Resumo:
Objetivo da pesquisa: Este ensaio defende que a análise cultural das organizações policiais militares deve adotar um percurso metodológico que considere o aspecto não declarativo da cultura, indo além daquilo que é declarado verbalmente e formalmente, concentrando-se na cultura manifesta em situações do cotidiano.
Enquadramento teórico: Diante da ausência de tal debate na literatura sobre a cultura em organizações policiais, buscamos na teoria da cultura como processo dual respostas para os conflitos e contradições que emergem no cotidiano do exercício policial.
Resultados: Na concepção de que a cultura como cognição se manifesta de modos declarativo e não declarativo, buscamos construir um percurso analítico e metodológico para acessar tais modos. Como esses modos operam em formas distintas no processo de enculturação, oferecemos sugestões específicas quanto à aquisição, armazenamento, processamento e uso da cultura. Também mostramos que há fenômenos de interesse e investigações possíveis.
Originalidade: Compreender como a cultura se manifesta por esquemas culturais cognitivos têm possibilitado novas maneiras de pensar a análise cultural. A originalidade de tais perspectivas poderá contribuir com os estudos das organizações, principalmente, quando ligadas à segurança pública.
Contribuições teóricas e práticas: A análise cultural das organizações policiais militares, sob a ótica de percursos metodológicos sugeridos aqui, pode desafiar os pressupostos subjacentes à literatura existente, possibilitando pesquisas e definições mais úteis e precisas.
Palavras-chave: cultura organizacional, análise cultural, modo não declarativo, esquemas culturais, organizações policiais.
Abstract:
Research objective: This essay argues that the cultural analysis of military police organizations must adopt a methodological path that considers the nondeclarative aspect of culture, going beyond what is declared verbally and formally, focusing on the culture manifested in everyday situations.
Theoretical framework: Given the absence of such debate in the literature on culture in police organizations, we look to the theory of culture as a dual process for answers to the conflicts and contradictions that emerge in everyday police practice.
Results: In the conception that culture as cognition manifests itself in declarative and non-declarative modes, we seek to build an analytical and methodological path to access such ways. Because these modes operate in distinct ways in the enculturation process, we offer specific suggestions regarding the acquisition, storage, processing, and use of culture. We also show that there are phenomena of interest and possible investigations.
Originality: Understanding how culture manifests itself through cognitive cultural schemes has enabled new ways of thinking about cultural analysis. The originality of such perspectives could contribute to studies of organizations, especially when linked to public security.
Theoretical and practical contributions: The cultural analysis of military police organizations, from the perspective of methodological paths suggested here, can challenge the assumptions underlying the existing literature, enabling more useful and precise research and definitions.
Keywords: organizational culture, cultural analysis, nondeclarative mode, cultural schemas, police organizations.
Resumen:
Objetivo de investigación: Este ensayo sostiene que el análisis cultural de las organizaciones de policía militar debe adoptar un camino metodológico que considere el aspecto no declarativo de la cultura, yendo más allá de lo declarado verbal y formalmente, centrándose en la cultura manifestada en situaciones cotidianas.
Marco teórico: Dada la ausencia de tal debate en la literatura sobre la cultura en las organizaciones policiales, consideramos la teoría de la cultura como un proceso dual para encontrar respuestas a los conflictos y contradicciones que emergen en la práctica policial cotidiana.
Resultados: En la concepción de que la cultura como cognición se manifiesta de modos declarativa y no declarativa, buscamos construir un camino analítico y metodológico para acceder a dichas formas. Debido a que estos modos operan de distintas maneras en el proceso de enculturación, ofrecemos sugerencias específicas con respecto a la adquisición, almacenamiento, procesamiento y uso de la cultura. También mostramos que existen fenómenos de interés y posibles investigaciones.
Originalidad: comprender cómo se manifiesta la cultura a través de esquemas culturales cognitivos ha permitido nuevas formas de pensar sobre el análisis cultural. La originalidad de tales perspectivas podría contribuir a los estudios de las organizaciones, especialmente cuando están vinculadas a la seguridad pública.
Contribuciones teóricas y prácticas: El análisis cultural de las organizaciones de policía militar, desde la perspectiva de los caminos metodológicos aquí sugeridos, puede desafiar los supuestos subyacentes a la literatura existente, permitiendo investigaciones y definiciones más útiles y precisas.
Palabras clave: cultura organizacional, análisis cultural, modo no declarativo, esquemas culturales, organizaciones policiales.
Artigos
Considerando os Modos Declarativos e Não Declarativos da Cultura Policial Militar
Considering the Declarative and Nondeclarative Modes of Military Police Culture
Considerando los Modos Declarativos y no Declarativos de la Cultura de la Policía Militar

Recepción: 23 Noviembre 2023
Aprobación: 22 Octubre 2024
Publicación: 18 Marzo 2025
“Não posso dizer que sigo as regras completamente. Eu não sigo. Mas eu as interpreto em cada situação e tomo a melhor decisão. Sim, a partir do meu próprio sistema de valores, suponho” (declaração de um policial americano em Maynard-Moody e Musheno, 2022, p. 3).
Independentemente do que as leis regem, é inegável dizer que os policiais se adequam às situações que efetivamente enfrentam ao aplicar a lei. Tal afirmativa é válida mesmo quando se considera diferenças entre países, regimes jurídicos ou sistema de organização da polícia (Loftus, 2010). Assim, policiais, como agentes públicos que operam no nível de rua, precisam conciliar, ao mesmo tempo, exigências legais, regimentares e políticas departamentais, que restringem as formas pelas quais devem exercer o seu trabalho, com as necessidades diárias do seu cotidiano (Maynard‐Moody & Musheno, 2012, 2022; Portillo & Rudes, 2014), que remete em lidar, muitas vezes, face-a-face com indivíduos que ameaçam as suas próprias vidas e de outras pessoas (Khaled Jr, S. H., Góes, L., & Pedroso, A. F., 2024; Solomon & Martin, 2019; Zhao & Papachristos, 2024).
