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Recepción: 28 Agosto 2023
Aprobación: 15 Marzo 2024
Publicación: 23 Diciembre 2024
Resumo:
Objetivo da Pesquisa: Analisar de forma integrativa a pesquisa sobre as cidades compassivas na abordagem do design urbano.
Enquadramento Teórico: Esta investigação está inserida no contexto das cidades compassivas no design urbano, em que a centralidade é a vida cidadã. Tal abordagem considera a Teoria da Motivação Humana como instrumento de alavancagem da dignidade humana nesses espaços.
Metodologia: Procedeu-se a uma revisão integrativa da literatura, conduzida em sete bases de dados relevantes no campo das Ciências Sociais, que resultou em 37 artigos após a seleção. A análise de conteúdo foi realizada nos artigos completos, e as categorias foram definidas a priori.
Resultados: A revisão revela quatro estruturas analíticas que caracterizam a pesquisa em comunidades e cidades compassivas, abrangendo seus modelos e projetos. Os principais resultados oferecem uma compreensão mais profunda do estado atual do conhecimento sobre esse tema.
Originalidade: Este estudo se destaca pela abordagem inovadora do conceito de cidades compassivas no design urbano, preenchendo lacunas na literatura existente. As proposições ora apresentadas indicam áreas em que a pesquisa pode contribuir para o desenvolvimento desse campo emergente.
Contribuições Teóricas e Práticas: Este estudo oferece implicações significativas para o avanço da teoria em design urbano, além de contribuir para os campos da Administração Pública e da Gestão Social. As implicações também se estendem para a prática, fornecendo insights para a promoção de comunidades compassivas e o desenvolvimento de políticas públicas e estratégias de gestão no contexto urbano.
Palavras-chave: Comunidades e cidades compassivas, Necessidades humanas, Revisão Integrativa, Modelos e projetos.
Abstract:
Research Objective: Analyze the research on compassionate cities in the context of urban design in an integrative manner.
Theoretical Framework: The research is situated within the domain of compassionate cities in urban design, where citizen life takes center stage. This approach leverages Human Motivation Theory as a tool to enhance human dignity within these spaces.
Methodology: The research employed integrative literature review. The review encompassed 7 relevant databases in the field of social sciences, resulting in 36 selected articles. Content analysis was performed on full articles, with predefined categories.
Results: The review reveals four analytical frameworks characterizing research on compassionate communities and cities, encompassing their models and projects. The key outcomes provide a deeper understanding of the current state of knowledge on this subject.
Originality: This study stands out for its innovative approach to the concept of compassionate cities within urban design, addressing gaps in existing literature. The authors' propositions highlight areas where research can contribute to the development of this emerging field.
Theoretical and Practical Contributions: The study yields significant implications for advancing urban design theory and contributes to Public Administration and Social Management fields. Implications also extend to practice, offering valuable insights for fostering compassionate communities and developing public policies and management strategies in urban contexts.
Keywords: Compassionate communities and cities, Human needs, Integrative review, Models and projects.
Resumen:
Objetivo de la Investigación: Analizar de manera integrativa la investigación sobre las ciudades compasivas en el contexto del diseño urbano.
Marco Teórico: La investigación se sitúa en el ámbito de las ciudades compasivas en el diseño urbano, donde la vida ciudadana ocupa un lugar central. Este enfoque aprovecha la Teoría de la Motivación Humana como herramienta para potenciar la dignidad humana en estos espacios.
Metodología: La investigación empleó una revisión integrativa de la literatura. La revisión abarcó 7 bases de datos relevantes en el campo de las ciencias sociales, resultando en 36 artículos seleccionados. El análisis de contenido se realizó en los artículos completos, con categorías predefinidas.
Resultados: La revisión revela cuatro marcos analíticos que caracterizan la investigación sobre comunidades y ciudades compasivas, abarcando sus modelos y proyectos. Los principales resultados brindan una comprensión más profunda del estado actual del conocimiento sobre este tema.
Originalidad: Este estudio se destaca por su enfoque innovador en el concepto de ciudades compasivas en el diseño urbano, abordando lagunas en la literatura existente. Las proposiciones de los autores destacan áreas en las que la investigación puede contribuir al desarrollo de este campo emergente.
Contribuciones Teóricas y Prácticas: El estudio genera implicaciones significativas para avanzar en la teoría del diseño urbano y contribuye a los campos de Administración Pública y Gestión Social. Las implicaciones también se extienden a la práctica, ofreciendo ideas valiosas para fomentar comunidades compasivas y desarrollar políticas públicas y estrategias de gestión en contextos urbanos.
Palabras clave: Comunidades y ciudades compasivas, Necesidades humanas, Revisión integrativa, Modelos y proyectos.
Introdução
A literatura sobre as abordagens compassivas ainda está em desenvolvimento, com uma comunidade de pesquisa dispersa e em grande parte monodisciplinar, orientada pelas Ciências da Saúde (Sallnow et al., 2016; Sallnow & Paul, 2018). Contudo, o funcionamento e a dinâmica interna de uma cidade compassiva (CC) perpassa vários dos domínios da vida e escalas da sociedade. Nesse sentido, estudá-las em uma perspectiva monodisciplinar reduz a criticidade e ocasiona a diminuição de ações e projetos que envolvam contribuições de outras áreas do conhecimento. Além disso, há o reconhecimento da necessidade de pesquisa e prática interdisciplinar em abordagens baseadas na comunidade para doenças graves, mortalidade e perda (Brassalotto et al., 2021).
