ENSAYO VISUAL
MILITÂNCIA NA URBANIZAÇÃO DE FAVELAS: EM BUSCA DE UMA CONCEITUAÇÃO1
MILITANCY IN THE URBANIZATION OF SLUMS: IN SEARCH FOR CONCEPTUALIZATION
MILITÂNCIA NA URBANIZAÇÃO DE FAVELAS: EM BUSCA DE UMA CONCEITUAÇÃO1
Oculum Ensaios, vol. 16, núm. 2, pp. 235-255, 2019
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo
Recepção: 01 Março 2018
Revised document received: 08 Outubro 2018
Aprovação: 18 Outubro 2018
RESUMO: Este artigo explora analiticamente a militância de arquitetos projetistas em Urbanização de Favelas no Brasil. Neste contexto, a ação militante em assentamentos populares é entendida como postura ética, técnica e política intencional que reivindica o lugar das favelas e seus moradores nas cidades brasileiras. Para isso, recorre-se a uma seleção de dez casos de estudo identificados como referências projetuais na intervenção de forma engajada em favelas, iluminando a trajetória de ação de dez sujeitos, arquitetos projetistas com vasta experiência em Urbanização de Favelas. A partir dos seus percursos individuais e com base em depoimentos cruzados com pesquisa documental, buscam-se os pontos comuns entre as atuações, reflexões e até frustrações, que enunciam o que pode ser entendido como a militância em Urbanização de Favelas. Os casos aqui abordados abrangem intervenções realizadas no Rio de Janeiro e Região Metropolitana de São Paulo, remetendo-se um recorte temporal que se inicia com experiências pioneiras nos anos 1970, até intervenções ensejadas recentemente. Pretende-se recuperar historicamente a atuação engajada em favelas e contribuir para a reflexão a partir de sujeitos e experiências que nem sempre são reconhecidas e devidamente documentadas na literatura acadêmica nacional. Espera-se assim debater práticas pouco exploradas que podem colaborar para o desafio de manutenção de uma agenda de pesquisa e de ação pública progressista e contínua em favelas no país.
PALAVRAS-CHAVE: Arquitetos militantes, Região metropolitana de São Paulo, Rio de Janeiro, Urbanização de favelas.
ABSTRACT: The aim of the paper was to investigate the conceptualization of militancy among architects during the process of urbanization of slums. In this context, the militant practice is understood as an ethical, technical and political approach that claims the rights of slums and their residents in Brazilian cities. For this purpose, ten case studies, considered as project references of engaged interventions in slums, were selected, focusing on the work of ten architect-designers with vast experience in the urbanization of slums. From their individual experiences and cross-referencing followed by documentary research, we sought to establish the common aspects among actions, reflections and even frustrations, which state what can be understood as militancy in the urbanization of slums. The study cases consist of interventions in Rio de Janeiro and the metropolitan region of São Paulo that began with pioneering experiences in the 1970s up to recent interventions. More than delimiting a concept, the intention was to historically recover the work carried out in slums and contribute to the understanding of individuals and situations that are not always acknowledged or properly documented in the national academic literature. Therefore, we expect to discuss possible solutions and practices that are not well known that may contribute to the challenge of maintaining a research agenda and public progressive and permanent actions in the Brazilian slums.
KEYWORDS: Militant architects, Metropolitan Region of São Paulo, Rio de Janeiro, Urbanization of slums.
INTRODUÇÃO
As reflexões deste ensaio partem da pesquisa que originou a dissertação de mestrado “Arquitetos Militantes em Urbanização de Favelas: uma exploração a partir de casos de São Paulo e do Rio de Janeiro” (FERREIRA, 2017), apresentado na área de Habitat à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Esta pesquisa iniciou-se numa busca por projetos, desenhos e soluções técnicas, formas de fazer e experiências executadas em urbanização de favelas que poderiam servir de inspiração, reflexão e aprendizado para a possibilidade de intervenção, buscando os princípios da maior e melhor salubridade, adequação, integração e justiça para a população moradora e para a cidade como um todo.
