Resumo:
Objetivo da pesquisa: Analisar a implementação das compras públicas via Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), na perspectiva da gestão pública e da agricultura familiar, no contexto da pandemia da Covid-19, no município de Viçosa/MG.
Enquadramento teórico: Implementação de políticas públicas e o papel de burocratas de nível de rua; estado da arte de estudos a respeito da implementação do PNAE durante a pandemia da Covid-19.
Metodologia: Pesquisa qualitativa, tendo como método o estudo de caso, como técnica de coleta de dados entrevistas e como técnica de análise de dados a análise de conteúdo.
Resultados: A decisão de manter as compras públicas da agricultura familiar, distribuindo kits de alimentação aos pais/responsáveis dos alunos foi a principal estratégia adotada. Tanto os burocratas de nível de rua quanto a agricultura familiar enfrentaram dificuldades na implementação do PNAE devido à pandemia; no entanto, traçaram estratégias para manter as compras públicas da agricultura familiar.
Originalidade: A pesquisa compreende o fenômeno a partir do viés de diferentes atores públicos e da agricultura familiar, além de entender de forma empírica a implementação do PNAE em contexto atípico pandêmico.
Contribuições teóricas e práticas: As contribuições teóricas giram em torno da análise empírica aplicando a literatura de implementação de políticas públicas e burocratas de nível de rua, considerando a interface entre alimentação escolar e agricultura familiar na circunstância da pandemia. As contribuições práticas evidenciam sugestões para a gestão pública municipal.
Palavras-chave: Implementação de políticas públicas, Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Pandemia da Covid-19, Burocratas de nível de rua, Agricultura familiar.
Abstract:
Research Objective: To analyze the implementation of public purchases via the Brazilian School Feeding Program (PNAE), from the perspective of public management and family farming, in the context of the Covid-19 pandemic, in the municipality of Viçosa (Minas Gerais Brazil).
Theoretical Framework: Implementation of public policies and the role of street-level bureaucrats; state-of-the-art studies on the implementation of PNAE during the Covid-19 pandemic.
Methodology: Qualitative research, having as method the case study, as a technique of data collection interviews, and as a technique of data analysis the content analysis.
Results: The decision to maintain public purchases of family farming and distributing food kits to parents/guardians of students was the primary strategy adopted. Both street-level bureaucrats and family farmers have faced difficulties in implementing the PNAE due to the pandemic; However, they outlined plans to continue making public purchases of family farming.
Originality: The research understands the phenomenon from the bias of different public actors and family farming, in addition to empirically understanding the implementation of the PNAE in an atypical pandemic context.
Theoretical and practical contributions: The theoretical contributions revolve around empirical analysis applying the literature of public policy implementation and street-level bureaucrats, considering the interface between school feeding and family farming in the pandemic circumstances. The practical contributions show suggestions for municipal public management.
Keywords: Implementation of public policies, Brazilian School Feeding Program (PNAE), Covid-19 pandemic, Street-level bureaucrats, Family farming.
Resumen:
Objetivo de la investigación: Analizar la implementación de compras públicas de alimentos a través del Programa Brasileiño de Alimentación Escolar (PNAE), desde la perspectiva de la gestión pública y de la agricultura familiar, en el contexto de la pandemia de Covid-19, en el municipio de Viçosa (Minas Gerais, Brasil).
Marco teórico: Implementación de políticas públicas y el papel de los burócratas a nível de calle; estudios de vanguardia sobre la implementación de PNAE durante la pandemia de Covid-19. Metodología: Investigación cualitativa, teniendo como método el estudio de caso, como técnica de recolección de datos entrevistas y como técnica de análisis de datos el análisis de contenido.
Resultados: La decisión de mantener las compras públicas de la agricultura familiar, distribuyendo kits de alimentos a los padres/tutores de los estudiantes fue la principal estrategia adoptada. Tanto los burócratas callejeros como los agricultores familiares han enfrentado dificultades para implementar el PNAE debido a la pandemia; Sin embargo, trazaron estrategias para seguir haciendo compras públicas de la agricultura familiar.
Originalidad: La investigación comprende el fenómeno desde el sesgo de diferentes actores públicos y de la agricultura familiar, además de entender empíricamente la implementación del PNAE en un contexto de pandemia atípico.
Aportes teóricos y prácticos: Los aportes teóricos giran en torno al análisis empírico aplicando la literatura de implementación de políticas públicas y burócratas callejeros, considerando la interfaz entre alimentación escolar y agricultura familiar en la circunstancia de la pandemia. Las aportaciones prácticas evidencian sugerencias para la gestión pública municipal.
Palabras clave: Implementación de políticas públicas, Programa Brasileiño de Alimentación Escolar (PNAE), Pandemia de Covid-19, Purocratas a nivel de la calle, Agricultura familiar.
Artigos
Implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar em contexto pandêmico no município de Viçosa/MG: implicações para a gestão pública e para a agricultura familiar
Implementation of the Brazilian School Feeding Program in a pandemic context in the municipality of Viçosa/MG: implications for public management and family farming
Implementación del Programa Nacional de Alimentación Escolar en un contexto de pandemia en el municipio de Viçosa/MG: implicaciones para la gestión pública y la agricultura familiar

Recepción: 08 Septiembre 2023
Aprobación: 15 Marzo 2024
Publicación: 18 Marzo 2025
A fome, a desnutrição e a insegurança alimentar são desafios de alcance mundial, o que intensifica a necessidade de combate a esses problemas públicos. De acordo com dados do II Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (II Vigisan), publicado em 2021 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), 116,8 milhões de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar no Brasil. Desse total, 43,4 milhões (20,5% da população) não tinham acesso a alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave). Esses dados revelam que as crises econômica, política e sanitária combinadas provocaram uma redução da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no país (Rede Penssan, 2023).