A conciliação de requisitos legais com as exigências mais mundanas da ação policial pode levar a uma série de contradições, dilemas e conflitos, cujas dúvidas não pairam somente sobre se o policial segue a lei ou não (Lima, 1997; Mangels, Suss, & Lande, 2020), mas de como ele efetivamente interpreta, julga e adequa suas ações ao executar a lei (Maynard‐Moody & Musheno, 2012). Tais questões são tratadas no escopo da Administração Pública como um campo fértil de investigação denominado burocratas no nível de rua (Lipsky, 1980), que busca compreender como agentes públicos interagem com a população (Portillo & Rudes, 2014), dando vazão às suas vozes e ensejos, o que frequentemente se choca com políticas e regras (Maynard‐Moody & Musheno, 2022; Terpstra & Schaap, 2013). Tais estudos tendem a focar na análise do caráter autônomo e discricionário de tais agentes (Portillo & Rudes, 2014), havendo ênfase cada vez maior em compreender como os sistemas de crenças de tais agentes condicionam o julgamento que fazem sobre as pessoas, sobre as circunstâncias de seu trabalho e sobre a sua própria identidade (Maynard‐Moody & Musheno, 2022; Sandfort, 2000).
Dado o caráter central que os sistemas de crenças e seus respectivos repertórios culturais têm no contexto de atuação policial (Demirkol & Nalla, 2020; Keesman, 2022), nós buscamos neste ensaio contribuir analiticamente e metodologicamente para os estudos sobre tais agentes públicos rediscutindo a concepção de cultura sob a ótica de teorias que enfatizam o imbricamento do caráter tácito e discursivo da agência humana (Rossoni, Guarido Filho & Coraiola, 2013), o que remete ao arcabouço de modelos de processos duais (dual process models, Lizardo, 2017; Lizardo, Mowry, Sepulvado, Stoltz, Taylor, Van Ness & Wood, 2016; Vaisey, 2009), que já vem sendo empregado no estudo da atividade policial (Hagan, McCarthy, Herda & Chandrasekher, 2018; Keesman, 2022). Sendo assim, nosso objetivo é defender que a análise cultural das organizações policiais militares deve adotar um percurso metodológico que considere o aspecto não declarativo da cultura, indo além daquilo que é declarado verbalmente e formalmente, concentrando-se na cultura manifesta em situações do cotidiano.
Para tanto, devemos destacar que os estudos atuais sobre a cultura das polícias militares enfrentam algumas limitações na compreensão desse fenômeno complexo (Demirkol & Nalla, 2020; Keesman, 2022). No campo ontológico, a maioria das pesquisas nesse campo tem se concentrado em abordagens normativas e idealizadas da cultura organizacional, negligenciando a diversidade de subculturas e perspectivas dentro das próprias instituições policiais militares (Paoline, 2003; Silva, 2019). Já no campo metodológico, estudos apontam que a falta de acesso a informações sensíveis, bem como a resistência dos membros das corporações em participar de estudos socioculturais, têm dificultado a obtenção de uma compreensão abrangente da cultura policial militar (Keesman, 2022; Rocha & Carvalho, 2018). Tais limitações ressaltam a necessidade de abordagens mais inclusivas e métodos de pesquisa alternativos que possam capturar as múltiplas facetas da cultura nas polícias militares.
Em face de tais limitações, pesquisadores têm explorado diferentes abordagens para analisar a cultura organizacional, inclusive das polícias. Muitas delas, em seu início, buscaram uma perspectiva cultural integradora, que enfatiza a multiplicidade da cultura corporativa policial (Paoline, 2003), buscando superar a visão de que existiria apenas uma cultura determinada pela alta administração (Martin & Frost, 2001). Essa abordagem foi posteriormente ampliada para incluir perspectivas de diferenciação e fragmentação cultural das organizações policiais (Demirkol & Nalla, 2020) por meio do reconhecimendo da diversidade cultural ocasionada pela complexidade das organizações (Silva, Junquilho & Carrieri, 2010). No entanto, ao adotar as perspectivas de fragmentação e diferenciação, essas abordagens acabaram reforçando, em certa medida, o que as perspectivas mais integradoras já defendiam, ao atribuir a variação cultural a um mero grau de consenso (Carrieri, 2002; Carrieri & Pimentel, 2005; Denilson, 1996; Fischer & Mac-Allister, 2001; A. R. L. da Silva et al., 2010). Isso levou a uma discussão inócua sobre a natureza da cultura, focando apenas na sua compartimentalização ou fragmentação, resultando em divergências e imprecisões que pouco contribuem para a compreensão da cultura organizacional (Rossoni, Gonçalves, Silva & Gonçalves, 2021), inclusive da cultura policial (Keesman, 2022).
Nossa contribuição remete à introdução de fundamentos conceituais e metodológicos oriundos dos modelos culturais de processos duais (Lizardo, 2017; Lizardo et al., 2016; Vaisey, 2009) no estudo da cultura policial. Tais modelos surgiram embrionariamente com DiMaggio (1997) na intenção de melhor compreender o papel de esquemas compartilhados de significados na manifestação cultural em situações reais de ação (Cerulo, Leschziner, & Shepherd, 2021). Tais modelos enfatizam que a cultura vai além da manifestação pública, cuja “fragmentação” é compreendida ao se reconhecer que ela também existe em seu nível pessoal, internalizadas como traços de memória (Lizardo et al., 2016). Assim, pautando-se em teorias cognitivas oriundas da psicologia social, antropologia, linguística e neurociência (Cerulo et al., 2021; Lizardo, 2017), nós pioneiramente incorporamos a distinção da cultura pessoal em seus modos declarativos e não declarativos para compreender de forma mais adequada a cultura das organizações policiais, enfatizando o efeito da internalização desses dois modos de cultura na ação policial.
Tal percurso não é novo, pois há evidências em estudos brasileiros que buscam entender as manifestações culturais de policiais por meio da análise das práticas sociais (Conde, 2022; França & Silva, 2022; Khaled Jr et al., 2024; Lima & Cunha, 2022; Lopes, Ribeiro & Tordoro, 2016; Poncioni, 2005). Muitos deles inclusive se baseiam em teóricos da prática como Bourdieu, Callon e Giddens, que também inspiraram os modelos de processo dual em compreender o papel da cultura nas manifestações práticas (Lizardo, 2017; Lizardo et al., 2016; Vaisey, 2009). Todavia, tais estudos apresentavam uma concepção defasada e analiticamente imprecisa da cultura (Lizardo, 2017), especialmente no nível pessoal não declarativo, minando o esforço analítico de sistematização. Além disso, do ponto de vista metodológico, há um descompasso entre o interesse dado à cultura pública em detrimento da cultura pessoal, especialmente quando estas são manifestadas em seu modo não declarativo. Dessa forma, considerando que, ao diferenciar a cultura pessoal em seus modos declarativos e não declarativos, é possível observar aspectos da variabilidade e contradições em nível tácito (Lizardo, 2017).