O conceito de CC é inovador e reúne duas vertentes de pesquisa: cuidados paliativos e de fim de vida; e envelhecimento e morte no local. Nessa perspectiva, a comunidade é concebida como um elemento unificador, onde interagem diferentes esferas – intrapessoal, social, organizacional, estrutural e cultural (Vanderstichelen et al. 2022). No Brasil, a abordagem das Comunidades Compassivas é intrinsecamente ligada aos desafios de equidade no acesso a cuidados paliativos, particularmente em contextos vulneráveis marcados por condições de vida desfavoráveis, discriminação e desigualdade econômica. Tais comunidades buscam superar as barreiras ao cuidado digno e de qualidade, evitando hospitalizações desnecessárias e promovendo assistência domiciliar por profissionais de saúde capacitados, com o suporte de voluntários ativos. Este movimento ganha corpo no Brasil através de iniciativas lideradas por profissionais como Alexandre Ernesto Silva, que desde 2008 vem implementando atendimentos domiciliares em favelas do Rio de Janeiro, como Vidigal e Rocinha, com a colaboração de membros comunitários e o apoio de universidades. De acordo com Kellehear (2020), as cidades compassivas são comunidades que reconhecem que todos os ciclos naturais de doença e saúde, nascimento e morte, amor e perda acontecem diariamente dentro das órbitas de suas instituições e atividades regulares. Dessa forma, uma cidade compassiva reconhece que é responsabilidade de todos cuidar uns dos outros em tempos de crise e perda, não sendo essa uma tarefa exclusiva dos serviços sociais e de saúde. Então, comunidades compassivas publicamente encorajam, facilitam, apoiam e celebram o cuidado mútuo durante os momentos e mais difíceis da vida, especialmente aqueles relacionados a doenças que ameaçam e limitam a vida, à deficiência crônica, ao envelhecimento frágil e à demência, à morte e ao luto e às provações e aos encargos de cuidados de longo prazo.
Na abordagem do design urbano, uma cidade compassiva é aquela centrada no reconhecimento explícito da dignidade inerente de todas as pessoas. Ela deve oferecer condições para que os indivíduos possam suprir todo o seu espectro de necessidades a fim de que prosperarem ou declinem em seu desenvolvimento (Donovan, 2018). Assim, criar lugares que facilitem às pessoas atenderem suas necessidades é o desafio central de projetar a cidade compassiva. Nessa visão, a cidade compassiva é aquela projetada para dar a seus habitantes a melhor chance de olhar ao redor e encontrar todas as oportunidades e experiências necessárias para atender a essas necessidades e evitar o declínio no desenvolvimento individual, familiar ou comunitário, resultante da negação de tais oportunidades (Donovan, 2018).
Em termos de necessidades humanas, estudiosos do tema concordam acerca da existência de imperativos fisiológicos básicos (comida, água, abrigo) para sustentar a vida (Donovan, 2018). Também é consenso que, somente quando todas as necessidades foram atendidas, as pessoas podem realizar seu potencial. A pesquisa em necessidades humanas reconhece que as necessidades e seus relacionamentos são universais e se aplicam a todos, independentemente da cultura. No entanto, para a maioria dos estudiosos, a forma preferida de atender a essas necessidades varia de acordo com a disponibilidade de recursos locais e os valores pessoais e culturais do indivíduo. Na obra de Donovan (2018) sobre cidades compassivas na perspectiva do design urbano, a estrutura de necessidades de Manfred Max Neef foi adotada e adaptada. Max Neef (2007) classifica as necessidades humanas fundamentais em subsistência, proteção, afeição, compreensão, participação, recreação (no sentido de lazer, tempo para reflexão ou tempo para relaxar), criação, identidade e liberdade. De acordo com o autor, essas necessidades podem ser mais bem compreendidas pelas coisas e ações que as satisfazem e pelos ambientes em que ocorrem.
Ao encontro disso, Lyles et al. (2018) chamam atenção para o conceito de compaixão, que constitui uma possibilidade para nos ajudar a curar, transformar e realizar a sanidade, o cuidado, a prosperidade e as comunidades criativas. Nessa ótica, a compaixão deixa de ser percebida como um lugar-comum sentimental e passa a ser vista como uma orientação ética, um traço de personalidade duradouro ou até mesmo um estado emocional efêmero que pode ser cultivado (Davidson & Harrington, 2002). Adicionalmente, o sofrimento das pessoas mais vulneráveis, muitas vezes, não é considerado pelos planejadores, intensificando todo o tipo de infortúnio, como falta de acesso a transporte, maior vulnerabilidade a desastres naturais e mudanças climáticas e insegurança habitacional. Então, uma maior atenção à compaixão pode beneficiar questões como justiça social, sustentabilidade e atendimento ao interesse público.
Tendo isso em vista, a principal justificativa para a realização desta pesquisa diz respeito à lacuna na literatura sobre CC relacionada ao design urbano. Portanto, este artigo busca responder ao seguinte questionamento: como a literatura sobre CC aborda a questão das necessidades humanas complexas na perspectiva do design urbano e como estão sendo desenvolvidos modelos e projetos de CC em nível mundial?
Este artigo apresenta uma abordagem inovadora ao reunir o conceito de CC com o design urbano centrado na vida cidadã. A metodologia envolveu uma revisão integrativa da literatura sobre CC, que foi realizada nas bases de dados SCOPUS, SAGE Open, Web of Science, Oxford Journals, Academic OneFile (Gale), SocINDEX with Full Text (EBSCO) e REDALYC - Red de Revistas América Latina, Caribe, España y Portugal. Os resultados originaram o desenvolvimento de quatro estruturas analíticas: caracterização da pesquisa acerca de CC em relação ao tópico abordado e à área de conhecimento pertencente; cruzamento das publicações com as dimensões das necessidades humanas adotadas e adaptadas ao contexto do design urbano por Donovan (2018); modelos e projetos de CC que estão sendo desenvolvidos mundialmente. Além disso, a discussão sobre o tema levou a proposições quanto aos desafios teóricos e práticos envolvidos, as quais têm o potencial para direcionar estudos futuros qualitativos e quantitativos.