Diante desse cenário apresentado, as políticas públicas cumprem papel fundamental para garantir direitos sociais, como o direito à alimentação. Neste aspecto, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é o principal e o mais antigo programa de alimentação implementado no Brasil. O PNAE se propõe a oferecer alimentação escolar e promover ações de educação alimentar e nutricional a estudantes da educação básica da rede pública, garantindo o acesso a alimentos de qualidade no período em que esses estudantes frequentam as escolas. O Programa tem sua origem no início da década de 1940, quando o então Instituto de Nutrição propôs que o Governo Federal oferecesse alimentação aos alunos da rede pública de ensino brasileira (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação [FNDE], 2023).
Desde a sua criação, o PNAE passou por diferentes alterações na sua forma de operacionalização. As mudanças ocorridas ao longo do tempo permitiram tanto o aumento da cobertura do atendimento do PNAE para todos os alunos matriculados na rede pública de educação básica, quanto também possibilidades de inserção do comércio local, da pequena empresa e do pequeno produtor rural neste mercado institucional, a partir da descentralização das compras institucionais (Peixinho, 2013). Uma destas alterações ocorreu em função da necessidade de evitar enlatados e ultraprocessados na alimentação dos escolares e, em contraposição, favorecer o oferecimento dos produtos locais e alimentos saudáveis.
Com essa percepção e a necessidade de geração de renda à agricultura familiar, com a promulgação da Lei n.º 11.947 (2009), ficou delimitado a inserção da agricultura familiar no PNAE. O artigo 14 da referida Lei determina que, do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE para a alimentação escolar, no mínimo 30% devem ser destinados para a aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar, do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas (Lei n.º 11.947, 2009).
Com a emergência da crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19, a implementação do PNAE passou por outra alteração, desta vez temporária, mas que altera significativamente as possibilidades de formas de sua operacionalização. Com isso, analisar a implementação do PNAE durante a pandemia implicou em compreender também a Lei nº 13.987 (2020). Esta Lei autoriza em caráter excepcional, durante o período de suspensão das aulas em razão de emergência ou de calamidade pública, a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do PNAE aos pais ou responsáveis dos estudantes das escolas públicas de educação básica (Lei nº 13.987, 2020). Durante a vigência dessa Lei, o PNAE deixou de ser um Programa voltado para a alimentação apenas dentro da escola, visto que as aulas foram suspensas, e passa a ter um caráter ainda mais ligado ao combate à fome e à promoção da SAN, em um momento de vulnerabilidade socioeconômica para boa parte da população brasileira.
Neste contexto, analisar a implementação do PNAE no período da pandemia da Covid-19 pressupõe analisar como a Lei nº 13.987 (2020) no âmbito das compras públicas de alimentos da agricultura familiar permitiu alterar a execução do Programa. Com isso, torna-se relevante compreender a atuação, as dificuldades e as estratégias utilizadas pelos diferentes atores responsáveis pela implementação do PNAE, aqui denominados burocratas de nível de rua, conceito apropriado de Lipsky (2010). Diante da intersetorialidade do Programa, que engloba tanto o setor da educação, ao disponibilizar a alimentação escolar, quanto a agricultura familiar, por intermédio das compras públicas, analisar também esta categoria é fundamental para entender as dinâmicas presentes na execução do PNAE.
No intuito de compreender a implementação da política pública com base em evidências locais, tem-se como locus empírico o município de Viçosa, localizado na região da Zona da Mata, no Estado de Minas Gerais. Nesta perspectiva, a pesquisa se guia pelo seguinte questionamento: como ocorreram as compras públicas de alimentos da agricultura familiar na pandemia da Covid-19 em uma conjuntura local de implementação do PNAE? Em resposta a tal questionamento, tem-se como objetivo analisar a implementação das compras públicas via PNAE, na perspectiva da gestão pública e da agricultura familiar, no contexto da pandemia da Covid-19, no município de Viçosa/MG.
Alguns estudos versaram a respeito das dificuldades enfrentadas e das estratégias desenvolvidas tanto pelos gestores do PNAE, quanto pelos agricultores familiares, em período pandêmico (Pereira et al., 2020; Sousa & Jesus, 2021; Sperandio & Morais, 2021). Nota-se que a maioria desses trabalhos são teóricos, havendo um gap de pesquisas empíricas que analisaram a implementação do PNAE durante a pandemia da Covid-19. Logo, diferentemente desses estudos, essa pesquisa consiste em entender de forma empírica a implementação do Programa em contexto atípico pandêmico. Além dessa introdução, esse artigo se estrutura com um referencial teórico; nos procedimentos metodológicos são detalhados o método/técnica de coleta/técnica de análise de dados; na penúltima seção são apresentados e discutidos os resultados; e, por fim, a conclusão apresenta contribuições, limitações e sugestões de estudos.
Este referencial teórico contempla a literatura a respeito da implementação de políticas públicas, abordando o papel de burocratas de nível de rua e uma discussão sobre o que os estudos publicados têm evidenciado a respeito da implementação do PNAE durante a pandemia.
Um suporte teórico que dê conta de desvendar as práticas sociais associadas ao fenômeno estudado precisa começar desvelando o que é uma política pública e esclarecendo a noção de burocratas de nível de rua associada a elas. Desta forma, Secchi et al. (2020) definem política pública como “uma diretriz elaborada para enfrentar um problema público” (p. 2), sendo que a razão para o seu estabelecimento é o tratamento ou a resolução de um problema público, entendido como uma situação indesejada relevante para a coletividade. O processo de concepção, execução e avaliação de uma política pública é conhecido como ciclo de políticas públicas, que é um esquema de visualização e interpretação que organiza a vida de uma política pública nas seguintes fases: identificação do problema, formação da agenda, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação, avaliação e extinção (Secchi, 2022).
