Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Buscar
Fuente


Aspectos Democráticos da Lei de Incentivo à Cultura e sua relação com a promoção do Pluralismo Cultural
Democratic Aspects of the Culture Incentive Law and its relation to the promotion of Cultural Pluralism
Aspectos Democráticos de la Ley de Incentivo a la Cultura y su relación con la promoción del Pluralismo Cultural
Administração Pública e Gestão Social, vol. 15, núm. 3, 2023
Universidade Federal de Viçosa

Artigos



Recepción: 08 Mayo 2022

Aprobación: 02 Febrero 2023

Publicación: 24 Agosto 2023

Resumo: Objetivo da Pesquisa: Verificar se a Lei de Incentivo à Cultura (LIC) contribui para a democratização do acesso e da difusão de diferentes manifestações culturais, promovendo o pluralismo cultural na distribuição de recursos entre produções e proponentes culturais.

Enquadramento Teórico: O pano de fundo teórico diz respeito às relações entre Democracia e Cultura, além de elementos do funcionamento da LIC que sustentaram a análise da lei em termos de promoção do pluralismo cultural.

Metodologia: Partiu-se da abordagem qualitativa e quantitativa, para descrever a distribuição de recursos realizada pela LIC, utilizando-se instrumentos de análise documental e estatística descritiva.

Resultados: Desvelou-se a existência de uma concentração maciça de recursos em determinadas áreas e proponentes culturais, com destaque para as áreas de artes cênicas e música. Outro aspecto significativo refere-se à profissionalização que o mecanismo demanda, pois apesar de qualquer indivíduo – pessoa física ou jurídica – poder se tornar proponente cultural, a maior parte dos recursos é direcionada para pessoas jurídicas. Originalidade: Análise da LIC pela lente democrática, num levantamento inédito até o presente momento, com enfoque em compreender a capacidade do principal instrumento de financiamento à cultura no Brasil em termos de promoção do pluralismo cultural.

Contribuições Teóricas e Práticas: Realizou-se uma análise da LIC pela perspectiva democrática, analisando os resultados da lei e a promoção de pluralismo cultural. Além disso, o artigo dá transparência no direcionamento de recursos e revela concentrações em determinadas áreas e atores culturais.

Palavras-chave: Incentivo Fiscal à Cultura, Cultura, Políticas Culturais, Democracia, Financiamento à Cultura.

Abstract: Research Objective: To examine whether the Culture Incentive Law (LIC) contributes to the democratization of access and diffusion of different cultural manifestations, thus fostering cultural pluralism in the distribution of resources among cultural productions and proponents.

Theoretical Framework: The theoretical background used here concerns to relations between Democracy and Culture, besides elements of the LIC operation taken as basis for the analysis of the law in terms of cultural pluralism promotion.

Methodology: Starting from a qualitative and quantitative approach, it was described the resource distribution carried out by the LIC, through the use of document analysis and descriptive statistics instruments.

Results: It was revealed the existence of a massive concentration of resources in certain areas and cultural proponents, with emphasis on the areas of performing arts and music. Another significant aspect refers to the professionalization required by the mechanism. In spite of any person - individual or legal entity - can become a cultural proponent, most of the resources are directed to legal entities.

Originality: This study analyzes the LIC through a democratic lens, in an unprecedented survey to date, with a focus on understanding the capacity of the main instrument for financing culture in Brazil in terms of promoting cultural pluralism.

Theoretical /and Practical Contributions: It was carried out an analysis of the LIC from a democratic perspective, by examining the results of the law and the promotion of cultural pluralism. In addition, the article provides transparency in the direction of resources and reveals concentrations in certain areas and cultural actors.

Keywords: Cultural Tax Incentives, Culture, Cultural Policies, Democracy, Culture Funding.

Resumen: Objetivo de la investigación: Verificar si la Ley de Incentivo a la Cultura (LIC) contribuye para la democratización del acceso y de la difusión de diferentes manifestaciones culturales, promoviendo el pluralismo cultural en la distribución de recursos entre las producciones y proponentes culturales.

Marco teórico: la perspectiva teórica utilizada se refiere a las relaciones entre Democracia y Cultura y elementos de funcionamiento de la LIC que sustentan el análisis de la ley en términos de la promoción del pluralismo cultural.

Metodología: han empezado con el abordaje cualitativo y cuantitativo para describir la distribución de recursos realizadas por la LIC, utilizando instrumentos de análisis documental y estadística descriptiva.

Resultados: Han revelado la existencia de una concentración masiva de recursos en determinadas área y proponentes culturales, con destaque para las áreas de artes escénicas y música. Otro aspecto significativo se refiere a la profesionalización que el mecanismo demanda. Mientras cualquier individuo – persona física o jurídica – puede volverse en proponente cultural, la mayoría de los recursos es direccionada para personas jurídicas.

Originalidad: El análisis de la LIC con la lente democrática, en un levantamiento inédito hasta el presente momento, con enfoque en comprender la capacidad del principal instrumento de financiamiento a la cultural en Brasil en términos de promoción del pluralismo cultural.

Aportaciones teóricas y prácticas: Han realizado un análisis de la LIC por la perspectiva democrática, analizando los resultados de la ley y la promoción de pluralismo cultural. Además, el artículo da transparencia en el direccionamiento de recursos y revela concentraciones en determinadas áreas y actores culturales.

Palabras clave: Incentivo Fiscal a la Cultura, Cultura, Políticas Culturales, Democracia, Financiamiento a la Cultura.

1 Introdução

A cultura, enquanto conjunto de elementos materiais e imateriais que determinam os significados das interações humanas (Knopp & Darbilly, 2007), possui relação com a democracia, na medida em que os aspectos culturais podem influenciar no êxito de regimes democráticos. A democracia, nesse contexto, compreendida como sistema de governo onde a população participa das decisões coletivas, mediante voto ou outras formas (Tavares, 2018; Netto, 2015), possui entre seus ideais a garantia de fornecer acesso ao conhecimento e comunicação, de modo a embasar a participação dos indivíduos, sendo o acesso à arte e à cultura um valor democrático (Mannheim, 1974).

No Brasil, os principais mecanismos de financiamento do setor cultural são as leis de incentivo à cultura, que atuam pela dedução de parte dos impostos de pessoas físicas e jurídicas que patrocinem projetos culturais aprovados por órgãos governamentais. A partir destas leis, que têm precedentes em âmbito federal, estadual e municipal, a decisão sobre quais produções culturais serão viabilizadas é passada para o meio empresarial, cabendo ao Estado a função de intermediar e regular a dinâmica entre os atores que atuam no mecanismo. A Lei 8.313 de 1991, Lei de Incentivo à Cultura (LIC), conhecida como Lei Rouanet, atua a partir de deduções fiscais no Imposto de Renda (IR), representando a principal fonte de financiamento para o setor cultural no Brasil, e tem como premissa que os projetos culturais promovam a democratização de acesso dos produtos culturais e acessibilidade para pessoas com deficiência ou com dificuldades de locomoção. Salienta-se que a democratização consiste no conjunto de esforços realizados para tornar mais democrático o acesso aos produtos culturais.