Por exemplo, Maynard‐Moody e Musheno (2022) apontam que há um paradoxo preocupante nos procedimentos de abordagem policial americana, em que, apesar proibição explícita da análise do suspeito pelo perfil racial, em que os próprios policiais declaram que essa prática é ilegal e ineficaz, pesquisas e entrevistas indicam que negros e outras minorias são parados pela polícia com muito mais frequência do que brancos. Compreender tal paradoxo remete a necessidade de reconhecer que o trabalho policial depende do conhecimento não declarativo, como habilidades corporais e modos de instanciamento do conhecimento no seu nível tácito (Keesman, 2022). Assim, defendemos neste ensaio que pesquisas empíricas que objetivem desenvolver uma análise cultural em organizações policiais devam buscar caminhos metodológicos para acessar os seus modos declarativo e não declarativo, adequando a natureza da manifestação da cultura aos pressupostos de teorias culturais contemporâneas, possibilitando que fenômenos expressos tacitamente ou em nível cognitivo se manifestem.
Para tanto, analisar o que agentes policiais declaram em seus discursos ou em resposta a questionamentos do pesquisador em entrevistas não será tratado aqui como o único caminho metodológico possível. Considerando que a análise cultural das organizações policiais militares deve recepcionar os aspectos não declarativos (Hagan et al., 2018; Keesman, 2022), indo além daquilo que é expresso verbalmente (entrevistas) nas organizações ou até mesmo nos documentos, apontamos as possibilidades de explorar a abordagem do processo dual como ponto de partida para justificar o uso de técnicas que capturam expressões corporais, uso da palavra em loco e manifestações viscerais no cotidiano desses agentes na intenção de compreender a cultura como algo tácito. Desse modo, para ilustrar como a análise dos aspectos declarativos e não declarativos pode ser conduzida, e em quais condições esses modos são relevantes, tomaremos como exemplo as organizações policiais militares.
Depois desta introdução, apresentamos os fundamentos a respeito da cultura pública e pessoal nos seus modos declarativos e não declarativos sob a égide da sociologia cultural. Em seguida, tomamos as organizações policiais militares para exemplificar alternativas metodológicas, as quais foram organizadas em percursos metodológicos para capturar o declarado e o não declarado em quatro domínios da manifestação cultural em loco (Lizardo et al., 2016): aquisição (learning); armazenamento (remembering); processamento (thinking); uso (acting). Encerramos o texto com as considerações finais.
Além de cultura pública, Lizardo (2017) ressalta que a cultura se manifesta em nível pessoal, em que opera em modos declarativo e não declarativo. Segundo o autor, esta separação qualificada da cultura combate uma tendência frequente de usar o termo cultura de maneira indiferenciada, genérica e analiticamente improdutiva, obscurecendo a relação entre diferentes elementos culturais. Tais afirmações estão alinhadas com a defesa de Vaisey (2009), quando esse apresenta um novo modelo de cultura em ação, distinguindo os modos discursivos e práticos de cultura e cognição. Lizardo (2017) vincula a distinção analítica entre cultura declarativa e não declarativa com a distinção maior entre a cultura manifestada no nível do indivíduo (cultura pessoal) e a cultura exteriorizada na forma de símbolos públicos, discursos e instituições (cultura pública).
Nesse sentido, haveria dois níveis da análise cultural: a pública e a pessoal (Jerolmack & Khan, 2014; Lizardo, 2017; Ryle, 2002; Strauss & Quinn, 1997). A cultura pública é investigada a partir do grau de consenso (ou não) organizacional, sendo a cultura organizacional entendida como os significados compartilhados, ou fragmentados, mas, ainda assim, no nível público. Ela pode ser reconhecida como o conhecimento do “que”, sendo fenomenologicamente transparente, é capturado como relatos linguísticos, manifestando-se, por exemplo, como códigos, símbolos, rituais, molduras, vocabulários, classificações e narrativas e modelos (Jerolmack & Khan, 2014; Lizardo, 2017; Ryle, 2002).
Já a cultura pessoal refere-se ao conhecimento do “como” os aspectos implícitos, ou não declarativos da cultura, sendo fenomenologicamente opacos e não abertos à articulação linguística, manifestam-se nas realizações do cotidiano (Lizardo, 2017; Lizardo et al., 2016). Dois modos são distinguidos por Lizardo et al., (2016): um pessoal declarativo, que se manifesta por meio de valores, atitudes, orientações, visões de mundo ou ideologias; outro pessoal não declarativo, incorporado na prática que se manifesta não verbalmente, por meio de habilidades, disposições, esquemas, protótipos ou associações.
Embora pesquisadores tendam privilegiar apenas um conjunto diádico por vez (de dois em dois, como, por exemplo, a cultura pública com a cultura declarada), qualquer análise cultural deve considerar, implícita ou explicitamente, que a cultura se manifesta recursivamente tanto na esfera pública como nos modos declarativos e não declarativos (Lizardo, 2017). Ou seja, sob os riscos de não serem claras, as pesquisas empíricas que se valem de análises culturais devem, portanto, se esforçar em realizar um trabalho cuidadoso do conjunto completo destas relações (declarativa e não declarativa; pública e declarativa; e, pública e não declarativa); ou, no mínimo, considerar que muito da variabilidade cultural se dá, ao mesmo tempo, nas expressões linguísticas e na apreciação mental e automatizada de fenômenos sociais recorrentes (Lizardo, 2017).
Como muitos métodos de investigação empírica nos estudos culturais concentram-se no discurso dos agentes, muitos pesquisadores acabam acolhendo instrumentos que enfatizam uma visão verbalmente racionalizada da cultura, não sendo adequados para se capturar aquilo que é não declarativo (Vaisey, 2009). Questiona-se, portanto, como poderíamos acessar a cultura não declarativa, e, posteriormente, relacioná-la com outros elementos culturais (cultura pública e/ou cultura pessoal em seu modo declarativo).
