita são para a propriedade e para os proprietários do modo de produção enquanto que a igualdade restrita ao sujeito jurídico abstrato e da liberdade restrita pela materialidade socioeconômica são para a classe trabalhadora. Só por meio da dinâmica da luta da classe trabalhadora é que é possível um avanço parcelar da riqueza produzida (do valor da sua força de trabalho), dos direitos assumidos e concedidos pelo Estado, e da sua própria liberdade.

É evidente que a Revolução Burguesa é uma ruptura essencial com o modo de produção anterior e com o absolutismo. Historicamente, e para o campo do Direito em especial, ela orienta e conforma um novo período histórico do Estado (Estado de Direito), onde a pretensa universalidade da igualdade e da liberdade exigem a construção da figura de ‘cidadãos’. Essa pretensa universalidade é uma formação ideológica que constrói a dominação a partir de relações essencialmente contratuais. Ressalva-se que o fato histórico da ruptura com o absolutismo não apresenta necessariamente uma inovação em todos os valores identificados como aristocráticos. Inclusive porque parte desses paradigmas integram formas de dominação anteriores ao absolutismo e que ganharam uma nova dimensão e adaptação no capitalismo. Em outras palavras, a marca da escravidão, a marca do patriarcado, da família, do território que poderá adquirir diversos nomes, da religiosidade, são aspectos de dominação utilizados em diversas formas de dominação política de classes hegemônicas em diferentes modos de produção.

A questão, portanto, é a abrangência de ‘todos’. Todos são iguais, mas apenas os ricos, homens e brancos puderam votar até parte considerável do século XXI. Se considerarmos o quanto teve de luta política para a abrangência apenas no que diz respeito a representação política do Estado burguês, já é possível identificar a dimensão do germe contraditório dessa lógica da “democracia burguesa”.

Essa afirmação não ignora a alteração significativa que o modo de produção capitalista tem em relação aos demais modos de produção pré-capitalistas, em especial a dinâmica particular apresentada por Pachukanis (2017) do surgimento da relação da forma mercadoria com a forma contratual/forma jurídica. Ou seja, de que o trabalho passa a estar organizado a partir de uma relação, de uma sujeição, pelo Direito e não por uma forma de violência direta. Embora, haja essa dimensão específica no capitalismo, de uma mediação das relações de produção através da dinâmica do contrato (que pressupõe a noção de sujeitos livre e iguais); ela não descaracteriza a base de exploração dessas relações. A divisão de classes e apropriação da burguesia do valor do trabalho realizado pelos trabalhadores, as poucas opções de gerenciamento de fato desta liberdade (tendo em vista que ao trabalhador, despossuído de outras forças produtivas e do próprio produto de seu trabalho, apenas lhe resta essa venda, essa mercadoria trabalho, para a sua sobrevivência); caracterizam uma dimensão importante de violência e autoritarismo.

Em suma, a relação contratual existe de forma material é uma dimensão correlata da produção de mercadorias, no entanto isso não eclipsa o fato de que a produção de mercadoria propriamente dita, ou seja, esse momento da relação de produção, convive com a violência de classe (da expropriação do valor-trabalho do trabalhador). E, portanto, considerando os desdobramentos nas relações sociais de produção, toda a estrutura da sociedade burguesa irá conviver e necessitará de ferramentas de controle social para a dominação, exploração e reprodução desta mão de obra.

Nesse sentido, Althusser (1996) nos auxilia ao identificar o papel e natureza dos aparelhos ideológicos e repressivos do Estado. Mais do que uma divisão estanque, o autor reconhece que no âmbito da reprodução das relações sociais de produção, temos tanto a preponderância direta da violência (os aparelhos repressivos), quanto a preponderância da ideologia (aparelhos ideológicos). Ou seja, o Estado burguês é organizado por violência direta e ideologia para o seu domínio. E de forma idêntica, podemos dizer que na própria relação de acumulação capitalista, na relação social de produção, existem essas duas dimensões intrínsecas a forma de produção do capitalismo. O binômio violência-ideologia são constitutivos de uma das contradições mais ricas e dialéticas na história do capitalismo. A coerção e o consenso, de certa forma estiveram sempre vinculados a qualquer relação de poder na história humana. No entanto, a forma específica como isso se organizada no capitalismo traz uma nova perspectiva para a teoria social (e a teoria do direito), que constitui seu polo mais dinâmico.

Sintetizando, podemos dizer que no capitalismo, sua classe hegemônica opera com duas formas de dominação: violência direta e ideologia. Essas duas formas convivem em qualquer experiência de sociedade capitalista, sendo um momento autoritário a preponderância da forma de violência direta, e a democracia liberal, a preponderância da forma ideológica. E o fato de existir essa latência permanente da violência mesmo na preponderância da forma ideológica, com mecanismo de controle social relevantes seja na política imigratória, na repressão de protestos, na prática do encarceramento em massa, no extermínio nas periferias (normalmente de jovens e negros), no proibicionismo, nas guerras imperialistas constantes, nos embargos econômicos a países “fora do eixo”, da naturalização de marginalizações e pobreza; mantém-se firmes o manejo e o redirecionamento dessas violências de forma mais estruturantes para formulações de poder estatal autoritário (SILVA, 2023).

Por essa razão, aquilo que poderia ser, e, na época em que Marx analisou o fenômeno, tenderia a ser, saídas pontuais para crises políticas (com dimensões econômicas) da dominação de classe burguesa; se transmutará para formas políticas cada vez mais necessárias para essa dominação. Pois a etapa atual de acumulação do capital, onde a sua estrutura tem ganhado uma dimensão cada vez menos democrática com o aumento do patamar de exploração sobre a classe trabalhadora (com a precarização do trabalho, retiradas de direitos sociais e o aumento da desigualdade no mundo em curva ascendente desde a década de 1970), tem agudizado essa tensão entre a exigência de acumulação em moldes autoritários e forma política liberal.

As condições e contradições específicas de Bonaparte, do nazifascismo da década de 30, das ditaduras civis militares na América Latina e o atual momento da extrema direita, não são idênticas. Assim como, a forma de desenvolvimento mundial do capitalismo foi muito desigual nos países centrais e periféricos e sobretudo entre estes dois blocos, em especial na relação entre forma política do Estado burguês e a sua etapa de divisão internacional do trabalho no capitalismo.

Se recuperarmos o 18 de Brumário de Marx, perceberemos tendências de uma maneira de conformação da forma política que inaugura uma tensão permanente no capitalismo pela própria burguesia. A tensão entre democracia liberal e autoritarismo é construída e constituída de contradições no interior da própria classe burguesa. A depender do momento da etapa de acumulação, um percentual da divisão do poder político e dos recursos estatais, eram possíveis, em outras não. Mas sobretudo, quando o espaço tomado no Estado ameaçava a própria hegemonia política da classe burguesa, ela mesma organizava as saídas para outras formas de organização estatal mais autoritárias.

Deste ponto de vista estrutural, importa pouco se nesses processos ela aparece como classe dirigente ou não. Essa constatação é sem dúvida importante para a própria luta política e compreensão total do fenômeno. Todavia, o que nos interessa em primeiro lugar é compreender que o autoritarismo de Estado não está fora do capitalismo e nem sequer, trata-se de uma anomalia. Ele está, em verdade, na gênese da forma política de dominação que a burguesia construiu ao longo dos últimos séculos.

