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O Programa Mais Vida nos Morros e a Relação das Crianças com o Espaço Público: o Caso da Vila Burity (Recife, PE)

The More Life on the Hills Program and the Relationship of Children with Public Space: the Case of Vila Burity (Recife, PE)

El Programa Más Vida en los Morros y la Relación de los Niños con el Espacio Público: el Caso de Vila Burity (Recife, PE)

Poliana Nunes de Santana
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Sérgio Carvalho Benício de Mello
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Sandro Valença
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

O Programa Mais Vida nos Morros e a Relação das Crianças com o Espaço Público: o Caso da Vila Burity (Recife, PE)

Administração Pública e Gestão Social, vol. 16, núm. 1, 2024

Universidade Federal de Viçosa

Recepción: 12 Agosto 2022

Aprobación: 28 Julio 2023

Publicación: 13 Enero 2024

Resumo: Objetivo: Avaliar como o programa Mais Vida nos Morros, implementado na Vila Burity, no bairro da Macaxeira, na Zona Norte do Recife (PE), transformou a relação das crianças com o espaço público urbano em que estão inseridas.

Metodologia: Realizou-se um estudo de caso naturalista, com abordagem qualitativa e descritiva. Dados e informações foram coletados através de levantamentos documentais, entrevistas semiestruturadas e observações não participantes. A interpretação e análise se deu pela agregação categorial e análise qualitativa básica, de modo que os achados foram codificados e classificados em três categorias: “processo de intervenção”, “participação infantil” e “consequências da intervenção”.

Resultados: Observou-se que o programa realizou intervenções pautadas nos princípios de urbanismo tático, criando, por exemplo, áreas de lazer e convivência direcionadas às crianças, o que fez com que elas se reapropriassem dos espaços públicos, atribuindo vitalidade às ruas e calçadas e, consequentemente, aumentando a sensação de segurança. Não obstante, os espaços de participação infantil criados foram temporários, de forma que, decorrido algum tempo, as crianças voltaram à invisibilidade, não tendo a oportunidade real de exercer seus direitos, com destaque ao direito à cidade.

Originalidade: Constatou-se que o programa, a despeito de sua proposta ambiciosa, alcançou resultados aquém dos prometidos — e almejados — pelo poder público na Vila Burity, o que não significa que as iniciativas tenham sido um desperdício de esforços, mas implica dizer que elas deveriam ser regularizadas e reforçadas, numa rotina de trabalho contínuo.

Contribuições teóricas e práticas: Contribuiu-se, aqui, com os estudos nas áreas da sociologia da infância, de políticas públicas e de planejamento urbano. Ademais, teceram-se sugestões de melhorias e de ações, visando subsidiar o aperfeiçoamento desta e de outras políticas públicas semelhantes.

Palavras-chave: Urbanismo tático, Direito à Cidade, Criança, Espaço público.

Abstract: Objective: Evaluate how the More Life on the Hills program, implemented in Vila Burity, in the Macaxeira neighborhood, in the North Zone of Recife (PE), transformed the relationship between children and the urban public space in which they are inserted.

Methodology: A naturalistic case study was carried out, with a qualitative and descriptive approach. Data and information were collected through documentary surveys, semi-structured interviews and non-participant observations. The interpretation and analysis was carried out by categorical aggregation and basic qualitative analysis, so that the findings were coded and classified into three categories: “intervention process”, “child participation” and “intervention consequences”.

Results: It was observed that the program carried out interventions based on the principles of tactical urbanism, creating, for example, leisure and coexistence areas aimed at children, which made them reappropriate public spaces, giving vitality to the streets and sidewalks and, consequently, increasing the feeling of security. However, the spaces for children’s participation created were temporary, so that, after some time, children returned to invisibility, not having the real opportunity to exercise their rights, especially the right to the city.

Originality: It was found that the program, despite its ambitious proposal, achieved results below those promised — and desired — by the public authorities in Vila Burity, which does not mean that the initiatives were a waste of efforts, but implies that they should be regularized and reinforced, in a continuous work routine.

Theoretical and practical contributions: The research contributed to studies in the areas of sociology of childhood, public policies and urban planning. Furthermore, suggestions for improvements and actions were made, aiming to subsidize the improvement of this and other similar public policies.

Keywords: Tactical urbanism, Right to the city, Child, Public place.

Resumen: Objetivo: Evaluar cómo el programa Mais Vida nos Morros, implementado en Vila Burity, en el barrio Macaxeira, en la Zona Norte de Recife (PE), transformó la relación entre los niños y el espacio público urbano en el que están insertos.

Metodología: Se realizó un estudio de caso naturalista, con enfoque cualitativo y descriptivo. Los datos y la información se recolectaron a través de encuestas documentales, entrevistas semiestructuradas y observaciones no participantes. La interpretación y análisis se realizó por agregación categórica y análisis cualitativo básico, de manera que los hallazgos fueron codificados y clasificados en tres categorías: “proceso de intervención”, “participación infantil” y “consecuencias de la intervención”.

Resultados: Se observó que el programa realizó intervenciones basadas en los principios del urbanismo táctico, creando, por ejemplo, áreas de esparcimiento y convivencia dirigidas a los niños, lo que hizo que se reapropiaran de los espacios públicos, dando vitalidad a las calles y veredas y, en consecuencia, aumentando la sensación de seguridad. Sin embargo, los espacios de participación infantil creados fueron temporales, por lo que, después de un tiempo, los niños volvieron a la invisibilidad, al no tener la oportunidad real de ejercer sus derechos, en especial el derecho a la ciudad.

Originalidad: Se constató que el programa, a pesar de su ambiciosa propuesta, logró resultados inferiores a los prometidos — y deseados — por las autoridades públicas de Vila Burity, lo que no significa que las iniciativas hayan sido una pérdida de esfuerzos, sino que implica que deben ser regularizadas y reforzadas, en una rutina de trabajo continuo.

Aportaciones teóricas y prácticas: Se aportaron aquí estudios en las áreas de sociología de la infancia, políticas públicas y planificación urbana. Además, se realizaron sugerencias de mejoras y acciones, con el objetivo de subsidiar la mejora de esta y otras políticas públicas similares.

Palabras clave: Urbanismo táctico, Derecho a la ciudad, Niño, Lugar público.

INTRODUÇÃO

O processo de industrialização provocou diversas transformações sociais, dentre elas, a intensificação do fluxo migratório populacional em direção aos espaços urbanos (Romanelli & Abiko, 2011). A ocupação destes espaços se deu num ritmo acelerado e, com frequência, desordenado. Por tal motivo, em grande medida, criaram-se estruturas excludentes, gerando problemas como o aumento das desigualdades socioeconômicas e da violência urbana (Zazyki, Marin, & Moura,2020), os quais afetam a todas as pessoas, mas, em particular, às crianças, que compõem a categoria geracional mais vulnerável e são diretamente afetadas por macroforças estruturais, que impactam o desenvolvimento pleno e o futuro delas (UNICEF, 2004).

À vista disso, é fundamental que lhes seja assegurado o direito à voz e à participação na formulação e/ou execução de políticas públicas, de modo que possam expressar suas opiniões livres, de acordo com suas idades e seus níveis de maturidade, como preconiza a Convenção sobre os Direitos da Criança — CDC (UNICEF, 1989). Não obstante, com frequência as legislações e políticas são elaboradas sem que os infantes e suas reivindicações sejam considerados (Qvortrup, 2011). De fato, eles se conhecem e se formam a partir do contato com o mundo, porém comumente são esquecidos ao se pensar o espaço público (Pinto & Puga, 2019), não participando da criação e/ou transformação dele, o que resulta em locais sem atrativos, que não atendem às suas necessidades e, por decorrência, não são frequentados (Loeb, 2019).