Este estudo tem como foco de análise a fase da implementação, que é considerada uma das etapas mais difíceis e críticas do ciclo de políticas públicas para os gestores públicos, pois, nessa fase, as decisões de políticas públicas se traduzem em ações e quaisquer deficiências e/ou vulnerabilidades na aplicação da política pública se tornarão visíveis (Wu et al., 2014). Quanto aos modelos de implementação - modelo top-down (de cima para baixo) e modelo bottom-up (de baixo para cima) – Secchi et al. (2020) evidenciam que o modelo top-down parte de uma visão funcionalista e tecnicista de que as políticas públicas devem ser elaboradas e decididas pela esfera política e que a implementação é mero esforço administrativo de achar meios para os fins estabelecidos. No modelo bottom-up, o formato que a política pública adquiriu após a tomada de decisão não é definitivo; isto é, a política pública é modificável por aqueles que a implementam, existindo maior discricionariedade por parte de gestores e de burocratas (Secchi et al., 2020).
No caso do PNAE, a política pública possui diretrizes gerais, mas que podem ser adaptáveis a nível local. A implementação, segundo Freitas e Freitas (2020), ocorre a partir do conjunto das interações entre diferentes atores, que também constroem regras próprias para viabilizar a operacionalização das diretrizes do Programa. Esta mesma lógica de adaptação das diretrizes do programa à realidade local também está presente a partir da Lei nº 13.987 (2020) que entrou em vigor diante da suspensão das aulas presenciais. A partir desta Lei novas práticas surgiram para de fato implementar as ações previstas do PNAE, não entendendo isto como uma distorção, mas como uma necessidade dos agentes implementadores perante os problemas práticos de implementação, em virtude das mudanças geradas pela pandemia da Covid-19.
Esses agentes implementadores do PNAE são aqui denominados burocratas nível de rua, a partir do conceito de Lipsky (2010) que define “street-level bureaucracy” como funcionários dos serviços públicos que tomam decisões políticas, pois exercem sua considerável discrição na implementação cotidiana de programas públicos, trabalhando diretamente no contato com os beneficiários destes. A literatura sobre implementação de políticas públicas reforça como a discricionariedade é um fator presente na atuação dos burocratas de nível de rua, podendo influenciar o comportamento de entrega de serviços no processo de implementação (Ferreira & Medeiros, 2016). A discricionariedade está associada com a capacidade de interpretação da política pública que estes burocratas possuem, influenciando na medida em que os burocratas de nível de rua atuam em constante interação com sistemas políticos, organizacionais, profissionais e comunitários (Lotta, 2012).
Trazendo a lente da perspectiva teórica para a análise do fenômeno social aqui estudado, entende-se a importância de burocratas de nível de rua para que a implementação do PNAE ocorra de forma a garantir seus resultados previstos. Como evidencia Lotta (2012), a discussão a respeito do papel e da influência destes burocratas é central para compreendermos como, de fato, as ações são colocadas em prática e quais são os fatores que influenciam na mudança de rumos e nos resultados das políticas públicas.
Ao estudar a implementação do PNAE, especialmente considerando as aquisições de gêneros alimentícios da agricultura familiar para a sobrevivência da política pública mesmo sem aulas presenciais, diversos estudos têm evidenciado dificuldades e estratégias adotadas. Conforme Pereira et al. (2020), dentre os desafios de caráter legal, considera-se a discricionariedade da Lei n.º 13.987 (2020), uma vez que, a insuficiência de recursos financeiros se agrava na medida em que aumenta o custo alimentar per capita; pois, para compor os kits, em geral, é necessária uma quantidade maior de gêneros do que a empregada na alimentação escolar. Quanto aos desafios nutricionais relatados por Pereira et al. (2020), os kits alimentares devem ser compostos, em sua maioria, por alimentos in natura e minimamente processados; no entanto, os alimentos perecíveis dependem de logística específica para manter a qualidade.
Oltramari et al., (2020) descrevem que a principal estratégia para enfrentamento da pandemia em Curitiba/PR foi ofertar kits que priorizassem alimentos in natura e minimamente processados, respeitando as normas vigentes. Amorim et al. (2020) destacam a contribuição do PNAE para o enfrentamento da fome e da insegurança alimentar, ao propor um conjunto de estratégias para garantir a alimentação dos escolares no momento pandêmico como: distribuir kits ou refeições para escolares; ampliar o valor repassado pelo PNAE para os municípios com desenvolvimento humano baixo e muito baixo; manter e incentivar a aquisição de alimentos da agricultura familiar.
Sperandio e Morais (2021) destacam que as principais mudanças no modus operandi do Programa estão associadas às iniciativas desenvolvidas pelos gestores locais, cabendo a estes e a outros atores a definição da melhor logística de atendimento, desde que os princípios e recomendações nutricionais, sanitárias e sociais do PNAE sejam contemplados. Sousa e Jesus (2021) apontaram que medidas sociais, econômicas e tecnológicas foram tomadas pelo governo do Tocantins com o intuito de minimizar os impactos negativos causados pela pandemia, junto aos agricultores familiares. Breitenbach (2021) destaca que as principais estratégias de enfrentamento dos efeitos da pandemia na agricultura familiar identificadas em seu estudo foram classificadas em duas categorias: ações governamentais e políticas públicas emergenciais; e, ações da sociedade civil.
A maioria dos estudos sobre a implementação do PNAE durante a pandemia da Covid-19 possui abordagem predominantemente teórica, sendo caracterizados como pesquisa bibliográfica e/ou documental. No entanto, alguns autores apresentaram abordagens empíricas a respeito do tema. Futemma et al. (2021) compreenderam o impacto desta crise sanitária sobre os pequenos produtores rurais, indicando que os principais impactos da pandemia para este grupo recaem sobre a produção, a comercialização, a renda, a saúde humana e as formas de comunicação. No entanto, os pequenos produtores rurais conseguiram superar alguns dos desafios impostos pela pandemia a partir de um conjunto das seguintes estratégias: ações solidárias e coletivas, soluções criativas individuais e suporte do PNAE.