Comunidades e cidades compassivas
O movimento de cidades compassivas teve origem em novembro de 1986, quando foi realizada a primeira conferência internacional sobre promoção da saúde, na cidade de Ottawa, Canadá, que culminou na “Ottawa Charter for Health Promotion”. Já na década de 1990, a Organização Mundial da Saúde passou a apoiar uma abordagem de saúde pública para cuidados paliativos. Essa abordagem teve origem na Austrália e foi fonte de inspiração para outros movimentos internacionais, a exemplo do “Compassionate City Charter”, que aplicou os princípios da “Ottawa Charter for Health Promotion” aos cuidados paliativos e teve como base teórica o trabalho de Allan Kellehear, um dos impulsionadores do movimento de cidades compassivas (Tompkins, 2018). Em 1999, ele publicou o Health Promoting Palliative Care, adaptando os princípios da Carta de Ottawa aos cuidados paliativos e lançando, com isso, as bases para os conceitos de CC. A Figura 1, a seguir, apresenta a logomarca do “The Ottawa Charter”.

A logomarca representa um círculo com três asas, que incorpora cinco áreas-chave de ação na promoção da saúde: construir políticas públicas saudáveis; criar ambientes favoráveis à saúde; fortalecer a ação comunitária para a saúde; desenvolver habilidades pessoais; e reorientar os serviços de saúde. Também apresenta três estratégias básicas de promoção da saúde: capacitar, mediar e proteger.
Segundo Kellehear (2005), em paralelo aos conceitos de CC, existem nove características que definem uma cidade compassiva e que devem ser analisadas em conjunto. Nessa perspectiva, uma cidade compassiva: 1) tem políticas locais de saúde que reconhecem a compaixão como um imperativo ético; 2) atende às necessidades especiais de idosos, pessoas que vivem com doenças que ameaçam a vida e pessoas que vivem com perdas; 3) tem um forte compromisso com as diferenças sociais e culturais; 4) envolve luto e serviços de cuidados paliativos na política e no planejamento do governo local; 5) oferece aos seus habitantes acesso a uma ampla variedade de experiências, interações e comunicação de apoio; 6) promove e celebra a reconciliação com os povos indígenas e a memória de outras importantes perdas comunitárias; 7) oferece fácil acesso a serviços de luto e cuidados paliativos; 8) tem um reconhecimento e planos para acomodar os desfavorecidos pela economia, incluindo populações rurais e remotas, povos indígenas e sem-teto; e 9) preserva e promove as tradições espirituais e contadores de histórias de uma comunidade.
Segundo The Compassionate City Charter (2020), “Cidades Compassivas são comunidades que reconhecem que todos os ciclos naturais de doença e saúde, nascimento e morte, amor e perda acontecem diariamente dentro das órbitas de suas instituições e atividades regulares”. Essas comunidades reconhecem que cuidar uns dos outros em tempos de crise e perda não é simplesmente uma tarefa exclusiva dos serviços sociais e de saúde, mas é responsabilidade de todos. Então, tais comunidades publicamente encorajam, facilitam, apoiam e celebram o cuidado mútuo durante os momentos e as experiências mais difíceis da vida, especialmente aqueles relacionados a doenças que ameaçam e limitam a vida, à deficiência crônica, ao envelhecimento frágil e à demência, à morte e ao luto e às provações e aos encargos de cuidados de longo prazo. The Compassionate City Charter (2020) também descreve 13 mudanças sociais nas principais instituições e atividades das cidades para criar uma cidade compassiva.
Entre os movimentos globais em torno de cidades compassivas, cabe mencionar o “Public Health Palliative Care International” (PHPCI) e o “Charter for Compassion”. O PHPCI foi inaugurado durante a 3ª Conferência Internacional sobre Saúde Pública e Cuidados Paliativos organizada pelo Milford Care Centre e The University of Limerick, em associação com The Irish Hospice Foundation, no The Strand Hotel em Limerick, Irlanda. Já o movimento “Charter for Compassion” teve início em 2008, quando Karen Armstrong ganhou o Prêmio TED por seu desejo de criar uma Carta para a Compaixão. Essa Carta foi desenvolvida com a contribuição de milhares de pessoas e apresentada ao público em novembro de 2009, inspirando atos comunitários de compaixão em todo o mundo.
Nesse cenário, ganha espaço a pesquisa acerca da mortalidade e do sofrimento humanos, que tem se ocupado de uma variedade de preocupações concorrentes, como guerra, doença, fome, tortura endossada pelo Estado, espoliação, angústia mental e abuso sexual, fatores que regularmente afligem o corpo e o espírito na história mundial (Kellehear, 2009). Para estudiosos da morte, os assuntos de campos tão diversos como cuidados paliativos, cuidados com idosos, cuidados de luto, terapia intensiva ou cuidados de emergência constituem tópicos que têm sido tradicionalmente considerados assuntos clínicos e profissionais (Kellehear, 2020). No entanto, envelhecer no local também exige pensar em morrer no local, e o papel da comunidade para alcançar esse resultado não foi totalmente explorado (Vanderstichelen, et al. 2022). Assim, ao conectar e integrar insights das Ciências da Saúde, da Sociologia, da Psicologia, das Ciências Educacionais e da Geografia Crítica, é possível entender melhor como os diferentes ambientes – pessoais, sociais, físicos, culturais e organizacionais – influenciam as experiências vividas, as condições e os resultados de doenças graves, a morte e a perda em variadas escalas e como a compaixão pode ser estimulada nesses espaços (Vanderstichelen, et al. 2022).
Necessidades humanas
O reconhecimento de que as pessoas podem realizar seu potencial somente quando todas as necessidades humanas são atendidas é compartilhado entre filósofos, economistas e psicólogos (Donovan, 2018). A partir do atendimento das necessidades fisiológicas básicas, que servem para sustentar a vida, torna-se possível focar em atender outras necessidades, que fazem a vida valer a pena. Também é consenso que as necessidades e seus relacionamentos são universais e se aplicam a todos, independentemente da cultura. No entanto, a forma de atender a essas necessidades varia de acordo com a disponibilidade de recursos locais e os valores pessoais e culturais dos indivíduos.
