"Viva São João!" Dimensões Afetivas e Estéticas na Organização de Festas Populares

"¡Viva San Juan!" Dimensiones Afectiva y Estética en la Organización de Fiestas Populares

"Long Live Saint John's Fete!" Affective and Aesthetic Dimensions in Organizing Popular Parties

Ítalo da Silva
UFPE, Brasil
Elisabeth Cavalcante dos Santos
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Pâmela Karolina Dias
PPGIC/UFPE, Brasil

"Viva São João!" Dimensões Afetivas e Estéticas na Organização de Festas Populares

Administração Pública e Gestão Social, vol. 16, núm. 1, 2024

Universidade Federal de Viçosa

Recepción: 05 Febrero 2023

Aprobación: 28 Julio 2023

Publicación: 13 Enero 2024

Resumo: Contexto: Inspirado no documentário Viva São João, o caso apresenta o engajamento de Dona Benta, líder comunitária da cidade de Exu, em três momentos coletivos que constituem a organização da festa tradicional de São João: (1) o ciclo de plantação, cultivo e colheita do milho para preparação dos alimentos típicos; (2) as brincadeiras comunitárias; (3) e a perspectiva sagrada e mística das celebrações religiosas em torno de Santo António, João Baptista e São Pedro.

Dilema: Dona Benta e seus amigos se veem frente aos desafios para organizar a festa de São João diante do desinteresse e desengajamento de algumas pessoas, principalmente num momento marcado pelo fim da pandemia de Covid-19.

Fechamento do Caso: A expectativa é que as festas juninas possam ser compreendidas como organizações, a partir dos Estudos Baseados em Prática, destacando os elementos estéticos e afetivos que compõem este fenômeno.

Palavras-chave: Festas, Organizar, Prática, Estética, Afeto.

Abstract: Context: Inspired by the documentary Viva São João, the case presents the engagement of Dona Benta, a community leader in the city of Exu, in three collective moments that constitute the organization of the São João festival: (1) the cycle of planting, cultivating and harvesting maize for preparing typical foods; (2) community games; (3) and the religious, sacred and mystical celebrations of Saint Anthony, Saint John the Baptist and Saint Peter.

Dilemma: Dona Benta and her friends are faced with the challenges of organizing the São João festival. The central challenge is the lack of interest and disengagement of people in the community in organizing the festival, especially at a time marked by the end of the Covid-19 pandemic.

Case Closing: The expectation is that the June festivities can be understood as organizations, based on Studies Based on Practice, highlighting the aesthetic and affective elements that make up this phenomenon.

Keywords: Parties, Organize, Practice, Aesthetics, Affection.

Resumen: Contexto: Inspirado en el documental Viva São João, el caso presenta el compromiso de Doña Benta, líder comunitaria de la ciudad de Exu, en tres momentos colectivos que constituyen la organización de la fiesta tradicional de São João: (1) el ciclo de siembra, sembrar y cosechar el maíz para preparar comidas típicas; (2) juegos comunitarios; (3) y la perspectiva sacra y mística de las celebraciones religiosas en torno a Santo António, João Baptista y São Pedro.

Dilema: Doña Benta y sus amigos enfrentan los desafíos de organizar la fiesta de São João ante el desinterés y desinterés de algunas personas, especialmente en un momento marcado por el fin de la pandemia de Covid-19.

Cierre del Caso: La expectativa es que las fiestas de junio puedan ser entendidas como organizaciones, a partir de Estudios Basados en la Práctica, destacando los elementos estéticos y afectivos que componen este fenómeno.

Palabras clave: Fiestas, Organizar, Práctica, Estética, Afecto.

“Ai que saudade que eu tenho das noites de São João”[ii]

“A vida aqui só é ruim/ quando não chove no chão

Mas se chover dá de tudo/ Fartura tem de montão

Tomara que chova logo/ Tomara, meu Deus, tomara

Só deixo o meu Cariri/ No último pau-de-arara”.[iii]

- Fagner

“A minha terra é pobre/ porém meu povo é nobre/eu quero ver o meu velho novo Exu”. É assim que Dona Benta Gonzaga, prima distante de Luiz Gonzaga, relembra a música do “Rei do Baião”, título atribuído a Luiz Gonzaga por popularizar o ritmo musical “baião” e as tradições culturais do São João nordestino. Dona Benta tem 79 anos de idade e sempre morou numa cidade pequena do interior do Estado de Pernambuco chamada Exu, com aproximadamente 32 mil habitantes. Também foi nas terras de Exu que Luiz Gonzaga nasceu e cresceu, fazendo da cidade ponto turístico para quem gosta de zabumba[iv], sanfona e triângulo, instrumentos musicais utilizados para tocar o ritmo do forró.

O município de Exu fica localizado próximo a Serra do Araripe, demarcando a divisa entre os Estados de Pernambuco e Ceará. Dona Benta gosta de dizer que a origem do nome da cidade é uma herança da comunidade tradicional indígena do Cariri chamada de “Ançu” que habitava a região no início da ocupação das terras. Cidade de clima quente, vegetação rasteira e pouca umidade, a população de Exu tem na agricultura sua principal fonte de trabalho, principalmente durante as épocas de plantação e colheita que antecedem os festejos juninos, que é quando Dona Benta mais trabalha.

Além de agricultora e excelente cozinheira, Dona Benta é uma importante líder comunitária na região, conhecida por resguardar, junto a outras lideranças locais, como Seu Joaquim, seu Tino, Dona Celestina e Dona Isabel, as famosas festas juninas, que acontecem em devoção aos santos Antônio, João Batista e Pedro, e que marcaram a sua infância e juventude. A fé de Dona Benta nos santos é um dos elementos que a faz se envolver ativamente na organização dos festejos juninos todos os anos, mas a memória viva da alegria dos festejos, e a capacidade que eles possuem de unir a comunidade também fazem Dona Benta encarar esta tarefa como um importante compromisso.

Ela sempre lembra das noites de forró que aconteciam numa pequena casa de taipa que existia no centro da cidade. A casa era muito pequena e reunia os moradores locais que voltavam do trabalho no campo à tardezinha. Com lugares apertados, havia algumas mesas espalhadas em volta de um palco improvisado onde o sanfoneiro puxava o forró acompanhado da zabumba e do triângulo, e havia um local onde era produzida a comida típica, feita principalmente de milho.