Sousa et al. (2021) constataram que as vendas dos agricultores familiares de uma cooperativa reduziram pela metade, o que fez com que os agricultores buscassem mercados alternativos para o escoamento da produção, visto que os mercados institucionais tradicionais para este segmento foram severamente afetados pela pandemia. Salgado e DelGrossi (2022) evidenciaram que, antes da pandemia, um município goiano ultrapassava o mínimo de compras da agricultura familiar de 30%, especialmente devido à articulação entre o setor público e a cooperativa local de agricultores familiares. Durante a pandemia, essa articulação continuou com a distribuição de kits de alimentos para famílias de alunos com insegurança alimentar.
A partir dos estudos apresentados nesta revisão, percebe-se que as principais dificuldades para a implementação do PNAE durante a pandemia da Covid-19 estão relacionadas a aspectos legais, logísticos, financeiros, nutricionais, compras da agricultura familiar e controle social. A literatura destaca também que algumas estratégias que foram desenvolvidas pelos gestores do Programa para enfrentamento desses desafios envolvem distribuir kits ou refeições aos escolares e manter e incentivar a aquisição de alimentos da agricultura familiar. Essas estratégias envolvem ações solidárias e coletivas, soluções criativas individuais e suporte de políticas públicas. A Figura 1 apresenta uma síntese das principais dificuldades e estratégias identificadas pela literatura analisada para a execução do PNAE durante a pandemia.

No escopo desta pesquisa, analisou-se, no lócus empírico de Viçosa/MG, quais as implicações da pandemia da Covid-19 na implementação da política pública, levando em consideração os benefícios do PNAE, as estratégias desenvolvidas e as dificuldades enfrentadas pelos diferentes atores envolvidos no processo. Ademais, cabe ressaltar que, conforme salientado pelos estudos deste tópico, a pandemia trouxe alterações na forma como o PNAE passou a ser executado, gerando dificuldades e estratégias para gestores públicos envolvidos na implementação do Programa. Isso afetou a agricultura familiar, uma vez que esta categoria teve que se adaptar para atender à nova configuração da política pública, diante das estratégias adotadas, como a oferta de kits e a necessidade de novas configurações para a entrega dos produtos, especialmente por conta de medidas de segurança. Logo, para compreender a implementação do PNAE em contexto pandêmico é fundamental entender tanto a perspectiva dos implementadores quanto da agricultura familiar; por isso, a seguir, os procedimentos metodológicos evidenciam que ambas as perspectivas foram contempladas neste estudo por meio da realização de entrevistas.
A pesquisa caracteriza-se pela abordagem qualitativa, sendo que o método utilizado é o estudo de caso. Este método consiste em uma averiguação empírica que “investiga o fenômeno contemporâneo (o caso) em profundidade e em seu contexto de mundo real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto puderem não ser claramente evidentes (Yin, 2015, p. 17).” A investigação aqui realizada consiste em um fenômeno contemporâneo, diante da relevância de se compreender a implementação da política pública, levando em consideração o contexto atípico pandêmico.
De acordo com Yin (2015), para a aplicação do estudo de caso, faz-se uso de questões do tipo “como” ou “por que” em relação a um conjunto de acontecimentos sobre o qual o pesquisador tem pouco ou nenhum controle. Sendo assim, a questão de pesquisa aqui apresentada na introdução está alinhada a este conceito de estudo de caso proposto. Como instrumento de coleta de dados, se utilizou a entrevista semiestruturada, com roteiro elaborado a partir de aspectos contemplados no referencial teórico e no objetivo. O Quadro 1 apresenta a caracterização dos sujeitos entrevistados, sintetizando as informações sobre ocupação e filiação, ou seja, qual órgão/entidade estes representam.

Considerando que o estudo envolve seres humanos, o projeto que destinou essa pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa (UFV). As entrevistas com as nutricionistas, com a extensionista da Emater, com a diretora da COOPAF/Muriaé, com a agricultora e dois agricultores familiares foram feitas em ambiente virtual, por meio da plataforma Google Meet (realizadas entre os meses de março a novembro de 2022). A entrevista com o engenheiro agrônomo e com dois agricultores familiares foram feitas de forma presencial (realizadas em janeiro e fevereiro de 2023). Portanto, o período de realização das entrevistas foi entre março de 2022 e fevereiro de 2023.
A escolha da diretora da COOPAF/Muriaé para ser entrevistada é justificada pelo fato de que a única cooperativa que ofertou alimentos para a alimentação escolar em Viçosa/MG, por meio do PNAE, nos anos de 2021 e 2022, foi a COOPAF. Isso foi constatado por meio de uma análise das chamadas públicas destes anos. Todas as entrevistas foram gravadas, pela plataforma Google Meet, quando remotas, ou por gravador de celular, quando presenciais, e posteriormente, transcritas para o MicrosoftWord. O tempo total de conteúdo gravado foi de, aproximadamente, quatro horas, enquanto as transcrições totalizaram 75 páginas.
A técnica de análise de dados utilizada é a análise de conteúdo. Tal técnica é definida como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” (Bardin, 2011, p. 44). O tipo de análise utilizado é a análise categorial, que considera a totalidade de um “texto”, passando-o pelo crivo da classificação, de acordo com a frequência ou a ausência de itens de sentido. Sendo assim, esse tipo de análise permite a classificação dos elementos constitutivos da mensagem (Bardin, 2011). A análise de conteúdo foi realizada em três fases: a pré-análise dos dados, a partir da escuta das entrevistas; a exploração dos materiais, a partir das transcrições das entrevistas; e, a análise dos resultados e discussão à luz do referencial teórico.
Na primeira categoria são analisados os conteúdos verbais gerados pelas entrevistas com os burocratas de nível de rua. Na segunda categoria são analisadas as entrevistas com a diretora da COOPAF e com os agricultores familiares individuais.
De acordo com os entrevistados, a implementação do PNAE em Viçosa/MG é feita a partir da atuação conjunta entre a Secretaria Municipal de Educação, a Emater e a Secretaria Municipal de Agropecuária e Desenvolvimento Rural. Lima e Oliveira (2020) evidenciam a importância da articulação entre essas secretarias e destas com a Emater para a implementação do PNAE.