O estudo sobre necessidades humanas tem sua origem no trabalho de Abraham Maslow, com a Teoria da Motivação Humana (1943), que sugere que todos somos movidos pelo desejo de realizar nosso potencial e enfatiza a importância de satisfazer às necessidades em nível social, e não apenas em nível individual. Outra perspectiva útil sobre a natureza das necessidades é fornecida pelo economista Ian Gough, que argumenta que o dano de não atender às necessidades caracteriza um impedimento para uma participação social bem-sucedida. Na sua visão, isso é uma afronta à justiça social, pois nega às pessoas as oportunidades que surgem dessa participação e nega à sociedade os benefícios da participação das pessoas (Gough, 2000). O autor sugere que, para que as pessoas atendam a essas necessidades de saúde física e autonomia, independentemente de suas práticas e seus valores culturais, são requeridas onze “características universais de satisfação”: alimentação nutricional adequada; água adequada; invólucro de proteção adequado; trabalho não perigoso; ambientes físicos não perigosos; cuidados de saúde adequados; segurança na infância; relações primárias significativas; segurança física e econômica; controle seguro de natalidade e gravidez; e educação básica e transcultural apropriada.
Outra abordagem sobre as necessidades é oferecida pelo economista chileno Manfred Max Neef. Ele centra sua atenção nas necessidades universais e as classifica como: subsistência, proteção, afeição, compreensão, participação, recreação (no sentido de lazer, tempo para reflexão ou tempo para relaxar), criação identidade e liberdade (Max Neef, 2007). A taxonomia de Max Neef é apresentada na Figura 2, a seguir.

A ênfase da taxonomia de Max Neef (2007) em pessoas e lugares reflete uma necessidade de conexão em duas dimensões: vertical – o vínculo com o ambiente e as raízes que se fincam em um lugar – e horizontal – as ligações entre as pessoas que compartilham aquele lugar. Na perspectiva do design urbano, criar lugares que facilitem às pessoas atender às suas necessidades consiste no desafio central de projetar uma cidade compassiva. Na obra de Donovan (2018) sobre cidades compassivas na perspectiva do design urbano, a estrutura de necessidades de Max Neef foi adotada e adaptada, possibilitando avaliar quão bem intervenções específicas podem ajudar ou impedir que as pessoas afetadas atendam às suas necessidades.
Na estrutura de Max Neef (2007), as necessidades são classificadas de acordo com as categorias existenciais de ser, ter, fazer e interagir. Para Max Neef (2007), da classificação proposta decorre, por exemplo, o fato de que alimentos e abrigo não devem ser vistos como necessidades, mas como satisfazendo à necessidade fundamental de subsistência. Da mesma forma, a educação (tanto formal quanto informal), o estudo, a investigação, a estimulação precoce e a meditação satisfazem à necessidade de compreensão. Os sistemas curativos, sistemas preventivos e esquemas de saúde em geral são satisfatores da necessidade de proteção. Não há correspondência de um para um entre necessidades e satisfatores, de modo que um satisfator pode contribuir simultaneamente para a satisfação de diferentes necessidades ou uma necessidade pode exigir vários satisfatores para ser atendida. Ademais, nem mesmo essas relações são fixas, podendo variar de acordo com o tempo, lugar e circunstância.
Adicionalmente, Donovan (2018) explicita que, ainda que se tenha ciência das necessidades de cada um e das formas de ajudar ou impedir que estas sejam satisfeitas, nem sempre as pessoas estão preparadas para julgar o que é melhor para elas. Isso ocorre porque a capacidade de identificar e agir para satisfazer às necessidades é comprometida por distrações em atender a uma série de desejos e vontades que também clamam por atenção. Muitas vezes, as pessoas recebem do mundo ao seu redor o convite para fazer coisas que podem não ser boas para elas ou para as pessoas com quem compartilham o ambiente. Então, o papel do design urbano também passa por garantir que as qualidades dadas a um lugar tornem o comportamento que satisfaz necessidades relativamente mais atraente do que os comportamentos que não o fazem.
Metodologia
A presente investigação empregou a metodologia de revisão integrativa da literatura para analisar a pesquisa sobre as cidades compassivas na abordagem do design urbano. Para atender a esse objetivo, foram delineadas três estruturas analíticas: a caracterização da pesquisa em CC em relação ao tópico abordado e à área de conhecimento; a interseção das publicações com as dimensões das necessidades humanas, adaptadas ao contexto do design urbano conforme Donovan (2018); e as dimensões relacionadas aos modelos e projetos de CC em escala mundial.
Um estudo prévio foi considerado para neste trabalho, que foi a tese de doutorado de Jaime João Bettega, intitulada, “Compaixão e liderança benevolente nas organizações: um estudo comparado em empresas brasileiras e italianas”. Este foi considerado estudo prévio por conveniência da pesquisadora. A revisão integrativa da literatura foi realizada no ano de 2022, nas seguintes bases de dados acadêmicas: SCOPUS, SAGE Open, Web of Science, Oxford Journals, Academic OneFile (Gale), SocINDEX with Full Text (EBSCO) e REDALYC - Red de Revistas América Latina, Caribe, España y Portugal. Essa seleção foi orientada pela relevância dessas bases para a área de estudo e pela capacidade de proporcionar uma visão interdisciplinar. Utilizou-se uma estratégia de busca abrangente, empregando os termos “compassionate cit*” e “compassionate communit*” nos campos de título, resumo e palavras-chave. A busca resultou em 56 publicações, das quais foram descartados 11 por serem duplicadas. Por fim, foram selecionados 45 artigos, dos quais foram revisados o título, o resumo e as palavras-chave. No entanto, 8 artigos não puderam ser acessados de forma on-line gratuita e, por esse motivo, não foram considerados na análise.
Passou-se, então, para a leitura completa das 37 publicações restantes, submetidas à análise de conteúdo (BARDIN, 2011) com o auxílio do software NVivo. Foram consideradas categorias as dimensões de necessidades sociais de Neef (2007): subsistência, atividade física, proteção, afeição, compreensão, participação, lazer, criação, identidade, liberdade e beleza. A leitura completa das publicações originou uma lista de 15 websites de instituições vinculadas às comunidades e cidades compassivas, conforme o Quadro 1. Ainda foram incorporados à análise dois relatórios técnicos, identificados nos websites acessados, e um artigo proveniente de citação. Também se acrescentou à análise o livro de Donovan (2018), “Design the compassionate city: creating places where people thrive”, fundamental para a construção das relações entre cidades compassivas e design urbano, por ter o enfoque nas necessidades humanas. O diagrama de fluxo dos Itens Preferenciais de Relato para Revisões Sistemáticas e Meta-Análises (PRISMA) (Moher et al. 2009) para os diferentes estágios da revisão integrativa da literatura pode ser visualizado na Figura 3.
