DOSSIÊ PATRIMÔNIO CULTURAL IBERO-AMERICANO

UM CANTEIRO-ESCOLA NUM EDIFÍCIO DE RAMOS DE AZEVEDO: O ENSINO DE PROCESSO DE PROJETO DE RESTAURAÇÃO NA PRÁTICA

A WORKSITE-TRAINING IN A RAMOS DE AZEVEDO BUILDING: A HANDS-ON TEACHING OF RESTORATION PROJECT PROCESS | UN TALLER-ESCUELA EN UN

EDIFICIO DE RAMOS DE AZEVEDO: LA ENSEÑANZA DEL PROCESO DE PROYECTO DE RESTAURACIÓN EN LA PRÁCTICA

REGINA ANDRADE TIRELLO
Universidade Estadual de Campinas, Brasil
PEDRO MURILO GONÇALVES DE FREITAS
Universidade Estadual de Campinas, Brasil

UM CANTEIRO-ESCOLA NUM EDIFÍCIO DE RAMOS DE AZEVEDO: O ENSINO DE PROCESSO DE PROJETO DE RESTAURAÇÃO NA PRÁTICA

Oculum Ensaios, vol. 14, núm. 2, pp. 367-388, 2017

Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Recepção: 07 Março 2017

Revised document received: 12 Abril 2017

Aprovação: 03 Maio 2017

RESUMO: Este artigo trata de experiências de caráter profissional e didático conduzidas em apoio ao desenvolvimento de projetos de restauração dos edifícios escolares do antigo Instituto Profissional Bento Quirino, projetados por Francisco de Paula Ramos de Azevedo em 1916, atualmente sob a guarda da Universidade Estadual de Campinas. Além de contribuir para futuros projetos de reocupação destes edifícios, os estudos se estendem no positivo estabelecimento de protocolos de análise de arquiteturas históricas similares no Estado de São Paulo. Discutindo questões relativas ao ensino da restauração arquitetônica nos cursos de Arquitetura e Urbanismo brasileiros, seus avanços e suas insuficiências, descrevem-se duas práticas interligadas de pesquisa, levantamento e avaliação técnica dessas edificações tombadas por órgãos preservacionistas que abrigaram o Colégio Técnico de Campinas por 47 anos. No texto são expostos procedimentos relacionados a viabilização e planejamento de obras de preservação de próprios da universidade de interesse histórico e cultural. Teve-se como produto a consolidação do curso “Laboratório de Restauração Arquitetônica: teoria e prática”, voltado ao aprofundamento de métodos operativos e para a investigação formal e material de preexistências sob o ponto de vista técnico e conservativo ministrado para estudantes de graduação e pós-graduação.

PALAVRAS-CHAVE: Canteiro-escola de restauração, Colégio Técnico de Campinas, Preservação arquitetônica, Ramos de Azevedo, Universidade Estadual de Campinas.

ABSTRACT: This paper presents professional and teaching experiences conducted to support the development of restoration projects of the old Instituto Profissional Bento Quirino, educational buildings designed by Francisco de Paula Ramos de Azevedo in 1916, currently under the care of Universidade Estadual de Campinas. In addition to contribute for future projects for the reoccupation of these buildings, these studies extend into the positive establishment of protocols for analysis of similar historical architectures in the State of São Paulo. Discussing questions related to architectural restoration education in Brazilian Architecture and Urbanism undergraduation courses, its advances and insufficiencies, the article describes two intertwined practices, survey and technical evaluation of these constructions classified by heritage institutions that hosted for 47 years the Colégio Técnico de Campinas. The text exposes procedures for planning and enabling preservation works of university’s properties with historical and cultural value. The result was the consolidation of discipline “Architectural Restoration Laboratory: theory and practice”, directed for the deeper understanding of operational methods of formal and material investigation of built architecture under technical and conservational perspective to graduate and undergraduate students.

KEYWORDS: Restoration worksite-training, Colégio Técnico de Campinas, Architectural preservation, Ramos de Azevedo, Universidade Estadual de Campinas.

RESUMEN : Este artículo presenta experimentos profesionales y didácticos para apoyar el desarrollo de proyectos de restauración de los edificios escolares del antiguo Instituto Profissional Bento Quirino, proyecto de Francisco de Paula Ramos de Azevedo en 1916, hoy bajo la custodia de la Universidade Estadual de Campinas. El objetivo de estos proyectos es volver a ocupar estos edificios y establecer positivos protocolos de análisis de arquitecturas históricas similares en el Estado de São Paulo. Discutiéndose temas relacionados con la enseñanza de restauración arquitectónica en los cursos de Arquitectura y Urbanismo brasileños, sus logros y deficiencias, se describe dos prácticas interconectadas de investigación, reconocimiento y evaluación técnica de estos edificios protegidos por instituciones de preservación que albergarón el Colégio Técnico de Campinas por 47 años. En el texto son expuestos procedimientos de planificación y viabilización de obras de preservación de propiedades de la universidad. El resultado fue la consolidación de la disciplina “Laboratorio de Restauración Arquitectónica: teoría y práctica”, direccionada a la profundización de métodos operativos para la investigación formal y material de preexistencias bajo la perspectiva técnica y conservativa suministrada a estudiantes de graduación y posgrado.

PALABRAS CLAVE: Taller-escuela de restauración, Colégio Técnico de Campinas, Preservación arquitectónica, Ramos de Azevedo, Universidade Estadual de Campinas.

INTRODUÇÃO

A Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) tem sob sua guarda um importante edifício escolar erigido no início do Século XX no Estado de São Paulo que, de 1967 a 2014, abrigou o Colégio Técnico de Campinas (COTUCA). Corresponde a uma grandiosa construção de orientação eclética de tendência neoclássica projetada pelo engenheiro-arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), considerado responsável pela introdução de novos conceitos para a organização da arquitetura escolar à luz dos ideais de ensino republicanos (WOLFF, 2010).

Com os princípios norteadores de Ramos de Azevedo, os edifícios escolares paulistas eram construções imponentes, cujo repertório formal austero e o uso de modernas técnicas de alvenaria armada de tijolos refletiam um programa institucional definido que propunha superar as deficiências educacionais do Estado em finais do Século XIX na Primeira República (CARVALHO, 1998).

O crescimento da produção industrial na virada do Século XIX para o XX estimulou a criação de inúmeras escolas no interior do Estado São Paulo. Era um fenômeno urbano que visava ampliar a educação de base e também propiciar a formação de mão-de-obra em novas instituições de ensino profissional. Escolas pioneiras como o Grupo Escolar do Brás, a Escola Normal Caetano de Campos e o Liceu de Artes e Ofícios, todas em São Paulo e, respectivamente, de ensino primário, de formação de professores e de preparação técnica, são os principais exemplos da síntese da linguagem arquitetônica aos procedimentos técnicos construtivos característicos do período. As escolhas políticas educacionais adotadas à época refletiram-se também em propostas programáticas e ambientais inovadoras, que atualmente perfaz um conjunto de mais de 100 escolas de tipologia arquitetônica com essas características, distribuídas pelo Estado e tombadas pela sua importância histórica e cultural1 .