As nutricionistas entrevistadas atuam no setor de alimentação escolar da Secretaria Municipal de Educação desde o ano de 2020, e suas principais atribuições são: fazer um trabalho de educação nutricional dos alunos; fazer diagnóstico nutricional e treinamento de funcionários das escolas; fiscalizar se os servidores estão cumprindo com o cardápio definido previamente, controlar como os produtos estão chegando nas escolas, conferir a qualidade do produto, além da parte logística e de compra dos gêneros alimentícios da agricultura familiar.
Em relação ao papel do engenheiro agrônomo, este atua na implementação do PNAE desde 2021, e suas principais atribuições envolvem fazer visitas às propriedades dos agricultores familiares, e a partir disso, realizar o levantamento da produção de cada um. Além disso, esse burocrata de nível de rua é responsável por fazer o monitoramento da produção dos agricultores e prestar assistência técnica, analisando o solo e orientando os agricultores sobre implantação de culturas, melhor época para plantio e formação de mudas.
Quanto à atuação das extensionistas da Emater na implementação do PNAE, suas atribuições incluem a divulgação das chamadas públicas e mobilização dos agricultores familiares para que estes acessem o recurso, o cadastro e a organização da documentação dos agricultores familiares, incluindo a verificação da situação e atualização (quando for o caso) da Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (DAP), a elaboração dos projetos de venda, e a assistência técnica aos agricultores familiares.
As nutricionistas relataram que em 2020 elas tiveram dificuldade de atender à Lei n.º 11.947 (2009), que estabelece a destinação de no mínimo 30% dos recursos financeiros repassados pelo FNDE para a alimentação escolar por meio da aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar, atingindo um percentual em torno de 12% neste primeiro ano de pandemia. Já para atender à Lei n.º 13.987 (2020), foram elaborados kits para a distribuição dos alimentos para os escolares. A estratégia de distribuição de kits foi uma medida adotada como contribuição do PNAE para o enfrentamento da fome e da insegurança alimentar, reforçando a importância do Programa como instrumento de garantia de SAN, assumindo um lugar de política pública que ultrapassa o propósito de suprir a alimentação escolar, no cenário pandêmico (Amorim et al., 2020).
Como a Lei n.º 13.987 (2020) delegou à gestão local a definição de critérios acerca da aquisição de alimentos pelo PNAE durante o período de suspensão de aulas presenciais, diferentes experiências foram desenvolvidas no país. Alguns municípios optaram pela oferta de kits, cestas básicas, refeições prontas ou concessão de auxílio financeiro às famílias dos estudantes (Oltramari et al., 2020). Mesmo havendo diferentes estratégias de garantia de alimentação aos escolares, a legislação recomenda a oferta dos alimentos por kits, não apoiando as outras modalidades adotadas pelos implementadores no país (Sperandio & Morais, 2021).
Quando se iniciou a distribuição dos kits em Viçosa/MG, em 2020, o setor da alimentação escolar do município ainda estava desestruturado para executar o PNAE nesse novo modelo, ou seja, ainda estava se adaptando com tal mudança; sendo esse o principal motivo para a dificuldade em atender à obrigatoriedade do atendimento aos 30% da destinação de recursos para aquisições da agricultura familiar. No entanto, em 2021, com o aprendizado do ano anterior e com a volta às aulas presenciais a partir do ensino híbrido, o cenário mudou. O município conseguiu executar em torno de 28% dos recursos destinados para a alimentação escolar advindos do FNDE para as aquisições da agricultura familiar, um percentual bem próximo ao exigido pela Lei n.º 11.947 (2009). Pelo depoimento de uma das nutricionistas é possível perceber esse aprendizado no processo de implementação da política pública:
“E aí no ano de 2021 né que quando a gente já sabia o que ia fazer a gente começou a dividir por escola e aí pegamos todos os produtos, toda a oferta que a gente tinha e fizemos um per capita de cada produto, distribuímos os alimentos em grupos, porque a gente não ia conseguir atender todos os alunos com todos os produtos da agricultura familiar, porque tinha produtos que a gente usava menos, então a gente não tava pensando em aluno, a gente tava pensando no coletivo para fazer merenda” (Nutricionista, Entrevistada 1).
A fala da nutricionista entrevistada corrobora a perspectiva apresentada por Pereira et al. (2020), de que a insuficiência de recursos financeiros se agrava na medida em que aumenta o custo alimentar per capita, pois, para compor os kits de alimentos, em geral, é necessária uma quantidade maior de gêneros do que a empregada na alimentação na escola, evidenciando uma dificuldade na execução da Lei n.º 13.987 (2020). No início de 2022, as nutricionistas relataram que tinham expectativa de que fosse um ano normal, em razão do retorno das aulas presenciais no município. No entanto, um evento externo ao PNAE e à própria pandemia, as chuvas de janeiro, contribuiu para a caracterização de 2022 como mais um ano atípico para a agricultura familiar e para a comercialização via PNAE. Por esse motivo, os agricultores perderam parte da produção que seria entregue em fevereiro, o que pode ter dificultado o cumprimento de destinação de 30% dos recursos do FNDE para alimentação escolar para compras da agricultura familiar.
Para implementar as ações previstas em Lei, os burocratas de nível de rua envolvidos enfrentaram dificuldades e precisaram criar estratégias para colocar em prática a distribuição dos kits de alimentos. Isso revela um aspecto destacado por Lotta (2012), de que o papel e a influência dos burocratas de nível de rua no processo de implementação de políticas públicas são centrais para compreendermos como, de fato, as ações são colocadas em prática e quais são os fatores que influenciam na mudança de rumos e nos resultados das políticas públicas.