Ressalta-se que essa afirmação não busca resgatar numa visão dentro do marxismo de que o Estado seria tão somente uma extensão da classe burguesa. E tampouco, de que não há contradições e disputas cotidianas dentro do Estado que são importantes embora não alterem a sua configuração (concessão de mais ou menos direitos sociais e políticas econômicas que melhoram as condições de vida da classe trabalhadora). O que se pretende, portanto, é localizar onde está a relação entre democracia, autoritarismo e capitalismo.

A leitura, de importantes autores marxistas acerca do fascismo histórico, buscou desvelar essa conexão. Trotsky (2018), Gramsci (2012) e Poulantzas (2021), dentre outros, interpretando esses fenômenos políticos encontraram respostas um pouco distintas para essa mesma pergunta.

Em apertadíssima síntese, Trotsky (2018) compreendeu o fascismo como um fenômeno contrarrevolucionário, dirigido pela pequena burguesia e classe média, mas que satisfez o interesse de uma burguesia financeira. Apontou o papel ideológico do nacionalismo, racismo e anticomunismo na construção conservadora de um grupo político que visava antagonizar com os avanços do movimento socialista, com os sindicatos, a organização e crescimento da tomada do poder da classe.

Nesse sentido, o papel das milícias fascistas, o extermínio concreto de lideranças e a retomada do poder político pela burguesia ao final, caracterizavam o fascismo também como um movimento de reação ao socialismo. A natureza do fenômeno é eminentemente política, embora dialogasse com perdas econômicas concretas da burguesia em razão da organização da classe.

A hipótese é que havia uma ruptura da capacidade da burguesia de manter sua hegemonia política, durante uma crise (inclusive econômica), o que criou as condições para a ascensão do fenômeno. Está dentro dessa compreensão inclusive toda a formulação da necessidade de uma frente ampla para combater o fascismo, de se aliar a burguesia democrática, para enfrentar uma força política que impedia, na prática, a construção das alternativas políticas socialistas, tendo em vista a política deliberada de extermínio executado pelas milícias e/ou pelos governos fascistas e nazistas.

Trotsky (2018) aprofunda o tema da composição de classe do fascismo, sua perspectiva de diferenciação com o bonapartismo - sendo este caracterizado por um regime autocrático da burguesia, vindo de cima para baixo e, nesse sentido, sem o mesmo apelo de massas - e o fascismo, como um movimento de massas da pequena burguesia e com caráter contrarrevolucionário. Mas discorre que, apesar de ser protagonizado pela pequena burguesia, sua política econômica não serviu a esse setor, mas sobretudo ao capital monopolista - o que levaria certamente à frustração dessa classe com o poder. Há, entre o projeto fascista implementado e aquele propagado, uma discrepância enorme - a mesma que se vê nos dias de hoje e cuja existência torna necessária uma máquina de propaganda poderosa e falaciosa.

Gramsci (2012), por sua vez, entendeu que a crise que se encarava, era uma crise profunda do capitalismo, onde o capitalismo tinha se exaurido, chegado a uma impossibilidade concreta e, ao mesmo tempo, o socialismo ainda não reunia as condições para se tornar o modelo global. A noção de “interregno”, desse hiato onde o velho que morreu e o novo que ainda não nasceu, foi uma das principais alegorias para explicar o fenômeno. É nesse intervalo onde “nasceriam os monstros”, ou seja, o fascismo. Nessa concepção, onde o fascismo tinha uma perspectiva destrutiva em relação ao próprio capitalismo, fortalece-se uma ideia de anomalia, da demonstração de uma fase agonizante do próprio capitalismo.

Sendo assim, Gramsci (2012) aponta que o período do nascimento do fascismo ocorre no interregno, ou seja, quando o velho (o capitalismo) ainda não morreu, e o novo (o socialismo à época), ainda não nasceu, e nesse período de indefinição surgem “os monstros”, os “sintomas mórbidos”, dentre eles o fascismo. Mas sobretudo, o fascismo é um reflexo da crise de hegemonia da burguesia, entendendo a questão central de sua obra em relação ao período em que a burguesia é classe hegemônica, sem ser classe dirigente - o que viabiliza a pequena burguesia assumir o papel de classe dirigente, mesmo não sendo hegemônica.

A lógica fascista para Gramsci era patológica, de um projeto político que não percebia que ele mesmo era autodestrutivo. De certa maneira, essa acepção pressupõe um capitalismo que não deu certo, uma patologia, uma doença nascida do capitalismo, mas não completamente pertencente a este. Uma saída irracional porque caminhava para a própria destruição capitalista.

Poulantzas (2021), por sua vez, vai compreender que o fascismo é produto do próprio capitalismo. Mas de certa maneira é uma exceção que o capitalismo produz. A ideia de um Estado capitalista da exceção: “forma particular de regime da forma de Estado capitalista de exceção”. Um problema dessa concepção é a caracterização de que o fascismo, ou o autoritarismo é uma forma de exceção. Sua principal contribuição é que o autor busca elaborar uma teoria do autoritarismo e não como uma reflexão exclusiva de um período histórico, embora ele se debruce sobre a materialidade histórica dos acontecimentos.

Desde a análise realizada, e, ao contrário do que dizem os analistas clássicos do fascismo, essa relação entre capitalismo e autoritarismo não é estranha ou excepcional, também não é uma patologia ou a perda do poder dirigente da burguesia. Afinal, como pudemos ver, já estava nas entrelinhas “d’O 18 de Brumário...”. Embora esses elementos possam se articular de alguma forma a depender do período histórico e contribuam para essas análises, nos parece fundamental compreender essa dimensão autoritária como ‘orgânica’ ao capitalismo, uma forma política tão utilizada quanto a democracia liberal. A questão que será definidora, portanto, é o momento e o processo de acumulação do capital. As relações de produção e as condições conjunturais, políticas, sociais, culturais de cada sociedade.

2. Relação concreto-abstrato: do fascismo exotérico ao fascismo esotérico

Como pudemos constatar na seção anterior, existe uma ampla tradição na elaboração do fascismo sob uma perspectiva marxista. O exposto reflete a importante interpretação de vários autores que evidenciaram as múltiplas facetas do fascismo, especialmente em um momento em que a urgência decorrente das condições da época ameaçava a existência política e a vida daqueles que o fascismo apontava como inimigos, algo que foi especialmente observado tanto por Gramsci quanto por Trotsky. Nesta abordagem, um dos pontos centrais é compreender a dimensão política do fascismo, sem dissociá-la de sua potencial forma de governo no capitalismo, o que se manifesta tanto em expressões autoritárias quanto democráticas.