Seu Joaquim da casa de taipa, como é conhecido na região, mantém ainda hoje esse lugar que ocupa a memória afetiva de Dona Benta e de tantas outras pessoas da região, apesar de não acolher a festa há alguns anos. Em conversa, os dois resgatam importantes memórias dos festejos juninos:

Seu Joaquim: “Tu lembra, Benta, das noites antes de chegar o mês de junho? Era um bando de noite arretadas com forró até umas horas. Tocando sempre as músicas de Gonzagão, brincavam moças e rapazes, novos e velhos, quem quisesse se achegar”.

Dona Benta, emocionada, canta: “Aiiii que saudades que eu sinto das noites de São João… Das noites tão brasileiras nas fogueiras sob o luar do sertão… das noites tão brasileiras nas fogueiras sob o luar do sertão…”[v]

Seu Joaquim, contagiado pela emoção de Dona Benta, pega um triângulo e a acompanha na cantoria: “Meninos brincando de roda soltando balão. Moços em volta à fogueira brincando com o coração... Eita, São João dos meus sonhos. Eita, saudoso sertão, ai, ai...”.

Eles sentem um misto de emoções que vem com as lembranças: da alegria expressa com um sorriso no rosto, à saudade que arrepia a pele. Empolgando com as lembranças das festas na casa de taipa, Seu Joaquim dá outro tom ao som do triângulo e começa a cantarolar outra canção:

Seu Joaquim: “Era festa de alegria, São João! Tinha tanta poesia, São João! Tinha mais animação… Mais amor, mais emoção… Eu não sei se eu mudei… Ou mudou o São João”[vi]

Dona Benta, sorrindo, pergunta: “Joaquim, cê acha que mudou mesmo o São João ou foi a gente que tá velho demais?”

Seu Joaquim responde: “Ah, Benta, mudou demais o São João! Cantoria boa é essa a nossa que virávamos as noites cantando e dançando forró do baião. Ai que saudade das noites antigas de São João!”

Com a possibilidade de voltar a reunir pessoas e realizar festas após as restrições de segurança devido à pandemia de Covid-19, que inviabilizou a realização dos festejos juninos por dois anos, Dona Benta, junto a seu Joaquim e outras lideranças locais, se veem diante da responsabilidade de organizar uma festa que, além de cumprir com a função de prestar homenagem aos santos Antônio, João Batista e Pedro, marque o reencontro entre as pessoas da comunidade, após um momento tão difícil para a todos e todas. Porém, como Dona Benta e Seu Joaquim expressam em sua conversa-cantoria, muita coisa mudou, logo, eles se veem diante de alguns desafios para organizar a festa.

“Peça pro meu milho dar vinte espigas em cada pé”

“Ai São João, São João do Carneirinho

Você é tão bonzinho… Fale com São José

Fale lá com São José, peça pra ele me ajudar

Peça pro meu mio dar… 20 espigas em cada pé”[vii]

- Luiz Gonzaga

Organizar os festejos juninos envolve um árduo trabalho, que começa antes mesmo do mês de junho, por meio da agricultura. A agricultura representa o ciclo de atividades campestres que se relaciona com a vivência das festas juninas. O hábito de plantar, cultivar e colher é tradicional entre as famílias que moram em Exu, sendo repassado há gerações de avós, pais e mães para filhos(as) e netos(as). Embora o clima da região seja seco com pouco períodos de chuva, os meses de março, abril e maio são propícios para a plantação de milho, feijão e alguns tipos de legumes e verduras.

Geralmente, o mês de março é o período de preparo da terra que costuma ser arada com a ajuda de animais, como cavalos e bois, e o arado, instrumento de ferro com discos em metal que é arrastado pelos animais sobre a terra. A plantação, o cultivo e colheita trazem a representação de fartura para o mês junino e permitem a subsistência de muitas famílias da cidade de Exu, pois elas também comercializam o que é colhido em pequena escala.

Dona Benta, que aprendeu a plantar, cultivar e colher com seu avô, hoje conta com a ajuda de seu marido e de um de seus filhos no trabalho com agricultura. Este ano, a família dela e tantas outras da região estão empolgadas, principalmente com o plantio de milho e da macaxeira, que garantirá as comidas típicas que encantarão todos e todas durante a festa do mês de junho. As demandas por bolos, pamonhas[viii], canjicas[ix] e mungunzá[x] crescem e movimentam a economia da cidade. O cheiro e a degustação de comidas são importantes para a experiência cultural em torno dos festejos juninos.

No começo de junho, as primeiras colheitas já começam a ser feitas, e Dona Benta já começa a testar algumas receitas. Dona Benta aprendeu a cozinhar com sua avó Luzia ainda muito pequena. Durante o dia, ela frequentava o roçado com seu avô Mané e seu pai Josué, e durante a noite aprendia a fazer as comidas tradicionais que derivam do milho com sua avó: mungunzá, canjica, pamonha, bolos etc. O “jeito correto de mexer” e as quantidades adequadas dos ingredientes são importantes no preparo das comidas, que trazem para Dona Benta a lembrança dos seus pais e avós.

Figura 1 Preparo das comidas de milho
Figura 1 Preparo das comidas de milho
Nota. Imagem retirada do documentário Viva São João (2022), dirigido por Andrucha Waddington e narrado pelo compositor Gilberto Gil.

Enquanto cozinham, Dona Benta e Dona Celestina, amiga de infância e principal responsável pelo preparo das comidas típicas da festa da comunidade, conversam:

Dona Benta: “A minha terra dá de tudo que plantar… O Brasil dá tanta coisa que eu não posso decorar… Dona Chiquinha bote o milho pra pilar… pro angu, pra canjiquinha… pro xerém, pro munguzá…”[xi].

Dona Celestina: “Eita Benta, essa música lembra demais o trabalho com o milho. Sacoleja de um lado, sacoleja do outro, e a comida vai ficando pronta e as lembranças vem vindo de pouquinho. E para fazer o bolo de macaxeira então? É gostoso por demais, mas dá um trabalho torcer o caldo que sai da macaxeira. Tem que ter muita força na mão”.

Dona Benta: “O cheirinho do bolo de macaxeira faz lembrar da minha vó, que gostava demais. Aprendi a fazer com ela. Eu torcia com as mãos a macaxeira num pano de prato pra sair o caldo branco pra dá o gosto no bolo. Mas trabalho mesmo dá para fazer pamonha. Ralar o milho carece de força demais nos braços. Faço como minha avó me ensinou. Pena que meus filhos nem se interessam em aprender...”