Observe-se, então, que a relação entre criança e cidade, em regra, caracteriza-se pelo afastamento espacial e confinamento em áreas insularizadas, com pouca ou nenhuma presença infantil nas ruas, praças e calçadas (Brostolin, 2021; Sarmento, 2015). Assim, faz-se das cidades lugar de “estranheza” e “desidentificação”, hostil às pessoas, sobretudo aos infantes — “estrangeiros” no ambiente urbano (Sarmento, 2018). Isto os afasta da convivência com outros adultos e pares, e propicia uma visão limitada a respeito da urbe e suas possibilidades, impedindo que se desenvolvam sentimentos de identificação e pertencimento comunitário (Ramiro, Aguiar, & Maria, 2021).

É latente, portanto, a necessidade de se reconfigurar os espaços públicos citadinos e as políticas públicas urbanas tendo em vista o melhor interesse das crianças (Sarmento, 2018). Também é importante incluir suas perspectivas nos projetos, através do diálogo e coexistência com outros sujeitos (Valença, 2018), pois a participação infantil efetiva pode alterar a forma como as cidades são construídas (Ramiro et al., 2021). Contudo, os próprios adultos não participam da configuração da vida urbana cotidiana (Harvey, 2014), devido ao planejamento urbano tradicional não considerar os pontos de vista daqueles que a rigor conhecem seu funcionamento — os moradores locais (Jacobs, 2011).

Ademais, a execução deste tipo de planejamento costuma ser lenta e complexa, evidenciando a necessidade de se desenvolverem abordagens mais ágeis e criativas (Fontes, 2018). Logo, o urbanismo tático pode ser uma alternativa valiosa, atuando numa pequena escala de intervenção, com ações rápidas, de curto prazo e baixo custo (Lydon & Garcia, 2015), e estimulando a participação ativa da população na busca de soluções para os espaços urbanos, podendo, por conseguinte, ser relacionado ao direito à cidade (Gomes, Gomes, & Mello,2019), que é entendido como a capacidade dos cidadãos de transformarem o espaço citadino segundo suas vontades (Harvey, 2014).

Pautada em semelhantes conceitos, em 2016, a Prefeitura da Cidade do Recife — PCR —, através da Secretaria Executiva de Inovação Urbana — SEIURB —, criou o programa Mais Vida nos Morros — MVM —, visando requalificar moradias, promover intervenções na paisagem e implantar espaços de lazer, recreação e convivência nas comunidades de interesse social — CIS — do município (PCR, 2016). O objetivo principal é a transformação dos espaços urbanos e a consequente reinvenção da cidade por meio do desenvolvimento sustentável e do protagonismo dos cidadãos — com destaque especial às crianças —, que é suposto participarem de todo o processo de intervenção, desde a tomada de decisões até a transformação final (MVM, 2020).

Com base na contextualização, ora apresentada, o objetivo desta pesquisa consiste em avaliar como o MVM, implementado na comunidade da Vila Burity, em Recife (PE), transformou a relação das crianças com o espaço público urbano em que elas estão inseridas.

Note-se, aqui, que se optou por utilizar a Vila Burity, localizada no bairro da Macaxeira, em Recife (PE), como espaço de referência da pesquisa, a fim de atribuir-lhe mais objetividade operacional. Note-se, ainda, que a escolha da comunidade se deu por ela ter sido atendida só em 2019 — três anos após a criação do programa —, de forma que o MVM já havia passado por alguns aperfeiçoamentos e, inclusive, redirecionado seu escopo à primeira infância; bem como pelo tempo decorrido desde a realização das intervenções, o que já permite observar algumas consequências, aceitando avaliações preliminares acerca de sua eficácia.

REFERENCIAL TEÓRICO

Urbanismo tático

A publicação de “Morte e vida das grandes cidades”, de Jane Jacobs, em 1961, representa um importante marco na história do urbanismo (Pinho, 2016), sobretudo por ter desencadeado uma série de críticas aos princípios do planejamento urbano ortodoxo moderno, os quais vinham conduzindo à decadência de um número cada vez maior de cidades (Jacobs, 2011). A autora chama à atenção o fato de que os especialistas urbanos se pautavam mais em teorias do que em conhecimentos práticos sobre o funcionamento dos espaços citadinos e suas necessidades, portanto não eram capazes de criar cidades funcionais e saudáveis, em que houvesse vitalidade urbana.

Emergia, por conseguinte, uma demanda por abordagens alternativas ao planejamento vigente à época, que apresentassem respostas mais rápidas e criativas para os problemas urbanos, especialmente os das grandes cidades (Fontes, 2018). Desde então, diversas iniciativas com esse propósito vêm sendo exploradas e reunidas sob o conceito de “urbanismo tático” (Courage, 2013; Silva, 2016). O termo guarda-chuva tem se referido a diferentes tipos de intervenções sobre o tecido urbano, em geral informais e temporárias, de baixo custo, pequena escala e curto prazo, que promovem engajamento e participação da população, tornando-a agente das mudanças (Brenner, 2015; Lydon & Garcia, 2015).

As discussões acerca do movimento emergente tiveram início em um contexto de grave crise — urbana e econômica, mas sobremaneira política —, em que tanto instituições públicas quanto privadas falharam na garantia das necessidades básicas da população, como moradia, transporte e mobilidade (Brenner, 2015). Assim, ele surgiu entre um grupo de indivíduos, como resposta às políticas públicas ineficientes formuladas e impostas por diferentes atores urbanos, quase sempre sem nenhuma participação social (Gadanho, 2016). Espera-se, ora, que os cidadãos assumam o protagonismo na construção da cidade, ao participarem e interferirem diretamente no processo de tomada de decisão (Macêdo & Almeida, 2018).

O urbanismo tático é democrático e pode ser associado ao direito à cidade, uma vez que visa promover a mobilização e a participação popular não só na reapropriação do espaço físico, mas também na reivindicação do espaço político (Fontes, 2018). Outro aspecto relevante dele consiste na mudança de foco da grande para a pequena escala de intervenção (Lydon & Garcia, 2015), a qual foi negligenciada, em termos históricos (Fontes, 2018). Logo, em regra, ele se limita a ruas, parques e/ou bairros (Brenner, 2015), porém visa atingir objetivos maiores, fomentando mudanças duradouras e de grande escala nas cidades, como o redesenho dos espaços públicos urbanos (Lydon & Garcia, 2015).

A título de exemplo, no Brasil, temos o movimento “A batata precisa de você”, que propõe a ocupação do Largo da Batata, em São Paulo, no fim do dia de todas as sextas-feiras, quando as pessoas se reúnem para jogos, festas, exibição de filmes e criação de mobiliários urbanos temporários, visando a revitalização e a apropriação da área (Barata & Fontes, 2016). Por sua vez, no Build a Better Block — Construa um quarteirão melhor —, que ocorre em vários lugares, incluindo cidades brasileiras, como São Paulo, os moradores se reúnem para tentar melhorar o próprio bairro em um fim de semana, através da criação de murais, mobiliários urbanos e hortas comunitárias, e da realização de feiras, atividades participativas e jogos (Foster, 2020; Nogueira, 2017).

