Resenhas

Branquitude: na centralidade das pesquisas sobre antirracismo

Mayara Pereira Amorim
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
André Grandis Guimarães
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
Carolina Bouchardet Dias
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
Raoni Vieira Gomes
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Branquitude: na centralidade das pesquisas sobre antirracismo

Revista Direito e Práxis, vol. 16, no. 1, e86336, 2025

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Schucman Lia Vainer. Branquitude: diálogos sobre racismo e antirracismo. 2023. São Paulo. Fósforo

Received: 02 August 2024

Accepted: 10 August 2024

A obra Branquitude: diálogos sobre racismo e antirracismo consiste em uma coletânea de debates coordenada pelo Instituto Ibirapitanga em 2020, publicada no ano de 2023. Os diálogos são realizados por pesquisadoras e pesquisadores, em sua maioria brasileiros, implicados com a teoria e a prática do antirracismo, inquirindo sobre os benefícios e as vantagens auferidas pela branquitude. Para tanto, a obra é focada nas dinâmicas de poder contidas na supremacia branca para compreender o papel das pessoas brancas na produção e manutenção do racismo. Analisar a branquitude nos estudos de raça significa considerar o legado dos brancos, enquanto brancos, da escravização. Nesse sentido, por meio da consideração de que, se o racismo é um sistema forjado por brancos, importa também explorar o lugar que esses ocupam graças à pilhagem e à violência contra povos negros e investigar como atuam na manutenção desse sistema. Parte-se da conceitualização de branquitude, aqui compreendida como ideologia que organiza hierarquicamente as pessoas a partir da raça, atribuindo às pessoas negras um lugar subalternizado na estrutura social.

O prefácio da obra é realizado por Cida Bento, que delimita quais são os termos postos e os desdobramentos políticos e epistemológicos ao se pesquisar sobre branquitude. Isso se expressa na escolha investigativa de “focalizar a violência racial incrustada nas instituições a partir de um prisma relacional” (Bento, 2022, p. 07). Neste contexto, coloca na centralidade do debate os papéis que pessoas brancas têm na luta antirracista, tendo como fundo teórico o pacto narcísico da branquitude.