Apesar da importância da agricultura e do preparo das comidas típicas, Dona Benta percebe que os mais jovens não se interessam em aprender essas práticas. Já ouviu jovens da comunidade comentarem que preferem comprar as comidas do que fazê-las, pois são muito trabalhosas. Plantar, cultivar e colher os alimentos também não é interesse de alguns jovens, que tem se dedicado mais aos estudos, como no caso de um dos filhos de Dona Benta, que se mudou de Exu para fazer universidade.

Assim, Dona Benta e Dona Celestina se veem diante do desafio de produzirem os alimentos com poucas pessoas para ajudar, tornando o trabalho ainda mais árduo e colocando em risco a manutenção de importantes saberes.

“A fogueira tá queimando em homenagem a São João”[xii]

“O candeeiro se apagou

O sanfoneiro cochilou

A sanfona não parou

E o forró continuou”[xiii]

- Luiz Gonzaga

Para Dona Benta, na organização dos festejos juninos, não podem faltar o forró, as roupas personalizadas, os fogos de artifícios, as fogueiras, as bandeirinhas coloridas e a dança, que traduzem as dimensões artísticas e envolvem percepções estéticas e afetivas das festas populares. Dona Benta gosta de dizer que o forró é a estrela da festa, e explica os significados atribuídos a este ritmo, lembrando da importância dele para a manutenção da cultura nordestina na cidade de Exu. Em conversa com Seu Tino, conhecido por coordenar o único grupo de quadrilha da cidade chamado "Rasta-pé", Dona Benta lembra a importância das músicas do seu primo Gonzaga.

Dona Benta: “Tino, o forró é o que é hoje por causa de Gonzaga que espalhou pelo mundo afora nossa cultura, nossa gente, nosso requebrar, nossas coisas”.

Seu Tino: “É sim, Benta! nosso forró, nosso orgulho”.

Dona Benta: “Puxa uma cantoria Tino de qualquer música de Gonzaga para relembrar os bons tempos".

Seu Tino: “Foi numa noite igual a esta… Que tu me deste o coração… O céu estava assim em festa… Porque era noite de São João”[xiv]

Dona Benta continua a cantoria da música: “Havia balões no ar… Xote, baião no salão… E no terreiro[xv] o teu olhar… Que incendiou meu coração”.

Seu Tino: “Pra dançar bem o forró tem que ter molejo e gingado pra arrastar o chinelo” (risadas).

Dona Benta: “O forró tem dessas coisas, né Tino? Corpo com corpo ali. Você e seu parceiro. No ritmo, no toque, no gingado. Dançar forró tem que ter intimidade. É preciso arrastar o chinelo”.

Seu Tino: “Tem que ter, Benta. Tem que escutar o ritmo e mexer o corpo num mesmo tempo. Tem que saber guiar a moça e deixar que seja guiado também. Isso é nossa cultura, diferente dessas músicas que tocam na rádio hoje em dia, esses ritmos estilizados”.

Dona Benta: “São João tem que ter forró raiz, não é mesmo, Tino?… Tem que ter dança e fogueira”.

Seu Tino: “O que move a quadrilha é o forró raiz. É o coração da dança”.

A quadrilha é uma manifestação cultural típica dos festejos juninos. Seu Tino, durante 20 anos, orientou a única organização de quadrilha da cidade, a quadrilha "Rasta-pé", que costumava fazer apresentações nas vésperas das datas alusivas aos santos Antônio, João Batista e Pedro. Além também de fazer apresentações nas cidades vizinhas. A preparação para as apresentações ocorre durante todos os meses do ano que antecede os festejos juninos. Os ensaios são recorrentes para que os brincantes aprendam os ritmos e sincronizem os movimentos dos corpos. O cortejo de casais é ornamentado. As vestimentas contam a história da música e dança junto com os brincantes.

Os modelos, as cores e os adereços das roupas dos brincantes são pensados com bastante cuidado. As cores usadas nas vestimentas precisam ser exaltadas com os movimentos da dança

entre a sincronização do ritmo e a sequência de passos ensaiados. Seu Tino lembra que “[...] para dançar a quadrilha é preciso muita dedicação. Tem que ensaiar, ensaiar, ensaiar... até pegar o ritmo. É preciso ter gosto pra dançar quadrilha em torno da fogueira”. A fogueira é um elemento característico das brincadeiras juninas. A lenha e o fogo dão a expressão típica das origens das festas rurais do São João, no qual a fogueira servia para aquecer e iluminar as noites das festas.

Figura 2 Quadrilha
Figura 2 Quadrilha
Nota. Imagem retirada do documentário Viva São João (2022), dirigido por Andrucha Waddington e narrado pelo compositor Gilberto Gil.

Seu Tino também relembra de outras expressões culturais em torno das festividades: “[…] o trem do forró pé de serra, a brincadeira do casamento matuto[xvi], a banda de pífano e as espadas de luz do buscapé[xvii] são tudo brincadeira do São João. É uma festa só. Tudo pra comemorar e brincar com alegria”.

As dimensões festivas do período junino se expandem para inúmeras representações culturais. O trem do forró pé de serra é uma das atrações mais alegres. Nas antigas ferrovias e estações, brincantes entram num trem em que todo o percurso é realizado escutando o forró pé de serra, no qual a dança acontece nos saguões. A banda de pífano também alegra o percurso. Já as espadas de luz são uma brincadeira antiga em que os brincantes utilizam a madeira de taboca com pólvora para provocar o fogo que é arremessado aos céus e ilumina o local. O casamento matuto é uma encenação de teatro popular cômico para alegrar e entreter os adeptos.

Uma das grandes dificuldades de Seu Tino para organizar a quadrilha é conseguir pessoas dispostas a se dedicarem aos ensaios durante meses. Assim como Dona Benta, Seu Tino também sente desinteresse por parte dos mais jovens.

Ele também acredita que o forró raiz é que deve dar o tom da quadrilha, apesar desse ritmo já não ser tão ouvido na região. Conseguir recursos necessários para confeccionar as roupas e construir os cenários da quadrilha também tem se mostrado desafiador para Seu Tino após a pandemia, tendo em vista que muitas empresas locais foram afetadas e seus principais patrocinadores se encontram em situação financeira delicada.