Assim, observa-se que, cada vez mais, a sociedade civil tem tomado a iniciativa na realização de intervenções urbanas, visando à melhoria de suas condições de vida e à diminuição da morosidade do poder público (Gomes et al., 2019; Lydon & Garcia, 2015). De fato, as ações de urbanismo tático têm preenchido muitas lacunas deixadas pelo Estado, mas ainda não podem substituir por completo o planejamento urbano tradicional e centralizado (Nogueira, 2017). E, embora tenha surgido entre grupos de cidadãos (Gadanho, 2016), o movimento foi politizado rapidamente, passando a ser adotado por organizações de todos os setores, e em particular pela esfera pública (Silva, 2016).

Diante disso, o desafio é equilibrar de modo satisfatório os interesses dos atores sociais envolvidos na construção do espaço público, sobretudo da sociedade civil e do Estado, numa articulação bottom-up, top-down (Lydon & Garcia, 2015). É fundamental, para tanto, conciliar as propostas estatais relativas ao planejamento urbano com a participação política da população (Fontes, 2018) — sem exclusão das crianças —, que deve reivindicar atenção aos seus desejos e necessidades no que tange à construção e/ou reinvenção das cidades (Nogueira, 2017). Por efeito, programas e políticas públicas tornam-se mais ágeis, sem perder o foco na transformação em larga escala e longo prazo (Silva, 2016). E os cidadãos garantem o exercício do direito à cidade, apropriam-se do espaço público citadino e contribuem para a produção de uma urbe democrática e inclusiva (Barata & Fontes, 2016; Gomes et al., 2019).

Direito à cidade

As cidades foram construídas conforme a lógica capitalista de produção do espaço e acumulação de capital, privilegiando o desenvolvimento econômico em detrimento do social (Harvey, 2013; Lefebvre, 2008). Constata-se que elas não foram concebidas para atender às pessoas (Gehl, 2013). Com efeito, desde a primeira revolução industrial, os espaços citadinos preexistentes se modificaram para responder às exigências da indústria nascente, que se estabeleceu, em geral, fora das cidades — próxima às fontes de energia, matéria-prima e meios de transporte —, todavia, assim que possível, deslocou-se para os centros urbanos, buscando se aproximar dos capitalistas e do capital, dos mercados e da mão de obra barata (Harvey, 2014; Lefebvre, 2008).

O deslocamento da indústria em direção à cidade provocou desordem e desestruturação na cidade, provocando consequentes confrontos entre classe dominante e classe operária, classe esta que passou a viver cada vez mais longe do centro, nos subúrbios e periferias — às margens do lugar. Em simultaneidade, os comércios convergiram para os núcleos urbanos, que se transformaram em centros de consumo, nos quais prevaleciam relações pautadas em troca e valor de troca sobre uso e valor de uso (Araújo, 2012; Lefebvre, 2008), intensificando a segregação dos espaços e, então, degradando as relações sociais (Carlos, 2020).

A situação levou à descentralização da cidade e desconfiguração da ordem urbana, fragmentada em funções como moradia, trabalho, circulação, lazer… (Dantas, 2011). O crescimento urbano acelerado aflorou desigualdades socioespaciais, bem como problemas de infraestrutura, mobilidade e segurança, que resultaram na ausência de espaços públicos adequados e de boa qualidade habitacional, tornando as cidades hostis às pessoas — e, em especial, às crianças —, que acabaram se afastando delas (Loeb, 2019; Sarmento, 2015).

Limitou-se os espaços de lazer e de convivência, comprometendo a vida urbana e a concepção da cidade enquanto local de encontro e de confronto de diferenças (Lefebvre, 2008), que permitia às pessoas modificarem suas trajetórias a partir das experiências com os outros (Dias & Esteves, 2017). Outrossim, com o ritmo de vida frenético no mundo moderno, homem e sociedade passaram a seguir uma forma estandardizada, burocratizada, instaurando a vida cotidiana, na qual pouco existe de criatividade, dado que o foco é o aumento da produção e, como uma derivação, da produtividade (Nóbrega, 2017).

Destarte, Lefebvre publicou, em 1968, o livro “O direito à cidade”, salientando a premência de se reivindicar o direito à vida urbana renovada e transformada, tanto como apelo quanto como exigência, buscando a criação de uma vida urbana alternativa, menos alienada e mais significativa (Harvey, 2014). No entanto, apesar de seu pioneirismo, Lefebvre foi esquecido por um bom tempo, principalmente nos contextos acadêmicos norteamericano e europeu, onde sua recepção foi tardia. Isso porque ele era lido apenas em círculos universitários restritos e de pouca influência, cuja produção não era em língua inglesa (Tavolari, 2016).

Nas últimas décadas, o conceito ressurgiu, sendo abordado por Harvey, em “Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana”, de 2012 (Tavolari, 2016). Harvey se pauta na concepção da cidade como uma tentativa do homem de refazer o mundo em que vive à sua imagem e semelhança (Park, 1967). Numa perspectiva convergente, ela pode ser encarada como uma manifestação do elemento humano, que reflete os desejos e papéis do homem na sociedade (Battaus & Oliveira, 2016). O direito à cidade é, assim, entendido como a capacidade da população de mudar e reinventar tal espaço, segundo suas próprias vontades e necessidades, enquanto faz e refaz a si mesma (Harvey, 2009, 2012, 2014).

Embora seja um dos mais preciosos e importantes direitos humanos, o direito à cidade é também um dos mais negligenciados. Está relacionado à possibilidade de a população reivindicar o poder de exercer influência sobre a configuração da vida urbana cotidiana e o processo de urbanização como um todo (Harvey, 2012, 2014). Logo, a participação cidadã é um elemento-chave no exercício deste direito, porque é ela que vai garantir uma gestão pública mais justa e democrática no tocante à cidade (Mello, Bastos, & Lacerda, 2020), além de permitir a identificação e o estabelecimento de vínculos entre ela e as pessoas (Gadanho, 2016; Gomes et al., 2019).

No Brasil, as discussões relativas ao direito à cidade tiveram início ainda entre as décadas de 1970 e 1980, quando questões como direito e democracia estavam em voga devido ao autoritarismo do regime militar (Tavolari, 2016). Com o tempo, o direito à cidade se ampliou, apresentando-se como um conceito guarda-chuva, sob o qual se agrupam diversas reivindicações, a exemplo das associadas com moradia, mobilidade, transporte público, trabalho e infraestrutura (Amanajás & Klug, 2018; Cafrune, 2016). Ele é universal, portanto, em teoria, todas as pessoas têm direito à cidade e devem participar de maneira direta e igualitária das decisões relativas ao bairro e à cidade em que vivem (Jacobi, 1986).

Evidencia-se, então, a urgência de o poder público dialogar com as comunidades, incluindo os moradores locais no processo de planejamento e execução de políticas e programas públicos urbanos, pois são eles que conhecem as demandas reais e imediatas da população. O cidadão precisa ter assegurado seu direito à cidade, ou seja, o direito de participar da invenção e reinvenção da cidade, a fim de viver numa sociedade verdadeiramente democrática e evitar os conflitos de interesses.

Cidade, criança e participação infantil

Quando desenvolveu indicadores de qualidade para a urbe, Tonucci (2006) apontou que cidades boas para as crianças seriam boas para todos. Contudo, o “cidadão protótipo” é representado por um homem adulto, que trabalha e dirige carros, e são às demandas dele que governantes buscam atender visando garantir apoio eleitoral. Demandas e direitos daqueles que fogem ao perfil — não são homens adultos, não trabalham e não dirigem carros — são ignorados (Tonucci, 2020). As cidades tornam-se, assim, hostis aos próprios habitantes — sobretudo às crianças, que compõem a categoria mais vulnerável (Sarmento, 2018) e são diretamente afetadas por macroforças estruturais, cujos impactos abrangem seu futuro e desenvolvimento pleno (Qvortrup, 2011; UNICEF, 2004).