Nesse sentido, outra dificuldade relatada pelas nutricionistas e pela extensionista entrevistadas está associada aos kits que não eram entregues, pois alguns pais ou responsáveis dos alunos não buscavam os alimentos nas escolas. As entrevistadas não souberam dizer exatamente o motivo disso acontecer, mas especulam que pode ter várias causas, como relatado nas falas:
“Os produtores entregavam os produtos frescos, a gente montava no dia a cesta e pedia para os pais buscar, só que muitos pais não buscavam, ou porque não tinham condições de transporte, ou porque tava trabalhando e não tinha jeito de ir buscar, ou porque não tinha interesse” (Nutricionista, Entrevistada 2).
“Qual motivo que eles, pra alguns pais que não buscavam esse kit, eu tenho curiosidade, qual que é a dificuldade deles descer, sendo que era uma coisa gratuita, era medo, será que é medo de infectar, será que era comodidade, eu não sei” (Extensionista, Entrevistada 4).
As nutricionistas relataram que, para o caso do PNAE municipal, a recomendação do FNDE era levar os alimentos até os domicílios dos alunos, caso o pai ou responsável não fosse buscar na escola; no entanto, era inviável executar tal orientação, em função de falta de transporte e de tempo para bater de porta em porta para entregar os kits. Para evitar o desperdício dos alimentos, a primeira estratégia das nutricionistas foi dar autonomia para as diretoras das escolas redistribuírem os kits dentro das próprias escolas. Assim, para pais ou responsáveis de alunos em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica que tivessem interesse, era entregue um kit extra. Caso ainda houvesse kits não entregues, uma segunda estratégia adotada pelas nutricionistas foi a doação desses kits para instituições de caridade do município. Paralelamente a essas duas estratégias, uma outra medida foi elaborar um termo para que a escola fizesse um levantamento de quantos kits deveriam ser disponibilizados, de acordo com o interesse dos pais e responsáveis por receber os produtos. As famílias que não se interessavam em ir buscar os kits assinavam um termo de recusa, conforme relatado na fala:
“E aí a gente se resguardava né porque, caso aquele pai não quisesse, ele assinava o termo de recusa e aí eu tinha uma prova de que eu tentei entregar, mas eles não queriam” (Nutricionista, Entrevistada 2).
Esse termo, assim como a destinação de kits não entregues para outras famílias ou instituições de caridade, são exemplos de adaptações feitas para melhor funcionamento da política pública nas circunstâncias locais da implementação. A partir disso, é possível perceber alguns fatores que moldam a atuação dos burocratas de nível de rua, como interações com o público beneficiário, as capacidades individuais e a influência do contexto local (Lotta, 2012). Ademais, as ações das nutricionistas estão em consonância com o modelo bottom-up deimplementação de políticas públicas, caracterizado pela maior liberdade dos burocratas de modificar a implementação (Secchi et al., 2020).
De acordo com a pesquisa de Oltramari et al. (2020), também houve dificuldade na entrega dos kits no município de Curitiba/PR. Diante disso, foi realizado um levantamento do número de kits a ser enviado para cada escola. Então, após a distribuição, com o que sobrava, foram realizadas as seguintes ações: a parte não perecível dos kits era devolvida às empresas contratadas para fazerem as entregas nas unidades escolares e a parte perecível era adquirida com recursos municipais e doados para um órgão de assistência social. Essa última estratégia de doação dos kits não entregues evidenciada por Oltramari et al. (2020) é similar a uma das estratégias adotada pelas nutricionistas atuantes no PNAE de Viçosa/MG.
Outra dificuldade, que é possível perceber pelo depoimento do engenheiro agrônomo entrevistado, se refere à realização de visitas às propriedades dos agricultores familiares para levantamento e acompanhamento da produção; visto que, por causa da pandemia, o distanciamento social foi decretado. Uma estratégia foi a realização de reuniões remotas com os agricultores, que segundo o entrevistado, são muito acessíveis. Tal estratégia induziu os agricultores familiares a utilizarem novas ferramentas tecnológicas, como as plataformas de reuniões virtuais, assim como permitiu a continuidade de participação no mercado institucional gerado pelo PNAE. Sousa e Jesus (2021) identificaram que estratégias de adaptação tecnológica para a agricultura familiar, durante a pandemia, também foram observadas quando foi lançada a tradicional Feira Agrotecnológica do Tocantins (Agrotins) em formato virtual, sendo a realização da feira, neste formato, uma estratégia de tentar amenizar os efeitos da pandemia sobre a agricultura familiar.
A implementação de políticas públicas é considerada crítica para os gestores públicos, pois, nessa fase, as decisões de políticas públicas se traduzem em ações e quaisquer deficiências e/ou vulnerabilidades se tornarão visíveis (Wu et al., 2014). A contribuição do engajamento dos servidores públicos é um reflexo da importância de se analisar a influência dos burocratas de nível de rua na implementação das políticas públicas. O Quadro 2 apresenta a síntese da atuação dos burocratas de nível de rua na implementação do PNAE durante a pandemia.

Os achados dessa categoria de análise apontam que a implementação do PNAE no município foi dificultada pelo contexto pandêmico, mas é possível perceber também o comprometimento dos burocratas de nível de rua em adaptar a implementação da política pública para promover a melhor gestão do Programa, diante do cenário adverso encontrado. Esses resultados reforçam o papel fundamental destes burocratas na implementação do PNAE especialmente em uma conjuntura atípica, em que as práticas de oferta das refeições aos estudantes no ambiente escolar ficaram suspensas.
A COOPAF/Muriaé possui uma atuação regional, ofertando alimentos para vários municípios, além do seu município sede, totalizando cerca de 160 escolas atendidas com os produtos de seus cooperados. Especificamente em Viçosa/MG, o principal produto ofertado é o iogurte, o que pode ser explicado pelo fato de a organização contar com um maior aparato administrativo e de pessoal por ser uma cooperativa bem estruturada, facilitando a produção de gêneros alimentícios processados.