Dessa maneira, as questões norteadoras para esta revisão de literatura foram: quais são as principais características das pesquisas sobre cidades compassivas no contexto do design urbano abordadas nos artigos selecionados? Como a pesquisa sobre cidades compassivas no design urbano está distribuída em termos de áreas de conhecimento? Como as publicações identificadas abordam as dimensões das necessidades humanas adaptadas ao contexto do design urbano de acordo com Donovan (2018)? Quais são os modelos e projetos de cidades compassivas em escala mundial que emergem dos artigos analisados?


Resultados e análises
As três estruturas analíticas a seguir apresentam os resultados das análises dos 36 artigos selecionados nas bases de dados. O Quadro 2 apresenta a caracterização da pesquisa em CC em relação ao tópico abordado e à área de conhecimento; a Figura 4 apresenta o cruzamento das publicações com as dimensões das necessidades humanas adotadas e adaptadas ao contexto do design urbano por Donovan (2018); e os Quadros 3 e 4 trazem os modelos e projetos de CC que estão sendo desenvolvidos mundialmente.

Em relação ao tópico de estudo, pode-se observar uma concentração de publicações relacionadas aos cuidados em fim de vida (42%). A primeira publicação relacionada a esse tópico é de Kellehear (2005), no livro “Compassionate cities: public health and end-of-life care”, que foca questões de cuidados no final da vida e explora como a compaixão abraça a empatia e o apoio como novas formas de “promoção da saúde”. Os demais artigos relacionados a esse tópico tratam de questões correlatas à morte, ao morrer e aos cuidados paliativos. Em seguida, aparece o tópico que trata do desenvolvimento de cultura e resiliência para morte, morrer e luto, por meio de ações e projetos no nível das cidades (Booth, et al., 2020). Estes dois primeiros tópicos correspondem a 61% das publicações analisadas.
As publicações que tratam do tópico de design urbano, gestão da cidade, planejamento e organizações estão concentradas entre os anos de 2018 e 2021, a exemplo da obra de Donovan (2018), “Design the compassionate city”, tomada como base para este estudo no âmbito das necessidades humanas. Tal obra analisa como aqueles que participam da concepção de vilas e cidades podem colaborar com os que nelas vivem para criar lugares que ajudem as pessoas a acumular lições de vida, experiências e conquistas. Já o tópico sobre métricas de desempenho e modelos de CC inclui o trabalho de Murgatroyd e Aris (2021), que aponta a necessidade de um regime sistemático de medição focado em cidades e comunidades e que abranja uma série de indicadores, incluindo medidas de confiança e compaixão. Ademais, os artigos de Gómez-Batiste et al., (2018), Librada Flores et al., (2018), Liu et al., (2022) e Pfaff et al., (2019) trazem exemplos de projetos de cidades compassivas. Outras categorias foram relacionadas com estudos que tratam dos tópicos de estudos do ódio, governança humanitária e políticas migratórias.

Para o estudo das cidades compassivas no que tange às necessidades humanas, foi tomado como base o trabalho de Donovan (2018). Dessa forma, utilizando como fundamento o Framework de Max Neef (2007), foram consideradas as seguintes dimensões de necessidades sociais: subsistência, atividade física, proteção, afeição, compreensão, participação, lazer, criação, identidade, liberdade e beleza. Essas dimensões resultaram em categorias para a análise de conteúdo, originando 50 referências sobre como as necessidades humanas foram abordadas pelos autores.
Assim, 56% das referências identificadas concentraram-se nas necessidades de proteção e participação. A dimensão de proteção, incluindo autores como Borgstrom et al. (2019), Brown et al. (2014), Lyles et al. (2018) e Sawyer et al. (2021), aborda aspectos relacionados ao capital social e à mobilização das redes comunitárias e familiares para proteção daqueles que precisam de cuidados. A dimensão de participação, abarcando autores como Lyles et al. (2018), Librada Flores et al. (2020) e Paul et al. (2013), discute engajamento cívico, voluntariado e envolvimento da comunidade na melhoria do atendimento ao paciente, família e rede de satisfação do atendimento. Outras categorias que tiveram proeminente número de referências (26%) foram as de compreensão e criação; as categorias liberdade, beleza e atividade não tiveram referências; e as demais categorias correspondem a 18% das referências identificadas.

No total, foram identificados nove modelos teóricos nos estudos analisados, classificados em relação à área de conhecimento a que pertenciam – cinco deles estão diretamente focados na saúde pública. Destes, quatro modelos foram extraídos de um artigo de Pfaff et al. (2019) sobre o desenvolvimento do Modelo HICM, que assume uma abordagem de cuidados promotora da saúde no percurso individual de cuidados do doente e da família. As premissas centrais do HICM também incluem acomodação para valores individuais, preferências e trade-offs, com ênfase em saúde e bem-estar, autoconsciência, capacitação e autogerenciamento para o cuidado (Pfaff et al., 2019). Para o desenvolvimento desse modelo, os autores consideraram outros três modelos: Accountable Communities for Health (Mikkelsen et al., 2016), Chronic Care Model (MacColl Center for Health Care Innovation, 2003) e The Population Health Promotion Model (Hamilton & Bhatti, 1996). Tais modelos foram escolhidos por Pfaff et al. (2019) por aplicarem uma lente de comunidade; mostrarem relações entre determinantes, ações e resultados; terem impacto demonstrado com base em um conjunto de evidências; serem aceitos por políticos e tomadores de decisão; poderem atender a necessidades complexas e de alto risco; e provocarem impacto nos níveis de saúde individual, comunitário e populacional (King, 2015).