Os edifícios de Ramos de Azevedo que abrigaram o COTUCA até 2014 foram construídos em 1918 para sediar um Lyceu de Artes e Ofícios, o Instituto Profissional Bento Quirino. Era uma escola profissional masculina, composta por duas edificações implantadas em terreno com pouco mais de 8.000m² no bairro de Botafogo e próxima às indústrias então existentes, hoje área central de Campinas: o Edifício Escola (Prédio 1), uma grande construção de dois pavimentos e porão, de amplos espaços e fachadas profusamente ornamentadas, destinada ao ensino de disciplinas teóricas e atividades administrativas e sociais, e o “Edifício das Oficinas” (Prédio 2) onde se desenvolviam as atividades práticas complementares (Figura 1). Este último, com sua arquitetura de orientação fabril, grandes espaços livres internos, estruturas metálicas e serralheria simples com fachada despojada de adornos, ainda hoje testemunha a orientação laboral do ensino à época.

Instituto Profissional Bento Quirino/Colégio Técnico de Campinas (COTUCA): (1) Edifício Escola e (2) Edifício das Oficinas, 2014.
FIGURA 1
Instituto Profissional Bento Quirino/Colégio Técnico de Campinas (COTUCA): (1) Edifício Escola e (2) Edifício das Oficinas, 2014.
Fonte: Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura (2014).

A intrínseca condição de monumento dos grupos escolares paulistas, projetados como marcos urbanos em locais de grande visibilidade (Figura 2), lhes confere importante condição de destaque arquitetônico e memorial, a exemplo do que ocorre com o conjunto edificado do COTUCA no contexto do bairro do Botafogo em Campinas. Estas construções são reconhecidas pelo tombamento em nível estadual e municipal Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT)2 e Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (CONDEPACC)3 , indicam que intervenções de restauro ou manutenção devem ser planejadas à luz dos conceitos e normativas que regem internacionalmente a preservação dos bens culturais. Apesar das diversas transformações programáticas, com adições ou adaptações comuns às progressivas modificações de currículos por que passou o ensino profissional no Século XX4 , as edificações em questão mantêm ainda seus espaços escolares definidores, afirmando-se como exemplares arquitetônicos fundamentais para a compreensão da história da educação brasileira. Contudo, reformas pontuais, de natureza emergencial, a exemplo de mudanças de padrão de forros, de revestimentos e de caixilhos, vêm introduzindo elementos espúrios nas construções históricas e têm contribuído para sua descaracterização, ainda que involuntária.

Bairro do Botafogo, Campinas, e área de estudo do entorno urbano imediato ao COTUCA com demarcação dos bens tombados.
FIGURA 2
Bairro do Botafogo, Campinas, e área de estudo do entorno urbano imediato ao COTUCA com demarcação dos bens tombados.
Fonte: Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura (2016).

No início de 2014, em razão de sérios problemas de degradação dos forros de madeira do segundo pavimento do prédio principal, o COTUCA foi transferido para um local próximo ao campus de Barão Geraldo e, desde então, as construções que o compunham estão ociosas5 . Cabe lembrar que a UNICAMP, desde que se instalou nos edifícios do antigo Instituto Profissional em 1967, mantém cláusula de cessão ao Estado que solicita que o uso das construções históricas permaneça como instituição de ensino pública. A recuperação adequada e conservação de um patrimônio arquitetônico desta magnitude, cuja degradação do telhado constituía-se também em fator de risco aos ocupantes já na década de 19606 , exige um plano de ações articuladas que correspondem a etapas de estudos que envolvem análises históricas, levantamentos métricos e diagnósticos de conservação. Trata-se de um conjunto de informações imprescindíveis, em especial, se consideradas as necessidades de ‘aliar sugestões de adaptação predial’ na perspectiva das exigências da educação contemporânea, sem que isso signifique impactos negativos na linguagem e materialidade características da arquitetura histórica de valor cultural como essa em questão.

O intento da UNICAMP de voltar a ocupar essas antigas e prestigiosas instalações com atividades de pesquisa, ensino e extensão é uma ação afirmativa de restituir à população um importante espaço público de aprendizado, cultura e também de lazer. Destinar o conjunto arquitetônico à ampliação de usos relacionados à educação é também fazer frente ao impacto negativo decorrente do esvaziamento do edifício no seu entorno, colaborando assim para a reabilitação urbana do bairro do Botafogo e potencializando o contato da universidade com a comunidade.

Este artigo relata experiências de caráter profissional e didático, conduzidas para propiciar a reocupação dos edifícios escolares de Ramos de Azevedo sob a guarda da UNICAMP, que se estendem no positivo estabelecimento de protocolos para análise de arquiteturas similares na cidade de Campinas. Discutindo-se os avanços e as insuficiências relacionadas ao ensino atual da restauração arquitetônica nos cursos de Arquitetura e Urbanismo brasileiros, descrevem-se dois casos de estudo interligados. A iniciativa teve duplo objetivo: apoiar o planejamento e a viabilização de estudos técnicos para futuras obras de “preservação” de próprios da UNICAMP de interesse histórico e cultural e a consolidação da disciplina eletiva Laboratório de Restauração Arquitetônica: teoria e prática. Os conteúdos desse curso voltaram-se para o aprofundamento de métodos de reconhecimento formal e material de preexistências sob o ponto de vista técnico e conservativo visando suprir, em parte, a reconhecida carência de conhecimento prático especifico. Ministrada para estudantes de graduação do Curso de Arquitetura e Urbanismo (AU) e do Programa de Pós-Graduação “Arquitetura, Tecnologia e Cidade” (ATC), ambos da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da UNICAMP, a disciplina, associada à projeto arquitetônico, consolida aprendizado relacionado a ações concretas e mais próximas da realidade profissional que devem ser incentivadas nas grades curriculares (Figura 3).

Atividades de campo. Disciplina AU253/AQ106: Laboratório de Restauração Arquitetônica: teoria e prática. Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, 2016.
FIGURA 3
Atividades de campo. Disciplina AU253/AQ106: Laboratório de Restauração Arquitetônica: teoria e prática. Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, 2016.
Fonte: Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura (2016).