Uma questão que gera discussões sobre essa lei é o fato de recair sobre o meio empresarial a escolha sobre qual produção cultural incentivar, uma vez que por estas pleitearem retorno de imagem e por não haver exigências alinhadas às necessidades e demandas da população que pesem na decisão de direcionamento de incentivos, as empresas acabam optando por incentivar produções com maior potencial de retorno de imagem e situadas em locais estratégicos, como uma alternativa instrumental de marketing cultural (Miszputen, 2014), podendo deixar sem incentivos projetos culturais que não se encaixem nesse perfil mercadológico.

Nesse aspecto, é interessante compreender as alterações nos resultados da lei ao longo do tempo sobre o panorama de distribuição de recursos através desse mecanismo, no intuito de investigar se há promoção do pluralismo cultural através da LIC, no cumprimento de sua função democrática. O pluralismo cultural pode ser compreendido como a diversidade de visões e razões que compõe os processos culturais, de modo a compreender a cultura como várias culturas, que seriam compostas por variadas racionalidades, com constantes embates entre si, mas com enfoque em gerar sintonia entre as diferentes culturas (Lopes, 1999).

O pluralismo cultural é intrinsecamente relacionado à democracia, na medida em que o ambiente democrático permite que multiplicidades e embates racionais ocorram, e para que o pluralismo cultural seja garantido é necessário que o processo argumentativo existente no ambiente seja efetivo, de modo que a população tenha o direito de participar e os meios necessários para exercitar esse direito (Lopes, 1999). A possibilidade que pessoas físicas ou jurídicas têm de, através da LIC, proporem projetos culturais, bem como direcionarem uma parcela dos impostos para apoiar produções culturais, representam uma forma democrática de participação no cenário cultural do país.

Nessa linha, o alcance do pluralismo cultural através da LIC se daria numa divisão de recursos que compreendesse os vários tipos de produção cultural e produtores culturais, localizados em vários pontos geográficos do país, de modo a facilitar o acesso da população a essas produções. Para tanto, o presente artigo buscou verificar se a LIC contribui para a democratização do acesso e da difusão de diferentes manifestações culturais, promovendo o pluralismo cultural na distribuição de recursos entre produções e proponentes culturais.

A literatura sobre este tema se concentra em análises: da efetividade da LIC por seus projetos (Piccoli, Ferreira & Siqueira, 2020), da distribuição de recursos em proponentes e incentivadores (Costa, Medeiros & Bucco, 2017; Varella, Santos & Najberg, 2020), e em áreas culturais específicas (Bem, Waismann & Araujo, 2017; Ficheira & Hollanda, 2018). Este artigo se diferencia dos estudos anteriores ao apresentar a distribuição de recursos em todas as áreas culturais compreendidas pela lei e os principais captadores de recursos por área cultural. Nesse sentido, o artigo traz como contribuições, em termos práticos e acadêmicos, a discussão dos resultados da LIC, dando luz a problemáticas existentes no funcionamento do mecanismo. Em termos práticos, o artigo apresenta o direcionamento e as concentrações de recursos em determinadas áreas e atores culturais. Acerca das contribuições acadêmicas, este artigo realiza uma análise inédita na literatura em termos das áreas atendidas pelo mecanismo de financiamento à cultura, analisando a LIC pela lente democrática para compreendê-la em termos de promoção do pluralismo cultural.

2 Democracia e Cultura

A democracia é um regime político pautado na participação da população nas decisões do governo, de forma direta ou indireta, seja na proposição de leis ou na escolha de representantes através dos votos. O conceito de democracia surgiu na Grécia no século VI a. c., sendo a palavra derivada de demokratia, onde demos significa povo e kratos vem de governo, ou seja, trata-se de uma forma de governo exercida pelo povo, que participa nas decisões coletivas (Gonçalves, 1996; Tavares, 2018).

Na sua forma contemporânea, o conceito de democracia possui infinitas compreensões, abrangendo questões relacionadas a civilização, lei, ética e política (Nancy, 2012). Sua compreensão gira principalmente em torno de dois aspectos, enquanto um elemento relacionado a um corpus político, que se orienta pela sua relação com o direito, e pela forma de governo, orientada por sua característica administrativa (Agamben, 2012). Alguns princípios passaram a estar relacionados à democracia como forma de governo, tais quais a cidadania, a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade privada, além da orientação no Primado da Lei, que vislumbra nortear e possibilitar o convívio em sociedade. Determinados elementos são considerados na distinção dos estados democráticos e outros regimes, como a representação política, a competição eleitoral e a participação popular nas eleições pelo sufrágio universal (Netto, 2015).

Ademais, o conceito contemporâneo de democracia relaciona-se à ideia de democracia de massa, que refere-se a um sistema político de larga escala intrinsecamente sustentado na formação de direitos para ordenação das sociedades modernas (Lacerda & Gomes, 2013). Nesse aspecto, o Estado Democrático de Direito tem como sustentáculo a ideia de garantia e proteção dos direitos dos indivíduos, configurando um Estado com atuação limitada por um conjunto de leis presentes em uma constituição, vislumbrando impedir abusos de poder por parte da máquina estatal na vida particular dos cidadãos. Ou seja, a democracia vai além de um regime de governo na medida em que, a partir da instituição de direitos, passa a representar uma forma de ordenação social que dirige e delimita o poder dos governantes e a ação estatal (Chaui, 2008).

O significado de cultura, em muitos momentos, se manifesta como uma reação às concepções de indústria e democracia, que se materializam nas mudanças gerais na vida comum, sendo que o esforço para avaliar qualitativamente a natureza dessas alterações que caracteriza a ideia de cultura (Willians, 2011). A relação entre democracia e cultura, a última em seus múltiplos sentidos, é tratada na literatura desde autores clássicos até contemporâneos. Trata-se de uma orientação baseada inicialmente em compreender se haveria influência de elementos culturais no êxito da democracia em determinadas localidades. Nessa lógica, a cultura é compreendida como algo dotado de certa generalidade, compreendendo os modos de vida, costumes, tradições e religiões (Przeworski, Cheirub, & Limongi, 2003).

Montesquieu (2015) foi o primeiro a discutir que certas formas de governo precisavam de determinadas características culturais para obterem êxito. Alguns aspectos levantados pelo autor relacionam formas de governo e características da população, por exemplo, para o êxito na forma republicana seria necessário que parte da população fosse virtuosa; para a monarquia, seria necessário a honra, e no caso do despotismo, seria necessário medo na população (Montesquieu, 2000). Rousseau avançou nessa discussão ao considerar que para as instituições democráticas conseguirem desenvolver-se, seria necessário que fossem compatíveis com a cultura, na forma dos costumes, da sociedade em questão (Przeworski et al., 2003).