Em relação aos modelos direcionados à administração pública, podem ser citados os seguintes: Compassionate Communities Center of Expertise – COCO (Vanderstichelen et al., 2022), Intentional Compassion Framework (Kennedy et al., 2021), Practices and Resources to Cultivate Compassion (Lyles et al., 2018) e The Mallon Model – Three Roles (Mallon et al. 2021). Diferentemente dos anteriores, estes modelos se distanciam do contexto da saúde e focam questões estruturais e sociais para apoio aos indivíduos em situações de morte e luto. Em específico, o modelo Compassionate Communities Center of Expertise – COCO atua no âmbito do design urbano.

A análise dos projetos desenvolvidos no que concerne às comunidades e cidades compassivas considerou o país de desenvolvimento do projeto. Assim, 67% dos projetos identificados concentram-se no Reino Unido, no Canadá e nos Estados Unidos. No Reino Unido, projetos de cunho específico no desenvolvimento de pessoas para criação de uma cultura de resiliência e normalização da morte, do morrer e da perda (Kellehear, 2013; Brown et al., 2014; Abel et al., 2018; Abba et al., 2019; Booth et al., 2020) voltam sua atenção não apenas a pacientes e cuidadores, mas também a jovens e crianças, com o objetivo de gerar capital social nas áreas de deficiência, velhice, doenças mentais e cuidado dos frágeis e vulneráveis. Entre os projetos desenvolvidos no Canadá e nos Estados Unidos, pode-se ressaltar, respectivamente, o foco organizacional para apoiar funcionários que precisam de afastamento para cuidar de membros da família e o foco em questões migratórias para a formação de “cidades-santuário” (Silverman et al. 2013; Tompkins et al., 2018; Ruez e Parekh, 2019; Liu et al., 2022).
Outros projetos que merecem destaque por sua abrangência em termos geográficos e sociais são os projetos desenvolvidos na Espanha, Colômbia e Argentina, nomeados “All with you” (Librada Flores et al., 2018) e “Vic, caring city” (Gómez-Batiste et al., 2018). Esses projetos visam desenvolver comunidades e cidades compassivas. O projeto “All with you”, desenvolvido primeiramente na Espanha, é o único que teve sua replicabilidade validada em outros países, inclusive países latinos que possuem condições ambientais e culturais diferentes daquelas onde o método foi concebido. Já o “Vic, caring city”, embora apenas aplicado na Espanha, abarca um amplo espectro de necessidades, que passam não só pelos cuidados em fim de vida, mas também pelos cuidados integrados para pessoas com necessidades sociais.
No Brasil, com foco em saúde, a implementação das Comunidades Compassivas reflete um avanço significativo no modelo de cuidados paliativos, adaptando-se à realidade socioeconômica e às diversas necessidades das populações locais. De acordo com Corrêa et al. (2017) esta abordagem holística e integrada é fundamental em contextos onde as disparidades de acesso à saúde são marcadas por condições de vida desfavoráveis, discriminação e grande desigualdade econômica. Projetos como “Estar ao Seu Lado – Cuidados Paliativos na Atenção Primária” exemplificam a eficácia dessa abordagem através da Estratégia Saúde da Família, atendendo cerca de 3.000 pessoas no Rio Grande do Sul com uma equipe multidisciplinar que realiza consultas ambulatoriais e visitas domiciliares, reiterando a compaixão no atendimento à saúde. Além desse projeto, desde 2008, lideranças como Alexandre Ernesto Silva têm fortalecido a prática de cuidados domiciliares em favelas do Rio de Janeiro, demonstrando o impacto positivo de integrar a extensão universitária com ações comunitárias, que não só educam profissionais de saúde mas também promovem a participação comunitária ativa (Mesquita et al, 2023). Essas iniciativas destacam a importância da compaixão na saúde pública e a necessidade de uma rede de suporte comunitário robusta para oferecer cuidados paliativos efetivos, ressaltando o papel vital das comunidades na promoção da saúde como um direito humano básico, conforme a visão da "community of care" e outros movimentos globais que visam estabelecer Comunidades Compassivas em todo o mundo.
Discussões e proposições
Neste artigo, uma cidade ou comunidade compassiva segue a perspectiva do design urbano e é entendida como aquela centrada no reconhecimento explícito da dignidade inerente de todas as pessoas. Portanto, ela deve oferecer condições para que os indivíduos possam suprir todo o seu espectro de necessidades (Donovan, 2018). As necessidades humanas, de acordo com Max Neef (2007), são vistas como poucas, finitas e classificáveis. Elas são constantes em todas as culturas humanas e em todos os períodos históricos, tendo como elemento de diferenciação a forma como são satisfeitas. O autor também ressalta a importância de que as necessidades humanas sejam compreendidas como um sistema, por estarem inter-relacionadas e serem interativas. Elas se classificam em subsistência, proteção, afeto, compreensão, participação, lazer, criação, identidade e liberdade.
Na revisão integrativa, observou-se que 80% das referências relacionadas às dimensões de necessidades humanas estavam concentradas em proteção, participação, compreensão e criação. Isso indica que cidades e comunidades compassivas oferecem um potencial significativo para criar e melhorar o atendimento dessas necessidades e, assim, constituem uma estratégia que pode favorecer o progresso da saúde pública. Adicionalmente, de acordo com Max Neef (2007), os sistemas curativos, preventivos e de saúde, em geral, satisfazem à necessidade de proteção. Portanto, deduz-se que:
Proposição 1: cidades e comunidades compassivas favorecem o atendimento das necessidades relacionadas às dimensões de proteção, participação, compreensão e criação à medida que favorecem o progresso da saúde pública da cidade ou comunidade em que se desenvolvem.