OS CURSOS DE ARQUITETURA E URBANISMO E A RESTAURAÇÃO ARQUITETÔNICA

A existência de edifícios históricos exemplares como os do COTUCA no quadro de bens culturais da universidade possibilita a promoção do contato direto dos alunos de AU com a arquitetura histórica. Por meio das demandas por ele solicitadas nos últimos anos, conciliou-se uma necessidade antiga de estimular uma prática inerente à carreira do arquiteto no Século XXI em prol da reversão dos conceitos há pouco tempo introduzidos nos currículos a respeito do tratamento das preexistências. Trata-se de iniciativa que procura suplantar, por um lado, o recente desaparecimento de disciplinas sobre a história da técnica construtiva e, por outro, a ótica panorâmica do ensino sobre a herança cultural nos cursos de graduação, um quadro que torna a elaboração de um projeto de restauração arquitetônica muitas vezes mitificado e intangível.

Já há alguns anos o professor Oliveira (1989) alertava para o fato que a contínua especialização do projeto arquitetônico e dos profissionais da arquitetura - que não incluem apenas os arquitetos - trouxe graves consequências para a sua formação e inserção profissional durante boa parte do Século XX. Para ele, o incentivo de uma visão reduzida sobre a elaboração da arquitetura pelo movimento moderno nas escolas provocou grave separação entre ‘representação’ (da idéia) e ‘construção’ (da obra), historicamente vinculadas. Definiu-se ao longo do tempo uma tendência que agravou a perda do conhecimento das técnicas tradicionais e o consequente empobrecimento da arquitetura. Esta situação que tardiamente viria a ser questionada, com a exigência de demandas mais amplas cultivadas em outras áreas do conhecimento, que incluem o reaproveitamento dos recursos e a qualificação dos edifícios existentes como potencializadores de alternativas para a adaptação sustentável dos espaços habitados pelo homem.

Nesse contexto, há cerca de 20 anos, inseriu-se no currículo dos cursos de AU a disciplina intitulada ‘Técnicas Retrospectivas’7 com o declarado objetivo de integrar na formação básica dos arquitetos as práticas projetuais e as soluções tecnológicas para a preservação, conservação, restauração, reconstrução, reabilitação e reutilização de edificações, conjuntos e cidades (BRASIL, 1994, p.3). Passadas mais de duas décadas de sua criação, entende-se que ainda não há consenso sobre os conteúdos estruturantes dessa disciplina.

O programa da disciplina, comumente compreendida como um curso voltado para a teoria da restauração, sem rebatimento na atividade prática, tende a ser composto com ênfase à ‘sensibilização’ do aluno para a área do patrimônio histórico. Desconsidera-se a multidisciplinaridade inerente ao campo da preservação arquitetônica, que associa teoria e história da arquitetura à teoria do projeto correlacionada às técnicas e tecnologias, direcionadas à recuperação física dos artefatos e que atualmente engloba tanto monumentos históricos tombados como arquiteturas industriais e modernas. Por não fornecer aos alunos subsídios concretos para organizar, conceber e conduzir projetos de intervenção tecnicamente adequados, em prol da manutenção da tradição construtiva nacional (SCHLEE et al., 2003), tende-se a reproduzir um discurso de pouca efetividade operacional.

No Brasil, vêm sendo propostas novas e positivas experiências que concebem uma abordagem integrada entre teoria, tecnologia e projeto - em sua maioria nas Universidades Públicas. Contudo, tem sido regra a negligência à compatibilização de conteúdos disciplinares, que permanecem sem vinculação a exercícios projetuais para potencializar o reuso de edificações antigas, importante capacidade solicitada ao arquiteto e urbanista do Século XXI, sobretudo quando também se fala na finitude dos recursos do planeta. Técnicas Retrospectivas, às vezes contando com apenas duas horas-aula nas grades curriculares, dificilmente poderá estimular o contato direto dos alunos com questões atinentes às características e problemas de degradação material das edificações, pelo simples desconhecimento de técnicas de construção pretéritas. Tampouco pode oportunizar a necessária análise da qualidade de transição temporal do objeto (do momento da construção à imagem configurada na contemporaneidade), etapa imprescindível para definições de projeto, de como “construir no construído”, sem alteração das significâncias históricas dos edifícios.

No desenvolvimento de projetos, é a observação de critérios conservativos de intervenção mínima e a valorização histórica dos edifícios preconizadas nos documentos normativos internacionais que se constituem os “ativadores intelectuais da necessidade de conhecer bem melhor a ciência e a tecnologia desenvolvidas na construção” (OLIVEIRA, 1989, p.121). Enquanto isso não for estimulado no Brasil, a restauração tenderá a correr à margem dos departamentos de projeto e tecnologia dos cursos de Arquitetura e Urbanismo.

Pouco se tem feito para alterar esse estado de coisas. Projetar a preservação segue sendo uma atividade menor diante do conjunto global das intenções criativas, das definições de “partido” de um edifício novo que, paradoxalmente, se alinha à perda da arte de construir. Também, a variabilidade de abordagens no ensino de arquitetura ampliou-se consideravelmente nos últimos anos num quadro em que “as escolas brasileiras vem se colocando na situação de privilegiar desproporcionalmente, no ensino de projeto de Arquitetura e Urbanismo, em suas várias escalas, uma espacialidade imaterial ou, mais grave, uma imaterialidade do espaço” (PISANI et al., 2009, p.7).

O excessivo valor atribuído à “ideia”, à resultante estética de problemas programáticos e funcionais, segue sendo comum nas chamadas disciplinas de “síntese projetual”, com grande ênfase à genialidade acompanhada do seu detalhamento (quando acontece), minimizando a expressão dos materiais e dos modos de construir. Ora, a imersão nesse sistema educacional atrofia a capacidade de compreender o ambiente e a historicidade de um repertório acumulado para a viabilização da transformação do espaço construído, uma habilidade essencialmente técnica. Nessa direção, a Restauração Arquitetônica, que exige a compreensão ponderada dos valores memoriais que o corpo dos edifícios engendra para a seleção do que pode ser suprimido, adicionado, alterado ou conservado, não pode se valer desta desmedida estetização para atingir resultados preservacionistas desejáveis com eficácia. É aí que se instaura um já conhecido impasse entre “criação” e “preservação”, superficialmente postos em lados distintos no cotidiano profissional.

A CARPINTARIA DOS EDIFÍCIOS DE RAMOS DE AZEVEDO, QUASE UM ENIGMA CONTEMPORÂNEO

Desde 2004, a disciplina Técnicas Retrospectivas do Curso de AU da UNICAMP tem procurado estimular a associação de projeto arquitetônico e conhecimento histórico a variadas situações. Trabalhos produzidos na disciplina pelos alunos, além de representarem em alguns casos a primeira documentação sistemática de reconhecimento físico do patrimônio de Campinas - em especial quando são abordadas temáticas relativas ao patrimônio ferroviário e industrial da cidade - tem servido para a proposição de tombamentos e novas pesquisas aplicadas a técnicas construtivas tradicionais (TIRELLO, 2009). Tratam-se de estudos desenvolvidos em âmbito acadêmico que positivamente se estendem profissionalmente e se tornam efetivas contribuições também para a preservação do patrimônio histórico-arquitetônico do Estado de São Paulo.