Assim emerge o conceito de Cultura Democrática enquanto conjunto de elementos que favorecem a existência do regime democrático, representando uma forma de compreender o mundo pela perspectiva participativa, tendo a democracia como referência prática (Gonçalves, 2007; Przeworski et al., 2003). A Cultura Democrática pressupõe que a vontade da população esteja representada nas políticas culturais elaboradas pelo governo eleito, de modo que as pessoas se sintam participantes nas decisões culturais tomadas pelo Estado (Blomgren, 2012).

Um ideal democrático, nessa perspectiva, refere-se ao acesso ilimitado da comunicação, através do acesso a conhecimentos, artes e produtos culturais. Porém, mesmo em Culturas Democráticas é complexo fazer esses elementos circularem em todas as escalas populacionais. Comumente os conhecimentos são acessados por um grupo restrito da população, geralmente especialistas, e é dever do Estado democrático fazer com que os produtos culturais atinjam parte considerável da população (Mannheim, 1974). O acesso a esses elementos se dá por algumas formas, seja pelo acesso físico, no contato direto com o produto cultural; acesso econômico, pela capacidade financeira de produzir elementos culturais; e acesso intelectual, referente à capacidade de compreensão e aprendizado para a vida pelo contato com produtos culturais (Coelho, 1997).

Considerando o caráter de garantia dos direitos dos cidadãos no Estado Democrático de Direito, existem alguns direitos considerados fundamentais, os quais não surgiram de forma simultânea, perpassando por distintas gerações, em fases do surgimento de direitos civis, políticos e sociais. Os direitos sociais, de terceira geração, surgiram a partir de novas exigências de tratamento ao ser humano por parte do Estado, quando este deixou de tratar o homem enquanto ser abstrato para trata-lo como portador de variados estágios da vida (Bobbio, 2004). Assim, serviços como saúde, educação, seguridade social e cultura passaram a ser considerados na elaboração das políticas públicas (Lacerda & Gomes, 2013).

Os Direitos Culturais fazem parte dos direitos sociais, e referem-se à liberdade de produção, transmissão e fruição de bens culturais (Silva & Araújo, 2010). Nessa lógica, o apoio, o reconhecimento e a proteção da autonomia cultural constituem um fator relevante na preservação da identidade coletiva de determinada região ou país (Cuche, 1999), havendo variados processos para proteger e legitimar o acesso à cultura, dado que os direitos culturais possuem amparo, inclusive, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Bier & Cavalheiro, 2015).

Os direitos culturais representam garantias de acesso e proteção a memória coletiva, artes ou conhecimentos acerca do passado, de modo a permitir intervenções no presente e basear as decisões do futuro, garantindo a dignidade humana (Cunha Filho, 2000). Para tanto, estes se materializam em alguns direitos, como: direito autoral; direito à identidade cultural e proteção do patrimônio cultural; e direito à participação na vida cultural do país, o que implica em liberdade de criação, acesso à cultura e participação nas decisões sobre políticas culturais (Mata-Machado, 2007).

As ações orientadas para a promoção de direitos culturais são chamadas de Políticas Culturais, sendo efetuadas pelo Estado ou por organizações públicas, civis ou privadas (Coelho, 1997). As políticas culturais públicas são um subproduto das políticas de bem-estar social pós Segunda Guerra Mundial, e tratam-se de ações estruturadas por autoridades do setor cultural (Mangset, 2018). Em regimes democráticos, as políticas culturais representam instrumentos úteis na promoção da diversidade e do pluralismo cultural, dado que o acesso e a fruição de bens culturais constituem valores inerentes a democracia (Mannheim, 1974). Países que não se preocupam em pluralizar e aumentar a abrangência do alcance de suas políticas culturais tendem a distribuir de forma desigual o conjunto de riquezas simbólicas elementares para a identidade da nação (Ficheira & Hollanda, 2018).

Pela perspectiva democrática, as políticas culturais se orientam na busca por distribuir capacidades entre os indivíduos, de modo a possibilitar a interpretação de expressões e a formação de cultura entre eles (Jones, 2010). Para tanto, as políticas culturais têm por objetivo coordenar a dinâmica democrática de acesso à cultura, representando uma forma de garantia do acesso aos direitos culturais, e nesse aspecto se orienta a partir de dois paradigmas: democratização da cultura e democracia cultural. A democratização da cultura se refere a políticas culturais cujo foco está em fornecer a todos o acesso à cultura, principalmente a alta cultura ou cultura erudita. Já a democracia cultural, vislumbra fornecer autonomia a todos para produzir a própria cultura, considerando que todas as formas culturais possam ser produzidas e acessadas (Barbosa & Freitas Filho, 2015; Langsted, 1989).

A democratização da cultura tem enfoque na garantia de acesso à cultura, enquanto a democracia cultural vislumbra garantir a diversidade e o pluralismo cultural. A diversidade cultural se refere tanto aos elementos que distinguem determinados grupos, quanto a interação entre essas diferenças. Esse parâmetro compreende diferentes hábitos, modos de vida, religiões, linguagens e grupos (Barros & Angelis, 2018). No ambiente democrático, a diversidade é reconhecida em uma comunidade que disponha do poder da maioria, na busca por proporcionar a igualdade essencial de ser, manifesta na valorização das diversas formas culturais (Willians, 2011). O pluralismo cultural é uma vertente da diversidade cultural (Carvalho, 2016), que se manifesta na possibilidade de diálogo e interação entre as distintas culturas, tratando-as de modo isonômico, reconhecendo a importância de cada cultura, incentivando e protegendo-as (Lopes, 1999). A vivência em sociedades culturalmente plurais constitui um dos principais valores das organizações democráticas, sendo papel do Estado garantir a participação e o pertencimento cultural (Requejo, 1999).

3 Funcionamento da Lei de Incentivo à Cultura

Em 23 de dezembro de 1991 foi instituída a Lei 8.313, a LIC, que ficou conhecida como Lei Rouanet, em homenagem ao secretário de Cultura Sérgio Paulo Rouanet. A LIC instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), que atua de três formas: mecenato com incentivos fiscais, na dedução de impostos para patrocinadores de projetos aprovados pelo órgão competente federal da Cultura; Fundo Nacional da Cultura (FNC), que conta com aproximadamente 2% dos recursos investidos pela lei; Fundo de Investimento Cultural e Artístico (FICART), nunca implementado (Dowlatyari, 2017; Ficheira & Hollanda, 2018).

Acerca do funcionamento da LIC, os proponentes submetem propostas para serem avaliadas pelo órgão competente do setor cultural. Os proponentes podem ser indivíduos atuantes no setor cultural, como artistas e produtores culturais; pessoas jurídicas de caráter público atuantes nesse setor, como fundações e prefeituras; ou entidades jurídicas de caráter privado com atuação na área cultural, como cooperativas, organizações não governamentais (ONGs) e demais organizações (Dowlatyari, 2017).