Em termos empíricos, isso remete inclusive questionar o valor dado às entrevistas como instrumento de investigação cultural (Lamont & Swidler, 2014; Lizardo, 2017; Lizardo et al., 2016; Pugh, 2013; Vaisey, 2009). Consequentemente, analisar o que as pessoas declaram na resposta a questionamentos do pesquisador não deve ser considerado o único caminho metodológico possível, especialmente quando a pesquisa empírica em questão exige uma análise daquilo que não é dito ou expresso verbalmente nas organizações, nem como aquilo que não é tornado público por meio de símbolos e rituais.
Nessa perspectiva, destaca-se a “virada multimoldal” (Höllerer, Daudigeos & Jancsary, 2018) nas pesquisas em instituições e organizações, as quais são construídas e experenciadas por diferentes recursos, sejam visuais, textuais, sensoriais. Como afirmam Höllerer et al. (2018), a multimodalidade amplia o potencial de construção de significado inerente e específico a cada modo individual bem como os significados que emergem apenas por meio da combinação de diferentes modos, o que pode ser estendido à compreensão dos modos declarativos e não declarativos da cultura.
Lizardo (2017) distingue duas formas principais em que a cultura pessoal se apresenta ao analista no nível pessoal: (a) a cultura vista como know-that declarativo; e, (b) a cultura vista como know-how não declarativo. Essas formas são dissociáveis. Por exemplo, as pessoas podem exibir habilidades declarativas para produzir conhecimento da cultura (pública) sobre o quê, mas não sabem o como usar; ou, ainda, podem possuir habilidades culturais implícitas sem contrapartida declarativa publicamente acessível. Portanto, entrevistas por si só não bastam para a compreensão da análise cultural.
Embora as pessoas não possam articular princípios claros de julgamento moral, suas escolhas são feitas com base em um roteiro cultural mais amplo (Vaisey, 2009). Para compreender essas escolhas pessoais, Vaisey (2009) defende uma análise cultural por meio de um modelo de cultura em ação que chamou de Dual-Process Model of Culture in Action. Mais tarde, Lizardo et al. (2016) mostraram como esse modelo pode ser aplicado a uma variedade de questões analiticamente distintas, além de questões específicas relacionadas à moralidade, como: cultura na aprendizagem (aquisição de cultura); cultura na memória (armazenamento de cultura); cultura no pensamento (processamento de cultura); e, cultura nos processos de ação (uso da cultura). Assim, os autores esboçam as implicações desse argumento para os trabalhos em sociologia cultural.
Na análise da cultura em ação, Lizardo et al. (2016) defendem que, em cada uma das fases de enculturação, há o Tipo 1 (não declarativo) e o Tipo 2 (declarativo), respectivamente, da seguinte forma: (a) na aquisição da cultura (learning), há o aprendizado lento (prático, incorporado, implícito) e o aprendizado rápido (conceitual, simbólico, explícito); (b) no armazenamento da cultura (remembering) há a representação distribuída (“Know how”) e a representação simbólica (“Know that”); (c) no processamento da cultura (thinking) há o processamento paralelo (“veja isso”, rápido e sem esforço, baseado em associações) e o processamento sequencial (“motivo”, lento e trabalhoso, baseado em regras); e, (d) no uso da cultura (acting) há o automático (impulsivo) e o controlado, (reflexivo).
A partir dessa discussão, questiona-se quanto à exequibilidade de um desenho de pesquisa que fosse coerente com os aspectos declarativos e não declarativos da análise cultural nos estudos organizacionais, em especial, para a análise das organizações policiais brasileiras. A superação de tais desafios é sugerida na próxima seção, por meio de apontamentos metodológicos que reconheçam os modos pelos quais a cultura se torna pessoal, ou seja, o processo de enculturamento por meio do qual as pessoas adquirem e usam a cultura.
As sugestões metodológicas para o estudo das organizações policiais também podem exemplificar, para outros estudos, alternativas metodológicas de acesso à cultura pessoal em seu modo não declarativo. Como se verá, essa abordagem possibilita a análise mais precisa da cultura em organizações policiais militares, de modo a desafiar os pressupostos subjacentes às teorias de cultura organizacional existentes, as quais não são capazes de sustentar as manifestações empíricas em seu modo privado.
Para operacionalizar uma pesquisa empírica que considere os aspectos declarativos e não declarativos da análise cultural seria necessário, primeiro, reconhecer como se manifesta a cultura organizacional, especialmente em seu modo não declarativo. Discute-se, portanto, como seria possível capturar a cultura não declarativa no dia a dia da organização, e em quais condições elas se manifestariam. Nesse sentido, o estudo das organizações policiais militares pode ilustrar como tal análise poderia ser conduzida, e em quais condições seriam relevantes. Por serem organizações cuja atividade do cotidiano se expressa de forma extremamente tácita, em que, ao mesmo tempo, os rituais e manifestações simbólicas são extremamente significativos para a identidade do policial, ela se mostra como um caso significativo a ser explorado.
Diante do grave contexto da segurança pública brasileira, as organizações policiais têm protagonizado mudanças institucionais em direção à cidadania, em resposta ao ambiente democrático que o país tem experimentado desde a década de 1980 (Ferreira, Rossoni & Oliveira, 2022). Nas últimas décadas, as organizações policiais militares também têm buscado alternativas frente ao crescente índice de criminalidade violenta que comprometia a confiança da população e da imprensa (Vieira & Protásio, 2011).
Se considerarmos os elementos que constituem a formação institucional, podemos compreender que a organização policial militar brasileira busca a conciliação de múltiplas lógicas (Ferreira et al., 2022): uma militar, cujos aspectos remetem à concepção do funcionamento do exército e das forças armadas; uma profissional, cuja organização da polícia remete ao funcionamento burocrático de uma função de Estado; uma gerencial, fortemente pautada em mecanismos de monitoramento de mercado e tecnológicos, advindos dos ideais do New Public Management; e uma comunitária, ligada a uma gestão pública participativa e alinhada à preservação de garantias constitucionais e democráticas.
Pesquisadores têm utilizado cada vez mais o conceito de lógicas institucionais e culturais para estudar e explicar fenômenos culturais (Garcia & Matitz, 2024; Valentino, 2021). Portanto, reconhecer que o estudo das lógicas institucionais pode ser realizado a partir da análise cultural (Lizardo, 2017; Lizardo et al., 2016; Vaisey, 2009; Valentino, 2021) é também compreender que a análise da cultura policial também pode ser realizada a partir do estudo das lógicas institucionais da Polícia Militar.