O primeiro texto, intitulado de O branco na luta antirracista: limites e possibilidades, aborda aspectos psicossociais dos brancos, estudados por Cida Bento e Robin DiAngelo, que ajudam a legitimar e a manter hierarquias raciais. Os conceitos centrais para a discussão são o pacto narcísico da branquitude (Cida Bento) e fragilidade branca (Robin DiAngelo), mediados por Thiago Amparo. A fragilidade branca se refere a situações nas quais pessoas brancas, quando inseridas em debates raciais, reagem de forma emocional em um tipo de autodefesa que as impedem de desafiarem suas próprias posições sociais de privilégio e de conforto. Diversos fatores sustentam a fragilidade branca, como a ideologia do individualismo, da meritocracia, do binarismo bem versus mal, e a superioridade internalizada por brancos desde a infância. O pacto narcísico da branquitude se refere a um tipo de pacto entre os brancos de se defenderem a si mesmos e suas posições privilegiadas dentro de uma sociedade fundada sobre a divisão racial. Esse conceito é cunhado, principalmente, tendo em vista dinâmicas dentro de corporações e de instituições públicas, e chama a atenção para como a preferência silenciosa e profundamente ideológica por iguais trabalha em prol da manutenção de hierarquias raciais. Um traço importante do pacto narcísico é que ele também é um pacto de morte. Na medida em que se trata de um pacto que privilegia e fortalece iguais (os brancos), visa à uniformização estéril, que não admite a criação do novo e reforça significados sociais que sustentam a exclusão e a exterminação de corpos negros. Apesar de pessoas brancas, via de regra, não pensarem em si mesmas como seres racializados, a branquitude só existe porque o racismo existe. Em outras palavras, a identificação do branco como branco só existe por conta da construção social da raça negra como subalterna. Pessoas brancas, ao racializarem o outro, mas não a si mesmas, avocam para si uma posição de objetividade, uma posição epistemológica não situada socialmente e desvinculada de condições materiais e históricas. Partindo dessa reflexão, uma das propostas metodológicas de DiAngelo, como acadêmica, é a de ser “menos branca” nas maneiras pelas quais ser branco é opressivo, revendo criticamente e desconstruindo sua forma de socialização como pessoa branca - como as tendências a um olhar a-histórico, à ignorância racial, à apatia diante de pautas negras e ao silêncio branco em discussões sobre raça. Um dos conceitos tangenciados por DiAngelo é o de “inocência racial”, que designaria uma postura de pessoas brancas que, não se vendo como racializadas, mas apenas ao outro, assumem que não sabem nada sobre raça e recorrem às pessoas socialmente racializadas para serem educadas. Trata-se de uma postura colonial, que relega àqueles subalternizados pela história e pelo contrato racial1 (Mills, 2023, p. 36) a função de explicar a própria realidade criada pelos brancos. Há, por outro lado, pessoas brancas com algum letramento racial. O problema surge quando elas, sob uma espécie de máscara de branco progressista, entendem seu processo de antirracismo como findo. Neste sentido, Cida Bento menciona que o reconhecimento da própria condição como beneficiário da supremacia branca é apenas o primeiro passo para uma prática antirracista pelos brancos. Trata-se de olhar para os próprios privilégios e constatá-los como tais. Para além disso, no entanto, a contribuição do branco, na concepção de Bento, deve vir do lugar onde estão: das instituições, das posições de liderança e de tomada de decisões. A partir destas funções privilegiadas, pessoas brancas podem ser antirracistas na prática, olhando criticamente para o pacto narcísico da branquitude e desfazendo tendências de privilegiar preferencialmente seus iguais - os brancos. Cida Bento entende que a branquitude como categoria não proporciona maior conforto aos brancos para discutirem sua subjetividade dentro do sistema racial de poder. Antes, eles foram (e são) continuamente pressionados pelo movimento negro, que resiste, ocupa, ressignifica e complexifica o debate. Ainda sobre a possibilidade de práticas antirracistas por pessoas brancas e movimentos de alianças com os negros, DiAngelo traz mais um conceito para analisar aspectos psicossociais dos brancos que não acrescentam à luta antirracista: a cultura da agradabilidade, que se refere à tendência que brancos têm de acreditar que ser agradável, amigável, simpático e tratar bem pessoas negras significa ser antirracista. Essa cultura, no entanto, protege o racismo na medida em que parte de uma pressuposição de que pessoas racistas não podem ser agradáveis, ou, ao contrário, que pessoas agradáveis não podem ser racistas, em suma, “pressupõe-se que esse desconforto ou conflito é um sinal de problema” (DiAngelo, 2023, p. 30). A partir dessas fundamentações apontadas no diálogo analisado, assume-se a complexidade do racismo, compreendendo-o como um processo diferido no tempo e sem termo final que requer crítica constante e atenta às estruturas de poder e de privilégios. Por isso, nomear a branquitude e discuti-la é essencial para romper com o conforto branco - um rompimento necessário à criação, seja de novas subjetividades, novos significados sociais, novas dinâmicas interpessoais, novas alianças políticas e novas concepções de cidadania e democracia.

No texto posterior, denominado de Alianças possíveis e impossíveis entre brancos e negros para equidade racial, as autoras Sueli Carneiro, Lia Vainer Schucman e Ana Paula Lisboa colocam como perguntas condutoras: “quem é o branco brasileiro? O que é esse conceito de branquitude especialmente pensando no Brasil?” (Carneiro, Lisboa e Schucman, 2023, p. 43). Neste sentido, Sueli Carneiro aponta, com base em Charles Mills como referencial teórico, a categoria analítica de contrato racial. O contrato racial em vigor, constantemente reatualizado “define o status de brancos e não brancos, e o status de não branco será definido pelo sistema de valores e de instituições criado pela branquitude para o interstício e para a legitimação de sua hegemonia” (Carneiro, 2023, p. 44). Alerta que, a despeito da não nomeação do contrato racial, isso por si só não implica na sua ausência. Essa cultura do silêncio que tangencia as hierarquias raciais é uma estratégia eficaz que inibe ações de combate ao racismo. Por isso, Sueli aponta para a necessidade de uma postura prática das pessoas brancas, pois “se todas pessoas brancas são beneficiadas deste contrato racial”, ao contrário, nem todas as pessoas brancas são signatárias (Carneiro, 2023, p. 44). Logo, é justamente com essas pessoas brancas que reconhecem os privilégios resultantes desse contrato racial, mas que se recusam assiná-lo, que há a possibilidade de se realizar alianças estratégicas entre pessoas brancas e negras.