A despeito dos impactos potenciais de macroforças estruturais — como política e legislação — sobre as condições de vida das crianças, com frequência a infância tem sido negligenciada na construção do planejamento, principalmente no tocante ao espaço público citadino (Pinto & Puga, 2019). Isto porque, por muito tempo, ignorou-se o establishment de que as crianças são parte inerente da sociedade e do mundo em que vivem. Existia, por conseguinte, tendência em priorizar outros aspectos da vida, relegando as crianças à exclusão do mundo adulto, principalmente como tentativa de protegê-las (Brostolin, 2021; Dias & Ferreira, 2015; Qvortrup, 2010, 2011).

Como consequência, as crianças também foram afastadas do espaço urbano — perigoso, automobilizado e poluído — e confinadas em áreas “insularizadas”, nas quais vivem sob a vigilância constante de adultos, a exemplo da casa e da escola; logo, quase não havendo presença infantil nas ruas, praças e calçadas (Dias & Ferreira, 2015; Sarmento, 2015). Semelhante situação tem implicações adversas, posto que tais espaços representam locais de encontro, e que é a partir do contato com o mundo que crianças conhecem e formam a si mesmas (Pinto & Puga, 2019). O relacionamento com pessoas de gêneros, idades, raças e classes sociais diferentes deveria lhes atribuir novas experiências (Dias & Esteves, 2017; Jacobs, 2011), entretanto, o afastamento espacial existente resulta numa visão limitada da cidade e suas possibilidades, e ainda impede a identificação e o pertencimento à comunidade, bem como restringe a cidadania da infância (Sarmento, 2015, 2018).

A CDC, realizada pela ONU, em 1989, representou um marco ao olhar para os infantes como sujeitos de direitos — de provisão, proteção e participação — e, por efeito, cidadãos plenos (Sarmento, 2015). Porém, o exercício deles — em particular o de participação — em raras situações é observado na prática (Brostolin, 2021; Pinto & Puga, 2019). Como implicações, legislações e políticas públicas são elaboradas sem que as crianças e suas reivindicações sejam consideradas (Loeb, 2019; Qvortrup, 2011; Sarmento, 2015). No tocante ao espaço público, por exemplo, é comum que elas sejam esquecidas, limitadas ao papel de espectadoras (Pinto & Puga, 2019), não participando da criação e/ou transformação dele (Sarmento, 2018), mesmo que se reconheça que elas são, a rigor, as protagonistas do mundo social (Valença, 2018) e, naturalmente, que suas percepções sobre a vida urbana são imprescindíveis ao avanço do conhecimento sobre infância e cidade (Gobbi, 2020; Sarmento, 2018).

Fica evidente a necessidade de se reconfigurar os espaços citadinos e as políticas públicas visando atender ao melhor interesse da infância. Para tanto, é importante incluir as perspectivas dela nos projetos urbanos, através do diálogo e coexistência com adultos e com pares (Valença, 2018), revertendo a imagem de “criança excluída da cidade” para a de “criança cidadã” (Ramiro et al., 2021), visto que o direito à cidade representa exatamente uma condição para a cidadania infantil, em decorrência de políticas públicas para infância e cidade que possibilitem a participação de todos, em especial dos infantes (Sarmento, 2018).

A participação infantil não pode ser simbólica. Exige-se que os atores sociais — no caso, as crianças — tenham o poder de interpretar, analisar, questionar, decidir, atuar... (Oliveira, 2017). Ressalta-se, ora, que vários autores abordam teorias e escalas referentes a este tipo de participação (e.g.Brostolin, 2021; Dias & Ferreira, 2015). A mais conhecida é a “Escada de Participação”, de Hart (1992), que se divide em oito degraus — três deles ligados à ausência de participação, e cinco a algum nível de participação.

Fundamentando-se em Hart (1992), surgiram novas propostas, a exemplo da classificação de Trilla e Novella (2001), que abarca quatro tipos amplos de participação das crianças: simples, consultiva, projetiva e metaparticipativa.

A participação simples consiste em fazer parte de uma atividade como espectador ou executante, limitando-se a seguir instruções ou responder a estímulos, sem intervir na preparação ou nas decisões sobre o conteúdo, pois ele cabe ao adulto.

A participação consultiva ocorre em situações nas quais a criança é ouvida e a ela são postos à disposição canais para tanto. Ela, assim, deixa de ser mera espectadora ou executante de algo que foi determinado de maneira prévia, e passa a propor ou avaliar assuntos que direta ou indiretamente lhe dizem respeito. O produto da consulta, contudo, pode ou não ser aceito, a depender do quanto o responsável pela atividade se compromete em cumpri-lo.

A participação projetiva requer maior engajamento e corresponsabilidade, em função de o sujeito não se limitar a ser um usuário e fazer mais do que dar sua opinião — torna-se um ser ativo, que reconhece a atividade como sua, na qual pode intervir de dentro e em diversas fases, desde a definição até a execução e o controle.

Por termo, a metaparticipação representa os sujeitos reclamando para que seus interesses sejam reconhecidos e atendidos. Fazem emergir novos espaços e mecanismos de participação, porque, para eles, os canais estabelecidos não são suficientes ou eficazes.

Além da tipologia participativa, Trilla e Novella (2001) propuseram três condições mínimas que devem ser satisfeitas para uma participação infantil eficaz: direito à participação, capacidade de participação e espaços de participação.

No que tange à primeira condição — direito à participação —, reitera-se, ela foi assegurada aos infantes pela CDC, em 1989. Entretanto, a sociedade ainda não enxerga as crianças como cidadãs plenas, ativas e engajadas. Os adultos continuam parecendo estar longe de aprenderem a ouvir e considerar as opiniões e perspectivas delas. Faz-se premente, então, que a concepção social da infância seja modificada, de forma a aceitar que as crianças possam exercer cidadania na vida urbana cotidiana e perceber a si mesmas como cidadãs.

A segunda condição — capacidade de participar — aferra-se ao reconhecimento e à admissão de que a categoria geracional das crianças e dos adolescentes, em alguma medida, tem capacidade de participação, a qual deve ser desenvolvida para se tornar eficaz. Os infantes, logo, precisam ser educados para poderem exercer seus direitos (Trilla & Novella, 2001). A educação engloba confiança, respeito e trabalho cuidadoso, com os ensinamentos se adequando à idade e ao nível de experiência e maturidade dos sujeitos (Brostolin, 2021).

Além do reconhecimento das duas anteriores condições, são necessários meios adequados à participação. Entre as características que eles devem apresentar para se constituírem em espaços de participação, Trilla e Novella (2001) indicam: (i) permitir atuar no ambiente próximo e na vida cotidiana, pois as crianças contam com informações suficientes, advindas das próprias experiências, que lhes facilitam a formulação de opiniões e a ação; (ii) explicar os objetivos e o processo de participação, dado que deste modo os infantes terão ciência sobre as condições e os limites de sua participação, bem como sobre os comportamentos ou ações a que devem iniciar; e (iii) criar espaços reais de participação, que sejam adaptados às condições psicológicas e sociais das crianças, e nos quais as sugestões e observações feitas por elas sejam consideradas e, se possível, aplicadas para melhorar a realidade.