A diretora da COOPAF (Entrevistada 6) relata que, com o lançamento da chamada pública, a cooperativa faz a proposta de venda com todos os produtos dos cooperados. A partir daí, o município escolhe comprar deles os produtos que os agricultores locais não conseguem ofertar. Logo, a preferência é dos agricultores familiares locais, caso estes não consigam oferecer o produto, os implementadores do PNAE entram em contato com a COOPAF para ofertar tal produto. Em relação às estratégias desenvolvidas frente à pandemia, a entrevista com a diretora da COOPAF revela novas dinâmicas de trabalho e comércio, destacando orientações para cumprimento das medidas sanitárias para prevenção e contenção da transmissão do vírus no momento de manusear e entregar os alimentos, como o uso de máscaras e álcool em gel, afastamento de funcionários que apresentaram sintomas e recomendações para fazerem o teste e, posteriormente, incentivos à vacinação.
Novas dinâmicas de trabalho e comércio no setor da agricultura familiar, geradas pela pandemia da Covid-19, também foi uma constatação da pesquisa realizada por Breitenbach (2021). Quando perguntada sobre a dificuldade dos agricultores familiares de Viçosa/MG se organizarem em cooperativas, a diretora da COOPAF revelou que também tem esse questionamento, já que o município possui várias entidades atuando no campo de estudos e ações do Cooperativismo, por exemplo, a UFV por meio do seu curso de Bacharelado em Cooperativismo e do seu programa de extensão universitária Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), e os movimentos sociais.
A diretora da COOPAF conta que os dirigentes da cooperativa já foram convidados pela Emater, juntamente com outras organizações formais da agricultura familiar desse formato, para conversar com agricultores familiares de Viçosa/MG, no intuito de partilhar experiências e falar sobre a importância de se constituir uma cooperativa, especialmente para o acesso às políticas públicas. No entanto, mesmo com essa reunião, a ideia de criação de uma cooperativa no município não foi concretizada. A entrevistada entende que há potencial para ter uma cooperativa por causa das características relacionadas ao Cooperativismo citadas, mas não é ideal que a iniciativa de criação de uma cooperativa em Viçosa/MG parta do poder público, e sim que seja dos próprios agricultores familiares.
Uma cooperativa criada a partir do poder público corre o risco de se tornar uma organização carente de enraizamento social, e com pouca identificação dos agricultores familiares, fazendo com que o papel destes atores no processo seja apenas coadjuvante. Este fato foi observado no contexto de Patos de Minas/MG, haja vista que o processo de início do mercado institucional do PNAE no município partiu da criação de uma associação, mas a formalização da organização se deu de forma instrumental, protagonizada e tutelada pelo poder público (Lima & Oliveira, 2020). Quanto aos agricultores familiares, quando questionados a respeito de não serem organizados formalmente, os principais motivos alegados foram: falta de interesse em se auto-organizar, competição, desunião e individualismo, conforme algumas falas:
“Os agricultores aqui, principalmente do PNAE, eles têm muita, como se fala, uma competição, é, pra ter uma cooperativa acho que todo mundo tem que tá no mesmo caminho, né, e eu vejo lá, assim, não sei, acho que os agricultores não são muito unidos pra esse tipo de cooperativa, se não poderia já ter a muito tempo, né” (Agricultor familiar, Entrevistado 8).
“É porque os agricultores de Viçosa são muito individualistas, eles preferem só pra eles né e não quer dividir, é um ou... no meio de, acho que são 30 e poucos produtor, tem aí uns quatro, cinco, que quer, tem vontade de fazer uma cooperativa, o resto num quer, o resto é tudo individualista mesmo, cada um pra si e Deus pra todos, né” (Agricultor familiar, Entrevistado 10).
Nessa perspectiva, Salgado e Delgrossi (2022) destacam a baixa organização formal dos agricultores familiares do município goiano estudado, apesar de o município contar com uma cooperativa local. Em Viçosa/MG, os agricultores relatam que os contratos foram cumpridos normalmente durante a pandemia, mesmo com a suspensão das aulas presenciais, e depois, com a instituição do modelo de ensino híbrido. Quanto à COOPAF, esta começou a comercializar seus produtos por meio do PNAE no município a partir do ano de 2021, já em contexto pandêmico, dificultando a comparação de mudanças na participação da cooperativa no PNAE do município antes e depois da pandemia.
A partir da análise das entrevistas, percebe-se que o principal benefício da participação dos agricultores familiares no PNAE é a garantia de renda, e tal garantia foi especialmente relevante no contexto pandêmico, o que evidencia a importância do mercado institucional criado pelo Programa para escoamento da produção e para geração de renda para a agricultura familiar. Esse resultado é corroborado por Futemma et al. (2021) que consideram que o escoamento da produção da agricultura familiar é um dos maiores desafios enfrentados pelos produtores rurais. Um dos agricultores entrevistados relata que a participação no PNAE é sua principal fonte de renda, e com o início da pandemia, seus rendimentos caíram. No entanto, isso não teve relação com o Programa, que pelo contrário, foi crucial para garantir renda em contexto pandêmico, como é mostrado em sua fala:
“A gente tomou meio que um susto no início da pandemia, mas a minha, a minha queda de renda nesse momento não se deu pelo PNAE, ela se deu pela feira, pelo fechamento da universidade, ela se deu pelo mercado, pelo fluxo menor de gente no mercado, é, muito pelo contrário, o que me segurou aí na pandemia foi o PNAE, então assim o meu problema com a renda foi mais assim, o fluxo da cidade do que o PNAE em si, PNAE na verdade ele foi um pilar aí pra pra eu conseguir segurar as coisas até que tudo voltasse ao normal” (Agricultor familiar, Entrevistado 9).
O relato destaca a importância da decisão da Prefeitura de Viçosa (PMV) em continuar adquirindo gêneros alimentícios da agricultura familiar para a alimentação escolar com o advento da pandemia. Com a suspensão das aulas presenciais, muitas prefeituras não deram continuidade nas compras públicas da agricultura familiar via PNAE, tirando o suporte da política pública para os agricultores familiares (Futemma et al., 2021). Nesse sentido, a atuação da gestão pública, por meio dos implementadores do Programa, se mostrou fundamental para a agricultura familiar.