Os projetos culturais submetidos podem ser de algumas áreas culturais: Artes Cênicas, Artes Visuais, Artes Integradas, Audiovisual, Humanidades, Museus e Memória, Música e Patrimônio Cultural. O Incentivo prevê que os projetos culturais se enquadrem nos artigos 18 ou 26, os quais preveem as formas de abatimento do IR (Lei n. 8.313, 1991). Salienta-se que o enquadramento do projeto não depende do proponente, cabendo ao órgão responsável pela avaliação do projeto enquadrá-los.

Para enquadramento no artigo 18, o projeto deve pertencer às seguintes áreas: artes cênicas; música instrumental erudita; exposições de artes visuais; doações de acervo para bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas; treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos para manutenção de acervos; produção de obras cinematográficas e vídeo fonográficas de curta e média metragem; preservação do patrimônio material e imaterial; construção e manutenção de salas de cinema e teatro que poderão funcionar também como centros culturais comunitários em municípios com menos de 100 mil habitantes. O incentivador de projetos culturais deste artigo pode abater até 100% do valor investido, desde que esse valor não ultrapasse 6% do IR devido para pessoas físicas e 4% do IR devido para pessoas jurídicas, de modo que o total investido será deduzido do IR sem que o patrocinador tenha gastos adicionais (Lei n. 8.313, 1991).

Os projetos que não se encaixam nas modalidades elencadas anteriormente são enquadrados no artigo 26, que prevê um incentivo fiscal para pessoas jurídicas com renúncia de 40% do investimento efetuado por doação, e de 30% do investimento efetuado por patrocínio. Para pessoas físicas a renúncia é de 60% em casos de patrocínio e de 80% em doações. Estes percentuais incidem sobre o total investido, e no caso do artigo 26, esse valor pode ser abatido e lançado como despesa operacional (Lei n. 8.313, 1991).

4 Procedimentos Metodológicos

Este artigo buscou verificar se a LIC contribui para a democratização do acesso e da difusão de diferentes manifestações culturais, promovendo o pluralismo cultural na distribuição de recursos. Para tanto, partiu de uma abordagem qualitativa e quantitativa, utilizando ferramentas de ambos os tipos de pesquisa, operando com dados secundários, textuais e numéricos. Trata-se de um estudo longitudinal, abrangendo informações acerca da LIC compreendidas no lapso temporal de 2009 a 2018, que se referem aos projetos solicitados, aprovados e incentivados, além de informações sobre os incentivadores e proponentes de projetos culturais através da LIC. O critério para escolha de tal lapso temporal se deve à disponibilidade de dados completos acerca dos projetos avaliados e realizados nesse período, considerando um período de 10 anos da divulgação de informações da LIC através do Portal de Visualização do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (VerSalic).

A pesquisa caracteriza-se como descritiva, dado que buscou descrever os fatos e fenômenos do quadro de financiamento cultural realizado pela LIC no Brasil. A pesquisa descritiva mostra-se relevante, nesse contexto, devido ao volume de informações não sistematizadas dos resultados da LIC, de modo que a pesquisa permitiu desvelar a situação do financiamento realizado pelo instrumento. Em relação à coleta de dados, trabalhou-se com dados secundários referentes aos projetos culturais, sendo coletados na plataforma VerSalic, local onde estão dispostas informações mais completas acerca dos projetos culturais da LIC.

Os projetos culturais referem-se a um conjunto de atividades culturais que se orientam no alcance de objetivos específicos, dentro de um espaço temporal determinado e seguindo um orçamento estipulado. Após terem a proposta aprovada no Ministério/Secretaria de Cultura, os projetos recebem um número de registro Pronac e podem ser direcionados para o mecanismo de captação de recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC) ou pelo Mecenato cultural. O presente artigo teve enfoque nos projetos do mecenato.

Itera-se que os dados foram deflacionados utilizando-se o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado de 2018, uma vez que, conforme Sá-Earp, Kornis, Estrella e Joffe (2016), os dados disponibilizados pelos órgãos responsáveis pela Cultura no Brasil possuem a defasagem de não considerarem o aumento ou diminuição de seu valor monetário ao longo do tempo.

Acerca da estratégia de análise dos dados, para o alcance do objetivo estabelecido, utilizou-se instrumentos de Análise Documental e Estatística Descritiva pautando-se na utilização de ferramentas como tabelas, gráficos e medidas descritivas (Medri, 2011), de modo a demonstrar o quadro de distribuição de recursos em relação aos tipos de produção contempladas pela LIC e entre os produtores culturais ao longo do período analisado. Os dados foram sistematizados no software Microsoft Excel. Os resultados são discutidos por área cultural e posicionados na discussão por ordem alfabética.

5 Análise e discussão dos resultados

Inscritos no recorte temporal desta pesquisa, 2009 a 2018, estão disponíveis na plataforma VerSalic 61.464 projetos culturais que buscaram incentivo através do Mecenato, os quais geraram uma captação de recursos total equivalente a R$ 14.541.037.308,57. A Figura 1 ilustra a divisão da quantidade desses projetos dispostos no VerSalic ao longo dos anos.



Figura 1: Quantidade de Projetos de mecenato cadastrados no Pronac por ano
Fonte: Elaborado pelos autores.

Das propostas do Mecenato, 59.957 tiveram algum valor aprovado, o que corresponde a 97,55% das propostas. Do total de projetos aprovados, 18.959 conseguiram captar recursos, correspondendo a 31,62% dos projetos aprovados.

Em relação ao enquadramento dos projetos, conforme as especificidades da legislação, 49.184 projetos culturais se enquadram no artigo 18 da LIC, de modo que os investidores podem deduzir até 100% de seus investimentos. Dos restantes, 10.070 se enquadravam no artigo 26.

Percebe-se que a maioria dos projetos aprovados e captados é enquadrada no Artigo 18, o qual utiliza apenas recursos públicos no incentivo. Nota-se a necessidade de encontrar uma forma de equilibrar interesses privados e públicos na condução da LIC, tendo em vista a utilização excessiva de recursos de caráter público à mercê da decisão do mercado enquanto indutor dos rumos da cultura fomentada no país (Ficheira & Hollanda, 2018).

Projetos culturais de qualquer proponente podem ser candidatos a captar recursos através da LIC, e esses proponentes podem ser Pessoas Físicas ou Jurídicas. Dentre as 61.464 solicitações, 47.487 (77,26%) eram de Pessoas Jurídicas e 13.977 projetos (22,74%) eram de Pessoas Físicas. Dentre as 56.957 propostas aprovadas, 77,37% eram de proponentes Pessoas Jurídicas, e 22,63% de Pessoas Físicas, proporcional à distribuição dos projetos solicitados. Quanto à captação dos recursos, dentre os 18.959 projetos, 85,72% eram de Pessoas Jurídicas e 14,28% eram de Pessoas Físicas, configurando um percentual superior entre Pessoa Jurídica quando comparado ao percentual de submissão e aprovação. Uma possível explicação para essa variação é o nível institucional que empresas patrocinadoras demandam para apoiarem os projetos, com potenciais efeitos tanto na execução do projeto quando na divulgação do mesmo e, por consequência, ampliando os ganhos de imagens dos patrocinadores (Miszputen, 2014).