Observe-se que, nas últimas décadas, diversas iniciativas vêm sendo desenvolvidas para assegurar os direitos à participação infantil. Destacando o direito das crianças à cidade, Pinto e Puga (2019) fizeram menção a alguns projetos, tanto nacionais quanto internacionais, a título de exemplos. Assim, no cenário internacional, eles citaram a “Cidade das Crianças”, criada na Itália — e, posteriormente, replicada na Argentina e na Espanha —, por Tonucci. O projeto intentou transformar as cidades a partir do ponto de vista dos infantes que vivem nelas. No Brasil, por sua vez, eles citaram, entre outras iniciativas, o “Espaço Alana”, que traz por objetivo promoção do desenvolvimento local, mediante o acesso à cultura e à educação, e a criação de espaços de lazer, brincadeiras e outras ações lúdicas, além do voluntariado e engajamento comunitário.

MÉTODO

A pesquisa foi qualitativa e descritiva. O método utilizado foi o estudo de caso naturalista, único e instrumental, pautado em Stake (1995) e Leão, Vieira, Gaião e Souza (2012), pois se adequa ao objetivo ora proposto, qual seja: avaliar como o MVM, implementado na comunidade da Vila Burity, em Recife (PE), transformou a relação das crianças com o espaço público urbano em que elas estão inseridas.

Para tanto, buscou-se construir um corpus de pesquisa que fosse representativo do todo, fundamentado em uma coleção de materiais selecionados de forma arbitrária (Aarts & Bauer, 2017; Barthes, 2012). Por conseguinte, os dados e informações foram coletados por meio de três tipos de procedimentos, que garantiram a triangulação das fontes de evidências, a saber: levantamento documental, entrevista semiestruturada e observação não participante.

As evidências documentais foram reunidas em cerca de 30 matérias e reportagens de jornais e de outras fontes oficiais da PCR e/ou da SEIURB, a exemplo do diário oficial do município e do site institucional do programa.

As observações, por sua vez, foram realizadas durante incursões a campo, na Vila Burity, entre os meses de janeiro e junho de 2022, e geraram 10 relatórios. Nas imersões, observou-se como as crianças da comunidade e seus cuidadores interagiam com o espaço público, visando produzir uma descrição rica e clara. Foram definidos cinco pontos de observação: Campinho do Gogó, Nossa Praça, Praça do Dominó, Mirante Cristina Tavares e Mirante Pôr do Sol.

Foram realizadas, por termo, 13 entrevistas semiestruturadas com sujeitos ligados às ações do MVM na localidade, entre lideranças e pais/responsáveis moradores da comunidade, buscando comprovar achados obtidos através do levantamento documental, sobretudo aqueles relacionados à execução do processo de intervenção. Também intentou-se identificar se o programa gerou consequências significativas à vida cotidiana das crianças em função da percepção dos próprios participantes, naturalmente.

Note-se que a coleta foi encerrada desde o momento em que não se identificaram mais respostas e elementos novos e significativos à consecução do objetivo durante a realização das observações em campo e das entrevistas semiestruturadas.

A interpretação e a análise das evidências se deram conforme o que Leão et al. (2012) recomenda: o processo de as interpretar envolveu as relações que os pesquisadores conseguiram identificar entre os vários elementos que compuseram o caso, destarte os dados e as informações registrados ao longo da pesquisa foram lidos inúmeras vezes, sob óticas diversas, para que permitissem reflexões mais assertivas sobre os achados que deles emergiram; e o processo de as analisar, por sua vez, decorreu da interpretação subjetiva dos pesquisadores acerca de tudo que foi registrado, buscando encontrar significados no conjunto observado.

Assim, os dados e as informações coletados foram ordenados, interpretados e analisados através da combinação das técnicas de agregação categorial e de análise qualitativa básica.

A agregação categorial se tratou de uma abordagem sistemática (Stake, 1995), mediante a qual os pesquisadores procuraram acontecimentos e outros elementos relativos ao caso em questão, os quais guardassem correspondência entre si, para que fossem identificados padrões e associações; logo, fez-se necessário observar quais eram os fatos e os trechos mais relevantes ao alcance do objetivo do estudo; por último, os achados mais significativos foram revisados e, novamente, abordados — porém, agora, sob uma acuidade superior, de modo que pudessem ser reunidos em categorias.

De sua parte, a análise qualitativa básica se tratou da descoberta de padrões ou temas recorrentes em função dos dados e informações coletados (Merriam & Tisdell, 2015), dividida em três etapas: (1) organização, realizada após uma primeira leitura “flutuante”, que tornou possível a seleção e o ordenamento dos materiais; (2) exploração, realizada com base em uma codificação e posterior categorização; e (3) tratamento e interpretação, realizados por meio de inferências de conhecimentos.

As entrevistas, por fim, foram transcritas e, em seguida, codificadas com o apoio de um software de análise de dados qualitativos — o Taguette. Posteriormente, os códigos criados foram reunidos e classificados em três categorias de análise, a saber: “processo de intervenção”; “participação infantil”; e “consequências da intervenção”.

O PROGRAMA MAIS VIDA NOS MORROS

Em 2016, a PCR lançou o programa MVM, com o objetivo de requalificar o espaço urbano por meio de intervenções paisagísticas e da criação e/ou recuperação de áreas de lazer, recreação e convivência das 545 CIS da capital pernambucana (MVM, 2020).

O Movimento consiste em uma política pública de cidadania e resiliência urbana que se ampara em três preceitos básicos para reinventar a cidade e combater a desigualdade econômica e socioespacial: baixo custo, rápida implementação e alto impacto. Para sua execução, a PCR criou a SEIURB — subsecretaria da Secretaria de Infraestrutura e Serviços Urbanos — e buscou integrar a ela diferentes órgãos e secretarias, como a Defesa Civil e a Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana — EMLURB. Ademais, ela buscou estabelecer parcerias com organizações de iniciativa privada e recebeu orientação e apoio técnico de organizações sociais e fundações.

Acima de tudo, o MVM visa uma mudança de comportamento coletiva — salientando a diminuição dos problemas urbano e ambiental — (Jornal do Commercio, 2019; PCR, 2017) e a transformação das pessoas e de suas relações com a cidade e com o ambiente natural (MVM, 2020). Para tanto, ele promete estimular engajamento, cidadania ativa e protagonismo da população, buscando promover a vontade de fazer a diferença e o sentido de orgulho e pertencimento à comunidade — logo, a participação dela representa a essência do programa (MVM, 2020; PCR, 2019).

Conforme a metodologia do MVM, a escolha das comunidades a serem atendidas se dá em função de três critérios: vulnerabilidade social, engajamento nas gincanas e feirinhas, e infraestrutura disponível. Em geral, o processo de intervenção se estende por cerca de três meses, dividindo-se em três etapas: engajar, transformar e celebrar.

Na primeira, que dura três semanas, após a seleção do território, a equipe realiza visitas técnicas, indo até a comunidade e passando de porta em porta para apresentar o programa e convidar a vizinhança a se unir. Em seguida, ela faz uma reunião de “cocriação”, na qual adultos e crianças têm a chance de sugerir as intervenções que poderiam ser feitas e definir prioridades, bem como os participantes de cada ação. Há também a realização do primeiro mutirão (MVM, 2020).

Na segunda, que dura, em média, 7 semanas, a PCR faz algumas melhorias — na iluminação, no piso e nas escadarias, por exemplo — e depois são realizadas outras obras e intervenções, oficinas lúdicas e de sustentabilidade, além de novos mutirões que contam com a participação da comunidade — que “põe a mão na massa” —, mas também de outros voluntários, convocados pela SEIURB (MVM, 2020).

Na terceira e última etapa — com duração de três semanas —, as obras e outras intervenções são finalizadas e, então, inauguradas. Assim, ocorre uma celebração, com a presença do Prefeito do Recife, da equipe do MVM e da comunidade. No cotidiano, a manutenção das áreas depende da comunidade, que deve fazer o monitoramento; entretanto, havendo brinquedos e equipamentos danificados ou pinturas precisando de renovação, a equipe do MVM deve ser chamada (MVM, 2020).