A investigação cultural dessa organização policial poderia, então, elucidar as implicações que tais lógicas exercem nas práticas policiais, possibilitando ao pesquisador desafiar os pressupostos subjacentes de simetria entre aquilo que é manifestado como cultura pública e aquilo que é internalizado como cultura pelo agente. Isso porque cada uma das lógicas não só constitui elementos declarativos e não declarativos próprios, como também tais elementos coabitam a prática cotidiana policial, levando-o a combinações entre tais modos de maneira complexa (Rossoni et al., 2013).

De maneira pragmática, os instrumentos mais comuns de análise cultural podem ser considerados como: aqueles mais ligados aos declarativos (como as entrevistas e as análises de textos); e, aqueles mais ligados aos não declarativos (como as observações, participantes ou não, os itens simples de um questionário e técnicas de associação implícita). Cada uma das técnicas de coleta de dados possíveis pode captar o que é declarativo (racionalização do julgamento e do discurso) e não declarativo (espontâneo e instintivo). Pesquisas mais amplas, que possam considerar ambos os modos declarativos e não declarativos da cultura pessoal, podem ser aplicadas numa abordagem etnográfica (Clifford, 2008; Magnani, 2009; A. L. C. Rocha & Eckert, 2008) ou até mesmo etnometodológica (Bispo & Godoy, 2012; Coulon, 1995; Garfinkel, 1967).
Não é totalmente clara essa divisão das técnicas de coleta de dados entre aquelas que capturam o nível declarado e o não declarado. A questão não é o que, mas como essas técnicas serão conduzidas. Por exemplo, as vinhetas (Jenkins et al., 2010), em vídeos e/ou em papel, podem ser úteis tanto para o não declarado quanto para o declarado. Quando o pesquisador pede para que as pessoas marquem itens do questionário, ou que escolham palavras, acaba por despertar um senso muito mais automatizado das pessoas pesquisadas. Qualquer técnica de coleta de dados empíricos, como nas entrevistas, que dê o espaço para o indivíduo racionalizar, estará mais no nível declarado. Para acessar o modo não declarativo, a técnica precisa valorizar mais o instintivo e automático. Quanto mais esforço o indivíduo faz para dar uma resposta, mais deliberado e racionalizado será, portanto, mais distante do modo não declarativo.
É mais comum que as entrevistas estejam aptas para elucidar o modo declarativo da cultura pessoal. No entanto, entrevistas realizadas em conjunto com outras técnicas de coleta e de análise dos dados também podem auxiliar a captura dos modos não declarativos da cultura. As dinâmicas de grupo, de modo geral, também podem ser utilizadas para a parte não deliberada da cultura, muito embora dependa do uso que o pesquisador fará delas. Pode-se fazer uma série de reflexões sobre o que os policiais fariam quando confrontados com episódios específicos, manifestando uma capacidade reflexiva sobre suas próprias práticas e crenças, declarando-as ao pesquisador; no entanto, a depender do uso da técnica, o pesquisador também poderá acessar uma síntese pragmática, como algo mais automatizado.
Entrevistas flexíveis, como a entrevista episódica de Flick (2002), a qual inclui elementos como a narrativa e a semântica, são muito úteis para o acesso ao modo declarativo. As entrevistas episódicas são indicadas para pesquisas com foco no conhecimento cotidiano, objetivando extrair dos entrevistados definições e narrativas. Selecionando as situações de seu interesse, os entrevistados contam, por meio de narrativas e argumentos, o seu ponto de vista, valendo-se do conhecimento semântico, para apresentar suas argumentações. Já a observação participante responde muito bem ao pesquisador que busque capturar os modos não declarativos da cultura pessoal. Nessa técnica, “os observadores participantes se inserem na situação de pesquisa e na vida das pessoas que estudam [...] para estudar fenômenos que ocorrem naturalmente” (Selltiz et al., 1987, p. 79–80).
A combinação de várias técnicas enriquece o material empírico na análise cultural da organização, visto que essas são constituídas multimodalmente (Höllerer et al., 2018). Na abordagem metodológica assumida por Rolandsson (2015), que investigou como civis justificam as parcerias com a polícia, gerenciando combinações locais e tensões entre várias lógicas, o autor utilizou da observação, entrevistas e pesquisa documental. A análise dos documentos (manuais de treinamentos, legislação organizacional, acordos escritos, atas de reuniões e sites na web) pode ser combinada com o diário de bordo, construído durante a observação e as entrevistas. O diário de bordo pode auxiliar a análise contínua do material empírico coletado. Por exemplo, podem-se capturar as entrevistas com as respectivas gravações; mas, também, realizar as anotações no diário de campo antes e depois das entrevistas, com as observações do pesquisador acerca do que não foi falado, incluindo a espontaneidade do entrevistado. As codificações iniciais podem ser realizadas no transcorrer da pesquisa. As entrevistas, ao serem transcritas e codificadas, serão também validadas e comparadas com outras técnicas.
No Quadro 1, apontamos como a cultura pessoal nas organizações policiais se manifesta em seus modos declarativos e não declarativos, destacando quais são os fenômenos de interesse para cada um dos modos. Como esses modos operam em formas distintas no processo de enculturação, oferecemos sugestões específicas para cada um deles: de aquisição, armazenamento, processamento e uso da cultura (Lizardo et al., 2016), adicionando, para cada um deles, investigações possíveis e sugestões metodológicas.
Os estudos que buscam compreender as organizações policiais pela via cultural poderiam se beneficiar pela abordagem do modo não declarativo da cultura pessoal. Objetivar compreender o policial e o seu engajamento no cotidiano, sua prática no dia a dia, evoca uma questão acerca de qual seria, então, a natureza do julgamento e do pensamento humano. Nesse sentido, é importante considerar a contribuição da psicologia social e da psicologia cognitiva para os estudos culturais (Lizardo, 2017; Lizardo et al., 2016; Vaisey, 2009) e, consequentemente, questionar como seria possível analisar essas manifestações empíricas no dia a dia do policiamento.