A diferença entre Pessoa Jurídica e Pessoa Física se acentua quando observamos o percentual de cada um no montante de recursos captados, cabendo ao primeiro grupo 96,93% do montante. Apesar de a lei permitir que qualquer indivíduo proponha projetos culturais, percebe-se pelos números da lei que as pessoas jurídicas possuem maior capacidade de captação de recursos, o que remete ao surgimento de um mercado cultural desde a consolidação das leis de incentivo à cultura, surgindo organizações públicas ou privadas voltadas para a cultura, tendo como principal fonte de financiamento os recursos advindos do incentivo fiscal, além de haverem alterações em organizações já existentes (Belem & Donadone, 2013; Silva & Dellagnelo, 2004).

Aspectos políticos e alterações no marco legal da lei podem influenciar os números da LIC ao longo dos anos. A Tabela 1 apresenta a relação de valores solicitados, aprovados e captados no período analisado.


Tabela 1: Valores solicitados, aprovados e captados por ano

Nota. Fonte: Elaborado pelos autores.

O ano de 2010 destaca-se como um dos anos de maior percentual de captação de recursos. Por outro lado, quando se analisa a comparação entre o montante captado e o montante aprovado, o ano de 2009 se destaca, dado que teve o segundo menor montante de recursos aprovados. Nesse aspecto, do total aprovado, apenas 22,76% dos recursos foram captados, o que transparece certa subutilização de recursos direcionados para a área da cultura, tendo em vista que os recursos da LIC correspondem a cerca de 90% do que é direcionado para a cultura no Brasil (Costa et al., 2017). Os projetos de 2018 possuem uma participação baixa no total captado, mas destaca-se que a captação de recursos para esses projetos pode ter aumentado, dado que a LIC prevê que os projetos possam entrar com pedidos de prorrogação do prazo de captação por até três anos.

5.1 Análise da LIC em termos de Pluralismo Cultural

Os projetos culturais podem ser de áreas culturais diversas, que são agrupadas em segmentos específicos. Para se compreender a especificidade e a natureza dos objetos presentes nos projetos culturais, estes são produzidos seguindo algumas regras, sendo resultados diretos da estrutura regulatória existente (Thiry-Cherques, 2006). A Tabela 2 ilustra a quantidade de recursos e a proeminência de algumas áreas na aprovação e captação de recursos (Sá-Earp et al., 2016).

Artes Cênicas e Música se destacam no montante de recursos aprovados e captados. A literatura sobre esse tema aponta que a concentração de recursos nessas áreas pode estar relacionada à capacidade destas de mobilizar maiores públicos e aumentar o retorno de imagem para os patrocinadores dos projetos (Ficheira & Hollanda, 2018; Miszputen, 2014). A área com menor captação é Museus e Memória, a qual foi instituída em 2017 pela Instrução Normativa nº 1.


Tabela 2: Valores solicitados, aprovados e captados por área cultural

Nota. Fonte: Elaborado pelos autores.

Dentre as áreas contidas na Tabela 2, as Artes Cênicas contam com 31,42% do total de recursos captados. Contando com 17.942 projetos aprovados, nessa área 6.243 projetos foram efetivados através da LIC. A área se divide em alguns segmentos culturais (Tabela 3).


Tabela 3: Valores aprovados e captados dos segmentos de Artes Cênicas

Fonte: Elaborado pelos autores.

Por segmento, destacaram-se as áreas de Teatro e Dança, que juntos somam mais de 88% do recurso captado. Considerando-se o caráter mercadológico da LIC, o destaque de Teatro e Dança pode ser explicado por serem segmentos que possuem potencial de proporcionar à iniciativa privada maior visualização perante o público, levando consequentemente a conquista de novos consumidores e maior lucro para os patrocinadores (Mega, 2015).

Mega (2015) salienta que em Artes Cênicas existe uma censura de mercado que faz com que produções relacionadas a assuntos polêmicos e divergentes das convenções sociais não consigam captar recursos, bem como produções teatrais experimentais, tendo em vista o caráter de imprevisibilidade destas em termos de rendimentos financeiros e recepção de público. Segundo o autor, isso leva à tendência de concentração dos recursos em produções e diretores consagrados nesse ramo.

Pela análise dos proponentes que captaram recursos na área de Artes Cênicas, percebe-se que essa concentração, de fato, se consolida. Foram identificados 2.825 diferentes proponentes, dos quais 3,86% concentraram 50% do total de recursos captados, corroborando com os argumentos de Mega (2015). Para ilustrar essa concentração, salienta-se que 90% do total de recursos captados nessa área estão concentrados em 31,93% dos proponentes. Destaca-se a empresa T4F Entretenimento S. A. como a maior captadora de recursos nessa área, apresentando projetos com maior captação em oito dos dez anos analisados (exceto em 2010 e 2018).

Sobre as produções culturais que mais concentraram recursos anualmente, destaca-se que a maioria se referia a espetáculos teatrais musicais, muitos deles num formato Broadway, concentrados principalmente em capitais do Sudeste, além de serem produções pouco acessíveis para a população de baixa renda, dado o preço elevado dos ingressos (Mega, 2015).

A área de Artes Integradas representa 5,29% do total de recursos captados, sendo 2.202 projetos aprovados, dos quais 668 efetivaram a captação. Salienta-se que os projetos culturais dessa área foram apoiados através do Mecenato até 2011, e nos anos posteriores, todos os projetos da área estão registrados para receber recursos do FNC. Os segmentos de Artes Integradas são apresentados na Tabela 4.


Tabela 4: Valores aprovados e captados dos segmentos de Artes Integradas

Nota. Fonte: Elaborado pelos autores.

Como Artes Integradas se trata de uma área cultural híbrida, composta por projetos que se encaixem em mais de uma vertente artística, parte considerável dos projetos é do segmento de Artes Integradas. Além desse segmento, destacam-se as áreas de Equipamentos culturais multifuncionais, que representam instrumentos relevantes para a dinâmica cultural dos municípios e podem fazer com que as políticas culturais apresentem melhores retornos, facilitando a realização de eventos culturais (Lopes, 2000).

Acerca dos proponentes culturais, percebe-se que 541 deles captaram recursos através da LIC. Do total, 4,44% concentra cerca de 50% dos recursos da área, sendo que 43,62% dos proponentes captaram 90% dos recursos. O Instituto Itaú Cultural, o Museu de Arte Moderna de São Paulo e a Fundação Bienal de São Paulo são os que mais concentraram recursos, contando, juntos, com 22,68% dos recursos captados nessa área.