Em síntese, o programa busca soluções novas para problemas urbanos antigos, que desafiam a gestão pública municipal há décadas (MVM, 2020). Ele tem tentado garantir a reapropriação do espaço público e o exercício do direito à cidade no Recife. Mais do que isto, tem tentado promover um novo tipo de relacionamento entre o poder público e as comunidades em situação de vulnerabilidade, aproximando-os através do diálogo (Arch Daily, 2020). A proposta é que os moradores deixem de apenas reivindicar e participem de modo ativo da mudança, tornando-se parte da solução (Diário de Pernambuco, 2018). Espera-se que o poder público, por sua vez, escute a população, cônscio de que ela é a verdadeira especialista no que tange ao lugar onde vive e compreende as carências locais prioritárias e urgentes (MVM, 2020).

Desde que foi criado, em 2016, já se implantou o Movimento em mais de 50 comunidades, beneficiando mais de 50 mil moradores (PCR, 2021). A Vila Burity, por exemplo, foi a décima terceira, atendida três anos depois, em 2019. Ela fica localizada no bairro da Macaxeira, na Zona Norte do Recife, em Pernambuco.

Foi a presença da Fábrica Coronel Othon e da sua vila de moradores que levou à urbanização do bairro. No princípio, o processo urbano se deu controladamente. Depois, em pleno descontrole. Fenômeno semelhante havia ocorrido antes nos centros industriais ingleses. Naquela área, no entanto, as implicações foram mais problemáticas, dado que houve o encerramento definitivo das atividades fabris locais, em 1991 (Santos, 2017). A despeito da mão de obra pré-existente ali — e boa parte qualificada —, não foram instaladas novas indústrias, acontecendo, portanto, um significativo aumento de desemprego e de expansão de empregos informais, caracterizando o bairro da Macaxeira até hoje.

RESULTADOS

Os resultados da pesquisa foram apresentados em três seções, estruturadas em função das categorias de análise ora propostas, nomeadamente, reitera-se: processo de intervenção; participação infantil; e consequências da intervenção.

Processo de intervenção na Vila Burity

O MVM chegou à Vila Burity três anos após sua concepção — mais especificamente, em 30 de março de 2019 —, através da realização do primeiro mutirão de pintura, que contou com a participação de cerca de 170 famílias, as quais receberam instruções e materiais para colorirem suas casas. A comunidade ganhou evidência por ser, até então, a que teve o maior nível de engajamento nas ações de intervenção desde a criação do programa.

De fato, segundo o MVM, boa parcela da população colocou a “mão na massa”, sendo responsável, por exemplo, pela pintura da própria casa. As tintas foram doadas pela iniciativa privada e eles puderam escolher entre as cores disponíveis. Também houve grafiteiros e outros voluntários ligados à SEIURB realizando a recuperação de áreas desgastadas e a pintura de muros e de casas em que o morador não podia pintar por limitações físicas suas ou da edificação. Bastava conceder a autorização e escolher entre as opções de cores ou ilustrações.

Antes de serem iniciadas as ações físicas, foram realizadas algumas reuniões em pontos específicos da localidade. Na primeira, apresentou-se aos potenciais participantes o MVM e as ideias de intervenção. Ali eles foram questionados se concordavam com a implementação do programa e se queriam, a rigor, participar. Também lhes foi dada a oportunidade de lançar sugestões e opinar sobre as ações que poderiam ser executadas, a partir das necessidades que eles próprios enxergavam na comunidade. Assim, foram feitos pedidos, como os de melhoria da iluminação de determinadas áreas, de retirada de pontos inadequados de descarte de lixo e de instalação de mobiliários urbanos em espaços de lazer e convivência.

O processo de intervenção se estendeu por quase 4 meses e atendeu aproximadamente 450 famílias, sendo inaugurado em 15 de agosto de 2019. Ao longo do tempo foram feitas oficinas de práticas sustentáveis e alimentação saudável, e campanhas de sensibilização e conscientização ecológica, sobretudo acerca da destinação correta do lixo e da importância da reciclagem. Na gincana do plástico, por exemplo, incentivou-se a comunidade a coletar material plástico com a finalidade de trocá-lo por produtos, como saboneteiras e cestos de lixo, confeccionados mediante processo de reciclagem.

A Vila Burity também recebeu mobiliários urbanos, jardins, plantas, hortas comunitárias e composteiras para reaproveitamento do lixo orgânico. Observou-se, porém, que nem todas as intervenções foram bem aproveitadas, em especial estas duas últimas, visto que, segundo moradores, no dia seguinte à inauguração, tudo foi colhido e não se plantou coisa alguma no lugar. Além disto, pouco tempo atrás, foi ateado fogo nos resquícios da composteira.

Participação infantil na Vila Burity

Alguns participantes entrevistados atestaram que, em verdade, a infância foi abordada com prioridade durante a implementação do programa, principalmente por se tratar da categoria geracional que “fornece” os adultos cidadãos do futuro. É fácil comprovar tal indicação ao se caminhar pelos espaços da comunidade: cores, desenhos, elementos lúdicos, mobiliários urbanos — mesas, bancos, brinquedos... tudo parece ter sido pensado para despertar a imaginação e a atenção das crianças.

Reforça-se, contudo, que não basta planejar para... É preciso planejar junto com os sujeitos infantis, estimulando sua participação e criando espaços adequados para tanto. No que se refere a esta questão, um grupo de crianças foi reunido na própria rua, e ali elas tiveram a chance de compartilhar com a equipe do MVM seus sonhos e ideias para o lugar. Da reunião, emergiram sugestões de melhorias para pontos específicos da comunidade que as crianças gostavam de frequentar.

Além de sugestões de intervenções, observou-se que as crianças participaram diretamente de determinadas ações físicas. A título de exemplo, as brincadeiras de rua ilustradas no piso do Mirante Cristina Tavares, como a amarelinha, foram propostas, escolhidas e até desenhadas pelas próprias crianças, de acordo com os entrevistados.

Nas ações direcionadas à conscientização ecológica, por sua vez, os relatos sugeriram que, com frequência, as crianças eram as mais engajadas. Assim, elas saíam procurando e recolhendo os materiais passíveis de reciclagem pela comunidade e os levavam para suas casas, onde as mães guardavam até que pudessem trocar por produtos reciclados nas feirinhas sustentáveis.

Uma das propostas centrais do MVM era valorizar a participação aplicada das crianças nas ações. Todavia, houve entrevistados que afirmaram presenciá-las apenas observando os adultos “titulares” do Movimento realizarem as ações. Alguns afirmaram, inclusive, que “não tinha nem como as crianças participarem”, o que chamou atenção por conter uma insinuante visão restritiva da infância, carregada de dúvidas e questionamentos a respeito da capacidade e competência de participação dos sujeitos infantis. E as implicações da visão incidem sobre a criação de espaços adequados para as crianças participarem, bem como sobre os tipos de participações que elas por certo exercem — ou podem exercer.

Posto isto, cabe apontar-se que, com base na análise do conjunto de evidências coletadas, classificou-se a participação infantil durante a implementação do MVM na Vila Burity conforme a tipologia proposta por Trilla e Novella (2001), localizando-a dentro da participação “consultiva”. Note-se, porém, que dentro dos quatro tipos de participação existem gradações. Acerca da participação consultiva, ela pode abranger desde uma participação “genérica” — em que se ouvem as crianças, mas não existe uma obrigação de cumprir suas exigências — até a participação “consultiva vinculante” — em que um compromisso é firmado no sentido de ouvir todas as opiniões expressas e as considerar rigorosamente. Por entender-se que o MVM de fato ofereceu espaços de participação infantil, entretanto que eles não foram plenos, considerou-se a participação das crianças no MVM na Vila Burity como “semiconsultiva” — Figura 1.