A clareza sobre o tipo de urbanização de favelas que se procurava foi confrontada, num primeiro momento, com a dificuldade para encontrá-las. Se por um lado é evidente a vasta experiência acumulada no Brasil em urbanização de favelas, com casos desde os anos 70, e integrados em políticas públicas a partir dos anos 80, por outro, tratam-se de experiências pouco documentadas ou publicizadas, de difícil acesso até, no que diz respeito ao campo da arquitetura e urbanismo. São escassas as representações de soluções técnicas e estéticas, do desenho multidisciplinar e de compatibilização de disciplinas complementares fundamentais para a realização desta forma de atuação.
Reconheceu-se, em determinado momento, que as referências buscadas ultrapassavam os limites físicos da representação gráfica. Na urbanização de favelas o processo resolve-se nos diálogos entre agentes, muitas vezes entre disciplinas, nas percepções em visitas de campo, na fala de algum ou do conjunto de moradores.
A pesquisa pelo “saber fazer” urbanização de favelas foi progressivamente se transformando numa procura por referências de condutas, de posturas profissionais, nas quais a ação técnica ia-se misturando com a ação política e ética. E essa associação entre técnica, estética e ética, permeada pela ação política, foi sendo entendida como o direcionamento a ser tomado visando uma pesquisa não sobre ações genéricas ou bem sucedidas em urbanização em favelas, mas sim sobre aquelas onde o engajamento social e político levaram a uma riqueza processual, a uma busca pela ampliação de direitos de moradores e, sobretudo, a experimentações que ampliassem, mesmo com todos os seus limites, o potencial transformador e emancipatório da ação do arquiteto e urbanista.
QUE URBANIZAÇÃO DE FAVELAS?
CONTEXTUALIZAÇÃO
Refere-se a urbanizações de favelas como intervenções que dizem respeito tanto ao espaço físico como à dimensão social do território e suas populações. As intervenções físicas podem enfrentar questões como a prevenção e eliminação de risco, implantação ou complementação de infraestrutura urbana, a disponibilidade de serviços urbanos e questões de ordem social, como o acesso a possibilidades de trabalho, para além da segurança da posse e regularização fundiária apenas para enumerar alguns. Dependendo do grau de precariedade não só urbana, mas também habitacional, podem enfrentar-se ainda a necessidade de remoção associada à realocação habitacional e a possibilidade de melhorias habitacionais para as edificações que se propõe consolidar.
Esta pesquisa partiu na busca das referências projetuais de urbanização de favelas e da tentativa de mapear e compreender metodologias para o exercício da arquitetura e urbanismo. São intervenções de iniciativa pública e que estão dependentes do comprometimento da gestão responsável. Experiências que afetam diretamente a população moradora, e por isso inegavelmente associadas, para além de outros aspectos, ao seu envolvimento e participação e à forma como estes são desenvolvidos.
A urbanização de favelas como aqui é abordada trata-se de uma reivindicação progressista e militante. São processos que arriscam a possibilidade de permanência de determinada população no local onde se estabeleceu para que, após a intervenção, adquiram a qualidade de vida à qual não tinham total acesso, no sentido da integração à infraestrutura básica e serviços urbanos e uma maior articulação com a dinâmica socioespacial da cidade.
Verificou-se que esta concepção como uma intervenção integrada em favelas é resultado de um acúmulo de conhecimento já retratado na vasta bibliografia dedicada ao tema (BUENO, 2000; GORDILHO-SOUZA, 2001; DENALDI, 2003; CARDOSO, 2007; MAGALHÃES & VILLAROSA, 2012) que revela que a luta pela intervenção em favelas tem-se transformado assim como a concepção de cidade e de direitos. Se num primeiro momento a reivindicação principal era pela permanência e contra a remoção, as exigências populares, assim como a concepção da intervenção, se tornaram mais sofisticadas e hoje a noção de urbanização de favelas já assumiu a conotação de um complexo processo que contempla inúmeras disciplinas de intervenção.