Neste aspecto, o termo branquitude surge como uma chave analítica que imprime potência para a compreensão dessas estratégias. Em termos sucintos, branquitude apresenta-se como uma “posição de poder, de privilégio, ocupada por aqueles que são considerados brancos” (Schucman, 2023, p. 45), conforme o contexto analisado. No contexto brasileiro, isso se dá eminentemente pelo fenótipo, amalgamado à distribuição desses benefícios (herança + distribuição = origem*). Em suma, “o branco brasileiro é esse branco que se beneficia, que distribui entre si e que faz uma definição do outro pelo corpo e fenótipo” (Schucman, 2023, p. 47). Apresentados os aportes iniciais dos termos do debate, questiona-se em seguida, se há no Brasil um movimento antirracistas branco2. Em resposta, Schucman afirma, categoricamente: “não há um movimento antirracista de brancos porque os brancos não assumem que se constroem em lugar de racismo e também não querem admitir que o lugar que nós, brancos alcançamos na sociedade não tem a ver com mérito, mas com pertença racial” (Schucman, 2023, p. 49, destaques nossos). Por isso, Lia Schucman alerta e questiona se a branquitude está disposta a abrir mão desse lugar vantajoso? Isso tendo em vista que não há denúncia sem prática e ações concretas, a iniciar pela produção e distribuição dos saberes, compreendendo que neutralidade e objetividade são artifícios utilizados por uma matriz eurocêntrica, que despreza e objetifica conhecimentos, especialmente de mulheres negras. Trata-se de compreender também os papéis dos estereótipos. Esses se relacionam com uma concepção prévia sobre determinada pessoa ou grupo, colocados em determinados lugares sociais (Viveros Vigoya, 2018, p. 104), por exemplo, com a sistemática construção imagética da mulher negra em lugares subalternizados. Sueli Carneiro propõe uma agenda para o branco que quer ser um antirracista ativo (Carneiro, 2023, p. 50), iniciada pela postura, tal como “conversar, discutir, confrontar, problematizar os seus” (Carneiro, 2023, p. 51), promover políticas de incentivo e de conservação de memória, combater radicalmente o neofascismo, mas, sobretudo, destaca a atuação jurídica neste contrato racial e racializado, em desafiar a hegemonia da branquitude e seus privilégios. A partir dessa fundamentação, há implicações sobre o rebaixamento da humanidade tanto de pessoas negras quanto de pessoas brancas (Carneiro, 2023, p. 54), em uma lógica de desenvolvimento recessivo3. Esse lugar pode ser rompido por meio da consciência racial, entretanto qualificada pela convivência sem “o lugar de superioridade hierárquica, na qual a branquitude é forjada” (Schucman, 2023, p. 58, destaques nossos). Logo, a construção dessa agenda possui desdobramentos na educação antirracista, abrangendo que a estrutura é racista, por isso, exige-se o alargamento dos lugares dos saberes nos seus diversos aspectos. Dessa forma, coloca em relevância os processos políticos que podem ser construídos no sentido da mudança dessa estrutura racista (Carneiro, 2023, p. 60).

O artigo O Protagonismo Negro no desvelar da branquitude, de autoria de Deivison Faustino, Lourenço Cardoso e Luciana Brito, tem como objetivo principal investigar o protagonismo do negro para a compreensão da branquitude. Para tanto, são mobilizados referenciais teóricos como Du Bois, Fanon, Steve Biko, Guerreiro Ramos, Cida Bento e Lia Schucman. Nesta proposta, a partir da leitura fanoniana, são três os argumentos principais do texto: (i) a branquitude é filha do colonialismo; (ii) o negro é um filho bastardo do colonialismo e; (iii) a dimensão relacional e não simétrica. Assim sendo, trabalha-se na chave de leitura a partir da compreensão entre sujeito (branco) e objeto (negro) (Faustino, 2023, p. 73). Essa chave possibilita compreender que a construção da humanidade é forjada no eurocentrismo. Por isso, o branco que cria o próprio negro, mas é o negro que cria a negritude. Essa, por sua vez, “abala, coloca desafios políticos para os processos de hierarquia e privilégios que sustentam a branquitude” (Faustino, 2023, p. 75). Ou seja, a negritude se constitui enquanto uma “reinvenção do negro sobre a ideia do negro e de negro na diáspora” (Cardoso, 2023, p. 77, destaques nossos). Dessa forma, essa capacidade de imaginar outros lugares, afastando-se de uma identidade fixa e de subordinação, aponta-se como o horizonte para o afrofuturismo, com a finalidade de manifestar outras possibilidades de vida, de existência, de conceituação de sujeito de direito, de democracia econômica, de produção de conhecimento etc., a fim de romper com a lógica colonial.