A área de Artes Visuais conta com 13,83% do total de recursos captados, sendo 4.764 projetos aprovados, dos quais 1.585 captaram recursos através da lei. A Tabela 5 apresenta os segmentos de Artes Visuais.


Tabela 5: Valores aprovados e captados dos segmentos de Artes Visuais

Nota. Fonte: Elaborado pelos autores.

O segmento de Exposição de Artes Visuais concentra a maior parte dos recursos captados. Explica-se que este segmento é crescente no Brasil em termos de apreensão de público e exigência de qualidade, existindo muitos profissionais especializados para projetar exposições nesse nicho (Razuk, 2011).

O crescimento das Artes Visuais no Brasil vem sendo influenciado indiretamente pela LIC, dado que uma parte considerável das exposições dessa área são viabilizadas pelo incentivo fiscal. Há distorções na lei que fazem com que recursos direcionados para Artes Visuais estejam concentrados principalmente na região Sudeste, por ser onde estão localizadas a maioria das empresas optantes pela renúncia fiscal (Razuk, 2011). Entretanto, a concentração de recursos em uma área como essa, que historicamente está localizada nos grandes centros, é um dos fatores que inviabilizam uma democratização do acesso aos recursos, dado que o nível de institucionalização requerido funciona como barreira de entrada para novos atores culturais.

Nessa área 2.617 proponentes tiveram projetos aprovados, dos quais 843 captaram recursos. A concentração de recursos em determinados proponentes é maior que nas áreas apresentadas anteriormente, dado que 1,90% dos proponentes culturais concentram 50% dos recursos captados e 28,94% destes concentram 90% do total captado. Destaque para a Fundação Bienal de São Paulo e para o Instituto Tomie Ohtake, que juntos captaram 14,43% dos recursos dessa área.

A área de Audiovisual captou 7,72% do total de recursos, totalizando R$ 1.122.420.175,62. Foram 5.386 projetos aprovados, dos quais 1.757 foram viabilizados. A Tabela 6 apresenta os segmentos culturais dessa área.


Tabela 6: Valores aprovados e captados dos segmentos do Audiovisual

Nota. Fonte: Elaborado pelos autores.

Destaca-se o segmento de Difusão de acervo audiovisual, o que indica que os recursos da LIC são mais utilizados para difusão do que para criação de conteúdos audiovisuais, fato que pode ser explicado pela existência de outro mecanismo de incentivo fiscal voltado para esse setor, a Lei 8.685 de 1993, conhecida como Lei do Audiovisual, à qual pode estar sendo mais utilizada para o fomento a criações cinematográficas nacionais (Sarkovas, 2011).

Acerca dos proponentes, na área de Audiovisual foram 3.223 produtores com projetos aprovados, dos quais 921 captaram recursos. A concentração de recursos nessa área sinaliza que 3,26% dos produtores concentram 50% dos recursos, e em um aspecto mais geral, 33,44% dos produtores concentra aproximadamente 90% do total de recursos direcionados para essa área. Destaque para as empresas Fundação Pe. Anchieta Centro Paulista Rádio e TV Educativas e D+3 Produções Artísticas Ltda que, juntas, concentram 14,28% do total de recursos da área.

A área de Humanidades captou 7,60% do total de recursos. Foram 9.249 projetos aprovados, dos quais 3.071 realizaram a captação. Para Ficheira e Hollanda (2018), considerando-se o período de existência da LIC, Humanidades é a área cultural com menor captação de recursos, todavia, não é a menor área no que tange ao volume de ações culturais realizadas, referentes a promoção da leitura e da literatura no país. Segundo as autoras, isso indica que os projetos dessa área demandam menos recursos para serem executados. A Tabela 7 ilustra os segmentos da área.


Tabela 7: Valores aprovados e captados dos segmentos de Humanidades

Nota. Fonte: Elaborado pelos autores.

Eventos Literários e Edição de Livros destacam-se como segmentos que possuem maior participação no volume captado. Por ser uma área caracterizada pelo ensejo a literatura, os dois segmentos destacados representam formas de criação e divulgação de produtos culturais literários.

Sobre os proponentes culturais de Humanidades, percebe-se que 1.646, do total de 5000 proponentes da área, que captaram recursos. As produções com maior captação de recursos correspondem a projetos referentes a edição de Livros ou de Eventos Literários, como os casos das bienais, importantes para a seara literária do país.

A área de Museus e Memória foi instituída em 2017. No Brasil, os museus representam “lugares de memória”, pois através destes têm-se a possibilidade de resgatar os eventos do passado, partindo de expectativas do presente (Vieira, 2017). Foram 92 projetos aprovados, dos quais 27 captaram recursos.

Inicialmente os museus brasileiros tinham a função de apresentar aspectos que descrevessem a história nacional e posteriormente, ganharam a função de expor coleções artísticas de mecenas (Vieira, 2017). Na LIC essa área é dividida em alguns segmentos culturais (Tabela 8), sendo que o segmento de Planos anuais de atividades e planos museológicos se destaca pelo volume de captação, com 67,46% do total captado, o que demonstra que a LIC contribui na manutenção de instituições dessa área.


Tabela 8: Valores aprovados e captados dos segmentos de Museus e Memória

Nota. Fonte: Elaborado pelos autores.

Nessa área foram 84 proponentes com projetos aprovados, dos quais 25 captaram recursos. Desses 25,32% das propostas captaram cerca de 90% por cento dos recursos. Destaca-se que a Associação Pinacoteca Arte e Cultura – APAC concentra, com apenas um projeto, 35,49% dos recursos.

A área de Música é a segunda em termos de volume de captação, contando com 22,63% do total de recursos. Nessa área tiveram 15.700 projetos aprovados, dos quais 4.884 conseguiram captar recursos. Dos segmentos culturais da área (Tabela 9), se destacam as áreas de Música Instrumental e Música Erudita.


Tabela 9: Valores aprovados e captados dos segmentos de Música

Nota. Fonte: Elaborado pelos autores.

Algo que explica o destaque dos segmentos de Música Instrumental e Erudita é o fato deles serem enquadrados no Artigo 18 da LIC, permitindo uma dedução de 100% do recurso destinado ao incentivo. Em contrapartida, segmentos como o de Música Popular, se enquadram no Artigo 26, permitindo a dedução de 30%, podendo ser menos atrativo para incentivadores (Costa, 2011). O enquadramento dos segmentos de Música Erudita e Instrumental no Artigo 18 favorece a viabilização de produções culturais desse nicho, as quais representam esferas de produção cultural legitimadas. Música Popular no Brasil, conceitualmente, seria toda aquela que se diferencia da chamada Música Erudita. O termo “popular” se refere a produções regionais, folclóricas e tradicionais, e uma parcela considerável de produções consideradas como Música Popular no contexto nacional não são produzidas pelas classes subalternas, o que confunde a utilização deste termo (Chaui, 2008).