É importante reconhecer que a herança dessa interpretação influenciou notavelmente as análises críticas contemporâneas, que, embora também houvesse diversas concordância com o objeto, destacam a dimensão contrarrevolucionária do fascismo como eixo central. Embora essa problematização seja fundamental para entender a disputa política no campo da personificação, especialmente no âmbito do Estado e da chamada sociedade civil, a contribuição aqui proposta sugere uma transição teórica para o fascismo como ‘prática social’. Nesse sentido, a dimensão personificada do fascismo - seja como governo, partido ou movimento sociopolítico - é entendida apenas como a expressão superficial de sua forma, a mais visível, enquanto, no âmago, ele reside e se reproduz intrinsecamente vinculado às categorias elementares do capital. Por isso, é possível traçar pelo menos duas linhas de interpretação que, por sua vez, inspiram-se no trabalho de Robert Kurz (2016), que problematizou a obra de Marx em duas vertentes: por um lado, o movimento operário e a luta de classes (o exotérico); por outro, o Marx do fetichismo, do trabalho abstrato e da forma-valor (o esotérico). Nesse sentido, a interpretação do ‘Marx exotérico’ corresponde à leitura do que chamamos de ‘fascismo exotérico’, que coincide com a interpretação do marxismo militante - como chamamos, na falta de um termo mais apropriado - da primeira metade do século XX. Por outro lado, no ‘Marx esotérico’ recai justamente a análise do ‘fascismo esotérico’, vertente que exploraremos adiante.

Inicialmente, seria insustentável afirmar que a perspectiva do fascismo exotérico nada tem a oferecer à análise esotérica. Embora existam interpretações pouco dialéticas, como a de Georgi Dimitrov (2020) ou a de August Thalheimer (1979), que tornam extremamente difícil qualquer possibilidade de ultrapassar o imediato, em muitos outros casos, é possível notar como, no próprio desenvolvimento do exotérico, a forma espectral do esotérico não deixa de aparecer. As observações de Clara Zetkin (2017) são fundamentais para sustentar este argumento.

Em seu trabalho apresentado à Internacional Comunista como um relatório contra o fascismo, Zetkin argumentou que, diferentemente do derrotismo vulgar da socialdemocracia, o fascismo não podia ser entendido como resultado da Revolução Russa, mas a partir da brutal derrota do proletariado. Embora neste ponto essencial se destaque a questão da organização e da estratégia característica da leitura exotérica da contrarrevolução, ela ilumina, em meio à incapacidade do proletariado de resolver a crise do capital e, com isso, a desconfiança na transformação do mundo, a canalização do desespero pelo fascismo através da comunidade nacional. Embora esse argumento não a tenha levado a tentar compreender mais detalhadamente por que o proletariado foi capturado por tal elemento, e tampouco prestou muita atenção à dramatização do racismo moderno na Alemanha (além de algum comentário esparso), sua posição evidencia o núcleo mítico que o fascismo sustenta em consonância com a narrativa geral que sustenta o capital.

Em Gramsci, também é possível perceber esses elementos. Em “As forças elementares”, ele expõe o seguinte:

O fascismo é o nome da profunda decomposição da sociedade italiana, que não poderia deixar de acompanhar a decomposição do Estado, e que hoje só pode ser explicada pela referência ao baixo nível de civilização que a nação italiana conseguiu alcançar nesses últimos sessenta anos de administração unitária (GRAMSCI, 1921: 38). [Tradução nossa]

Embora nessa conjuntura política Gramsci (1921) insistisse no papel da contrarrevolução, a ideia do fascismo como “a profunda decomposição da sociedade italiana” nos revela um aspecto diferente. A guinada ‘cultural’ que Gramsci manifesta em sua teoria não esconde desta problematização os aspectos da vida social. O conceito de ‘luta de classes’ é desafiador para a personificação tradicional da dominação compartilhada pela militância. Infelizmente, as preocupações desencadeadas pelo desenvolvimento da conjuntura política impediram que essa linha fosse aprofundada, restando-se apenas como uma insinuação ao potencial da ‘posição esotérica’.

Como é evidente na totalidade deste texto, para o marxismo é de suma importância compreender a relação entre capital e fascismo. No entanto, também é muito evidente que a compreensão do capital não é de forma alguma universal e que essa própria compreensão determina a natureza do fascismo. Nesse sentido, se o capital é entendido apenas como uma forma de dominação pessoal, o fascismo é limitado a essa esfera. Por outro lado, se a dinâmica do capital é apresentada além de sua imediaticidade, é possível compreender a natureza do fascismo não apenas na personificação, mas fundamentalmente no contexto da prática social.

As perspectivas do Institut für Sozialforschung foram fundamentais para estabelecer a possibilidade da interpretação esotérica. Desde os projetos de pesquisa anteriores ao exílio de seus membros mais reconhecidos, já se notavam inquietações em abordar as dimensões do fascismo que iam além de sua presença na política institucional. Os estudos sobre autoridade e família (INSTITUT FÜR SOZIALFORSCHUNG, 1987) ou sobre os trabalhadores de colarinho branco e colarinho azul, comentados por Helmut Dubiel (1985), são uma expressão clara disso, somados à compreensão da transformação objetiva do capital liberal, que se cristalizou entre o debate sobre o capitalismo de Estado (POLLOCK, 1941) e o capital monopolista (NEUMANN, 1943).

No entanto, é na teoria crítica realizada no exílio de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno que encontramos, com mais contundência e sofisticação, uma leitura do fascismo para além da contingência política, evidenciando a possibilidade de sua emergência na racionalidade instrumental que define a modernidade capitalista. Em “Dialética do Esclarecimento” (HORKHEIMER, ADORNO, 2018), os pensadores exploraram como, em uma época que parecia oferecer as condições para uma vida emancipada, a humanidade avançou em direção a formas de opressão que resultaram em um novo tipo de barbárie articulado sob o toponímico de Auschwitz. A partir dessa perspectiva, o fascismo não pode ser compreendido como uma anomalia (em acordo com abordagem anterior) e nem como um desvio dos ideais da modernidade, mas como uma possibilidade inerente à sua estrutura racional, uma consequência de sua lógica de dominação e controle que organiza as relações sociais em torno da exploração e acumulação.

Ancorado intrinsecamente na dominação específica do capital, a interpretação esotérica do fascismo implica que ele não deve ser visto simplesmente como um fenômeno político pertencente ao campo da extrema direita, mas sim como uma ‘prática social’ originada na própria lógica do capital, que se reproduz nas relações sociais cotidianas. O fascismo é, então, uma expressão do mundo administrado, uma manifestação da vida prejudicada que surge de suas contradições internas e de sua tendência a subordinar a vida - em seu sentido amplo - à lógica da acumulação. Como é evidente, essa lógica não cria só formas explícitas de opressão, mas também organiza a subjetividade na vida cotidiana e suas interações sociais em função de imperativos abstratos tais como o valor, a eficiência e a rentabilidade, permitindo que o fascismo se estenda por amplos aspectos da vida social, sem a necessidade de se cristalizar em um regime político autoritário explícito/manifesto.

Para entender como essa lógica do capital permite a reprodução do fascismo, é crucial a teoria crítica de Moishe Postone. Em sua obra mais reconhecida, “Tempo, Trabalho e Dominação Social”, Postone (1993) trata cuidadosamente a categoria ‘trabalho’ por sua centralidade, não só na compreensão do capital, mas também na sua possível superação. Assim, ele sustenta que o trabalho no capitalismo - ou simplesmente o trabalho, pois, como corrigiu Kurz (2021), não se pode falar de trabalho fora do capitalismo - não é uma atividade neutra, mas uma categoria dual que articula relações específicas de dominação e que é organizada em torno de um tempo abstrato e homogêneo. Esse tipo de trabalho aliena os indivíduos e estrutura suas vidas segundo uma lógica de acumulação que os transforma em instrumentos de um processo que os supera e que é orientado para a valorização do capital. Dessa forma, o trabalho não apenas explora, mas também configura uma forma de dominação abstrata e impessoal que afeta as subjetividades e converte os indivíduos em sujeitos alienados, subordinados a um sistema de valor que transcende seus interesses e necessidades.