No texto O papel da comunicação no antirracismo, o diálogo entre Tiago Rogero e Liv Sovik aponta que “os meios de comunicação produzem, legitimam e perpetuam os estereótipos raciais” (Rogero; Sovik, 2023, p. 106). Para além da perspectiva denunciante, afirma-se no texto a possibilidade de se utilizar dessas formas comunicacionais para a promoção do antirracismo. Esse capítulo aborda duas questões fundamentais para a formação da sociedade brasileira, quais sejam, mestiçagem e democracia racial. A mestiçagem é usada para esconder os privilégios da branquitude para mascarar as hierarquias raciais (Sovik, 2023, p. 110 - 114), ao passo que a democracia racial transmite um convívio pacífico entre as raças (González, 1984, p. 229). No que concerne às formas de ser antirracista na comunicação são destacadas as fontes para aprender, em razão dos diversos materiais disponíveis, sobretudo, no meio digital. Além disso, evidencia-se a capacidade da população negra produzir beleza. Neste âmbito, entende-se “o antirracismo não [como] uma nova ideologia na qual você se coloca, ele é um novo acesso à realidade” (Sovik, 2023, p. 118).

No texto, com a mediação de Bianca Santana e intitulado O que podem os indivíduos diante da estrutura?, Jurema Werneck e Thula Pires respondem às questões cruciais relacionadas às desigualdades raciais como um “fenômeno estrutural e estruturante das dinâmicas sociais” (Werneck, Pires e Santana, 2023, p. 120). Jurema inicia afirmando que a branquitude é um sistema que dá corpo e que movimenta esse outro sistema, que é o racismo. Isto se comunica com a epistemologia invertida trazida por Charles Mills, pois branquitude não é só ter a pele clara, é se beneficiar do conjunto de violências, exclusões e aniquilamentos que produzem privilégio. O indivíduo diante da estrutura pode denunciá-la, romper com ela, se insurgir contra ela. Para tanto, exige-se da branquitude a compreensão de seus privilégios e que esses carregam o aniquilamento de outras populações. Também é necessário à branquitude olhar para a negritude de outra forma, reconhecendo o protagonismo do negro, tendo em vista que o racismo produz um tipo de incapacidade de as pessoas assumirem as suas responsabilidades com seus privilégios (Werneck, 2023, p. 121-125). Em uma perspectiva dialógica com o campo jurídico, Thula Pires ressalta as relações políticas que este campo tem, notadamente, na manutenção da estrutura de injustiça perpetrada pelos “operadores do direito” e condescendência de privilégios gozados pela branquitude. Por outro lado, informada por uma leitura fanoniana, Thula aponta que “na zona do não ser se está lutando pela sobrevivência, ao passo que o branco, em seu imobilismo, em sua incapacidade, não está botando na roda muita coisa, como o negro, que está sempre lidando, jogando, com a própria vida” (Pires, 2023, p. 127-128). Ou seja, aponta-se o protagonismo da população negra para inscrever outros marcos civilizatórios. Por isso, não há espaço para imobilidade (Pires, 2023, p. 129, grifos nossos), atribuindo a cada grupo sua responsabilidade. Para compreender a juridicidade, são analisadas, como formas exemplificativas, a política criminal e as relações de trabalho doméstico no Brasil. No trabalho doméstico a hierarquização e a submissão da mulher negra ficam evidenciadas; já no sistema prisional, há a cumplicidade com um sistema brutal, demonstrando que sua existência se trata de uma escolha política. Portanto, como ponto de convergência desse diálogo, Jurema Werneck e Thula Pires apontam sobre ação, responsabilidades e chamamento ético, sobretudo, para “ter olhos de ver” (Werneck, 2023, p. 150) e lutar. (Werneck, 2023, p. 120- 150).