Figura 1 Tipo de participação das crianças na intervenção do MVM na Vila Burity
Figura 1 Tipo de participação das crianças na intervenção do MVM na Vila Burity
Legenda: MVM: Programa Mais Vida nos Morros; e X: Participação observada em campo. Fonte: Adaptado de Trilla e Novella (2001).

Em outras palavras, a classificação semiconsultiva sugere que ainda há que se aperfeiçoar as “ofertas” de participação infantil, muito mais devido aos preconceitos de pensamento e de ação dos adultos que à timidez e à apatia das crianças, por exemplo.

Consequências da intervenção do MVM

Para melhor estruturar a apresentação das consequências da intervenção na Vila Burity aqui identificadas, elas foram classificadas em quatro grupos principais, a saber: “vitalidade urbana”; “segurança pública”; “conscientização ecológica”; e “exercício da cidadania”.

Vitalidade urbana

A vitalidade urbana está ligada à presença de pessoas — independentemente da idade delas — circulando pelas ruas e calçadas da cidade. Neste sentido, os entrevistados afirmaram que determinados pontos da comunidade sempre foram bastante frequentados, inclusive pelas crianças — como o “Campinho do Gogó”, que existe já há muitas décadas e que marcou a infância de inúmeras crianças que nasceram e cresceram na comunidade e/ou em seu entorno.

Muitos sujeitos declararam que a quantidade de pessoas transitando a pé por todas as ruas da comunidade aumentou sobremaneira desde o processo de requalificação e melhoria da infraestrutura local, antes desgastada. Dados estatísticos publicados no Diário Oficial da Prefeitura do Recife, em 17/08/2019, corroboram com tal perspectiva ao indicarem um aumento no percentual de crianças brincando na rua, que antes era de 11% e passou para 75%. A frequência de moradores, por sua vez, também aumentou, passando de 11% para 77%. Possivelmente, em boa medida, o acréscimo de frequência de pedestres se deve à criação de espaços direcionados às crianças, que passaram a usar e se apropriar deles, quase sempre acompanhadas pelos pais, tios e/ou avós, a depender da idade.

Observe-se, no entanto, que semelhante realidade não se aplica a todos os espaços transformados. Há outros fatores relacionados. Na “Nossa Praça”, por exemplo, antes do MVM não havia construção alguma. Tratava-se, na verdade, de um ponto de destino de lixo. E, durante as incursões a campo, notou-se sua delicada localização — no meio de uma ladeira deveras íngreme —, de forma que quando as pessoas paravam ali, em geral, era somente para descansar das exigências da subida ou da descida.

Também, por exemplo, o “Mirante Cristina Tavares” — que embora tenha sido “requalificado” e, então, ambientado às crianças — ainda era pouco frequentado e se encontrava subutilizado para tanto. Conforme relatos, ele foi convertido em local de consumo e tráfico de drogas, relegando ao “esquecimento” as brincadeiras de rua ilustradas no seu piso.

Segurança pública

Em se tratando da segurança, alguns sujeitos indicaram que não costumam se sentir inseguros, especialmente por terem nascido e crescido na comunidade e, por conseguinte, conhecerem boa parcela dos moradores dela. A maioria deles, por outro lado, ressaltou a falta de segurança que sempre existiu na comunidade, onde assaltos eram frequentes. Um deles, a título de exemplo, já teve seu ponto comercial assaltado à mão armada duas vezes.

Em vários locais, a iluminação é precária ou inexistente. Em alguns, tem-se, ainda, a presença de muitos usuários de drogas. Ali, a sensação de insegurança prevalece. Não obstante, enquanto determinados sujeitos acreditavam que o MVM não havia mudado coisa alguma na comunidade, outros afirmavam que a situação melhorara gradualmente, em parte pela criação dos espaços de convivência e lazer, e pela consequente presença de mais pessoas circulando pelas ruas e calçadas, o que diminuía os riscos de violência.

Exercício da cidadania

Como uma política pública de cidadania, o MVM se propõe a estimular o protagonismo do cidadão, adulto ou criança, que deve reivindicar a participação na transformação da cidade. Imbuído disto, buscou-se analisar se o exercício de uma cidadania ativa ocorre na vida cotidiana da comunidade. Constatou-se, a partir dos relatos dos entrevistados, que muitos moradores até tentam reivindicar seus direitos junto aos órgãos públicos, contudo, a rigor, não são atendidos, o que faz com que eles desistam.

Em relação ao exercício da cidadania das crianças, constatou-se que, se existiu, perdeu-se ao longo do tempo, seja porque faltou incentivo e exemplo, seja porque as crianças realmente não se interessaram por ele. Outrossim, as crianças carecem de incentivos e de exemplos. E, se os adultos não reivindicaram seus direitos com intensidade e maturidade, como os infantes poderiam aprender a fazê-lo? — brota, de imediato, o questionamento.

Adicionalmente, alguns entrevistados destacaram a simples falta de interesse das crianças como fator decisivo para o pouco sucesso do exercício da cidadania delas, pautados na ideia de que elas “não ligam para isso”.

Em síntese, constatou-se que a criação de áreas de lazer e convivência gerou um aumento na quantidade de pessoas transitando pelas ruas, dando vitalidade a diversos pontos da comunidade, o que, com efeito, aumentou a sensação de segurança de parcela da população. Por outro lado, os estímulos ao exercício da cidadania apresentaram resultados pouco robustos, que aparentemente ficaram aquém do almejado pelos coordenadores do MVM.

DISCUSSÃO

O MVM, pautado em princípios de urbanismo tático, suscita transformar os espaços públicos das comunidades em contexto de vulnerabilidade econômica e social a partir do protagonismo de seus moradores. Na realidade, quando houve a intervenção do programa na Vila Burity, em 2019, foram executadas ações rápidas e de baixo custo, que contaram com a participação inicial de cerca de 170 famílias, representando o maior nível de engajamento — comparado ao de outros bairros recifenses — até então.

De acordo com Courage (2013), a associação entre os planejamentos top-down e bottom-up representa o melhor caminho para se alcançar transformações de alto impacto, abrangentes e duradouras. Em consonância, Lydon e Garcia (2015) afirmam que mobilizar a participação dos cidadãos é essencial, pois é o que assegura o equilíbrio entre interesses do poder público e da comunidade, bem como, ora, a reapropriação dos espaços subutilizados.

Sendo as reivindicações populares ouvidas e atendidas, o exercício do direito à reconstrução dos espaços públicos e à configuração da vida urbana — o direito à cidade, nos termos propostos por Harvey (2012) — supostamente se verifica. A ideia é que os moradores — que, por certo, conhecem o lugar onde vivem — possam apontar as demandas e as carências locais mais urgentes, consolidando seus sensos de pertencimento e de responsabilidade. Destaca-se, aqui, que, às suas maneiras, Jacobs (2011) e Brenner (2015) alinham-se a tal crença.

No caso em análise, observa-se que as intervenções tidas como permanentes e que atraem mais atenção, em geral, se restringem às “paisagens” da Vila Burity, que reconhecidamente ganharam mais cores e mais apelo estético à comunidade, bem como locais de lazer e convivência direcionados aos infantes, a exemplo do Campinho do Gogó, da Praça do Dominó e do Mirante Pôr do Sol. Mas o desgaste físico deles, causado pelo fluir do tempo, é evidente — e esperável. Não obstante, o aumento da circulação de crianças — e de seus cuidadores — pela comunidade revela sua reapropriação de espaços públicos que antes não lhes eram atrativos nem seguros.