Em 2014, com base em laudo técnico emitido pela Prefeitura do Campus que constatava a ocorrência de sinistro com causa em danos na cobertura do edifício principal, a UNICAMP interditou o COTUCA por medida de segurança, com a intenção de executar reparos urgentes. Por serem construções protegidas oficialmente por órgãos preservacionistas, a universidade solicitou estudos mais detalhados para avaliar a extensão dos danos e as possibilidades de recuperação física da estrutura. Na época, não se contava com nenhum desenho da cobertura para apoiar os exames necessários, nem mesmo no conjunto de peças gráficas do projeto de Ramos de Azevedo. O desconhecimento da extensa trama estrutural da cobertura do Edifício Escola (Prédio 1) exigiu a realização de pesquisas de caráter preventivo priorizando o desejo de melhor conhecer também os próprios da universidade.

A partir das referências organizadas por estudos preliminares realizados em 2007 por alunos de graduação8 e frente à ausência de dados cadastrais dos edifícios feitos com maior acuidade pela área técnica de obras da UNICAMP, organizou-se nova equipe para realizar estudos técnicos aprofundados sobre o COTUCA. Os trabalhos corresponderam ao levantamento métrico da estrutura de cobertura, um complexo exemplar de carpintaria tradicional composto de peças de madeira originais, e dos forros que a ocultam - inseridos provavelmente na década de 1960 -, avaliando-se o que deveria ser substituído ou mantido. Durante dois meses no início de 2014, procedeu-se à identificação de tipologias forros, encaixes e soluções construtivas da enorme estrutura, cuja originalidade foi aferida. Foram descobertos sob forros de madeira “paulistinha” vestígios de forros de estuque originais característicos do período e das obras do arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (Figura 4).

Estuques e pinturas do Salão Nobre do Edifício Escola. Abaixo, desenho de projeto de Ramos de Azevedo com determinação de áreas a decorar com elementos artísticos. Sondagens de superfícies e inspeções no entre vão dos forros confirma execução de estuques e pinturas murais.
FIGURA 4
Estuques e pinturas do Salão Nobre do Edifício Escola. Abaixo, desenho de projeto de Ramos de Azevedo com determinação de áreas a decorar com elementos artísticos. Sondagens de superfícies e inspeções no entre vão dos forros confirma execução de estuques e pinturas murais.
Fontes: Desenho de Ramos de Azevedo, Acervo da Biblioteca da Universidade de São Paulo e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1916) e Fotografias e desenhos Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura (2014).

Este estudo específico foi realizado por alunos de pós-graduação e graduação em AU da UNICAMP, integrados à equipe técnica elaborada para esse fim, no âmbito do grupo de pesquisa Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura e Sítios Históricos (GCOR)-Arquitetura/UNICAMP9 a pedido da Coordenadoria de Projetos e Obras10 . Foram feitas medições diretas e indiretas, com o uso de instrumentação tradicional (Figura 5) e de suporte computacional para a representação e descrição dessas estruturas (Figura 6). Cumpre destacar que a viabilização dessas ações representou diligente aprendizado por parte dos graduandos integrados na equipe de investigação em face da pouca familiaridade com sistemas construtivos antigos e complexos, ainda que bem instruídos para consecução de desenhos digitais. O difícil acesso ao entre desvão dos forros e a necessidade de planejamento de etapas de montagem dos desenhos, deixavam os alunos participantes pouco a vontade devido a estranheza com o tipo de mensuração necessária ao registro de edifícios históricos. Isso corroborou a ideia de que práticas de campo deveriam ser continuadas e oportunizadas a um número maior de estudantes.

Levantamento métrico da estrutura de madeira e pilares de ferro do Edifício das Oficinas, originalmente exposta. Observar na linha de base os forros atuais pendurados na estrutura que ocultam particularidades do sistema construtivo.
FIGURA 5
Levantamento métrico da estrutura de madeira e pilares de ferro do Edifício das Oficinas, originalmente exposta. Observar na linha de base os forros atuais pendurados na estrutura que ocultam particularidades do sistema construtivo.
Fontes: Fotografia do Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura (2014) e Desenho de Pedro Murilo G. Freitas (2014).

Banco de dados digital das peças de madeira do Edifício Escola (Prédio 1) adotando tecnologia BIM.
FIGURA 6
Banco de dados digital das peças de madeira do Edifício Escola (Prédio 1) adotando tecnologia BIM.
Fonte: Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura (2014).

As primeiras observações feitas in situ já solicitavam inspeção apurada: verificar e registrar o estado dos forros do segundo pavimento da “Escola” - visivelmente de madeira “paulistinha” mais recente - e o da estrutura do telhado que se julgava ser a original. O levantamento métrico correspondeu, portanto, a uma minuciosa identificação morfológica da carpintaria histórica comprovando a existência de 12 tipos de tesouras de pinho-de-riga e outras madeiras nobres, algumas delas com vãos de até 18m de comprimento e 6m de altura, em bom estado de conservação e sem aparentes ataques de pragas (TIRELLO & FREITAS, 2015). Confirmou-se que os forros de madeira, de pior qualidade e severamente comprometidos, eram de fatura posterior e poderiam ser removidos para ampliação do diagnóstico completo, ação conservativa subsidiada por decisão do CONDEPHAAT que também solicita a elaboração de um plano de conservação preventiva.

UM CURSO DE PRÁTICAS DE CANTEIRO PARA ESTUDAR A ARQUITETURA DO PASSADO

O constante desafio colocado para arquitetos e gestores urbanos é como preservar, seja uma cidade, parte dela ou apenas um monumento isolado, sem engessá-los e sem alienar seus habitantes, os usuários. Restauro não é obra predial comum. Há um corpus normativo de aceitação internacional que sistematiza suas ações. A intervenção física para recuperação de edifícios de interesse arquitetônico e cultural corresponde a trabalho especializado que solicita o desenvolvimento de estudos multidisciplinares entre história, tecnologia e projeto. É preciso que sua conclusão garanta a salvaguarda dos valores patrimoniais das preexistências por meio da recuperação crítica de sua materialidade, sem deixar de responder às necessidades contemporâneas de segurança, conforto, higiene e funcionalidade.