Por fim, o debate entre Winnie Bueno e Ronilso Pacheco, com a mediação de Lia Vainer Schucman, resultou no texto intitulado Branquitude e fronteiras do antirracismo. De pronto, Winnie Bueno destaca a luta do movimento negro e de sua denúncia consistente do processo de desumanização decorrente da brutalidade da violência racista, apontando não ser mais possível falar de direitos humanos abstratamente e sem envolver em sua direção pessoas negras. Por outro lado, Winnie salienta o que denomina por pornografia do trauma negro, a partir da repetição das imagens da brutalidade da violência sobre corpos negros - a exemplo do assassinato de George Floyd -, que pode funcionar não somente como denúncia, mas sim resultar no fortalecimento do processo de recrudescimento da vitimização da população negra (Bueno, 2023, p. 153-154). Nesse contexto de escalada do genocídio antinegro, Bueno localiza o debate sobre negritude na compreensão de que a antinegritude ocupa papel central na organização dos sistemas de poder, excluindo-se as vidas pretas do que se entende por cidadania e por humanidade. É nesse âmbito que, segundo Bueno, se aloca a característica fundante do Brasil, onde vidas pretas se inserem sob a égide do terror racial, contra o qual se exige resistência, revolta e insurgência que não se limitem à população negra. Contudo, Winnie Bueno considera que este não seria o caminho para a instauração de uma crise ética contra o terror racial, uma vez que no Brasil essas possibilidades de insurgência, de revolta e de rebelião acabam sendo substituídas pela persistência - a partir de conchavos e até mesmo de trocas monetárias -, não havendo, portanto, um combate frontal e direto sobre as desigualdades estruturais e históricas das quais decorre a exclusão - inclusive jurídica e social - e o genocídio antinegro, com base nos quais o “mundo branco” sustenta seu funcionamento (Bueno, 2023, p. 155). Quanto à exclusão jurídica, valendo-se do conceito de Patrícia Hill Collins sobre imagens de controle, Winnie destaca que a exclusão por meio de mecanismo de criminalização pode ocorrer de forma indireta, produzindo normalização, naturalização e normativização da violência contra o negro numa ideologia de dominação na qual as imagens constituem ferramenta de poder pela manipulação das ideias acerca da condição da população negra. Nesse sentido, aponta-se a existência de um acordo tácito entre a branquitude e o poder, do qual decorre o silenciamento, a anuência ou mesmo implica em alianças performativas, que dissimulam dispor desses privilégios e gerar desresponsabilização do sujeito. Assim, considerando-se o racismo como um sistema de dominação dinâmico, destaca-se a necessidade da revolta para destruição das estruturas racistas, patriarcais e cis-heteronormativas para produção de mudanças significativas (Bueno, 2023, p. 157 - 158). Ocorre que, como observa Ronilso Pacheco, a estrutura racial brasileira é dotada de uma organização que neutraliza e sabota as possibilidades de reação - e, portanto, de revolta e de insurgência, ao passo que Winnie Bueno reforça a necessidade de um pensar coletivo, como sociedade, no qual se compreenda que a situação da população negra brasileira é a situação do Brasil.

Ao refletir sobre a noção de fronteiras do antirracismo, Ronilso Pacheco considera que, na verdade, as fronteiras existentes são as da branquitude ao antirracismo. Isso considerando que a branquitude se estabelece por meio da construção das fronteiras racial e religiosa - de uma religiosidade cristã ocidental, europeizada, arraigada por uma teologia colonial e escravizadora - para manutenção de sua hegemonia e de seu poder, bem como, justamente, pela consolidação de impossibilidades de acesso à centralidade. São as pessoas brancas, alocadas nos lugares de poder e do outro lado da fronteira da branquitude, que pensam as soluções para a comunidade negra e que dão a palavra final, a despeito das lutas. Diferentemente, o mundo do outro lado da fronteira da branquitude é mantido à parte das possibilidades de resistência, experimentando a neutralização e a invisibilização das lutas da comunidade negra pela grande mídia (Pacheco, 2023, p. 163-165). Neste passo, a ausência de mudanças na estrutura decorre, precisamente, da manutenção do projeto da branquitude que é, segundo Lia Vainer Schucman, a consolidação do racismo - motivo pelo qual a branquitude não pode ser antirracista. Como a estrutura é composta de instituições, integradas por indivíduos, reflete-se sobre o redirecionamento da luta antirracista para a atuação das instituições de poder e não se limitando à atitude dos indivíduos. Cabe observar, porém, que a própria noção de estrutura também pode ser utilizada para gerar desresponsabilização e para amortizar a insurgência e a revolta da população negra, com uma espécie de inevitabilidade decorrente de se tratar de uma questão estrutural. A luta antirracista e as mudanças sociais com alteração de perspectiva em relação ao racismo demandam o engajamento e a colaboração das instituições públicas e privadas, o que somente é possível a partir de uma profunda releitura - com autocrítica e reconhecimento - do papel institucional frente ao rumo racista mortal em que se encontra o Brasil para a população negra, para a qual a morte se apresenta naturalizada e a violência normalizada em condições de precariedade da vida (Bueno, Pacheco, Schucman, 2023, p. 165-182). A partir do texto, depreende-se, pois, que a branquitude não pode ser antirracista, justamente por se sustentar em fronteiras que consubstanciam no racismo - enquanto exclusão e eliminação de corpos negros dos espaços de poder - cuja centralidade das instituições é ocupada pelos brancos. Em face disso, a noção de que o racismo é estrutural ao sistema de poder em que se funda a branquitude não pode, ao mesmo tempo, ensejar numa espécie de inerência, de imutabilidade ou de inevitabilidade. Pelo contrário, clama pela responsabilização ativa não somente dos brancos, mas também das instituições.