Além disso, Seu Tino também percebe que as brincadeiras juninas tradicionais também não parecem estar alinhadas ao estilo de vida dos mais jovens na atualidade. Seu Tino se vê preocupado em como garantir que a tradição da quadrilha se mantenha viva, diante de tantas mudanças e dificuldades.

Um grande clarão é uma fogueira: Nasceu São João”

“Eu vou, vou soltá foguete

Eu vou, vou soltá balão

Eu vou festejá São Pedro

Eu vou festejá São João”[xviii]

-Luiz Gonzaga

As festas juninas são reflexos da experiência religiosas dos adeptos. A mistura entre o sagrado e o profano parece ser parte da experiência junina na comunidade de Exu. As novenas, os terços e as procissões fazem parte da programação religiosa em que a festa de junho acontece. A gratidão pelo plantio e colheita realizada no ano entra nas preces dos religiosos. Além disso, São João Batista é o santo padroeiro da cidade de Exu e as rezas de devoção são mais fortes nas duas semanas antes da data de 24 de junho, no qual a procissão acontece nas principais ruas da cidade. Dona Benta sempre foi bastante devota e lembra ao conversar com sua amiga Dona Isabel que “[...] festa do primo de Jesus, São João Batista é importante pra gente demais. É tempo de agradecer pelas bênçãos que recebemos por estar vivendo e comendo”. Dona Isabel, amiga de Dona Benta, é uma importante líder religiosa da cidade de Exu, e tem se dedicado mais de 30 anos ao cristianismo. É a ela que Dona Benta recorre para consolidar a base religiosa dos festejos juninos, ponto fundamental da organização do evento.

A tradição religiosa em Exu começa no dia 01 de junho e se estende por todo o restante do mês. Antes da pandemia, toda manhã de segunda a domingo, às 5 horas, era rezado um terço em preces aos três santos que são comemorados: Antônio, João Batista e Pedro. Dona Benta costumava ir dia sim, dia não, rezar o terço na igreja católica no centro da cidade. Havia dias da semana que Dona Benta costumava ir ao roçado apurar a plantação e por isso não conseguia ir logo cedo ao terço. Mas, o mesmo terço era rezado na parte da noite, às 19 horas, e Dona Isabel coordenava o terço neste horário. Assim, Dona Benta, de vestimenta branca, uma imagem pequena do santo em gesso no braço esquerdo, um terço e uma garrafa de água benzida no outro braço, assim como tantas outras senhoras da comunidade, participava das rezas.

A imagem do santo católico que costumava ser levado aos terços variava de acordo com o decorrer do mês. Até o dia 12 de junho os terços eram em devoções em Santo Antônio, popularmente conhecido como santo casamenteiro. Em seguida, a cidade de Exu se programava para as novenas em devoção a São João Batista, padroeiro da cidade, que no dia 23 de junho recebe uma procissão em sua homenagem. Dona Isabel, muito devota de São João Batista, aprendeu desde cedo a acompanhar a procissão descalça, carregando o terço que recebeu de sua avó. Até os dias atuais, Dona Isabel mantém a tradição e leva consigo o mesmo terço que ganhou de sua avó como demonstração de afeto e lembrança.

Dona Benta também possui um amuleto que ganhou de seu pai quando criança. É uma imagem em miniatura de São João Batista esculpida em madeira. Dona Benta preserva a imagem com muito cuidado e fazia questão de levar a imagem consigo todas as noites dos novenários. A imagem é abençoada junto com a água que sempre carrega consigo. Para Dona Benta, a imagem de São João Batista faz lembrar seu pai, e abençoar o amuleto é a forma de garantir que no ano subsequente seja abençoado com novas colheitas.

Após as comemorações em homenagem a São João Batista, os terços matinais e noturnos continuavam até o dia 29 de junho em devoção a São Pedro. Na crença dos devotos, São Pedro é responsável por garantir a passagem de boas-vindas ao céu e as bênçãos de fatura. Parte importante das tradições religiosas são os andores em que as imagens dos santos eram levadas em procissão pelas ruas da cidade de Exu. As igrejas eram enfeitadas com flores em tons de branca e amarelo. Os andores com as imagens em gesso eram expostos na entrada da igreja, sempre rodeados de flores aos pés das imagens dos santos. Em toda celebração religiosa, o vigário na frente da igreja dava vivas em homenagem a São João: “Viva ao senhor São João! Viva a São João! Viva ao São João Batista neste ano e no outro, e no outro, e no outro ano”.

Figura 3 Procissão
Figura 3 Procissão
Nota. Imagem retirada do documentário Viva São João (2022), dirigido por Andrucha Waddington e narrado pelo compositor Gilberto Gil.

Tradicionalmente, a procissão acontecia dia 23 de junho, véspera do dia de São João Batista, com os andores com a imagem dos três santos pelas ruas da cidade, com destaque para o andor do santo padroeiro São João Batista. Ao conversarem, Dona Benta e Dona Isabel cantam a música de Luiz Gonzaga que relembra um mito em torno do nascimento de João Batista e as origens das festas juninas.

Dona Benta: “Um grande clarão e uma fogueira… Nasceu São João… Por isso que o mundo com muita razão… Assim festeja O Senhor São João”.

Dona Isabel continua cantando: “Disse que São João foi dormir e que só se acordou no dia de Pedro [...]” (risadas).

Dona Benta: “E São João se zangou pois tinha pedido à santa família que lhe acordasse… Chegando o seu dia… Mas se ele saísse do sono profundo… Um grande incêndio acabava o mundo” (risada).

Dona Isabel: “Mas Gonzaga era criativo com as histórias viu”.

Dona Benta: “Oh se era Isabel, oh se era [...]”.

Nessa mesma conversa, Dona Isabel conta a Dona Benta que, passado o período de isolamento social em função da pandemia da Covid-19, percebeu mudanças na rotina das missas na igreja, o que a tem deixado preocupada. Para ela, há menos pessoas frequentando as missas, e muitas pessoas parecem ter deixado de ter fé diante de tantas perdas sofridas. Isso impacta na instituição de diferentes formas, inclusive financeiramente, pois a comunidade é a principal responsável pela manutenção da igreja.

Ela relata tudo isso para Dona Benta, que também se preocupa diante da necessidade de organizar a festa junina.