Ainda no âmbito das necessidades humanas, a revisão integrativa mostrou que os outros 20% das referências identificadas estão relacionadas às necessidades de lazer, identidade, subsistência e afeição – liberdade, beleza e atividade não tiveram referências. Nesse sentido, Max Neef (2007) esclarece que os satisfatores têm características diferentes, podendo ser violadores ou destruidores, pseudosatisfatores, satisfatores inibidores, satisfatores singulares ou satisfatores sinérgicos. Assim, certos satisfatores que satisfazem a uma necessidade particular, na verdade, inibem ou destroem a possibilidade de satisfazer a outras necessidades. O autor cita como exemplos a corrida armamentista, que, enquanto satisfaz à necessidade de proteção, destrói a subsistência, a participação, o afeto e a liberdade; a democracia formal, que supostamente atende à necessidade de participação, mas muitas vezes enfraquece e aliena; a televisão comercial, embora usada para satisfazer à necessidade de recreação, interfere na compreensão, na criatividade e na identidade. Assim, de acordo com a revisão integrativa, observou-se que o foco das publicações está concentrado na área de conhecimento de saúde pública, com ênfase na necessidade de proteção, evidenciando uma inibição na satisfação das demais dimensões de necessidades, posto que a administração pública não foi a área de conhecimento proeminente em termos dos modelos e projetos de cidades compassivas desenvolvidos globalmente. Diante disso, infere-se que:
Proposição 2: cidades ou comunidades compassivas com ênfase em saúde pública inibem o atendimento das necessidades relacionadas às dimensões de lazer, identidade, subsistência, afeição, liberdade, beleza e atividade à medida que inibem a conexão com a administração pública da cidade ou comunidade em que se desenvolvem.
Em termos dos modelos e projetos desenvolvidos em torno de cidades e comunidades compassivas, observou-se na revisão integrativa a predominância de modelos direcionados à saúde pública. Embora tenham sido identificados cinco modelos para saúde pública e quatro modelos para administração pública, apenas um destes quatro está relacionado ao design urbano. Notou-se, ainda, que os projetos em cidades e comunidades compassivas estão sendo desenvolvidos principalmente nos países da Europa e da América do Norte. Contudo, de acordo com Donovan (2018), mesmo em sociedades ricas, muitas necessidades não são atendidas, pois, porque, apesar de sua importância fundamental, a satisfação de algumas necessidades pode ser relativamente desagradável ou, pelo menos, menos urgente do que outras. O autor cita como exemplo o número de academias não utilizadas no Reino Unido. No país onde se concentra o maior número de projetos (33%) identificados na revisão integrativa de literatura, apenas 27% dos membros frequentam regularmente o local. Presumivelmente, os outros 73% reconheceram a necessidade de exercício, mas descobriram que nunca chega ao topo de sua lista de prioridades. A maioria das pessoas concordaria que uma boa saúde e a capacidade de se conectar com outras pessoas estão entre as coisas essenciais para apoiar seu bem-estar. Todavia, há uma riqueza de evidências que sugerem que as pessoas têm sistematicamente tomado decisões cujo efeito é torná-las menos ativas fisicamente e desgastar suas conexões sociais (Putnam, 1995).
Esse exemplo está de acordo com a avaliação de Montgomery (2013) de que “nossos cérebros são impulsionados e puxados pela poderosa sinergia de memória, cultura e imagens. Isso informa nossas escolhas sobre quais são nossas prioridades, às vezes de maneira adversa ao nosso bem-estar”. Além disso, de acordo com Donovan (2018), nem sempre as pessoas estão preparadas para julgar o que é melhor para elas, já que a capacidade de identificar e agir para satisfazer às necessidades é comprometida por distrações em atender a uma série de desejos e vontades que também clamam por atenção. Muitas vezes, as pessoas recebem do mundo ao seu redor o convite para fazer coisas que podem não ser boas para elas ou para as pessoas com quem compartilham o ambiente. Então, o papel do design urbano também passa por garantir que as qualidades dadas a um lugar tornem o comportamento que satisfaz a necessidades relativamente mais atraente do que os comportamentos que não o fazem. Dessa forma, os modelos e projetos de cidades e comunidades compassivas devem considerar desenvolver nas pessoas a capacidade de tomar as melhores decisões em termos da satisfação de todo o seu espectro de necessidades, o que pode ser viabilizado por meio de projetos com abrangência da administração pública, especificamente do design urbano.
Proposição 3: uma cidade ou comunidade compassiva tem sucesso à medida que forem desenvolvidos modelos e projetos para o desenvolvimento da capacidade das pessoas de tomarem as melhores decisões para satisfação de todo o seu espectro de necessidades.
Em contrapartida, de acordo com Max Neef (2007), cada sistema econômico, social e político adota diferentes meios para a satisfação das mesmas necessidades humanas fundamentais. Em cada sistema, elas são satisfeitas (ou não) por meio da geração (ou não) de diferentes tipos de satisfatores, de modo que um dos aspectos que define uma cultura é sua escolha de satisfatores. De acordo com o autor, no contexto latino-americano, exemplos de patologias econômicas persistentes são o desemprego, a dívida externa e a hiperinflação. Outras patologias políticas comuns são o medo, a violência, a marginalização e o exílio. Logo, os modelos e projetos desenvolvidos com foco nas comunidades latino-americanas para comunidades e cidades compassivas devem estar voltados para a escolha de satisfatores para essas necessidades, o que tem relação não só com aspectos de saúde pública, mas também da administração pública como um todo. Portanto, deduz-se que:
Proposição 4: a consolidação efetiva de uma cidade ou comunidade compassiva ocorre à medida em que as instituições superam desafios simultâneos nas dimensões de saúde pública e administração pública, no âmbito do design urbano.
A população crescente de idosos e indivíduos com doenças graves (físicas ou mentais) representa um dos maiores desafios de saúde pública da história (Cohen & Deliens, 2012). Em paralelo, a terceirização de prestação de cuidados a serviços ou instituições de saúde públicas ou privadas (Rosenberg et al., 2016) é impulsionada por políticas cada vez mais neoliberais (Brody, 2014), juntamente com processos sociais como a individualização, a diminuição do tamanho da família nuclear e a proliferação de famílias com dois assalariados (Kellehear, 1999; grupo NOUS, 2018). Além disso, a diminuição na resiliência, capacidade e confiança da comunidade para responder a questões de fim de vida é agravada pelo aumento da medicalização e profissionalização de doenças graves, morte, morrer e perda (Grindrod & Rumbold, 2016). Essa evolução é particularmente proeminente nos países ocidentais de alta renda, mas é cada vez mais observada em países não ocidentais e em países de baixa e média renda também (Sallnow et al., 2022).