A manifestação do tempo nos objetos do passado é fenomenológica, um presente em continua mutação que corresponde às muitas etapas do envelhecimento da matéria. Restaurar não significa voltar ao estado original da construção, mas se ocupar desse envelhecimento da matéria, procurando detê-lo ou anulá-lo por meio de intervenções de caráter técnico e estético. Não há um único tempo para o qual retroceder, mas muitos “estratos temporais” a compatibilizar em um projeto final de restauração.

Sendo impossível voltar no tempo, no plano operativo, a restauração arquitetônica não é mera reconstrução baseada em aspectos estilísticos e tipológicos que caracterizam os restauros fachadistas tão ao gosto do mercado imobiliário. Essa é uma distorção perversa da preservação que tem correspondido a invenções reconstitutivas de formas supostamente antigas e ao uso indiscriminado de técnicas e materiais incompatíveis com a tipologia e natureza dos bens intervencionados.

O restauro conservativo contemporâneo requer estudos científicos pertinentes ao reconhecimento qualitativo e quantitativo das marcas que o tempo deixou no corpo das edificações para aferir suas especificidades históricas e formais. Em apoio a esta leitura crítica concorrem estudos da história das técnicas construtivas, história da arquitetura, da arqueologia, da antropologia cultural, entre outros, usando-se para apoio dos registros e conclusões diagnósticas a fotografia, o desenho geométrico, as tecnologias digitais e as ciências aplicadas.

Na área da conservação e restauro, mesmo quando se busca a compreensão dos processos degenerativos somente com o objetivo de estancá-los - com finalidade que aparentemente pode ser reduzida a causa e efeito - se está questionando a história do manufato e das relações com o ambiente em que se insere, se está indagando a cultura do qual deriva e a cultural à qual se repropõe (TIRELLO, 2012, p.245).

Edifícios históricos são artefatos estratificados e podem ter incorporado certas mudanças físicas ao longo do tempo que, ao invés de descaracterizá-los em sentido negativo, agregam outros valores culturais também passíveis de serem considerados em projetos de restauro ou reabilitação, em favor deles. É preciso saber identificá-las com rigor crítico. Para tanto, a experiência da observação minuciosa do artefato propiciada por práticas de canteiro é requerida e fundamental para o delineamento de diretrizes projetuais de restauração, regidas por critérios conservativos.

Um projeto de restauração se processa pelo encadeamento de várias fases de estudo do objeto e de seu entorno. Iniciando-se pelas imprescindíveis pesquisas históricas documentais e embasamento teórico, passa por levantamentos métricos minuciosos e análises diagnósticas aprofundadas para reconhecer danos e alterações que acometem os artefatos. Essa categoria de análise fornece dados tangíveis de diferentes naturezas que, quando devidamente cotejados, sugerem as direções da reabilitação física adequada à valorização da historicidade dos bens. É o objeto que sugere a especificidade, a amplitude das intervenções a operar e as formas de reuso a propor, e não o contrário. Assim, um projeto de intervenção em preexistências não envolve apenas problemas afeitos a questões estruturais e estéticas, mas observa a conservação de sua substância material, uma avaliação que por vezes solicitará o emprego de métodos e procedimentos analíticos variados que não integram a grade curricular de cursos de arquitetura e engenharia. Contudo, arquitetos e engenheiros precisam conhecer os exames objetivos que um determinado edifício requer para poder solicitá-los a profissionais de outros campos de atuação em favor dos bons resultados do projeto de restauração final e preservação do objeto no tempo.

São sempre muitas as perguntas relacionadas a como proceder frente à recuperação física de uma preexistência de interesse. Reforma ou restauro? Quais os critérios que presidem o desenvolvimento de um projeto de reabilitação de um edifício antigo de valor histórico e arquitetônico? Quais fatores ou circunstâncias impõem operações de conservação e quais parâmetros devem guiá-las? Reutilizá-los de que modo? Repropondo os usos antigos ou mudando-os? Reforçando e recuperando o que está em mal estado? Completando o que permaneceu ou renovando para as superfícies para que pareça igual ao momento de sua construção?

A crescente demanda do mercado profissional por trabalhos de restauração, conservação, reabilitação, ou mesmo retrofit de edifícios históricos em mau estado, tem se refletido em expressiva procura por cursos de pós-graduação (stricto e lato sensu) na área da preservação arquitetônica que subsidiem tecnicamente o desenvolvimento de projetos de conservação e restauro e apoiem efetivamente práticas operativas por eles requeridas. É grande a solicitação especifica por conhecimentos tecnológicos de materiais tradicionais, sistemas controlados de registro e de diagnósticos de conservação associados a medidas curativas para garantir a preservação material das edificações ao longo do tempo.

Os enfoques disciplinares de grande parte dos Programas de Pós tendem a priorizar abordagens antropológico-culturais, processos de gestão de sítios e questões pertinentes à educação patrimonial, em resposta a políticas públicas governamentais. Em que pesem a necessidade e excelência dessas pesquisas, por não tratarem de aspectos técnicos das construções históricas, não tem sido suficiente para apoiar projetos de reparação ou restauração efetiva dos artefatos arquitetônicos. É preciso rever também as grades de disciplinas dos cursos de pós-graduação em arquitetura no que tange ao estudo da herança cultural.

Afinal, em caso de reabilitação material, o que manter? O que suprimir? O que consolidar? O que substituir? Em resposta às constantes solicitações de alunos por conteúdos que contemplassem a operatividade no restauro, em 2016 criou-se no curso de Arquitetura e Urbanismo da UNICAMP uma disciplina eletiva, em caráter experimental, intitulada Laboratório de Restauração Arquitetônica: teoria e prática, tomando como objeto de estudo o Edifício das Oficinas (Prédio 2).Trata-se de uma construção histórica razoavelmente preservada que se adequava perfeitamente ao ensino de processos de diagnóstico in situ como complementação de disciplinas regulares ministradas na área de preservação arquitetônica, uma habilidade que há muito se tencionava propiciar aos alunos em prol da qualificação de suas práticas profissionais futuras. Retomar estudos do “Oficinas” possibilitava ainda a continuidade de pesquisas iniciadas em 2014 sobre os sistemas construtivos adotados por Ramos de Azevedo. Aprender fazendo colocava-se no horizonte de possibilidades do ensino da restauração no curso de AU da UNICAMP.