A dominação abstrata e impessoal do capitalismo é uma das características fundamentais do fascismo esotérico, pois permite que a opressão e a alienação se reproduzam na vida cotidiana, tanto na esfera da produção quanto na circulação do capital. Diferente da dominação concreta e pessoal que caracteriza as relações de poder tradicionais, a dominação no capitalismo opera através de imperativos abstratos que parecem naturais e inevitáveis, como valor, eficiência e competição. Essa forma de opressão, por ser abstrata e impessoal, fetichiza-se e se torna uma força que parece incontrolável, estranha aos indivíduos, que os domina sem necessidade de figuras autoritárias visíveis. Ou seja, o capital não necessita de um regime político autoritário para impor a dominação; ao final, esta dominação se exerce através das práticas sociais e das instituições que estruturam a vida moderna.

Aqui, o conceito de fetichismo, central na crítica de Marx, é fundamental para compreender a dinâmica do fascismo esotérico. Sob o capital, as relações sociais se fetichizam e aparecem como forças externas que alienam e controlam a vida dos indivíduos, sem que eles reconheçam que essas relações são o produto de sua própria atividade social. Devido ao fetichismo - que deve ser estendido à reificação de Lukács e ao espetáculo de Débord, como apontaram Samir Gandesha e Johan Hartle (2017) - os sujeitos não reconhecem a especificidade abstrata da dominação do capital, mas apenas sua aparência, o que acaba se incorporando ao mesmo tempo em um ‘fetiche do concreto’. Nesse sentido, as formas concretas de dominação só podem ser compreendidas por meio da mediação que subjaz à forma historicamente específica da dominação capitalista. Isso não significa que elas não constituam a experiência imediata dos indivíduos, mas é precisamente devido ao véu dessa mediação que as formas pessoais só podem existir fetichisticamente. Ao final, quanto mais a dominação abstrata penetra, mais difusa se torna a dominação concreta e o único sentimento persistente que o indivíduo experimenta claramente é a confusão e o sofrimento dela advém.

Como reação à dor infligida pela sociedade capitalista, o que objetivamente presenciamos é a elevação do caminho do terror. A força da integração do capital - e com ela o enfraquecimento do ego - fez com que a emancipação se estagnasse na imediaticidade. Nesse contexto, o fetiche da dominação concreta às vezes se concentra nas personificações que parecem mais óbvias - os ricos acumuladores de riqueza, a classe política, as organizações internacionais, etc. -, mas, em muitas outras ocasiões, segue o caminho ditado pelos impulsos psíquicos que projetam violentamente a autoridade internalizada, em linha com o princípio de subordinação da diferença organizada de maneira hierárquica e racial.

Essa reação contra a diferença constitui um duplo fetiche do concreto: por um lado, o de um suposto grupo empírico como causa do mal-estar - o árabe, o migrante, o homossexual - ainda que, na realidade, tal grupo não exista nesta pretendida unidade concreta. Por outro lado, o fetiche do concreto do suposto grupo que se opõe ao mal-estar, na medida em que sua concretude se baseia em uma ficção ou unidade parcial - sangue, terra, pele, certos valores, etc. Esse processo, que desdobra o fetiche do concreto em oposição ao fetiche do abstrato, é o que nos revela a potência da interpretação esotérica do fascismo.

A partir desta última, torna-se possível a crítica à estratégia de luta política tradicional que se concentra na confrontação visível com figuras ou movimentos autoritários, mas que deixa de fora seu alcance às estruturas abstratas de dominação do capital. Nesse sentido, a abordagem pela posição esotérica é a crítica radical da esfera da produção e não apenas a da circulação, o que evita uma compreensão do fenômeno exclusivamente associada à extrema direita, permitindo também atender à sua presença sistematizada em movimentos e organizações de esquerda que reproduzem o núcleo identitário que resulta, de modo similar, em exclusão e violência. Portanto, o fascismo deve ser posicionado também como uma força amorfa e adaptativa que lhe permite fluir para além da ideologia, aprisionado na falsa libertação da dominação abstrata.

Dessa forma, o fascismo, mais além de sua interpretação como movimento contrarrevolucionário, encerra a antinomia do capitalismo com consequências brutais. Quando a dimensão abstrata do capitalismo se apresenta como seu núcleo elementar, sua dissolução se torna o objetivo para erradicar o mal do mundo. Esquece-se que as relações sociais estão constituídas fundamentalmente em uma dupla dimensão, de modo que o concreto não é algo puro e externo ao capitalismo: muito pelo contrário, é uma de suas expressões. Na lógica do fascismo, a dominação abstrata se apresenta não de maneira distinta do que aparece em outras leituras do marxismo, como uma personificação desse mal.

Quando o concreto se apresenta como oposição real ao abstrato, as formas tangíveis de se relacionar e produzir são glorificadas. A comunidade torna-se automaticamente ‘anticapitalista’, refúgio e resistência contra a dominação. O sangue, o povo, a raça, etc., contêm por natureza o espírito messiânico que dissolverá o sofrimento. O conceito de dominação abstrata deixa de existir realmente nessa interpretação, pois, embora o concreto seja oposição ao abstrato, o abstrato está fetichizado e, portanto, pode ser incorporado, tornando-se corpo. No fascismo, essa expressão se biologiciza. Como Postone (2001) expõe, na lógica de seu discurso, os nazistas eram anticapitalistas. Sua revolução consistia em liberar a humanidade da abstração e, em seus próprios termos, tiveram sucesso. Mas foi um anticapitalismo falso. Não porque sua posição tenha pretendido enganar alguém, mas porque os pressupostos que sustentaram seu movimento estavam equivocados. Nas palavras de Postone, é um anticapitalismo que deixa o capitalismo intacto.

Nas palavras de Postone (2003), as características do Holocausto podem ser compreendidas como os padrões do século XX. Isso não quer dizer que podemos ver o século XX em geral como um grande campo de extermínio, mas que ali se expressou a condição fetichista da sociedade, que não terminou com o extermínio da população judaica europeia. Na transformação do capitalismo liberal, os judeus foram a biologização perfeita da sociedade fetichizada. No capitalismo atual, o ultraneoliberalismo e sua crise, temos a responsabilidade de ao menos advertir, no espírito do imperativo de Auschwitz lançado por Adorno (1998) - que a barbárie não se repita - que as transformações da biologicização na lógica do fascismo estão tomando uma nova forma.

3. Antagonismo em movimento: foco no fluxo de ódio em trânsito nas ‘formas sociais’

Pelo debate da derivação do Estado, o resgate da derivação lógico-histórica, cuja centralidade no método dialético (e suas heranças hegelianas) em conjunto com a historicidade da prática social empírica, é o fundamento para pensar o fascismo. Essa abordagem está de acordo com o entendimento da relação de continuidade entre democracia-autoritarismo e ainda está de acordo com compreensão mais esotérica do fascismo enquanto ‘prática social’ normalizada pela dominação abstrata das relações sociais capitalistas. Contudo, esta perspectiva agrega o entendimento das ‘formas sociais’ capitalistas (forma-mercadoria, forma-trabalho, forma-dinheiro... forma-capital, forma-Estado e forma-Império), em seu decurso histórico, como ‘formas processuais’ que estão articuladas, já que estas ‘formas’ são derivadas uma das outras.