Dilema do Caso:

Organizar o festejo junino sempre foi um desafio para Dona Benta, dado que é um evento complexo que envolve diferentes dimensões, algumas quantificáveis, como a financeira, e outras subjetivas, como a estética e a afetiva. Diante dos acontecimentos atuais, este desafio tomou proporções ainda mais amplas, exigindo mais de Dona Benta e de seus amigos. Como organizar um evento que envolve tantas tradições num mundo marcado por tantas mudanças?

Notas de Ensino

Objetivos educacionais

Com a leitura e discussão deste estudo de caso, acredita-se instigar os estudantes a: (1) refletir como as festas populares apresentam uma lógica organizativa própria; com a expectativa de (2) compreender as relações afetivas envolvidas na manutenção da festa; bem como (3) discutir os elementos estéticos que dão significados às festas juninas para a cidade de Exu. O estudo de caso pode ser aplicado nas disciplinas de Macroanálise das Organizações (ou Análise Organizacional) e Gestão Social. Além disso, a aplicabilidade do caso pode ser estendida às disciplinas de pós-graduação na área de Estudos Organizacionais.

Fonte dos dados

A construção da narrativa do caso foi desenvolvida e adaptada a partir do documentário “Viva São João”, dirigido pelo cineasta Andrucha Waddington e narrado pelo compositor Gilberto Gil. O longa foi lançado em 14 de junho de 2022 e ambientaliza a turnê de Gilberto Gil em diversas cidades e comunidades rurais no interior do Nordeste, participando das comemorações católicas alusivas aos festejos juninos em devoção aos santos católicos, em especial, São João Batista. Os diálogos foram adaptados das falas dos personagens presentes no longa-metragem. Para melhor fluidez da narrativa do caso, as falas foram todas editadas com o intuito de exaltar as dimensões estéticas e afetivas que englobam a organização da festa junina.

É importante ressaltar que os nomes dos personagens e a história contada são fictícios, desenvolvido especificamente para a ambientalização do estudo de caso. Como fonte secundária, foram utilizadas as músicas de Luiz Gonzaga que contribuíram diretamente para a construção das narrativas. As músicas selecionadas foram aquelas que faziam menção direta às festas juninas e as tradições culturais nordestinas. Ao longo de toda narrativa, é possível acessar os links que direcionam o leitor a ouvir as músicas que são faladas pelos personagens da história. As músicas são utilizadas como fontes de informações que aguçam a dimensão estética da narrativa.

Aspectos pedagógicos

Quanto à aplicação do estudo de caso, recomenda-se que a narrativa proposta seja apresentada aos estudantes com antecedência de, no mínimo, uma semana antes da discussão das questões apresentadas para reflexão. Inicialmente, sugere-se que o(a) professor(a) realize a explanação sobre a importância das festas populares para a cultura e o desenvolvimento local. Em sequência, é recomendado que seja explicado as temáticas de cunho teórico sobre o organizar e as dimensões afetiva e estética presentes no organizar das festas. O guia teórico proposto em sequência pode servir de apoio neste processo inicial. Além disso, é preciso ambientalizar a temática sobre as festas juninas com o intuito de ressaltar os elementos estéticos e afetivos que permeiam as tradições festivas no nordeste brasileiro mais detalhadamente. Isso pode ser realizado por meio de apresentação do documentário que serviu de base para a construção deste estudo de caso, nomeadamente, “Viva São João”, dirigido pelo cineasta Andrucha Waddington e narrado pelo compositor Gilberto Gil.

Após as explicações iniciais sobre os temas tratados na narrativa do caso, é sugerido que a narrativa propriamente dita seja entregue aos estudantes divididos em grupos de 5 integrantes em média. O(a) professor(a) pode ler o estudo de caso junto com os estudantes em sala de aula e recomendar nova leitura em grupo com período de uma semana para realização. Com o intuito de trabalhar a perspectiva estética, o(a) professor(a) pode ambientalizar a sala de aula a partir dos elementos estéticos que compõem as tradições das festas juninas, como roupas, comidas, sons e brincadeiras. Os estudantes podem vir trajados de roupas que remetem aos brincantes das festas. Além disso, o(a) professor(a) pode sugerir a criação de ambiente de confraternização entre os grupos de estudantes, produzindo comidas e bebidas típicas na produção de espaço festivo.

Ao longo da ambientalização estética, as músicas indicadas na nota de rodapé no decorrer da história narrada no estudo de caso podem ser tocadas enquanto ferramenta didática para aguçar a percepção dos estudantes. Com isso, também é sugerido que o(a) professor(a) explique sobre a vida e a obra de Luiz Gonzaga, ressaltando sua importância para a cultura nordestina. Após isso, as questões para reflexão do caso podem ser apresentadas aos grupos de estudantes. Ressalta-se que as quatros questões iniciais propostas, apresentadas na seção a seguir, não limitam a elaboração de novas questões por parte dos professores(as), ou mesmo dos estudantes, sobre a temática.

Quanto à forma de avaliação, os estudantes podem ser avaliados pela elaboração do relatório em grupo referente às questões propostas. A participação na discussão sobre o tema pode ser critério avaliativo sob a escolha do(a) professor(a). A quadro 1 em sequência sintetiza a proposta didática para a aplicação do estudo de caso na sala de aula. Em linhas gerais, a expectativa de trabalhar a narrativa apresentada neste estudo de caso é aguçar a percepção dos estudantes sobre as dimensões estéticas e afetivas que as festas populares, em especial as festas juninas tradicionais da cultura nordestina brasileira, podem proporcionar durante sua organização.

Quadro 1 Guia para aplicação do caso
Quadro 1 Guia para aplicação do caso
Nota: Os autores (2022).

Questões para reflexão

1. Como as festas juninas ambientadas na comunidade de Exu podem ser caracterizadas na perspectiva do organizing/organizar ?

2. De que modo a comunidade de Exu mantém a existência das festas juninas enquanto organização?

3. Por que é importante considerar os elementos estéticos no organizar das festas juninas da comunidade de Exu?

4. Quais os afetos percebidos no organizar das festas juninas da comunidade de Exu e por que são importantes?

5. Diante das dificuldades de Dona Benta e demais lideranças para organizar os festejos juninos de Exu, principalmente num momento posterior à pandemia da Covid-19, quais sugestões você, enquanto gestor(a), daria para os personagens?