Nesse sentido, para investigar organizações policiais, sugerimos reconhecer, antes de tudo, onde se manifestam a cultura organizacional das organizações, especialmente em seu modo privado não declarativo. Conhecer como os policiais agem, e o que eles falam, é também se aproximar muito sobre o que eles pensam, e, portanto, reconhecer como e onde os modos da cultura pessoal se manifestam. A manifestação das práticas do policiamento poderá ser observada no dia a dia do policial, em seu cotidiano (quem ele é, o que ele faz, em que ele acredita, o que ele pensa).
Nas indicações metodológicas apontadas no Quadro 1, sugerimos que se busque capturar o fenômeno estudado a partir da perspectiva dos indivíduos participantes da pesquisa; ou seja, abordando “o mundo lá fora (e não em contextos especializados de pesquisa, como os laboratórios) e entender, descrever e, às vezes, explicar os fenômenos sociais de dentro de diversas maneiras diferentes” (Flick, 2009, p. 8).


Para a construção do Quadro 1, consideramos que a definição das manifestações empíricas a serem investigadas estaria diretamente ligada às técnicas de coleta de dados, as quais permitirão que essas sejam acessadas e analisadas. No entanto, sugerimos, em primeiro lugar, localizar o interesse do pesquisador nas quatro dimensões apontadas por Lizardo et al. (2016) (learning, remembering, thinking e acting). Para ilustrar tal esforço teórico-metodológico, vistos aqui como possibilidades de investigações empíricas, ou percursos metodológicos para a análise cultural das organizações policiais militares, emolduramos algumas provocações de pesquisa apresentadas por Ferreira et al. (2022) sob a ótica das quatro dimensões apresentadas por Lizardo et al. (2016). Para cada uma dessas dimensões, relacionamos os modos não declarativos e declarativos da cultura pessoal, chamados por Lizardo et al. (2016) como Tipo 1 e Tipo 2, respectivamente.
Ao considerar que o trabalho policial, por vezes, esteja ligado a contextos extremos, acreditamos que a aquisição, o armazenamento, o processamento e o uso da cultura também estejam ligados ao perigo, ao medo e à morte. Os resultados alcançados no trabalho acabam por interferir na história particular do trabalhador, marcada pelo significado de que ser policial é “viver conviver com o medo, perigo e riscos”, conferindo-lhe também um significado de “ser herói, digno e honrado” (Alcadipani & Rodrigues, 2016). Ao conferir à profissão uma aura de honra, orgulho, determinação e sacrifício (Sá, 2002), o policial militar acaba se envolvendo pessoalmente com sua profissão para além de seus objetivos profissionais. O risco de vida enfrentado pelo policial torna-se almejado, ou melhor, como afirmam Ferreira e Borges (2021), cotidianamente, no exercício da função policial, “morrer torna-se nobre”.
É no contexto extremo de sua atividade profissional que o policial acaba se envolvendo pessoalmente com o trabalho, apresentando ao pesquisador uma rara oportunidade para a captura do modo não declarativo da cultura pessoal, enquanto fenômenos de interesse: o aprendizado lento (prático, incorporado e implícito), a representação distribuída (know how), o processamento paralelo (“veja isso”, rápido e sem esforço, baseado em associações) e a ação policial automática (impulsiva).
Qualquer que seja a configuração da equipe policial em análise, direcionada a atividades preventivas ou à persecução penal, a pesquisa empírica proposta se interessaria pelas práticas do policial quando surpreendidos pelo extremo de sua atividade. Ou seja: policiais em emergências policiais, surpreendidos pelo contexto extremo de sua atividade, inevitável, imprevisível e impreterível (Hagan et al., 2018; Maynard‐Moody & Musheno, 2022).
Além das dificuldades de acesso do pesquisador às organizações militares, o principal desafio dessa proposta está em considerar as múltiplas técnicas e abordagens, as quais devem ir além das entrevistas. Esta proposta se apoia na potência do prisma multimoldal com a combinação de múltiplas técnicas de coleta de dados visuais, textuais, materiais e simbólicos, capazes de captar modos declarativos e não declarativos da cultura das organizações policiais militares brasileiras. Höllerer et al. (2018, p. 3) defendem que a “multimodalidade envolve a combinação de múltiplos sistemas de signos, cada um dos quais fornece sua própria maneira de armazenar e comunicar o significado social”. Os autores alertam ainda que a pesquisa multimoldal deve ir além do produto dos processos comunicativos, considerando como as combinações dos modos individuais se encaixam e se estendem.
Em qualquer uma das quatro dimensões da pesquisa, apontadas no Quadro 1, consideramos que o pesquisador buscará compreender as práticas do cotidiano policial, manifestadas, sobretudo, quando em referência a contextos extremos, ou emergências policiais. É nesse momento que as manifestações empíricas se tornam mais evidentes. Tanto na preparação para o contexto extremo (simulado), quanto para o seu enfrentamento real, muito da variabilidade cultural se dá, ao mesmo tempo, nos modos declarativos e não declarativos, tanto nas expressões linguísticas, quanto na apreciação automatizada desses fenômenos sociais recorrentes. Assim, será possível capturar relatos linguísticos, como códigos, símbolos, rituais, vocabulários e narrativas; e, capturar, também, aquelas realizações do cotidiano, fenomenologicamente opacas e não abertas à articulação linguística (Lizardo, 2017; Lizardo et al., 2016). O modo pessoal declarativo se manifesta por meio de valores, atitudes, orientações, visões de mundo ou ideologias; e, o modo pessoal não declarativo, incorporados na prática, se manifestam não verbalmente, por meio de habilidades, disposições, esquemas, protótipos ou associações.
Em seguida, apresentamos possibilidades de estudos empíricos que possam se valer da análise cultural dentro da proposta apresentada no Quadro 1. Considerando que “uma agenda de pesquisa rejuvenescida – impulsionada principalmente pela atenção aos modos visuais e materiais de construção de significado dentro e ao redor das organizações – ganhou um impulso considerável também nos estudos de organização e administração” (Höllerer et al., 2018, p. 2), propomos um percurso metodológico para pesquisa em organizações policiais brasileiras capaz de capturar os modos declarativos e não declarativos da cultura.
a) O estudo de novas práticas policiais: o caso da Polícia Comunitária
Embora esteja presente na polícia militar brasileira desde a década de 1990, a Polícia Comunitária no Brasil ainda é considerada por muitos autores como uma prática nova, responsável pelo protagonismo das reformas das práticas policiais em resposta à recente democracia brasileira e aos anseios da sociedade por participação e cidadania (Frühling, 2006, 2007, 2012), especialmente quando comparadas às práticas tradicionais do policiamento, ligadas às práticas repressivas de persecução criminal (Bayley, 2006; Rosenbaum, 2012; Skolnick & Bayley, 2006; Trojanowicz & Bucqueroux, 1994).