Para enfrentar tais desafios, as cidades e comunidades compassivas foram sugeridas como uma abordagem multidimensional e completa para melhorar as circunstâncias da comunidade relacionadas a doenças graves, à morte, ao morrer e à perda (Abel et al., 2018). Ademais, na perspectiva do design urbano, uma CC deve oferecer condições para que os indivíduos possam suprir todo o seu espectro de necessidades (Donovan, 2018). Portanto, o estudo desse modelo, bem como seu desenvolvimento, sua implementação e sua avaliação, requer uma abordagem interdisciplinar (Vanderstichelen, et al., 2022).
Nesse sentido, Albert e Pandey (2022) apresentam um Índice de Cidades Compassivas, que foi desenvolvido usando o método Alkire-Foster, com indicadores para avaliar o progresso em direção a cidades compassivas. Esse índice levou em consideração indicadores objetivos e subjetivos como bem-estar psicológico, vitalidade da comunidade, resiliência ecológica, tolerância e inclusão e negócios compassivos. Entretanto, segundo os autores, tais abordagens são limitadas e se concentram em um modesto conjunto de indicadores. Ao encontro disso, Quintiens et al. (2022) afirmam que há muita pouca evidência sobre o desenvolvimento de comunidades e cidades compassivas e que faltam modelos de avaliação. Ainda, há necessidade de discutir a disseminação de valor de cidades e comunidades compassivas face a sua constituição, que é feita por diferentes grupos e organizações e diferentes níveis de administração do governo em variados contextos culturais e históricos (Liu et al., 2018).
Assim, por meio da revisão integrativa de literatura realizada, foi possível identificar a necessidade da criação de um regime sistemático de medição que seja focado em cidades e comunidades e que abranja uma série de indicadores, incluindo medidas subjetivas e objetivas e ativos intangíveis e tangíveis (Murgatroyd & Aris, 2021). Então, o intuito dessas métricas seria o de permitir avaliar quais estratégias serão adotadas para o desenvolvimento efetivo de cidades e comunidades compassivas e como pessoas, organizações e governo devem trabalhar juntos. Lyles et al. (2018) também argumentam sobre o desenvolvimento de medidas de organizações de planejamento compassivo, para que seja possível examinar os fatores que explicam a variação na compaixão. Adicionalmente, os autores mencionam a importância das métricas para avaliar os processos de planejamento à medida que as cidades e comunidades incorporem uma orientação compassiva e cultivem a compaixão entre seus participantes. Diante do exposto, deduz-se que:
Proposição 5: uma cidade ou comunidade compassiva é efetiva medida que desenvolve um sistema de medição que leve em conta todo o espectro de necessidades das pessoas daquela comunidade.
Conclusão
A revisão integrativa realizada forneceu subsídios para a geração de quatro estruturas analíticas, que permitiram saber que a pesquisa em CC teve início em 2005, com o trabalho de Allan Kellehear, um dos impulsionadores do movimento de cidades compassivas. Ela se encontra focada na área da saúde pública, com ênfase nos cuidados em fim de vida e no desenvolvimento de cultura e resiliência para morte, o que, por conseguinte, responde às necessidades humanas de proteção e participação. Os projetos são desenvolvidos principalmente no Reino Unido, nos Estados Unidos e no Canadá.
Também foram apresentadas proposições que devem ser testadas em estudos futuros sobre a concepção, o desenvolvimento e a avaliação de CC no âmbito do design urbano. A necessidade da pesquisa e prática interdisciplinar, bem como o desenvolvimento de um completo sistema de medição, foi evidenciada como um desafio a ser superado e que irá contribuir para criação de um ambiente integrado de trabalho entre pessoas, organizações e governo para o desenvolvimento efetivo de CC. Este artigo encontrou algumas limitações devido à literatura reduzida disponível sobre o tema no âmbito do design urbano.
Esta pesquisa sugere novos estudos sobre o desenvolvimento de cidades e comunidades compassivas, na perspectiva interdisciplinar do design urbano, área que foi menos evidenciada na literatura. Também recomenda a realização de investigações que desenvolvam métricas para avaliar as cidades e comunidades compassivas e seus efeitos para a diminuição da desigualdade social, a promoção da dignidade e o atendimento a todo o espectro de necessidades dos cidadãos. Por fim, sugerem-se estudos sobre avaliação de projetos em CC na perspectiva do design urbano e suas respectivas lições aprendidas. Considera-se portanto que o estudo realizado ampliou o entendimento das Comunidades Compassivas (CC) ao mesmo tempo que revelou uma carência significativa de investigações mais aprofundadas sobre o impacto destas comunidades no design urbano e na administração pública. Futuros estudos deveriam explorar como as iniciativas de CC podem ser integradas nas políticas públicas de urbanismo para promover ambientes mais inclusivos e empáticos, que atendam efetivamente às necessidades dos cidadãos, especialmente em metrópoles com grandes desigualdades socioeconômicas.
Além disso, é imperativo o desenvolvimento de sistemas de medição robustos que possam avaliar o sucesso e os pontos de melhoria dessas comunidades, a fim de solidificar a prática interdisciplinar entre profissionais de saúde, urbanistas e gestores públicos. As contribuições para a academia incluem a possibilidade de expansão do corpus teórico sobre CC, oferecendo novas linhas de pesquisa que podem culminar em diretrizes claras para implementação e avaliação desses projetos. Para a Administração Pública, o estudo sugere a elaboração de políticas que utilizem as CC como estratégias para melhorar a qualidade de vida urbana, potencializando a participação cidadã e a equidade social. Estes avanços não só responderão a lacunas existentes como também pavimentarão o caminho para um modelo de cuidado mais holístico e integrado no espaço urbano.
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