Assim, se tomamos a crise estrutural do capitalismo de 2007-2008, não apenas como uma crise econômica (pela lei tendencial da queda da taxa de lucro), mas como uma crise social (policrise) (ROBERTS, 2016), o fenômeno nos aparece como uma reedição da história vivida na crise de 1929, mas com os traços do “novo”, ou seja, da mundialização capitalista instalada sob os moldes neoliberais. De acordo com a primeira abordagem, é possível afirmar que tendência antevista por Florestan Fernandes (2022) se confirmou. A ‘democracia pluralista burguesa’ entra em colapso pela sua própria contradição, qual seja: da incompatibilidade primordial entre ‘democratização das liberdades’ e ‘capitalização da vida’. Mas isso foi apenas a aparência do fenômeno em termos institucionais. Essa aparência levou analistas a ganharem notoriedade mundial, ao considerarem que o avanço do fascismo Trumpista era um sinal de que as democracias estavam “morrendo” (LEVITSKY, ZIBLATT, 2018). A tese central deles era de que os regimes democráticos tradicionais e consolidados estavam sendo enfraquecidos de modo “legal” e “por dentro”.

Nesta abordagem, esse foi um momento profícuo nos estudos do ‘fascismo de novo tipo’ (ou simplesmente ‘neofascismo’) para resgatar o debate marxista da derivação do Estado e no seu acúmulo teórico-prático sobre a relação orgânica entre Estado e Capital. Considera-se que a contribuição que essa perspectiva pode dar ao entendimento do neofascismo é essencial para compreender a fundo e com rigor metodológico tal fenômeno, em uma chave que se afasta das análises estruturalistas-politicistas gramsciano-poulantzianas, ou, ainda, da TMD, que dominaram o debate até então. Levitsky e Ziblatt (2018) identificaram algo que já estava descrito pela ‘perspectiva da derivação do Estado’ ao menos desde a década de 1930. Trata-se do papel da institucionalidade jurídica e, portanto, do direito burguês na ossatura do Estado capitalista como uma “forma” de conduzir nossas vidas dentro dos limites estritos/estreitos/restritos da(à) sociabilidade do capital (PACHUKANIS, 2020). Mas os autores, - Levitsky e Ziblatt - pela opção neoinstitucionista e restrita de democracia usada, jamais chegariam a admitir que o problema é da própria contradição entre Estado e Capital - mas assim o fizeram sem querer.

Advoga-se aqui que o derivacionismo, na segunda década do século XXI, pode oferecer respostas mais acuradas à compreensão do neofascismo como fenômeno mundial e com características próprias e/ou originais nos territórios latino-americanos. Pachukanis (2020), como autor que inspirou a perspectiva da derivação do Estado - com seu desenvolvimento a partir dos anos 1970 -, já tratava do fascismo dos anos 1930 através de uma leitura da “forma” jurídica dos Estados capitalistas. Assim, em uma perspectiva derivacionista, o papel da crise do capital internacional e sua relação intrínseca com a forma jurídica do Estado capitalista ganhavam relevo para explicar o fascismo. Carnut (2022) apud Pachukanis (2020) afirma que:

a forma jurídica condenada ao opróbrio pela força da conjuntura (demonstrando os sinais de esgotamento do direito) e o fenecimento do Estado são, respectivamente, índices da agudização da luta de classes e da superação do capitalismo. Estes últimos, ao serem identificados pela burguesia como sinais de desgaste de sua dominação política - democracia procedimental -, uma vez que não consegue solucioná-los parlamentarmente, conduzem a uma ditadura de classe fascista cuja essência é uma tentativa desesperada de manter as formas sociais capitalistas, buscando retardar o seu definhamento (PACHUKANIS, 2020: 3) [grifo nosso].

Ênfase aqui é dada à ‘forma social’. Essas ‘formas’ dão sentido às utopias reacionárias da pequena burguesia, que também eram analisadas por Pachukanis (2020) como elementos que ajudavam a encapsular as relações sociais em sua pluralidade nas ‘formas necessárias’ para o sustento das relações sociais capitalistas. Pachukanis (2020) ainda reforça que o crescimento do fascismo depende de um movimento operário desorganizado pela traição dos reformistas e pelas meias-táticas dos líderes centristas, que, em conjunto, vão direcionando a estratégia socialista ao declínio.

Mesmo com esse aporte original de Pachukanis (2020) para o entendimento do fascismo nos anos 1930, em função da radicalidade de sua teoria - criticando, em última instância, o Estado proletário na URSS -, Pachukanis foi perseguido por Stálin e morreu, deixando a obra seminal Teoria Geral do Direito e Marxismo como seu principal legado, além de algumas cartas e textos - inclusive os citados, onde analisa o fascismo -, à luz de sua perspectiva.

Durante muito tempo, o debate marxista sobre o Estado capitalista foi hegemonizado pela discussão gramsciano-poulantziana com foco nas lutas políticas que se baseavam na disputa entre socialismo e capitalismo na Guerra Fria. Esse riquíssimo debate e de longa tradição pode ser visto na síntese recuperada por Simon Clarke, em 1991, em seu texto “The State Debate”. Conforme Clarke (1991) nos apresenta, apenas na década de 1970, com a crise do Estado Social Capitalista, é que a perspectiva da Derivação do Estado foi retomada por Joaquim Hirsch, que deu origem ao debate derivacionista, ou, em termos gerais: o derivacionismo. O intuito no primeiro momento era construir uma teoria materialista do Estado, com uso do método marxiano, conforme realizou Pachukanis (ao derivar a forma-jurídica da forma-mercadoria). Esse projeto deu início a um conjunto de discussões sobre a natureza do Estado capitalista e a exploração da relação contraditória entre a classe trabalhadora e o Estado social.

Este último foi o tema central de vários trabalhos do grupo Conferece of Socialist Economists (1970), baseando-se, particularmente, na análise teórica do Estado proposta por Holloway e Picciotto (1978). Esse trabalho tendeu a ter um enfoque muito concreto, envolvendo estudos de caso e pesquisas empíricas detalhadas que tentaram se relacionar o mais aproximadamente possível da experiência cotidiana das pessoas com o Estado. Esse foco foi, em parte, uma reação contra o que foi sentido como sendo a ‘teorização excessivamente abstrata’ do debate de derivação, mas também refletia a prioridade política concedida à política de base e à mobilização popular “dentro e contra o Estado”, que se tornou um foco primário da luta de classes na segunda metade dos anos 1970 (CLARKE, 1991).

O contexto do debate à época era o problema da ‘forma’ do Estado, e não o ‘conteúdo’ da política estatal. A ‘forma’ é que deveria ser o foco principal da política socialista, de modo a construir uma base na organização coletiva sobre a qual seria possível resistir ao poder tanto do capital quanto do Estado, e, ao mesmo tempo, desenvolver alternativas socialistas sem recair em novos progressismos. A impossibilidade do projeto reformista de ‘alcançar o socialismo através da reestruturação gradual do capitalismo’ não implica que a classe trabalhadora seja indiferente à forma de reestruturação. Logo, o fim de tal reestruturação não deveria ser seus benefícios imediatos aparentes, mas, não se deveria negar que tais benefícios ensejam condições favoráveis para a luta pelo socialismo (CLARKE, 1991). Assim, o problema era organizar sem institucionalizar, não com base em indivíduos, mas em classe. A luta de classes era necessariamente uma luta ‘dentro-contra-e-mais-além’ do Estado (CLARKE, 1991).