No posfácio da obra, intitulado Afinal, para que estudamos branquitude?, Lia Vainer reflete que o estudo crítico da branquitude deve ser articulado com o antirracismo, possibilitando-se, concretamente, a desconstrução das desigualdades por intermédio da compreensão da dominação e, logo, do racismo, a partir do questionamento da branquitude e das pessoas brancas que se beneficiam desses processos. Partindo desse pressuposto, destaca-se a importância de compreender as fronteiras constituídas e mantidas - por ideologias e práticas individuais e institucionais - pela branquitude para assegurar sua ocupação dos lugares de poder e de privilégio racial na hierarquia social. Para tanto, Lia ressalta a necessidade de desvelar os mecanismos, as crenças, os discursos e as atitudes das pessoas brancas e das instituições que são produzidas e reproduzidas para manter os privilégios na estrutura social e afastar a responsabilidade pela precariedade que fulmina corpos e vidas negras em razão da perpetuação do racismo (Schucman, 2023, p. 183). Tem-se, pois, como ponto de partida, a identificação e o reconhecimento dos privilégios decorrentes da branquitude pelos brancos enquanto atores sociais que se beneficiam dessa estrutura para viabilizar o passo seguinte. Esse passo relaciona-se com a mobilização, na qual o reconhecimento do racismo estrutural e sistêmico se faz essencial à solidez e à concretude das ações e da intervenção nas instituições. Ademais disso, tem-se a necessidade de desconstrução do eurocentrismo e do pacto da branquitude que excluem a população negra no âmbito das instituições que estruturam a sociedade, afastando-a dos espaços de poder e de decisão, o que se baseia, inclusive, na própria negação do problema racial (Schucman, 2023, p. 184-185). Nesse sentido, inadiável a construção de oportunidades mais equânimes - no que se inserem as ações afirmativas -, para incrementar não somente a representatividade negra, mas sua participação nos espaços de poder, para não mais depender das concessões e de uma falsa responsabilidade por parte daqueles que se alocam do outro lado da fronteira da branquitude - os brancos -, enquanto lugar de poder, produto e resultado da história de dominação colonial brasileira. Desse modo, o antirracismo se apresenta como princípio ético indispensável à desconstrução dos privilégios e das desigualdades que beneficiam as pessoas brancas e a branquitude para possibilitar uma verdadeira construção democrática brasileira (Schucman, 2023, p. 186).

Referências

ALMEIDA, S. L. de., Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BENTO, C.. O Pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

GONZALEZ, L.. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anuário de Antropologia, Política e Sociologia (ANPOCS), p. 223-244, 1984.

MBEMBE, A.. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1, 2018.

MILLS, C. W. O contrato racial: edição comemorativa de 25 anos. Tradução Teófilo Reis e Bruno Santos. 1ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2023.

VIVEROS VIGOYA, M.. As cores da masculinidade: experiências interseccionais e práticas de poder na Nossa América. Tradução: Alysson de Andrade Perez. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2018.

Notes

1 Charles Mills explica o contrato racial como uma “ponte conceitual entre duas áreas que estão segregadas demais uma da outra: por um lado, o mundo das correntes dominantes (isto é, brancas) da ética e da filosofia política (...) e, por outro lado, o mundo do pensamento político nativo americano, afro americano, terceiro e quarto mundista (...)” (Mills, 2023, p. 36).
2 Pergunta contextualizada em razão das manifestações pelo assassinato de George Floyd nos Estados Unidos.
3 Du Bois estuda, a partir do contexto norte-americano, essas dinâmicas que rebaixam a humanidade de forma geral, conceituadas como “salário público e psicológico. Para um maior aprofundamento, consultar Almeida, 2019, p. 114.

Author notes

Os autores contribuíram igualmente para a redação da resenha.
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