Outro benefício pontuado pelo agricultor familiar (Entrevistado 9) advindo da participação no PNAE está relacionada à permanência do agricultor familiar no campo, especialmente os jovens, e sua relação com a produção agropecuária. O entrevistado relata que sua família participa do PNAE há bastante tempo, mas ele começou a fornecer alimentos para o Programa a partir de 2018, quando retornou para o campo, após um período afastado para conclusão do Ensino Superior. Ele considera que a oportunidade de comercialização por meio do PNAE foi um dos principais motivos para a sua decisão de retorno ao campo.
Tal resultado é corroborado por Corrêa e Wives (2018) que constataram que o Programa impacta na organização da família, gerando mudança na relação do jovem com a produção agropecuária, além de possibilitar o aumento do número de jovens rurais voltados à agricultura familiar e o maior envolvimento da juventude rural na produção familiar, promovendo a permanência do jovem no campo, e consequentemente, facilitando a sucessão familiar.
Quanto às dificuldades enfrentadas para ofertar alimentos por meio do Programa, destacam-se, principalmente, adversidades externas ao PNAE propriamente, e em alguns casos, sem relação com a pandemia. Tanto os burocratas de nível de rua entrevistados quanto alguns agricultores relatam que as fortes chuvas ocorridas em janeiro de 2022 prejudicaram a produção que seria entregue no primeiro semestre do ano. Outra dificuldade enfrentada pela agricultura familiar está relacionada ao aumento dos custos de produção, visto que houve elevação nos preços de insumos e combustíveis, como a gasolina. Vale ressaltar que esse cenário econômico não foi restrito ao Brasil e que, por efeitos da pandemia, impactou todo o cenário econômico mundial, provocando inflação e elevação de custos em muitos países, inclusive nos mais desenvolvidos.
As péssimas condições das estradas rurais do município também dificultam as entregas dos alimentos nas escolas, conforme relatado por dois dos agricultores familiares entrevistados. Essas dificuldades mostram como a implementação de uma política pública é afetada não somente pelos atores estatais e não estatais envolvidos, mas também por conjunturas que acontecem em âmbito local, nacional e global.
Uma dificuldade intrínseca ao PNAE enfrentada pelos agricultores é a demora ou atraso nos pagamentos por parte da prefeitura. Apesar do pagamento ser garantido, esses atrasos atrapalham a produção dos agricultores familiares, especialmente daqueles produtores cuja produção é pequena, visto que eles precisam do pagamento para se manterem e para reinvestimento na produção. Inconsistências no atendimento do prazo de pagamento para os agricultores familiares participantes do PNAE também são encontradas na pesquisa de Santos et al. (2022). Diante dos aspectos relatados, o Quadro 3 sintetiza as principais estratégias, benefícios e dificuldades, identificadas pela pesquisa.

Finalizando as constatações deste artigo, vale a reflexão de que, no contexto pandêmico em que as aulas nas escolas públicas foram suspensas, o PNAE se tornou uma política pública que ultrapassou o seu propósito principal de prover alimentação escolar saudável e nutritiva para os estudantes de escolas públicas, valorizando os alimentos produzidos pela agricultura familiar. A partir da crise causada pela pandemia, além desse objetivo principal, o PNAE se tornou um Programa ainda mais importante para a garantia da SAN e para o combate à fome, beneficiando tanto os alunos e suas famílias, ao continuar entregando alimentos fora do ambiente escolar, quanto aos agricultores familiares, ao garantir renda e mercado.
A pesquisa permitiu concluir que, durante a pandemia, o formato da implementação do PNAE em Viçosa/MG foi alterado, mudando o processo de se elaborar a merenda e flexibilizando a forma de oferta dos produtos adquiridos. Para atender a nova demanda e a dinâmica de implementação, foi adotada, pelos atores implementadores, a estratégia de distribuição de kits de alimentação aos pais e/ou responsáveis pelos alunos. A elaboração de um termo, pelas nutricionistas, a ser assinado por pais ou responsáveis de alunos que decidiram por não retirar os kits de alimentação, foi a principal estratégia discricionária observada na implementação, durante o período pandêmico. Os kits não entregues aos destinatários iniciais foram encaminhados para outras famílias dentro das próprias escolas ou doados para instituições de caridade do município.
Conclui-se que tanto os burocratas de nível de rua, quanto os agricultores familiares, organizados em cooperativa ou individuais, enfrentaram dificuldades na implementação do PNAE, devido à pandemia da Covid-19. Essas dificuldades estão relacionadas tanto a aspectos internos (organização formal, demora nos pagamentos, elaboração de kits) quanto características que ultrapassam o controle da política pública (eventos climáticos, custos de produção, condição de estradas). No entanto, foram traçadas estratégias no intuito de manter as compras públicas da agricultura familiar e de continuar ofertando alimentação aos alunos das escolas públicas, dado o contexto de fechamento das escolas e, posteriormente, de instituição do modelo híbrido de ensino.
Tem-se a limitação de não terem sido entrevistados outros atores que fazem parte da implementação, mesmo que não se relacionem tão diretamente com as compras da agricultura familiar, como pais de alunos, diretores das escolas e membros do Conselho de Alimentação Escolar (CAE). Para pesquisas futuras, sugere-se a realização de entrevistas com outros atores/instituições relevantes na implementação, como forma de incluir perspectivas de agentes que podem ter desempenhado papéis importantes na implementação do PNAE, especialmente durante a pandemia. Sugere-se também a compreensão do fenômeno a partir de outras lentes teóricas, como das capacidades estatais municipais, e de outras lentes metodológicas, a exemplo de modelos de análise multivariada de dados que correlacionem as capacidades estatais municipais com o (in)sucesso das compras da agricultura familiar nas políticas públicas de aquisições de alimentos.