Muitos autores já têm estudado as múltiplas formas do policiamento comunitário (Ferreira, Rossoni, et al., 2022). Por exemplo, o programa de policiamento comunitário denominado Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) executado no Rio de Janeiro (Ribeiro & Vilarouca, 2018, 2019; Riccio et al., 2013; Vargas, 2013; Wolff, 2019), o policiamento comunitário em Belo Horizonte (Alves & Arias, 2012; Arias & Ungar, 2009; Beato Filho et al., 2017), São Paulo (Y. González, 2016; Y. M. González, 2019; Haubrich & Wehrhahn, 2015), Salvador (Wolff, 2019), Recife (Dammert & Malone, 2006) e Fortaleza (Garmany, 2014); e, também, o estudo sobre o policiamento comunitário realizado com o auxílio das redes sociais online como mecanismo de interação com o público em tempos de pandemia da Covid-19 (Ferreira, Oliveira, et al., 2022).
A Polícia Comunitária se tornou, então, um modelo de organização da polícia que visa se tornar o mais avançado modelo de policiamento, ou, ainda, a polícia cidadã (Ferreira, Rossoni, et al., 2022; Frühling, 2007; Rosenbaum, 2012; Skolnick & Bayley, 2006). Em suma, o policial combatente, temido e inimigo do crime, patrulhando uma sociedade passiva e não responsável, deixa de priorizar um relacionamento distante do público e passa a buscar o relacionamento com as pessoas de sua comunidade local, por isso passa a ser visto como um policial conhecido e amigo da comunidade local, frente a uma sociedade ativa e corresponsável (Ferreira & Borges, 2020, 2021). Espera-se que os policiais, de maneira descentralizada e autônoma, começam a resolver os problemas locais em conjunto com a sociedade, numa parceria onde o policial reconhece a importância da cidadania, da mobilização social e da qualidade de vida do público a que serve, para além da persecução penal.
Esse modelo de prática e organização da polícia está presente em todos os Estados brasileiros e tem recebido incentivo do Governo Federal, na capacitação dos policiais e das organizações policiais brasileiras (Araújo, 2010). Todas as Polícias Militares brasileiras tem apresentado esforços na aplicação da Polícia Comunitária, tanto na Polícia Militar mais antiga do Brasil (em Minas Gerais, desde 1775), criada junto à Coroa Portuguesa, quanto na mais jovem (em Tocantins, desde 1989), criada junto à Constituição Federal, sob os anseios da sociedade por participação e cidadania.
Embora haja quase um consenso das organizações policiais priorizarem a Polícia Comunitária, institucionalmente, ainda há relatos na literatura sobre as dificuldades de implantá-la: desde a década de 1990 (Muniz et al., 1997), até estudos mais recentes (Ferreira & Borges, 2020, 2021; Ribeiro & Vilarouca, 2018, 2019; R. R. da Silva, 2007; Wolff, 2019). Afinal, “apesar da ampla defesa da efetividade de tais modelos, há dúvidas acerca de sua efetividade e do que, de fato, se trata o policiamento comunitário” (Ferreira et al., 2022).
O sucesso das práticas de policiamento comunitário deve passar pelas reformas da própria cultura policial (Ferreira & Borges, 2021; Muniz et al., 2018). Por isso, as contradições e os conflitos que o policiamento comunitário tem gerado na prática policial pode ser compreendido por meio de um estudo que investigue as organizações policiais pela via cultural. Afirmamos, então, que a compreensão mais abrangente das políticas públicas de segurança pode ser alcançada se estudos considerarem a contribuição da psicologia social e da psicologia cognitiva para os estudos culturais (Lizardo, 2017; Lizardo et al., 2016; Vaisey, 2009), como indicamos no Quadro 1.
Nesse sentido, investigar as manifestações empíricas patrocinadas pelos policiais empregados no policiamento preventivo de rotina (se possível, no serviço de policiamento comunitário especificadamente), é também uma oportunidade para compreender o policiamento de maneira geral, tanto nas dimensões remembering, thinking e acting da cultura, quanto nas simulações do learning (Quadro 1). Enquanto os policiais, especialistas nas práticas repressivas, geralmente não assumem as práticas preventivas, o oposto já pode ser possível. Isso acontece devido a urgência que um evento criminal eminente e perigoso pode exigir de qualquer policial. Espera-se, então, que quando são surpreendidos por um evento extremo, e inesperado, durante o seu turno de serviço, os policiais recorram às motivações e justificativas (Vaisey, 2009) para definirem suas ações – cultura em ação – sendo possível, posteriormente, buscarem se legitimar mediante a reflexividade e a fala (Crank, 2003; Giddens, 1979).
b) O estudo de novas tecnologias: o caso das câmeras corporais
A adoção de novas tecnologias como as câmeras digitais portáteis (câmeras corporais) pode melhorar a prestação de contas da polícia frente ao seu público (Tavares, Cabral & Marcolino, 2024). De modo a responder os anseios da sociedade, essas câmeras começaram a ser utilizadas pela PM do Estado de São Paulo em 2020 com o objetivo de monitorar as ações dos policiais paulistas nas ruas, no ensejo de reduzir a violência policial e as mortes ocorridas durante as ações policiais. Essa novidade no trabalho policial resultou na queda da letalidade policial, conforme admite o secretário do Estado (Cruz, 2023). No entanto, embora essa utilização tenha causado redução significativa na média de casos de uso da força policial (Monteiro et al., 2022), a temática é alvo de debates e polêmicas quanto às vantagens e desvantagens, sobretudo se considerarmos os policiais envolvidos e a própria sociedade.
É contemporânea a temática do uso de tecnologias digitais e a atuação policial em contextos extremos, conforme indicado por Vianna, Rezende e Alcadipani (2022). Esses autores citam ainda outros estudos (Ariel, 2016; Jennings, Lynch & Fridell, 2015; J. da Silva & Campos, 2015) que avaliaram a utilização de câmeras no trabalho policial. As conclusões parecem apontar para reflexos positivos, incluindo assertivas como as de que os policiais têm uma visão positiva, relacionando o uso das câmeras com maior profissionalismo dos agentes. No entanto, propomos que as pesquisas inclusas na temática do uso de tecnologias digitais considerem ainda a atuação policial em contextos extremos, sob a ótima da multiplicidade de vozes em um estudo cultural, o que pode ser bastante esclarecedor.