Um ponto constantemente enfatizado pelo debate é que a reprodução das relações sociais capitalistas só é alcançada através de uma luta de classes na qual sua reprodução está sempre em dúvida. Nesse sentido, as relações sociais capitalistas de produção nunca podem ser vistas como uma ‘estrutura’, mas apenas como um ‘processo permanente de crise e reestruturação’. Assim, Holloway (1980) argumenta que a reprodução capitalista só é alcançada através do “processamento de formas” da atividade social. (CLARKE, 1991). E é aqui que alguns fundamentos do derivacionismo na perspectiva hollowayana precisam ser retomados para reelaborar uma reflexão sobre o neofascismo.

Primeiro: o Estado é capitalista, mas o Estado não é um capitalista, portanto ele não está incluído na exploração diretamente. Ou seja, o Estado assegura a exploração proporcionando os meios para reproduzi-la e não para produzi-la. Por isso, não é possível dizer que o Estado expropria mais-valor do trabalho não-pago de seus funcionários. O Estado não visa ao lucro. O Estado não é um capitalista para gerar lucro com a expropriação oriunda da realização da mercadoria ‘força de trabalho’. Mas o Estado é um meio para que os capitalistas possam sustentar essa sociabilidade da exploração do trabalho assalariado, permitindo que essa relação social (trabalhador-capitalista) se reproduza nos termos de uma ‘forma-jurídica’ forjada para tal (HOLLOWAY, 2004; HOLLOWAY, 2015; HOLLOWAY, 2017).

A forma-jurídica, edificadora da ossatura do Estado capitalista restringe as formas (maneiras) de relacionamento dos sujeitos com o aparelho do Estado, reduzindo, portanto, a possível pluralidade de relações em que os sujeitos poderiam se relacionar entre si, fazendo com que uma forma específica de relação entre os sujeitos perpasse, necessariamente, por uma ‘forma’ (BONNET, 2019). Essa é a ‘forma-Estado’, que restringe as possibilidades de interação às formas contratuais (jurídicas) e, portanto, regidas por um suposto sistema de garantias (o direito). Assim, o fluxo de relações sociais entre os sujeitos, que poderia ser múltiplo, diverso e infinito, se ‘coagula’ a algumas possibilidades de relação restringidas pela forma imposta pelo Estado. Ao restringir as formas de socialização - àquelas que prioritariamente reforçam o trânsito e a realização das trocas mercantis -, a forma-Estado encapsula a interação social entre os sujeitos dentro dos limites desejáveis para reprodução primeva de uma sociabilidade que mantenha o capital. Essa compreensão sobre o Estado como ‘forma’ se afasta da ideia de Estado como ‘aparelho’ (HOLLOWAY, 1980) - ou seja, suas instituições, ritos, patrimônio, enfim, sua imediata materialidade -, contudo, não visa a negar, por certo, a existência do Estado como aparelho, mas, sim, compreender, a luz do método marxiano, sua ‘forma’. Em síntese, trata-se do papel central das ‘formas sociais’ que canalizam, desestimulam ou, ainda, impedem que se viva ou se socialize de outras maneiras que não sejam, por fim, por meio da mediação de uma ‘forma’, tendo-se que mercadoria, dinheiro, valor, capital e, ainda, o Estado, são as principais delas.

Na realidade, as ‘formas’ aparecem como coisa. Mas, no fundo, em sua essência, são relações sociais. As relações sociais são fluidas e não fixas. As formas sociais capitalistas tendem a fixar, solidificar e massificar a realidade - que é fluida - em formas fixas, sejam elas fixadas em instituições (Estado) ou em coisas (mercadorias). Essas ‘fixações’ são impedimentos que obstruem o caminho do fluxo do capital. É como se fossem ‘pedras’ que impedem o fluxo incessante de um rio, mas que, ao mesmo tempo, dá-lhe temperança e tranquilidade - portanto, estabilidade. Caso não fosse assim, o fluxo do rio (analogamente ao fluxo do capital) iria aumentar, ficar cada vez mais caudaloso, até ‘deslocar’ ou ‘romper’ a pedra e destruir tudo que está pela frente. Por isso que, se derivamos a forma-Estado das relações sociais capitalistas, o Estado passa a ser visto como uma das pedras que lhes dão estabilidade, ou, em outras palavras, uma forma controlada e segura de reproduzir essas relações capitalistas que valorizam o valor (capital) em longo prazo, evitando que essas relações tenham um curso de vida na história curto ou, ainda, que o capital - como fluxo que é - se autodestrua pela sua própria velocidade e impulso (ou vazão - nos termos do rio).

Segundo: o derivacionismo parte da ideia de que a ‘crítica’, na perspectiva marxista, é genética - ou seja, está na gênese do processo das relações sociais (HOLLOWAY, 2017). A questão é entender o como e o porquê dessas ‘formas’. Assim, da mesma forma, se queremos entender o Estado, teremos que focar nas relações sociais. Certas relações sociais de interação de trocas - ou de intercâmbio - entre os sujeitos necessitam de uma instância que assegure essas trocas, protegendo-as. Para isso, um aparato jurídico, uma forma-jurídica irá dialeticamente se desenvolver ao longo da história dessas relações de troca. Essa forma-jurídica encontrará, no decorrer dos séculos de sociabilidade da troca mercantil, momentos em que uma forma mais acabada, que congregue um rol de interações tipicamente seguras para estabilizar essas trocas como ‘trocas perfeitas’, a constitua como ‘forma-Estado’. É daí que se pode afirmar que a forma-Estado, em sua gênese, tem como intenção última salvaguardar essas relações sociais, tipicamente capitalistas, no intuito de proteger o capital em geral como um sistema de acumulação.

Assim, o poder não está necessariamente no Estado, e, sim, na organização do processo de produção. Com isso, não estamos dizendo que há uma determinação econômica do político, mas uma relação social que, por momentos da história de seu desenvolvimento, ‘condensa-se’ ou se ‘particulariza’ em formas que geram consequências econômicas, de um lado, e políticas, de outro. Logo, entender a natureza capitalista do Estado é uma questão de ‘forma’, e não de ‘conteúdo’. O mais importante no estudo do Estado na perspectiva derivacionista é estudar a particularização, como uma forma das relações sociais. Para compreender processos específicos, a questão se centra em ver, em nível mundial, como esse processo se desenvolve em lutas particulares (o “lógico”) dentro de tradições históricas (o “histórico”), ou, em outras palavras, ver até que ponto as lutas locais específicas ou as rebeldias sociais são de caráter antiestado (lutas para impor outras formas de se socializar e de fazer as coisas que não sejam encapsuladas nas típicas formas sociais capitalistas).