Nessa área, 8.479 proponentes tiveram projetos aprovados, dos quais 2.269 captaram recursos. Destes, 3,13% captaram o equivalente a 50% do total de recursos dessa área e 30,76% dos proponentes captaram 90% dos recursos. Destaca-se a Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira e a Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, que juntas captaram 10,23% do total de recursos da área.

A área de Patrimônio Cultural conta com 11,32% dos recursos da LIC. Essa área compreende bens culturais relacionados a tradições, paisagens, arquitetura, documentos/acervos, aspectos gastronômicos e arqueológicos, entre outros (Rodrigues et al., 2017). Foram 1.622 projetos aprovados, dos quais 724 captaram recursos. No Brasil, a preservação e defesa dessa área se inicia na década de 1930, representando uma das áreas pioneiras como enfoque das políticas culturais (Calabre, 2009). Os segmentos dessa área estão dispostos na Tabela 10.


Tabela 10: Valores aprovados e captados dos segmentos de Patrimônio Cultural

Nota. Fonte: Elaborado pelos autores.

O segmento que se destaca é da Preservação de Patrimônio Material, com 15,54% dos recursos. Foram 1.062 proponentes que tiveram projetos aprovados e destes 444 captaram recursos. 4,51% destes proponentes concentram cerca de 50% dos recursos da área e 29,28% concentram 90% dos recursos. Para Bem, Waismann e Araujo (2017) a LIC vem contribuindo significativamente na preservação do patrimônio cultural brasileiro, e apesar das oscilações em termos de recursos e projetos com captação ao longo dos anos, existem possibilidades de expansão nessa área cultural considerando o total incentivado.

6 Conclusões

Este artigo verificou se a LIC contribui para a democratização do acesso e da difusão de manifestações culturais, promovendo o pluralismo cultural na distribuição de recursos. Para tanto, realizou-se uma pesquisa qualitativa e quantitativa, considerando dados coletados na plataforma VerSalic referentes a projetos culturais de 2009 a 2018, que foram analisados e apresentados a partir de instrumentos de análise documental e de estatística descritiva.

Pelo panorama apresentado, percebe-se que parte significativa dos recursos disponibilizados para a LIC – 77,24% – através de projetos culturais que foram aprovados, não foram utilizados, tendo em vista projetos que não conseguiram captar recursos junto a incentivadores. Outro destaque refere-se à participação de proponentes culturais pessoas jurídicas, que captaram 96,93% do total de recursos da LIC. Isso demonstra que apesar da lei permitir a participação dos mais diversos tipos de atores enquanto proponentes, buscando ser um instrumento democrático de apoio à cultura, o caráter formal de funcionamento do mecanismo desloca para a profissionalização da cultura um tipo de privilégio, que pode acarretar na manutenção de recursos para proponentes que já se encontram estabelecidos no mercado cultural.

Acerca das áreas culturais incentivadas, percebe-se que em todas as áreas há uma tendência de concentração de recursos em determinados proponentes, que se destacam pela quantidade de recursos captados se comparadas aos demais. Os dados apontam que o financiamento cultural federal através da LIC faz com que poucos proponentes concentrem os recursos públicos, o que pode gerar distorções entre as regiões brasileiras em termos de exploração dos bens culturais incentivados, refletindo na concentração de renda em grandes produtores culturais.

Analisando esse quadro de concentrações de recursos pela perspectiva do pluralismo cultural, incorre-se que apesar da possibilidade que os indivíduos tem de se tornarem proponentes culturais, mesmo com projetos aprovados, a efetivação desses projetos depende do crivo do mercado na captação de recursos, sendo que a capacidade de geração de retorno de imagem do projeto tende a contar mais que a cultura que este vislumbra promover, visto que é o meio empresarial quem decide quais produções serão viabilizadas. Nesse aspecto, a promoção de pluralismo cultural parece ficar à margem, sendo que o Estado só consegue garantir os interesses públicos nos projetos culturais até a parte da avaliação das propostas.

Conclui-se que o incentivo fiscal é de grande relevância para a promoção de atividades culturais, entretanto, pelo histórico de concentrações apresentado, parece legítima a reflexão sobre a LIC como a principal forma de financiamento à cultura do país. O mecanismo apresenta dificuldades de democratizar a cultura em termos de distribuição de recursos por área cultural e os aspectos formais de funcionamento da LIC, por demandarem a institucionalização e a profissionalização dos proponentes para concorrer na dinâmica de captação de recursos, representam fortes barreiras à democracia cultural ao perpetuarem a concentração de recursos em determinados proponentes. Essa discussão torna aparente a necessidade de atuação do Estado para além da renúncia fiscal, através da capacitação de agentes culturais e mapeamento de potencialidades, sobretudo em campos culturais historicamente marginalizados devido à baixa institucionalização e profissionalização, como a cultura imaterial, de modo a aumentar as possibilidades de aprovação e captação de recursos. Além disso, é necessário pensar formas redistributivas que possam mitigar a concentração de recursos em determinadas produções, proponentes e áreas geográficas.

Os resultados desta pesquisa servem para demonstrar a todos os interessados um quadro descritivo do volume de recursos disponibilizados pela LIC, tendo como função apresentar aspectos gerais do instrumento, vislumbrando embasar discussões acerca da lei, que constantemente é demonizada devido ao desconhecimento acerca de seu histórico, funcionamento e resultados. Sobre as limitações desta pesquisa, destaca-se que os métodos utilizados permitem apresentar uma descrição da utilização do instrumento, mas com pouca capacidade de inferir na influência que a LIC possui nos municípios em que esteve presente através dos projetos culturais viabilizados.

Referências

Agamben, G. (2012). Introductory Note on the Concept of Democracy. In G. Agamben et al. (Eds.), Democracy in what State? Columbia University Press.

Barbosa, F., Freitas Filho, R. (2015). Financiamento Cultural: Uma visão de princípios. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Barros, J. M., Angelis, M. (2018). Diversidade Cultural e processos de mediação. Em J. M. Barros J. H. Bezerra. (Orgs.). Gestão Cultural e diversidade: do pensar ao agir (119–137). Editora UEMG e Observatório da Diversidade Cultural.

Belem, M. P., Donadone, J. C. (2013). A Lei Rouanet e a construção do “mercado de patrocínios culturais.” Norus , 1(1), 51–61. https://doi.org/10.15210/NORUS.V1I1.2761

Bem, J. S. de, Araujo, M. P., Waismann, M., Rodrigues, N. F. (2017). Patrimônio cultural e recursos da Lei Rouanet de 2007 a 2016. Políticas Culturais Em Revista, 10(1), 161–185. https://doi.org/10.9771/PCR.V10I1.22068

Bier, C. A., Cavalheiro, R. A. (2015). Lei rouanet x crowdfunding: fomentando os empreendimentos culturais. Revista Pensamento Contemporâneo Em Administração, 9(2), 47. https://doi.org/10.12712/RPCA.V9I2.457

Blomgren, R. (2012). Autonomy or democratic cultural policy: that is the question. International Journal of Cultural Policy, 18(5), 519–529. https://doi.org/10.1080/10286632.2012.708861

Bobbio, N. (2004). A era dos direitos. Elsevier.