Guia Teórico para análise

O organizar das festas populares e suas dimensões estéticas e afetivas de análise

A expectativa deste estudo de caso é dimensionar as expressões estéticas e afetivas presentes no organizar das festas populares. De maneira mais específica, o intuito é estimular a reflexão sobre o organizar das festas juninas, envolvendo os festejos desenvolvidos pelos moradores da cidade de Exu. A narrativa do caso expõe três temas ou eixos principais que se relacionam no organizar da festa junina: (1) o ciclo de plantio, cultivo e colheita da agricultura familiar, bem como o preparo das comidas típicas pelos membros da comunidade; (2) as brincadeiras comunitárias que envolvem os festejos, em particular o forró e as quadrilhas juninas; e (3) a perspectiva sacra e mística das celebrações religiosas em torno dos santos Antônio, João Batista e Pedro. Mediante esses três eixos centrais da narrativa, sugerimos realizar a análise do caso acionando os Estudos Baseados em Prática (EBP) para compreender o organizar como unidade analítica, perpassado por dimensões estética e afetiva, que sustentam a durabilidade das festas populares. Assim, sugere-se que as festas populares sejam percebidas como lócus de análise de gestão e organização.

A primeira questão proposta para o debate em sala de aula é: Como as festas juninas ambientadas na comunidade de Exu podem ser caracterizadas na perspectiva do organizing/organizar ? Inicialmente, utiliza-se o entendimento de que as festas populares são lugares constituidos por hábitos e costumes cotidianos, ao mesmo tempo que constroem identidades em determinadas comunidades ou grupos específicos de pessoas envolvidas nas festas (Waterman, 1998). Há argumentos na literatura sobre festas populares que o organizar dessas festas é resultado de processos estéticos e afetivos envoltos tanto na produção quanto no consumo da cultura (Waterman, 1998; Ryan & Wollan, 2013; De Molli, Mengis, & van Marrewijk, 2020).

Em especial no contexto das festas juninas, a prática da agricultura, das brincadeiras e danças de ruas, bem como do respeito à dimensão religiosa - são exemplos da diversidade das manifestações culturais que dão sentido à existência da festa (Castro, 2012). Assim, as práticas cotidianas narradas nos três eixos temáticos do estudo de caso são momentos importantes no organizar da comunidade de Exu para a realização das festas juninas. Para Castro (2012), as festas juninas apresentam específica dinâmica cultural que mobiliza diferentes intensidades, afetos e inúmeras comunidades nos municípios nordestinos. Similarmente, Amaral (1998, p. 89 e 166) afirma que as festas populares não se permitem confundir uma com as outras, principalmente no contexto das festas juninas, pois “o São João adquire tal importância na vida social nordestina”, ao passo que induz e afeta as “experiências do sentir-se brasileiro”.

Dessa maneira, as festas juninas possuem determinadas características apresentadas ao longo da narrativa do estudo de caso que promovem a distinção frente às outras festas. É sabido que “essa distinção não poderia ocorrer sem organização e estrutura” (Carvalho & Madeiro, 2005, p. 175). Em termos teóricos, desde o chamado à “virada da prática” nos Estudos de Gestão e Organização (Management and Organization Studies - MOS), há um esforço crescente dos teóricos organizacionais de diluir as fronteiras ontológicas rígidas sobre o que se entende por “organização” e “gestão” (Schatzki, 2001), ou seja, foi cultivada a preocupação em compreender como as organizações acontecem na (e a partir da) “prática” como perspectiva epistêmica (Schatzki, 2006; Gherardi, 2009; Miettinen, Samra-Fredericks, & Yanow, 2009; Sandberg & Tsoukas, 2011).

Esse movimento teórico apresentou novas perspectivas ontológicas e epistemológicas que foram abraçadas no MOS sob o manto de diferentes correntes de pensamento. Bispo (2013) sugere que a noção de “prática” como unidade de análise sofreu influências diretas da tradição marxista, da fenomenologia, do interacionismo simbólico e do legado de Wittgenstein. Sob o olhar ontológico para a compreensão do que é “organização” e “gestão”, adota-se particularmente a perspectiva do organizing, ou do organizar, baseado na dimensão processual das organizações e dos fenômenos organizacionais, quando são compreendidos como processos instáveis, heterogêneos e mutáveis (Czarniawska, 2008; Duarte & Alcadipani, 2016). É desse modo que se recomenda caracterizar as festas juninas ambientadas na comunidade de Exu como práticas de organizar, ou seja, a partir das práticas cotidianas das pessoas.

Para Bispo (2013), pode-se entender o organizing como um conceito que percebe a relacionalidade entre os praticantes e as demais materialidades presentes em determinada prática, trazendo significativos ao processo organizativo de uma coletividade de praticantes materializados nas práticas enquanto maneira de organização e gestão. Em outros termos, a prática (ou o social) seria o resultado da interação entre humanos e não humanos, compreensão básica da abordagem sociomaterial (Moura & Bispo, 2019). Cabe destacar ainda que esta relação é marcada por afeto, questionando a compreensão do social como ordem normativa, que prevê certa regularidade, racionalidade e calculabilidade (Reckwitz, 2012). Na narrativa, por exemplo, pode-se perceber essa relacionalidade entre humanos e não humanos quando o personagem Joaquim improvisa um triângulo para puxar uma melodia na música de forró em referência a Luiz Gonzaga, ou quando as imagens dos santos católicos em gesso são colocadas no centro da procissão pelos devotos da cidade de Exu.

Como exemplo de estudo de caso que amplia o conceito comum de gestão e organização a partir dos EBP, está o trabalho de Santos e Helal (2018) que mobilizaram o conceito de organizing para compreender a manifestação cultural do maracatu como forma particular de organização. Para os autores, o organizar do maracatu é entendido pelas lentes do organizing que enxerga os processos organizativos como categoria central. Assim, o foco de análise foi situado no processo de organizar enquanto ciclos interligados de praticantes, estruturas hierárquicas relacionais e objetos materiais. Ora no momento de preparação das fantasias do maracatu, ora nos ensaios e apresentações culturais das organizações. Similarmente, pode-se estender essa percepção do que é organização para compreender as diferentes práticas cotidianas em volta das festividades juninas. Por exemplo, a produção de comidas típicas como a pamonha e a canjica, ou até mesmo as brincadeiras de quadrilhas, são processos de organização popular da festa.