Propostas de pesquisa que considerem os insights que apresentamos no Quadro 1 poderão elucidar as resistências e as potencialidades dessa nova tecnologia para a Polícia Militar. Partindo de Silva e Campos (2015), que analisaram a utilização das câmeras acopladas ao uniforme pela polícia brasileira, é possível propor um percurso metodológico que considere a multimodalidade, que “envolve uma combinação de múltiplos sistemas de signos, cada um dos quais fornece sua própria maneira de armazenar e comunicar o significado social” (Höllerer et al., 2018, p. 3).
Qualquer que seja a proposta de pesquisa aqui apresentada, é possível buscar contribuições de uma análise cultural nos moldes do Quadro 1. Em suma, as propostas metodológicas demandam normalmente a combinação de mais de uma técnica para exprimir os modos declarativo e não declarativo, em que sugerimos:
pesquisa documental;
observações, participantes ou não (Garcia & Matitz, 2024);
entrevistas em profundidade, em suas mais diversas variações, com o uso de vinhetas ou outra técnica semelhante, capaz de capturar o dito e o não declarado, individual ou em grupo.
questionários, especialmente os que exigem pouco esforço de resposta, que podem capturar por meio de métodos de análise de classes correlacionais (Boutyline, 2017), esquemas culturais compartilhados subjacentes à organização policial (Rossoni et al., 2021).
testes de associação implícita, que são úteis para capturar o caráter automatizado das respostas (Cerulo et al., 2021).
vídeo análise, que pode ser introduzida para entender a dinâmica situacional do trabalho policial, especialmente no que remete à ação corporal (Keesman, 2022).

Quanto aos desafios e às limitações dessas propostas, podemos relacioná-los na seguinte lista exemplificativa:
a complexidade das múltiplas e heterogêneas evidências empíricas no Brasil, (re)configuradas pelas regionalidades de um país de dimensão continental;
o uso de múltiplos métodos;
as dificuldades na construção de indicadores de sensação de segurança e medo do crime frente aos critérios de avaliação da eficiência policial ligado ao número de prisões e apreensões;
as dificuldades em estabelecer causalidade entre práticas de policiamento e criminalidade; e,
as dificuldades em compreender como diferentes audiências legitimam a atuação da polícia e quais são as bases de seu julgamento.
É importante pontuar, também, que essas abordagens desafiam a própria prática da pesquisa. Por exemplo, o tempo exigido com técnicas como a etnografia além de provocar o esgotamento físico do pesquisador, também onera a pesquisa. Podemos citar, também, a dificuldade de acesso do pesquisador às organizações militares, além do risco a sua segurança pessoal, imposto pela natureza das atividades policiais que pretende acompanhar. Participar de emergências policiais, in loco, mesmo na condição de pesquisador, pode lhe trazer riscos jurídicos imprevisíveis que possam onerar ainda mais a pesquisa. Por fim, deve se colocar em suspenso a capacidade de entrevistas e discursos dos policiais em traduzir aquilo que é naturalmente tácito (Lizardo, 2017), evitando também uma visão equivocada que métodos formais e questionários não são possíveis de capturar processos automatizados (Vaisey, 2009).
Neste ensaio, sustentamos a defesa de que pesquisas que considerem os modos não declarativos da cultura podem desafiar os pressupostos subjacentes à literatura existente, possibilitando definições mais úteis e precisas. Focando na análise da cultura pessoal, destacamos onde se manifestam empiricamente a ação das pessoas na organização, de forma a possibilitar uma análise cultural em seus modos declarativo e não declarativo; onde estão os fenômenos de interesse para os pesquisadores; e, quais as investigações possíveis a serem realizadas por estes estudos, bem como quais são os caminhos metodológicos possíveis para acessar a cultura pessoal.
Nesse sentido, tomando como exemplo o estudo das organizações policiais militares brasileiras, apresentamos apontamentos metodológicos para a construção de um desenho de pesquisa que possibilite expor os aspectos declarativos e não declarativos da cultura, os quais poderão ser úteis para o estudo de outras organizações. Para tanto, consideramos os modelos de processo dual da análise cultural de Lizardo et al. (2016) como esquema analítico para se analisar as organizações policiais por meio do acesso ao contexto extremo das práticas policiais. Destacando a importância de tais extremos para demonstrar como a cultura em nível pessoal pode operar de forma totalmente distinta entre modos declarativos e não declarativos, fizemos apontamentos metodológicos que possibilite ao pesquisador olhar para a análise cultural na construção de um desenho de pesquisa que, assim como defendido por Alvesson e Sandberg (2011), possa desafiar os pressupostos subjacentes à literatura existente acerca da cultura organizacional.
Mesmo que a literatura sobre o tema não ignore os aspectos pessoais não declarados (Maynard‐Moody & Musheno, 2012), ela não considera de forma precisa as manifestações mentais e tácitas das representações culturais nas organizações quando essas são assimétricas com as definições de cultura pública. Como isso, pouco se contribui para a compreensão de como a cultura se manifesta, especialmente quando se busca compreendê-la em sua relação com a ação.
Por fim, considerar o modo não declarativo na análise cultural possibilita ao pesquisador compreender as práticas que são realizadas de forma automática (Garcia & Matitz, 2024), principalmente no contexto extremo (Keesman, 2022). O estudo em outras organizações também pode se beneficiar ao valorizar o interesse de investigações empíricas pelo extremo; ou seja, pelas atividades que exigem dos profissionais, que atuam nas organizações, um preparo emocional especial, dada a gravidade que suas ações terão para seu sucesso/fracasso, carregadas de consequências particulares ou coletivas. Afinal, em qualquer organização poderá existir o extremo de uma atividade-fim; por exemplo: quando um médico está em ação decisória no decorrer de uma cirurgia de alta complexidade; ou, o professor diante de uma indisciplina grave de um aluno; ou, até mesmo, as primeiras decisões do gerente de uma empresa de mineração quando recebe informações de que as barragens podem ceder.