Como apontam Dias e Ferreira (2015), de fato, cada vez mais os espaços urbanos das grandes cidades se mostram inapropriados para atender às necessidades da infância, de modo que boa parte das crianças brasileiras, independentemente da classe social, enfrentam a carência de infraestrutura e a ausência de equipamentos públicos voltados ao lazer, entretenimento ou cultura. Admitindo-se as fragilidades existentes, cabe exaltar os esforços do MVM para possibilitar aos sujeitos beneficiários conhecerem a vida urbana de forma eficaz, relacionando-se com pessoas diversas, o que, como indica Sarmento (2015), permite-lhes ampliar suas visões sobre a cidade e as possibilidades que ela oferece.

Ademais, a realização de ações norteadas à conscientização ecológica, em certa medida, estimulou o zelo e cuidado, engajando moradores na limpeza dos espaços urbanos, ao menos a princípio — e especialmente infantes, que demonstraram maior comprometimento. Porém, a destruição da horta e da composteira instaladas pelo programa, por exemplo, evidenciou que nem todas as intervenções apresentaram resultados exitosos. Mas, por ações semelhantes a estas duas, parece ser imprescindível que a comunidade, mais bem orientada, sinta-se responsável. E, assim, dê-lhes continuidade, com apropriadas manutenção e guarda. Logo, as ocorrências contraproducentes permitiram presumir-se que não houve uma completa identificação comunitária com todos os pontos requalificados.

Ressalta-se, em adição, que comunidades semelhantes à do bairro da Macaxeira são muito carentes e, apesar da valorosa intenção, o MVM não consegue mitigar os problemas estruturais graves delas, que afligem os moradores locais há décadas — como a combinação de arriscadas ocupações de áreas de encostas com precários sistemas de drenagens de águas pluviais. Admitindo-se a desafiadora realidade, reitera-se, a iniciativa é louvável e representa um passo importante, haja vista indicar uma tentativa dos órgãos públicos do município do Recife de melhorar a qualidade de vida das populações em condições mais vulneráveis — em especial das crianças —, como uma estratégia para reduzir a desigualdade e a violência urbana.

Tratando-se ainda dos infantes, em particular, verificou-se a persistência do predomínio de uma visão deles em função dos cidadãos que virão a ser — no futuro, quando forem adultos —, algo que deve ser abordado com cautela. É primordial se reconhecer que as crianças são cidadãs plenas agora — neste exato momento —, como já eram mesmo antes, e, por conseguinte, têm direitos e deveres estabelecidos pela CDC (1989), os quais devem ser indubitavelmente cumpridos, como os de proteção, provisão e participação.

Pinto e Puga (2019) afirmam, por exemplo, que os avanços no tocante aos direitos das crianças — sobretudo os de participação — têm sido lentos. Entretanto, surgem cada vez mais iniciativas, como o MVM, que procuram mudar a realidade adversa incluindo — ou, pelo menos, tentando incluir — os infantes nos processos de tomada de decisão, de forma que eles participem ativamente. Por certo, inspirado pelos achados de campo, constatou-se que o programa cria sim um contexto de participação para as crianças. Mas ele é temporário — e o tempo é curto —, uma vez que a forma como a comunidade concebe e enxerga as crianças não foi transformada. Ela não consegue vê-las como cidadãs nem reconhecer suas capacidades e competências para a participação, que, segundo Trilla e Novella (2001), são condições imprescindíveis para o exercício do direito em questão.

Não havendo reconhecimento da sociedade de sua condição de cidadã, as crianças também não reconhecem a si mesmas como tal, corroborando com o que afirmam Trilla e Novella (2001). Ante o cenário adverso a elas, pode-se supor que, embora boa parcela dos espaços da comunidade tenha a “cara das crianças”, sendo claramente direcionados para elas, pouco tempo após as intervenções elas foram de novo relegadas ao status de invisibilidade a que Qvortrup (2010) e Brostolin (2021) chamam atenção.

O MVM, em que pese a idealização de uma participação infantil que seja do tipo que Trilla e Novella (2001) chamam de projetiva, oferece, na prática, aquilo a que julgou-se apropriado chamar de “semiconsultiva”, dado que está dentro do espectro da participação consultiva, no entanto parece distante da participação consultiva vinculante, a situação mais desejável. Evidencia-se, ante o exposto, a relevância de se desenvolver um trabalho de conscientização contínuo, especialmente acerca dos direitos das crianças, estimulando uma cultura dirigida à participação social, mas não somente dos adultos. É vital reforçar o direito e a capacidade dos infantes de participar, considerando, é óbvio, suas idades, experiências e níveis de maturidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa buscou avaliar como o MVM transformou a relação das crianças com o espaço público na Vila Burity, no Recife (PE). Por resultado, observou-se que o programa realizou várias intervenções pautadas nos princípios do urbanismo tático, criando pontos de lazer, recreação e convivência direcionados principalmente a elas, inclusive em áreas antes subutilizadas. Como consequência, as crianças se reapropriaram dos espaços públicos — agora mais atrativos e um pouco menos inseguros — acompanhadas dos pais e/ou de outros familiares, atribuindo mais vida às ruas e calçadas. Infelizmente, no que se refere à participação, os espaços criados para tal foram temporários, pois a sociedade, em sua maioria, não consegue enxergar crianças como cidadãs plenas e competentes à participação, de modo que, após as intervenções, elas voltaram ao status de invisibilidade, não tendo a oportunidade de participar das decisões comunitárias relativas à vida urbana e de exercer seus direitos — em especial, o direito à cidade.

Constatou-se, portanto, que as intervenções realizadas pelo MVM na Vila Burity são, ainda, iniciativas experimentais e tímidas de melhorias das qualidades de vida dos moradores de comunidades em contexto de vulnerabilidade socioeconômica e não raro negligenciadas. Embora as intervenções tenham sido ambiciosas, elas parecem lograr resultados bastante aquém dos prometidos — e almejados — pelo poder público. É importante ressaltar, porém, que isto não significa que as iniciativas do MVM tenham sido um completo desperdício de esforços. Pelo contrário, implica dizer que elas deveriam ser regularizadas e reforçadas, numa rotina de trabalho contínuo. Assim, sugere-se, a título de exemplos, que sejam firmadas parcerias com as associações de bairro comunitárias e/ou com instituições escolares e religiosas, a fim de dar prosseguimento às primeiras ações executadas; e que sejam feitas avaliações críticas derivadas do know-how da comunidade, reunindo os participantes pioneiros, avaliando os resultados e reiniciando os ciclos de intervenções.

Diante do exposto, como contribuição teórica, destaca-se que a pesquisa ampliou o conhecimento nas áreas da sociologia da infância, de políticas públicas e de planejamento urbano, explorando como políticas públicas direcionadas à primeira infância podem provocar transformações na relação de crianças com espaços públicos que, em regra, são hostis a elas. No que tange às implicações gerenciais, assente nas potencialidades do MVM, mas sobretudo em suas fragilidades, teceram-se algumas sugestões de ações, as quais poderão servir de subsídios ao aprimoramento tanto desta quanto de outras políticas públicas semelhantes. Por termo, sugere-se que se desperte à oportunidade do desenvolvimento de novas pesquisas onde o engajamento ao programa não foi tão forte quanto na Vila Burity — considerada um caso bem-sucedido —, em função de se realizar uma avaliação holística desta política pública, para identificar fatores influenciadores de sucessos e/ou de fragilidades.

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