“LABORATÓRIO DE RESTAURAÇÃO ARQUITETÔNICA: TEORIA E PRÁTICA”: CONCEPÇÃO, DESENVOLVIMENTO E RESULTADOS

A escolha dos edifícios históricos que sediavam o COTUCA para o desenvolvimento do curso “Laboratório” foi de fato providencial e proporcionou colaborações de mão dupla. As construções em causa eram propícias para a abertura de um canteiro que permitisse o início de avaliações aprofundadas das estruturas e materiais constitutivos, capazes de fundamentar e direcionar projetos de reabilitação física e o apoio ao ensino de práticas instrumentais de estudo de edificações de valor histórico. Em consequência, os produtos resultantes dos trabalhos a serem realizados no âmbito da disciplina, ao se constituírem em banco de informações especializadas, apoiariam concretamente a programação de obras de conservação futuras. O antigo edifício “Oficinas” se adequava perfeitamente ao escopo de um curso prático e o viabilizava.

Analisar diretamente obras campineiras de Ramos de Azevedo, por outro lado, significava oportunidade ímpar de aprendizado sobre sistemas construtivos tradicionais difundidos no Estado de São Paulo, posto que a caracterização e tipificação material de outros prédios escolares erigidos no final do Século XIX e início do Século XX poderiam se beneficiar da exemplaridade do projeto do arquiteto para o antigo Instituto Técnico Bento Quirino. Sendo esse um modelo construtivo basilar, possibilitaria a ampliação dos conhecimentos dos alunos, futuros arquitetos atuantes na região, sobre o repertorio tecnológico do período e daria a conhecer as transformações e avarias que costumam acometer edificações similares.

Havia muito ainda por conhecer também a respeito da cronologia física do antigo Instituto. As lacunas informativas acerca de modificações ocorridas nas edificações históricas costumam ser muitas, em especial no Brasil, onde acervos organizados de documentação arquitetônica são raros. Ao contrário do que imaginam aqueles menos familiarizados com estudos de estratificação arquitetônica, as notícias sobre mudanças formais, programáticas e materiais de uma preexistência precisam ser quase sempre entendidas a partir do corpo do edifício configurado na contemporaneidade e aferidas com métodos combinados de avaliação. No caso das duas construções históricas do antigo Instituto não haveria de ser diverso.

Com exceção do levantamento da complexa estrutura lígnea de cobertura do prédio principal realizado pelo GCOR-Arquitetura/UNICAMP, a documentação gráfica disponível sobre os prédios, salvo melhor juízo, resume-se a duas plantas esquemáticas: uma referente ao projeto original de Ramos de Azevedo de 191611 e uma do estado atual produzida em AutoCad (Autodesk, San Rafael, CA, Estados Unidos, versão 2000)12 em 2009 (Figura 7). Desconhecem-se outras peças gráficas, ou mesmo registros fotográficos, que informem sobre o tipo e amplitude das alterações perimetrais e ambientais que in situ se observam terem existido no hiato de tempo que as datas dessas plantas perfazem.

Planta original de 1916. Croqui de levantamento da situação atual do Prédio Oficinas realizado na disciplina AU253/AQ106; Desenho: Giulia Vercelli.
FIGURA 7
Planta original de 1916. Croqui de levantamento da situação atual do Prédio Oficinas realizado na disciplina AU253/AQ106; Desenho: Giulia Vercelli.
Fontes: Acervo da Biblioteca da Biblioteca da Universidade de São Paulo e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1916).

Mudanças prediais existiram, é fato. Os documentos informam que, sem nunca ter deixado de ser espaço de ensino, as vicissitudes do Instituto levaram os edifícios a acolher diferentes funções educacionais ao longo de sua vida até a cessão de uso à UNICAMP em 1967, quando continuam a ser objeto de frequentes obras de manutenção. Tais alterações necessariamente implicaram adaptações prediais - subdivisões de espaços existentes ou pequenas ampliações - que, em contexto de restauro arquitetônico, ganham especial significação. À luz das recomendações normativas internacionais, é desejável que todas as transformações sejam identificadas e valoradas sob o ponto de vista de sua historicidade para balizar decisões de projeto. Nessa direção, noções de estratificação arquitetônica deveriam também ser incorporadas aos conteúdos do curso. Interessava instrumentalizar os alunos para distinguir formas e materiais originais das alterações e sobreposições espúrias (ou não) ocorridas entre o período da construção do prédio e nossos dias; essas só são verificadas, apreendidas, distinguidas com exames visuais in situ. A experiência de campo é que traz a acuidade necessária para a percepção de diferenças sutis presentes em uma mesma superfície. Em suma, interessava ensinar os estudantes a olhar um edifício histórico de forma crítica em sua totalidade e minúcias.

Se é o estado de uma preexistência que determina o processo de restauro adequado para sua recuperação, e não o contrário, no campo da conservação arquitetônica considera-se que cada caso é um caso. São as características originais e conservativas específicas de um dado objeto que indicam a escolha de métodos de reconhecimento a adotar e a profundidade dos estudos a empreender. E são muitas a variáveis instrumentais e sequenciamentos possíveis.

No campo da Restauração Arquitetônica, exames diagnósticos correspondem ao conjunto de estudos técnicos para analisar estruturas e paramentos murários com o objetivo de avaliar processos degenerativos […] além dos dados informativos sobre o estado de conservação dos materiais, podem propiciar o reconhecimento estratificações temporais não documentadas convencionalmente, contribuindo para conhecimentos sobre “História da Técnica e da Construção” (VILLELA & TIRELLO, 2014, p.1).

No caso do prédio “Oficinas”, a mencionada exiguidade das fontes documentais sobre o tipo e abrangência das mudanças ocorridas em seu exterior e interior e a inexistência de estudos específicos sobre seu sistema construtivo e ambiências pretéritas ensejou no planejamento da “disciplina prática” a adoção de postulados da Arqueologia da Arquitetura (AA) para apoiar os trabalhos de investigação de cronologia arquitetônica. Trata-se de campo disciplinar que, adotando métodos derivados da arqueologia, considera um edifício histórico como produto da dinâmica construtiva que o conforma em um sistema heterogêneo de técnicas e materiais. A matéria arquitetônica que chega até nossos dias costuma ser decorrência de transformações ao longo do tempo. Nessa perspectiva os “períodos” de vida de uma edificação podem ser atestados tanto por remoção como por construção de parte adossada ao corpo original, quanto por modificações de cores e elementos ornamentais, a exemplo de pinturas artísticas parietais que costumam dar claras informações indiretas sobre as mudanças de função de um mesmo cômodo. Era preciso “historicizar” o edifício.

Com efeito, não basta comparar planta original com planta atual para perfazer a história construtiva de um edifício. Diferenças de texturas em superfícies argamassadas indicam variados tipos de refazimento, fissuras no reboco denunciam alargamentos ou fechamentos de vãos e mudanças de espessuras de parede e irregularidades na paginação de tabuados de piso podem sugerir obras de compartimentação de espaços, entre outros tantos sinais sutis que indicam alterações operadas (e não documentadas). Nos prédios antigos esses são fenômenos a investigar por conduzirem à compreensão de diferentes fases de integridade de uma mesma arquitetura (Figura 8). Na fase exploratória dos aspectos macroscópicos do prédio, as técnicas de AA auxiliaram muito na identificação estratigráfica do “Oficinas”.