Neste sentido, pode-se caracterizar o organizar das festas juninas na cidade de Exu a partir dos eixos temáticos apresentados na narrativa. A agricultura familiar e a produção das comidas, as brincadeiras de ruas e as comemorações religiosas são processos organizativos que envolvem parte dos moradores de Exu. Além disso, a dimensão simbólica desses processos organizativos está atrelada à materialidade das práticas de plantio, cultivo e colheita da agricultura familiar, por exemplo. As quadrilhas de rua, a brincadeira das espadas de luzes, os andores das procissões religiosas, entre outras expressões de processos organizativos, são exemplos de como o organizar das festas juninas na cidade de Exu está envolvida com diversos processos e práticas inseridos no cotidiano dos moradores da comunidade. É dessa maneira que a festa de São João pode ser entendida na perspectiva do organizar.

A segunda questão sugerida para reflexão é: De que modo a comunidade de Exu mantém a existência das festas juninas enquanto organização? Em parte, essa questão começa a ser respondida quando os estudantes elaboram a resposta para primeira questão. Em acréscimo, Toraldo e Islam (2017, p. 313) argumentaram que as festas são “modos históricos de organização econômico-simbólica”. Em parte, essa percepção sobre as festas atua na dimensão de durabilidade da organização cíclica que a comunidade se empenha em manter, mesmo após um acontecimento que interrompeu a realização da festa por dois anos. Em parte, também, as festas podem ser vistas como lócus de manutenção da cultura ao longo do tempo, no qual o passado é revivido e ressignificado. Amaral (1998, p. 89) argumentou algo similar quando propôs que “a festa, no Brasil, representa um papel constitutivo”. Logo, as festas juninas representam esse caráter de constituição de uma identidade local para a comunidade em que está inserida, mesmo entendendo que essa identidade nunca é única.

Na narrativa, os estudantes podem perceber que as memórias afetivas que os personagens como Seu Joaquim e Dona Benta trazem ao longo do texto são maneiras de manter acesa a cultura de organização da festa. Em específico com a personagem Dona Benta, a devoção religiosa e a habilidade em preparar os alimentos demonstradas são geracionais, repassadas pela sua avó, bem como a prática da agricultura, que foi repassada pelo seu avô. A dimensão geracional das práticas cotidianas é alusiva à manutenção da organização da festa junina. Santos et al. (2021) já haviam explicado como o caráter geracional dos saberes populares pode manter a duração das práticas do organizar. Assim, por exemplo, a manutenção do uso de instrumentos como a zabumba, sanfona e triângulo são importantes para tocar o ritmo do forró, que se envolve afetivamente com os praticantes humanos e mantém a prática das brincadeiras de ruas apresentadas no caso.

Na agricultura, a marcação cíclica de realização do plantio no mês de março e da colheita no mês de junho faz com que as práticas de cultivo se mantenham no tempo. Isso mantém o organizar da festa junina que faz da colheita do milho e da macaxeira, por exemplo, fonte de produção, distribuição, venda e consumo de comidas típicas na comunidade de Exu. Além disso, pode-se olhar para a devoção religiosa como práticas cotidianas que também mantém a organização da festa. Os terços, as novenas e as procissões vivenciadas pelas personagens Dona Benta e Dona Isabel são características comuns que demarcam as festas juninas. Como Ryan e Wollan (2013, p. 99) sugeriram, as festas são “uma ferramenta cada vez mais popular para iniciar a renovação econômica, aumentando a criatividade da comunidade, promovendo a participação comunitária”.

Esse entendimento parece fazer sentido diante da narrativa proposta no estudo de caso, o que mantém o organizar das festas juninas na comunidade de Exu, quando se cria identidades, comunidade e pertencimento. Dessa maneira, reconhece o argumento de Anderton (2008, p. 44), de que para entender como uma festa é estabelecida e se mantém ao longo do tempo, é necessário “entender mais do que apenas os imperativos econômicos”. Portanto, é proposto que as festas juninas da cidade de Exu sejam percebidas como processos de organizar que se mantém dentro de lógica cíclica de mobilização da comunidade em que acontece. Como sugerem Silva e Fantinel (2021, p. 129), tem-se “a percepção da festa como forma organizativa que agrega vários processos de organização”. Essa é a proposta para relacionar a discussão com os estudantes referente às questões 1 e 2.

É com essa percepção de organizing, ou organizar, sobre as festas populares que podemos ressaltar a dimensão estética de análise incentivada na terceira questão: por que é importante considerar os elementos estéticos das festas juninas da comunidade de Exu para sua organização? Strati (1992; 2007) tem chamado a atenção para a análise dos fenômenos organizacionais a partir do “conhecimento estético” existente na vida organizacional. Para o autor, o conhecimento estético é resultado da compreensão dos processos organizacionais que exploram as faculdades sensoriais como o tato, a audição, o paladar, o olfato e a visão. Essa percepção dos processos organizacionais evidencia a importância de relacionar a estética às percepções sensíveis de emoção e afeto. No organizar das festas juninas de Exu, é possível perceber que as dimensões estéticas de tato, olfato e paladar são extremamente fortes no primeiro eixo narrativo do caso, quando a agricultura familiar e a produção das comidas típicas são evidenciadas. Nas brincadeiras de rua, a audição, o tato e a visão são aguçados nas danças das quadrilhas e no forró em torno da fogueira. Nas celebrações religiosas, é perceptível a relação estética ligada ao visual presente nos andores dos santos católicos e nos amuletos religiosos dos personagens da narrativa, como Dona Benta e Dona Isabel, no qual também se percebem os afetos e as emoções. O cheiro do bolo de mandioca que traz lembranças afetivas, bem como os adereços, os ritmos musicais, as roupas personalizadas, os fogos de artifícios, as fogueiras, são exemplos estéticos que caracterizam a organização das festas juninas na comunidade de Exu. Como Louisgrand e Islam (2020) argumentaram, a compreensão da dinâmica estética depende de determinado contexto ao qual se desenvolve.

Dessa maneira, perceber os elementos estéticos que constituem as festas juninas na comunidade de Exu é perceber que “tato, audição, olfato, visão e paladar revelam seu envolvimento ativo no processo de produção do conhecimento sensível”, como recomendou Strati (2007, p. 63). Mas, é necessário reconhecer também que tais elementos estéticos ajudam a criar um senso de comunidade em torno da festa. Com isso, pode-se afirmar que nas festas juninas - no contexto da narrativa ambientalizada em Exu - a comunidade é central “nos processos de produção cultural e que as culturas das comunidades são evidentes durante todo o festival” (Clarke & Jepson, 2011, p. 7 e 8). Assim, considerar os elementos estéticos no organizar das festas juninas é observar determinado senso de criatividade e vivência experienciado pelos personagens ao longo da narrativa.