Nesse sentido, o Estado enquanto forma é a mais elaborada forma que permite maior escala e alcance, e que, ainda, desempenha um papel importante na coesão social dos sujeitos que interagem. Contudo, o fato de o Estado ser uma forma que salvaguarda o capital, em última instância, não significa dizer que ele sempre consiga fazê-lo. Nem todas as relações sociais estão ‘coaguladas’ nas ‘formas’ sociais capitalistas. Isso significa dizer que o Estado, por exemplo, não é capaz de conter todas as formas alternativas e de rebeldia que a multiplicidade e a criatividade das interações sociais permitem.

Terceiro: é nesse arcabouço do derivacionismo de inspiração pachukaniana e de base hollowayana que traçamos uma tentativa de reconhecer o neofascismo como uma relação social específica de raiva ou ódio social que é encerrada nas ‘formas’ típicas (re)produzidas pela sociabilidade capitalista - um ‘processo de fascistização’ que perpassa as formas -, no intuito de garantir sua estabilidade em momentos de crise do capital. Portanto, partindo-se desse pressuposto, cabem aqui algumas perguntas: o derivacionismo pode nos ajudar e compreender o ‘Estado autoritário’ e o neofascismo dos últimos anos? O que está se passando no mundo que torne necessário o aumento do autoritarismo? Nos ajudaria a entender a ação antiestatal frente ao neofascismo, ao ‘estatismo autoritário’ e ao capitalismo, ao mesmo tempo?

Em momentos de crise capitalista de grande envergadura, as relações sociais entre os sujeitos ficam bastante tensas. A situação de pauperização e precariedade das condições de vida e de trabalho favorecem a sensação de desconfiança, medo e, claro, de sobrevivência desesperada. Isso perpassa todas as classes sociais. A classe proletária mais pauperizada vê-se sem ter o que comer, fica endividada e refém do empréstimo e da agiotagem, do trabalho indigno ou até da mendicância. A classe trabalhadora formalizada tende a perder o emprego e passa a depender de redes de apoio social, o que, subjetivamente, aparece-lhe como humilhante. As camadas médias, com medo de perder o pouco que têm - em termos de propriedade ou de seus pequenos negócios -, adere a um discurso aburguesado de defesa da propriedade privada e do ‘salve-se quem puder’. A classe capitalista, grosso modo, reorienta seus negócios a outros setores, demite trabalhadores, e uma parcela mais ‘agressiva’ vê na crise uma oportunidade de novos negócios.

Essa subjetividade constitutiva dos momentos de crise social capitalista gera um sentimento coletivo contraditório. Sem saber identificar quem é ‘responsável’ pela crise, as classes sociais se relacionam na ideia de que há um ‘outro’ que é responsável pela situação. Mesmo que, na essência, o capital seja o responsável por um ataque constante contra nós e que agride nossa forma de vida autônoma, na aparência, a responsabilidade passa a ser de um ‘outro’, convenientemente colocado na posição de ‘bode expiatório’, o qual passa a ser o cerne de uma ideologia baseada no: ‘em contra-de’.

Assim, no auge das explosões e crises sociais, as ‘formas’ fixas, estáveis, que garantem a salvaguarda das relações parecem não ser mais o suficiente para garantir a estabilidade das “condições normais” das relações sociais capitalistas. A raiva e o ódio passam ser o centro das relações sociais mudando-as qualitativamente. É nesse sentido que é possível dizer que há um fluxo da ‘raiva social’ que predomina nas relações sociais. A crise gera muita raiva nas pessoas, e a questão é como essa raiva se transforma em autoritarismos e novos fascismos, em termos de antagonismo social e não de dominação (HOLLOWAY, 2004). Por isso, não se trata de apontar que a raiva é simplesmente ‘deles’, porque a raiva e o ódio são mútuos, e ambas terminam por se fixar em certas ‘formas’. Daí emerge a seguinte pergunta: como entender o neofascismo como um fluxo da raiva e do ódio social e por que tem tanto êxito?

Assim, desse ponto de vista, pode-se pensar que há uma reconfiguração do conflito social em termos de antagonismo. A capacidade de organização das classes se polariza, a situação de terra-arrasada gera uma capitulação das relações sociais em termos de ódio. Nessas situações, parece ‘bem’ matar o outro. Situações de genocídio passam a ser plenamente justificáveis em termos de uma ‘morte direcionada’ a uma população específica considerada culpada pela crise, geralmente aquelas cujos “marcadores sociais da diferença” se encontram em contraste com a visão do universal moderno de ser humano (homem, branco, europeu, rico, heterossexual). Toda essa relação social de raiva precisa ser calcada no irracionalismo, já que as classes subjetivamente desejam o reestabelecimento da ordem social capitalista de qualquer maneira, nem que seja a irrazão que a justifique. Inclusive, as classes sociais com mais politização e consciência social, mesmo convencidas de que o capital nos ataca todo o tempo, quando vai reagir ao ódio e ao irracionalismo, sua reação é sempre uma reação conservadora e encerrada nas formas capitalistas. Não se aproveita o momento de raiva para propor outras ‘formas’ de sociabilidade. Depois, muitos ainda se surpreendem quando a classe trabalhadora adere ao fascismo.

Por isso, pode-se dizer que esse fluxo da raiva é de uma raiva medrosa. Essa reação de medo de estar sentindo-se ameaçado se transforma em uma reação fascista, na qual a relação social se estabelece como uma tentativa desesperada de manter a “ordem social das coisas”, evitando o definhamento das relações sociais capitalistas. Claro, o definhamento dessas relações passa por poder imaginar politicamente outras ‘formas’ de socialização. Ao identificar essa ameaça às ‘formas’ que canalizam esse fluxo, a raiva social finda por ser ‘drenada’ para fortificar as ‘formas’ estabelecidas, e não para criar outras. É nesse caminho que a forma-Estado, como a mais elaborada de todas, irá readequar-se no sentido de transmutar sua relação com a sociedade, enrijecendo-se e enquadrando-a com mais vigor.

Nesse caminho é que os regimes políticos se ‘endurecem’, a depender a conjuntura da formação social e da luta de classes existente. Às vezes, são necessárias restrições democráticas que ‘obstaculizem’ ou ‘suspendam’ as relações entre Estado-Sociedade mediadas por suas instituições políticas - congresso, partidos, sindicatos -, na tentativa de preservar a ‘forma’ e, se possível, dando-lhe o ‘conteúdo’ da ideologia irracionalista formulada pelos mitos fascistas. Nesse momento é que um grupo social se fixa de forma muito perene no Estado capitalista para pôr em curso a proteção da forma-Estado e dar-lhe o cariz ideológico que guiará sua sobrevivência nos tempos de crise.

Contudo, para a própria forma-Estado, a permanência longa de um grupo social não é boa para a “função” reprodutiva do capital em geral feita pelo Estado, já que: primeiro, desvela seu caráter de neutralidade, e, segundo, impacta na taxa de lucratividade média de outros grupos capitalistas, gerando oposição forte de outras frações de classe capitalistas (lutas intraburguesas). É por isso que não podemos dizer que o fascismo é igual ao capital, mas, sim, que o fascismo é uma instância das relações capitalistas em que a raiva social invade as ‘formas’ e, ao mesmo tempo, visa a ‘proteger’ as formas sociais de uma possível derrocada, entoada pelos fascistas como uma “ameaça à liberdade”.