Sondagem estratigráfica vertical. Pintura mural artística identificada sob 5 camadas de tintas em antiga parede que não consta no projeto original de Ramos de Azevedo.
FIGURA 8
Sondagem estratigráfica vertical. Pintura mural artística identificada sob 5 camadas de tintas em antiga parede que não consta no projeto original de Ramos de Azevedo.
Fonte: Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura (2016).

Pré-diagnósticos de conservação implicam na realização de desenhos técnicos de levantamento em escalas diversas, fotografias especiais (do micro ao macro), exames táteis e visuais de superfícies, mapeamentos especiais de danos dos materiais controlados por normativas específicas, consecução de fichas para documentação de cada elemento constituinte da arquitetura (cerâmica, madeira, pedra, reboco, etc.) além de extração de amostras de materiais para caracterização. É nesta fase dos trabalhos que o operador se apropria do objeto, quando busca conhecê-lo em todas as suas dimensões, do projeto original às estratificações históricas, da morfologia à degradação dos materiais.

Com base nesses entendimentos, a elaboração da disciplina Laboratório de Restauração Arquitetônica: teoria e prática13 associou aulas teóricas e leituras programadas a práticas de levantamento de campo, adotando métodos de análise e documentação de edifícios e sítios que estimulam a observação direta das preexistências em seu contexto ambiental. O objetivo maior era possibilitar aos estudantes a compreensão dos requisitos fundamentais das várias etapas de um projeto de restauração arquitetônica, promovendo a necessária coerência entre interpretação histórica do objeto, seu estado de conservação e sua linguagem arquitetônica na determinação do projeto.

Com carga horária de 4 horas-aula semanais e contando com a participação de 45 alunos, provindos neste oferecimento dos cursos de graduação e pós-graduação, a disciplina Laboratório se desenvolveu em 3 módulos interdependentes por meio de aulas expositivas, palestras e realização de exercícios em campo (Figura 9), estes últimos correspondendo a 70% do curso (referentes abaixo aos módulos 2 e 3), com os participantes divididos em 6 equipes de estudo temático, a saber:

Estudo sobre alterações e danos nos revestimentos externos. Argamassas incompatíveis, desagregação, colonização biológica.
FIGURA 9
Estudo sobre alterações e danos nos revestimentos externos. Argamassas incompatíveis, desagregação, colonização biológica.
Fonte: Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura (2016).

Restituição fotogramétrica da fachada leste; imagem sem deformação da perspectiva, para avaliar conservação global. Ficha de classificação de danos para reboco elaborada no curso com base nas normativas italianas que definem classificação das patologias de materiais pétreos “naturais” e artificiais: UNI 1182:2006.
FIGURA 10
Restituição fotogramétrica da fachada leste; imagem sem deformação da perspectiva, para avaliar conservação global. Ficha de classificação de danos para reboco elaborada no curso com base nas normativas italianas que definem classificação das patologias de materiais pétreos “naturais” e artificiais: UNI 1182:2006.
Fonte: Grupo de Conservação e Restauro da Arquitetura (2016).

Destaca-se que as mencionadas etapas de estudo de campo tiveram caráter essencialmente cognitivo, usando-se métodos tradicionais de análise não invasiva dos objetos que, somados, trouxeram dados concretos sobre as descontinuidades dos paramentos murários, das superfícies argamassadas e dos sistemas de captação de água. Viabilizou-se o conhecimento da natureza material, formal e do tipo de deterioração combinada dos elementos constitutivos de uma arquitetura de clara orientação fabril, feitos tijolos rebocados em que há predominância do uso do ferro e madeira nas caixilharias e estruturas.

Os resultados dos módulos da disciplina foram expressos em peças gráficas com desenhos e imagens fotográficas em escalas diferentes em acordo com o grau de especialização da informação que se tencionava registrar e comunicar. Esses registros virão a se constituir em ferramenta de trabalho na ocasião da intervenção ou em documentação científica para controle conservativo do prédio e que, pela importância do conjunto, também será oportunamente difundido em publicação de divulgação para a comunidade acadêmica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Experiências de integração de ensino a atividades profissionais são sempre bem-vindas e desejadas pelos estudantes de AU, mas também podem trazer diversos desafios, situações inesperadas e inúmeros problemas e, talvez por isso, tem sido prática pouco comum. Ao professor, é sempre mais cômodo manter-se protegido pelo espaço da sala de aula ou se orientar na perspectiva de um arauto transmissor de conteúdo. No entanto, como falar de “pátina”, vocábulo tão comum no campo da Restauração, a um estudante que pelo hábito do risco infalível da prancheta nunca havia visto como se constrói uma parede de tijolos ou como envelhece um reboco?

Num campo que se caracteriza pelas muitas interfaces com outras áreas do conhecimento como a Restauração, ressaltar o papel da experiência em disciplinas diretamente vinculadas à construção tradicional é ampliar a capacidade de interação dos estudantes com a realidade, de perceber as múltiplas temáticas que as paredes da arquitetura histórica suportam. Nesta perspectiva, a problemática inserção da Restauração nos currículos de AU ainda não pode ser resolvida sem um amplo debate acadêmico. As universidades públicas, que costumam possuir entre os seus bens diversos edifícios de interesse patrimonial, têm plenas condições de agregar nos currículos visões alternativas que oportunizem a difusão de conhecimentos operacionais para a preservação arquitetônica.

REFERÊNCIAS

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Portaria n° 1770, de 21 de dezembro de 1994. Ministério da Educação, Brasília, 21 dez.1994.

CARVALHO, M.C.W. Ramos de Azevedo. São Paulo: Edusp, 1998.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO. Liceu de Artes e Ofícios Bento Quirino. São Paulo: FAUUSP, 1916. (Acervo Ramos de Souza, P AZ25/727.4 B)

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Banco de dados digital das peças de madeira do Edifício Escola. Campinas: UNICAMP, 2014. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Croqui de levantamento da situação atual do Prédio Oficinas: Desenho de Giulia Vercelli. Campinas: UNICAMP, 2014. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Estuques e pinturas do Salão Nobre do Edifício Escola. Campinas: UNICAMP, 2014. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Instituto Profissional Bento Quirino/Colégio Técnico de Campinas: Edifício Escola e Edifício das Oficinas, Campinas: UNICAMP, 2014. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Levantamento métrico da estrutura de madeira e pilares de ferro do edifício das Oficinas. Campinas: UNICAMP, 2014. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Atividades de campo. Campinas: UNICAMP, 2016. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Bairro do Botafogo. Campinas: UNICAMP, 2016. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Estudo sobre alterações e danos nos revestimentos externos: argamassas incompatíveis, desagregação, colonização biológica. Campinas: UNICAMP, 2016. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Restituição fotogramétrica da fachada leste: imagem sem deformação da perspectiva, para avaliar conservação global. Campinas: UNICAMP, 2016. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

GRUPO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA ARQUITETURA. Sondagem estratigráfica vertical: pintura mural artística identificada sob 5 camadas. Campinas: UNICAMP, 2016. (Arquivo GCOR-Arquitetura/UNICAMP).