Em última análise, é relevante compreender que os elementos estéticos das festas juninas são “entendidos através do conhecimento direto, através de experiências” (White, 1996, p. 201). Isso é importante para a discussão da quarta questão: Quais os afetos percebidos no organizar das festas juninas da comunidade de Exu e por que são importantes? A relação entre estética e afeto demarcam o organizar das festas juninas em sua dimensão religiosa, mas também reverberam nos mais variados aspectos organizativos apresentados na narrativa. Para Louisgrand e Islam (2021), os aspectos sensoriais, estéticos e afetivos dos processos organizacionais são resultados da dinâmica relacional, simbólica e de poder da criação de significados. Esses significados atuam entre arranjos materiais (Schatzki, 2001; 2006), sejam eles humanos ou não humanos, isto é, no organizar das práticas enquanto modelo de julgamento da qualidade estética, a depender das formas como os afetos são tecidos. Quando Seu Joaquim pega o triângulo e se emociona ao cantar determinada canção com Dona Benta, a lembrança da avó ao sentir o cheiro do bolo de macaxeira, a sensação experimentada na dança do forró, entre outras partes emotivas da narrativa informam sobre os afetos construídos entre os diferentes praticantes (humanos e não humanos) que constituem a prática, afinal, “todas as práticas sociais como comportamentos ancorados no corpo incluem uma estruturação sensorial-perceptiva e, portanto, também uma estruturação afetiva” (Reckwitz, 2012, p. 250).

Na prática religiosa que Dona Benta mantém, também é possível perceber o afeto entre ela, seus avós, e diferentes objetos que constituem esta prática em particular. Esse “afeto geracional” entre Dona Benta e seus avós também é visto nas práticas da agricultura e do preparo das comidas típicas. Portanto, parece que as festas juninas da comunidade de Exu podem ser entendidas como “um fenômeno cultural que se alimenta das práticas e redes da vida cotidiana das pessoas”, atrelado às características de “valor social, estético e simbólico, bem como pela coesão, alegria, abertura, expressividade, jogo e diversidade” (Ryan & Wollan, 2013, p. 99). Isso ajuda a construir um “sentido de originalidade e intimidade [...] criar um sentido de unidade, pertença e intimidade” (De Molli, Mengis, & van Marrewijk, 2019, p. 19 e 23), ao mesmo tempo que as festas juninas de Exu levam a comunidade a participar e manter as tradições culturais ativas por meio de suas “próprias sensações, por exemplo [...] carregados pelos cheiros, pelos sons e pelo toque dos objetos ou das imagens [...]” (De Molli, Mengis, & van Marrewijk, 2019, p. 9) no organizar da festa contada na narrativa.

A quinta questão é: Diante das dificuldades de Dona Benta e demais lideranças para organizar os festejos juninos de Exu, principalmente num momento posterior à pandemia da Covid-19, quais sugestões você, enquanto gestor(a), daria para os personagens? O propósito dessa questão é incentivar os(as) estudantes a mobilizarem conhecimentos e experiências prévias sobre gestão para ajudar Dona Benta e demais lideranças a solucionarem o dilema do caso. Neste sentido, não há uma resposta ideal, pois quanto mais criativa for, melhor. Aqui, cabe destacar as principais dificuldades encontradas pelos personagens como o pouco engajamento e interesse dos mais jovens, bem como a diminuição de participação das pessoas nas missas católicas. Algumas possibilidades para a solução do dilema que podem auxiliar o(a) docente a instigar os(as) estudantes seriam Dona Benta e demais lideranças: produzirem material audiovisual que registrasse as facetas estéticas dos festejos juninos, com o intuito de afetarem pessoas que não fazem parte da realidade local e ampliar o público interessado; realizarem parcerias com influencers na tentativa de engajar os mais jovens, ou até mesmo criarem perfis nas redes sociais que permitissem contar histórias sobre os festejos juninos, compartilhar as receitas etc.; buscarem auxílio financeiro junto a editais públicos; realizarem parcerias com restaurantes locais para promover as comidas típicas e escoar a produção local; realizarem parcerias com outras manifestações culturais, como as de matrizes africanas etc.

De maneira geral, o dilema do caso, bem como as características estéticas e afetivas apresentadas na narrativa, podem ser interpretadas livremente pelos estudantes. O esforço maior é perceber essas características e relacioná-las a uma lógica de funcionamento ou organizar próprio das festas de São João presente na cidade de Exu. Neste sentido, espera-se que a narrativa do caso estimule a reflexão para compreender o organizar das festas populares como “[...] indo além da gestão, pois é cada vez mais dependente das atividades co-criativas para perpetuar a fantasia e o capital da festividade” (Flinn & Frew, 2014, p. 418). Isso pode gerar o sentimento de unidade e pertencimento que parece estar presente no organizar das festas na cidade de Exu, colocando em primeiro plano a estética e o afeto como expressões do organizar prático e cotidiano que perdura no tempo.

Referências

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Notas

[i] Viva São João! é um documentário produzido em 2002, dirigido por Andrucha Waddington e narrado pelo compositor Gilberto Gil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JZkBf-XHqnA
[ii] Música disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4EYXwzLNLq4
[iv] Instrumento percussivo brasileiro. Uma espécie de tambor em que os dois lados são do uso do músico - um lado emula um baixo e o outro, a caixa.
[ix] Uma espécie de mingau feito com milho, cozido com leite, açúcar e canela até ficar macio e com consistência de pudim menos mole.
[x] Iguaria doce feita de grãos de milho-branco ou amarelo levemente triturados, cozidos em um caldo contendo leite de coco ou de vaca, açúcar, canela em pó ou casca e cravo-da-índia.
[xii] Música disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZF_OBjKz53M
[xv] Onde não há grama ou erva de algum tipo.
[xvi] Forró pé de serra é uma versão mais folclórica do Forró e a palavra portuguesa matuto geralmente se refere a um homem que viveu a maior parte da vida em uma fazenda ou ambiente semelhante e não está tão familiarizado com a vida na cidade.
[xvii] Um tipo de fogo de artifício.
[viii] Uma pasta cozida feita de milho doce batido em leite de coco, servido envolto em palha de milho.
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