É assim que o fascismo se apresenta como um “movimento libertário” (contra o autoritarismo, mas que usa o autoritarismo - estatal - para proteger a liberdade - liberal). Aqui vem o ponto de diferença: de que liberdade estão falando os fascistas? Sem dúvida, de uma liberdade ‘abstrata’, regulada pelas instituições burguesas, uma liberdade liberal, restrita às formas sociais capitalistas, diferente da liberdade genuína, múltipla, plural e comunal defendida pelo socialismo. Por isso que é possível dizer, acerca da diferença dos núcleos utópicos entre fascismo e socialismo, que, por mais que sejam qualitativamente diferentes, há um esforço de alguns analistas de fazerem parecer “iguais”, seja pela semelhança nominal, seja por esvaziarem seus conteúdos históricos de classe ou, ainda, por má intencionalidade mesmo. Para dirimir esse efeito, preferimos dizer que o socialismo, sim, preconiza uma utopia, no sentido de um ‘lugar feliz’, onde a liberdade e a democracia são sinônimos de socialização.

Quando pensamos no novo tipo de fascismo (o neofascismo), numa abordagem à qual nos filiamos aqui, não é possível dizer que o neofascismo é algo extemporâneo. Não cremos. Um momento de ‘apaziguamento’ do fascismo não existe, já que existe uma perenidade histórica da raiva social que, por vezes, encontra-se restrita a grupelhos e não pode ser vociferada porque não é o seu ‘momento político’ e, quando verbalizada, soa como “sandice”. Mas, em momentos de profunda crise, quando mais uma vez entoada, aparece com algum grau de ‘razoabilidade’. No neofascismo, não há nada de original do ponto de vista da emergência dessa raiva (na sua essência), contudo, há muito de original (na sua aparência), portanto, podemos dizer, mais uma vez, que as formas continuam as mesmas, mas o conteúdo que elas adquirem é novo (daí o: ‘neo’), pois são reajustadas às novas circunstâncias, como uma resposta a outra fase do capitalismo: um capitalismo financeirizado ultraneoliberal.

Conclusão

O marxismo vem se renovando e com ele a possibilidade de entender fenômenos complexos e contemporâneos como no caso dos fascismos que emergiram no século XXI. Longe das análises restritas que consideram o fascismo do tempo presente como “grupos que eclodem” ou que “aparecem repentinamente”, o marxismo contemporâneo vem fortalecendo a tese da generalização/universalização das relações sociais capitalistas de dominação (sejam elas tanto na aparência quanto na essência) como a origem das práticas sociais fascistizantes. Práticas sociais estas que geram muita dificuldade de leitura por aqueles marxistas que ainda se situam nas análises dos anos 1930 que insistem em usar elementos históricos daquele tempo para delimitar o fascismo sem considerar a lógica do movimento do capitalismo enquanto relação social.

Em breve exame da lógica do capitalismo em Marx, desde a sua análise fundamental do processo da revolução burguesa na França, já era possível perceber que os elementos de tensão presentes na burguesia durante seu processo de assentamento enquanto classe, permanecia presente no desenvolvimento deste modo de produção. Podemos dizer que isto ocorre desde os países centrais até e os periféricos, desde o início do capitalismo até os dias de hoje.

Apesar do desenvolvimento de características particulares, a depender do estágio do capitalismo contemporâneo e da formação social e econômica de cada país, o caráter despótico das relações sociais capitalistas (autoritárias por natureza) é uma realidade constante no capitalismo seja em qualquer parte e época. Seja no desenvolvimento dos aparelhos repressivos do Estado, institucionalizados pela democracia liberal, e das consequências da exploração econômica e desigualdade social; seja pela adoção de uma forma social ou política e/ou ainda, nas formas sociais mais acabadas como na forma estatal (como o caso dos fascismos clássicos, no bonapartismo e nas inflexões de regime como nas ditaduras militares).

O fascismo deve ser entendido como processualidade e sempre como uma possibilidade no capitalismo. Especificamente sobre o fascismo de novo tipo, este é, portanto, a possibilidade histórica que aparece num mundo capitalista ultraneoliberalizado que não apresenta mais soluções viáveis como uma saída segura para a crise capitalista. A contradição de difícil resolução se dá no aumento da desigualdade social que impossibilita ainda mais a perspectiva da democracia liberal em obscurecer a dominação que ela mesma engendra. Na tentativa de manutenção desta sociabilidade despótica par excellence, a solução é transformar o mundo, e até mesmo países centrais, em alguma espécie de ‘autocracia burguesa’, excluindo a maioria da população mundial do seu próprio processo democrático. Assim, diante dessa guerra de todos contra todos, ganha força a articulação fascista por meio do aumento de ferramentas de controle social e de precarização da vida.

Desde a lógica do movimento do capital em si mesmo, até o momento, nós estamos falando da aparência, mas, em essência é a relação social capitalista que domina abstratamente a tudo e a todos. O que há de fascista nisto? Muito. A dominação tende a não estar mais personificada em SAs ou em partidos políticos especialmente criados para isso (como ocorreu no fascismo histórico) mas sim, a dominação capitalista se universaliza tornando-se tão hegemônica que, no afã de garantir a liberdade burguesa generalizada promove o seu contrário: a ditatura do capital a nível global (afinal, não há espaços no planeta terra em que a as relações sociais capitalistas ainda não tenham se espraiado).

Mas tudo isso precisa ser visto como um processo social que é. Como uma prática social que, não pode ser considerada como fascismo apenas quando alcança a institucionalidade estatal. Pensar no fascismo hoje, apenas do ponto de vista da “restrição das liberdades associada à inflexão do regime político” é correr o risco de uma análise anacrônica e politicista. Muitos analistas hoje evitam o uso do termo fascismo, com o medo - legítimo por certo - de errar na caracterização do fenômeno. Mas esses mesmos analistas esquecem que é a partir da persecução o entendimento da lógica do capital que não se erra na análise.

Por fim, pensar o fascismo como prática social em processo, não é pensar apenas do ponto de vista da dominação, mas também da resistência. O ideal é pensar desde a relação de antagonismo social. Se hoje o fascismo avança, este avanço se faz não só pela policrise, mas pelo avanço gradual e tensionado ‘desde baixo’ (pela igualdade de direitos das mulheres, pelo reconhecimento legal do amor homoafetivo, pela existência civil da população trans, pela igualdade e reparação histórica do povo negro, pelo direito à terra dos povos originários e demais subalternos de todo o mundo). Em um mundo onde não existe mais a ofensiva bélica do bloco socialista ou um movimento trabalhador altamente organizado, as novas “ameaças” ao modo de produção capitalista são as “expansões de liberdades” que não cabem na democracia burguesa, e que, para manutenção do capitalismo, sua democracia liberal precisa fazer a incorporação tutelada e limitadas dessas lutas.

Assim sendo, se o fascismo é uma relação social, ela, enquanto relação, é a mesma, mas com diferentes roupagens: velha (fascismo) ou nova (neofascismo). Por isso, como relação social de raiva/ódio de ambas as partes do antagonismo, partem desde os que estão cansados das reformas sociais como, também, daqueles que se veem prejudicados pelo retrocesso destas mesmas reformas. Já que assim é, caso a classe trabalhadora deseje enfrentar à sério os novos fascismos, a crítica aos ‘novos progressismos’ e uma busca urgente por saídas socializantes torna-se um tema incontornável na conjuntura atual.

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Author notes

Todos os coautores são igualmente responsáveis pela conceituação, investigação, metodologia e escrita


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