OLIVEIRA, M.M. A prancheta, o canteiro e a durabilidade do construído. RUA, Salvador, v.2, n.3, p.117-131, 1989.

PISANI, M.A. et al. O ensino do projeto de arquitetura e urbanismo: um canteiro experimental. SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE ENSINO E PESQUISA EM PROJETO DE ARQUITETURA, 4., 2009, Natal. Anais eletrônicos… Natal: UFRN, 2009.

SCHLEE, A.; MEDEIROS, A. E.; FERREIRA, O. Dissociação, fragmentação e união: a experiência do ensino de técnicas retrospectivas. SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE ENSINO E PESQUISA EM PROJETO DE ARQUITETURA, 1., 2003, Natal. Anais eletrônicos… Natal: UFRN, 2003.

TIRELLO, R.A. Restaurar não é pintar os edifícios de amarelo: questões sobre técnicas construtivas tradicionais. In: FONTES, M.S.G.C.; CONSTANTINO, N.R.T; BITTENCOURT, L.C. (Org.). Arquitetura e urbanismo: novos desafios para o Século XXI. Bauru: Canal6, 2009. p.21-34.

TIRELLO, R.A. O restauro dos murais art nouveau da Vila Penteado e o Canteiro-Escola da CPC-USP: uma experiência de formação qualificada. In: MARTINS, M.L.R.R. (Org.). Vila Penteado 1902-2012: Pós-Graduação 40 anos. São Paulo: FAUUSP, 2012. p.239-268.

TIRELLO, R.A.; FREITAS, P.M. A carpintaria dos edifícios escolares paulistas de Ramos de Azevedo: o caso exemplar da Escola Profissionalizante Bento Quirino em Campinas. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE PATOLOGIA E REABILITAÇÃO DE EDIFÍCIOS, 5., 2015, Porto. Livro de Atas… Porto: FEUP, 2015. p.551-556.

VILLELA, A.T.C.; TIRELLO, R.A. Estudos diagnósticos em Arqueologia da Arquitetura: uma investigação sobre as possibilidades do “Método Harris” para o estabelecimento de cronologias construtivas - Lidgerwood (Campinas). ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO, 3., 2014, São Paulo. Anais eletrônicos… São Paulo: UPM, 2014. p.1-14.

WOLFF, S.F.S. Escolas para a república: os primeiros passos da arquitetura das escolas públicas paulistas. São Paulo: Edusp, 2010.

NOTAS

1 . Em 2010, o CONDEPHAAT tombou em conjunto 126 escolas construídas na Primeira República entre 1890 e 1930, como representativas do Programa Pedagógico Republicano. Processo de Tombamento Estadual nº 24929/1986, Resolução CONDEPHAAT nº 60 de 21/07/2010.
2 . Processo de Tombamento Estadual nº 2285/1983, Resolução nº 30 de 29/10/1984.
3 . Processo de Tombamento Municipal nº 10/1992, Resolução nº 132 de 13/10/2015.
4 . Em 1927, o “Instituto Profissional” transforma-se em “Escola Mixta Profissional”, que agrega o ensino feminino; em 1958, é reformado e cedido ao Estado para se constituir no “Ginásio Industrial Estadual”; em 1967, é definitivamente incorporado à Universidade Estadual de Campinas. Informações coletadas no Livro de Atas (1915-1973) do Instituto Profissional Bento Quirino disponível no COTUCA.
5 . No início do ano letivo de 2014, a UNICAMP, por prudência, resolveu interditar o Edifício Escola (Prédio 1) até a execução de um projeto completo de restauro a ser devidamente aprovado pelos órgãos de preservação.
6 . As informações disponíveis indicam uma fragilização das edificações entre os anos 1950 e 1960, que sugerem a realização de reformas não documentadas para a adaptação do conjunto ao uso público. Informações coletadas no Livro de Atas (1915-1973) do Instituto Profissional Bento Quirino disponível no COTUCA.
7 . O campo das ‘Técnicas Restrospectivas’, termo concebido pelo historiador Leonardo Benevolo, é área que integra as Matérias Profissionais definida pela Portaria nº 1770, de 21 de dezembro de 1994.
8 . Disciplina AU814 - “Técnicas retrospectivas” do curso de Arquitetura e Urbanismo da UNICAMP.
9 . GCOR da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da UNICAMP (GCOR-Arquitetura/UNICAMP), coordenado pela Profa. Dra. Regina Andrade Tirello.
10 . Relatório Técnico coordenado pela Profa. Dra. Regina Andrade Tirello, com participação do Arquiteto Pedro Murilo Gonçalves de Freitas (Doutorando Pós-Graduação Arquitetura, Tecnologia e Cidade/UNICAMP) e os alunos Carlos Cenci Jr. e Verley Henry Coco Jr. (Graduação AU/UNICAMP).
11 . Cópia em pdf disponível na Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Universidade de São Paulo em São Paulo.
12 . Levantamento cadastral fornecido pela Coordenadoria de Projetos e Obras - UNICAMP e incompleto. Este material, por não ter sido finalizado, não está disponível para consulta.
13 . A disciplina AU253/AQ106 - Laboratório de Restauração Arquitetônica: teoria e prática, neste oferecimento, foi ministrada pelos professores Profa. Dra. Regina Andrade Tirello (docente responsável), Prof. Dr. Rafael Urano Frajndlich (docente colaborador) e Pedro Murilo Gonçalves de Freitas (Programa de Estágio Docente, Doutorando Pós Arquitetura, Tecnologia e Cidade -UNICAMP).
14 . Evento realizado em 7 de outubro de 2016 na Biblioteca Central César Lattes com palestras proferidas pelas professoras Silvia Ferreira dos Santos Wolff e Ana Maria Reis de Góes Monteiro, seguidas de debates sobre a preservação dos edifícios históricos escolares paulistas tombados e a inauguração da exposição “A carpintaria dos edifícios escolares de Ramos de Azevedo: o caso exemplar da Escola Profissional Bento Quirino” dando a conhecer desenhos técnicos realizados em 2014.
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