Calabre, L. (2009). Políticas Culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Editora FGV.

Carvalho, A. (2016). Diversidade Cultural: da Periferia para o Coração dos Museus. Boletim ICOM Portugal, 3(5), 8–12.

Chaui, M. (2008). Cultura e democracia . Crítica y Emancipación, 1, 53–76.

Coelho, T. (1997). Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. Editora Iluminuras Ltda.

Costa, C. F. da, Medeiros, I. B. de O., Bucco, G. B. (2017). O financiamento da cultura no Brasil no período 2003-15: um caminho para geração de renda monopolista. Revista de Administração Pública, 51(4), 509–527. https://doi.org/10.1590/0034-7612162254

Costa, E. (2011). Entrevistas. In A. C. Abdalla (Ed.), Lei Rouanet: Percursos e Relatos. Atitude Brasil.

Cuche, D. (1999). A noção de cultura nas Ciências Sociais. EDUSC.

Cunha Filho, F. H. (2000). Direitos culturais como direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília Jurídica.

Dowlatyari, M. (2017). The Rouanet Law: Funding cultural projects or a creative industry in Brazil? (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, SP, Brasil.

Ficheira, C. M. H., Hollanda, H. H. O. B. de. (2018). Política Cultural por meio do incentivo fiscal, 26 anos de caminhada: retrato da captação global e setorial no campo das humanidades. Políticas Culturais Em Revista, 11(1), 255–277. https://doi.org/10.9771/PCR.V11I1.25343

Gonçalves, J. W. (2007). A cultura democrática ou a democracia cultural. Biblos, 10, 63–71.

Jones, S. (2010). Culture shock. Demos.

Knopp, G. da C., Darbilly, L. V. C. (2007). Reflexões sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento Local. XXXI Encontro Da ANPAD.

Lacerda, A. P. de, Gomes, E. J. dos S. de F. (2013). Sentidos da Democracia e dos Direitos Culturais no campo das Políticas Culturais. Políticas Culturais Em Revista, 6(1), 38–53. https://doi.org/10.9771/1983-3717PCR.V6I1.8258

Langsted, J. (1989). Double Strategies in a Modern Cultural Policy. Journal of Arts Management and Law, 19(4), 53–71. https://doi.org/10.1080/07335113.1989.10593788

Lei n. 8.313, de 23 de dezembro de 1991. (1991). Restabelece princípios da Lei n. 7.505/1986, institui o Pronac e dá outras providências. Planalto. Brasília, DF.

Lopes, A. R. C. (1999). Pluralismo Cultural e Políticas de Currículo Nacional. Currículo: Políticas e Práticas, 4, 59–80.

Lopes, J. T. (2000). Em busca de um lugar no mapa: Reflexões sobre políticas culturais em cidades de pequena dimensão. Sociologia, Problemas e Práticas, 34, 81–91.

Mannheim, K. (1974). Sociologia da Cultura. Perspectiva.

Mata-Machado, B. N. (2007). Direitos Humanos e Direitos Culturais. SESC.

Medri, W. (2011). Análise Exploratória de Dados. UEL.

Mega, V. M. (2015). Lei Rouanet: a visibilidade do produto cultural como critério de patrocínio à produção artística (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Miszputen, F. (2014). Patrocínio à cultura: do marketing cultural à responsabilidade social (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Montesquieu. (2000). O Espírito das Leis. Martins Fontes.

Montesquieu. (2015). Cartas Persas. Tinta-da-China.

Nancy, J.-L. (2012). Finite and infinite democracy. In G. Agamben et al. (Eds.), Democracy in what State? Columbia University Press.

Netto, J. V. R. (2015). Gestão de políticas de cultura e qualidade da democracia: São Paulo, 10 anos de um modelo ainda em construção. Revista de Administração Pública, 49(4), 1011–1038. https://doi.org/10.1590/0034-7612126964

Piccoli, C., Ferreira, A., Siqueira, J. (2021). Avaliação de Políticas Públicas Culturais – Modelo de Análise da Efetividade da Lei de Incentivo à Cultura. Sociedade, Contabilidade e Gestão, 15(3), 166-184. https://doi.org/10.21446/scg_ufrj.v15i3.40970

Przeworski, A., Cheibub, J. A., Limongi, F. (2003). Democracia e Cultura: uma visão não culturalista. Lua Nova, 58, 9–35.

Razuk, A. (2011). Entrevistas. In A. C. Abdalla (Ed.), Lei Rouanet: Percursos e Relatos. Atitude Brasil.

Requejo, F. (1999). Pluralismo cultural e cidadania democrática. Lua Nova, (47), 91–119. https://doi.org/10.1590/S0102-64451999000200006

Rodrigues, N. F., Bem2, J. S., Bernd, Z. (2017). O projeto Resgate do Patrimônio Histórico e Cultural da UFRGS - contribuições da Lei Rouanet. Colóquio - Revista Do Desenvolvimento Regional, 14(1), 27–39. https://doi.org/10.26767/COLOQUIO.V14I1.565

Sá-Earp, F., Kornis, G., Estrella, L. M., Joffe, P. S. (2016). Dois estudos sobre a Lei Rouanet . In IE-UFRJ Discussion Paper (pp. 1–26).

Sarkovas, Y. (2011). Entrevistas. In A. C. Abdalla (Ed.), Lei Rouanet: Percursos e Relatos. Atitude Brasil.

Silva, R. C. da, Dellagnelo, E. L. (2004). Redes de organizações sociais: a inserção da lógica de mercado e a formação de gestores. Cadernos EBAPE.BR, 2(3), 01–11. https://doi.org/10.1590/S1679-39512004000300006

Silva, F. A. B., Araújo, H. E. (2010). Cultura Viva: avaliação do programa arte educação e cidadania. IPEA.

Tavares, A. L. S. (2018). Democracia e orçamento participativo: um estudo de caso do município de Vila Velha (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.

Thiry-Cherques, H. R. (2006). Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública, 40(1), 27–53. https://doi.org/10.1590/S0034-76122006000100003

Varella, A. C. N., Santos, R. T., Najberg, E. (2020). O Novo Serviço Público e a Lei de Incentivo à Cultura: Uma Oportunidade. Revista de Economia da UEG, 16, 107-122. https://doi.org/10.5281/zenodo.4012337

Vieira, G. L. (2017). O museu como lugar de memória: o conceito em uma perspectiva histórica. Mosaico, 8(12), 139–162. https://doi.org/10.12660/RM.V8N12.2017.65900

Williams, R. (2011). Cultura e Sociedade: de Coleridge a Orwell. Editora Vozes.



Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por