Não seria exagero afirmar que apesar dos avanços conceituais, são raros ou inexistentes os casos em que, após a intervenção, tem-se favelas totalmente urbanizadas e integradas na chamada cidade formal. Na maioria dos casos, as urbanizações têm sido as intervenções possíveis historicamente dados os limites orçamentários, programáticos, jurídicos, das próprias gestões públicas, das características físicas e sociais do assentamento ou da visão político-programática subjacente aos programas que as sustentaram (PETRAROLLI, 2015; REZENDE, 2015). Há ainda os casos da manutenção ou agravamento da informalidade e precariedade, mesmo após a intervenção, por diversos fatores, dentre eles a ausência de representação e “controle” (social e urbanístico) do poder público (NAKAMURA, 2014; NISIDA, 2017). Por fim, a criminalização dos moradores em favelas, refletida no olhar preconceituoso para os territórios urbanos de informalidade desde o seu aparecimento, tem sido uma das características mais difícil de superar, mantendo estes como territórios marginalizados (VALLADARES, 2005). A urbanização em favelas abordada é um campo em disputa onde diferentes atores sociais lutam frente a outros agentes pelo reconhecimento da legitimidade dos direitos de moradores e, ao fim e ao cabo, por cidades mais justas e democráticas.
Esta tem sido a luta de movimentos sociais por moradia, de técnicos e acadêmicos conscientes das discrepâncias territoriais existentes nas cidades brasileiras. Esses atores fazem também parte da história da atuação militante em urbanização de favelas. Esta pesquisa reconhece o seu valor e contributo, mas propõe um foco direcionado para profissionais de arquitetura e urbanismo que utilizam o seu saber técnico de leitura territorial, de desenho, de projeto como prática emancipatória em favelas.
MILITÂNCIA EM URBANIZAÇÃO DE FAVELAS
A pesquisa bibliográfica realizada sobre militância revelou que a mesma não aparece descrita na literatura acadêmica como um conceito bem delimitado. Encontraram-se poucas referências que a exploram com o rigor que se acreditava necessário à delimitação de uma prática profissional em determinado campo de atuação que se entende também como social e política.
Olhando para este campo de estudos, alguns ensaios aproximam uma relação entre militância e favelas ou espaços do habitat precário eminentemente direcionados para análises sobre lutas sociais por movimentos organizados ou políticas públicas e seus interlocutores. Estes recaem sobretudo em atuações colocadas através de atores em contextos político-partidários e apesar da reconhecida importância destes para a definição do campo de atuação em favelas, o direcionamento desta pesquisa está voltado para a atuação do arquiteto na prática projetista.
As descrições sobre processos de projeto com aproximações à instrumentalização numa lógica de luta reivindicatória e progressista aparecem sobretudo em depoimentos e relatos de sujeitos associados ao questionamento e posicionamento do arquiteto como ator político. Nem sempre estes testemunhos são relacionados especificamente com favelas, mas todos eles tensionam o “lugar” e “papel” social do arquiteto aproximando-o dos mais vulneráveis socialmente e dos que moram em condições consideradas precárias.
Autores como Turner (1972, 1976, 1989) e Fathy (1980), no plano internacional, vão-se destacar pela descrição de uma prática profissional próxima dos pobres, valorizando estes como protagonistas das suas próprias construções. Em território nacional, Santos (1981), Bonduki (1992), Maricato (1998) e, mais recentemente, Petersen (2009) e Rezende (2015), apenas para nomear alguns que, na recuperação de suas trajetórias pessoais, vão margeando o conceito de militância em denominações que tendem a reconhecer a sua ação. Esta, recorrentemente se caracteriza por uma aproximação a esses contextos precários numa atitude que busca a horizontalidade, o trabalho participativo e a transformação social, ao qual está relacionado o embasamento ou mobilização de fundo político ou ideológico e certo espírito de sacrifício (GARCIA & NUNES, 1983).
Em Santos (1980, 1982) encontrou-se críticas direcionadas para a habitual atuação do profissional arquiteto e sua formação, mantendo uma prática que se pode caracterizar como alienada, no contexto de necessidade habitacional e urbana brasileira. Já Kapp (2009, 2012) questiona as práticas recentes dos arquitetos e urbanistas em contextos de precariedade que se mantêm aproximadas àquelas já criticadas por Santos (1980, 1982), ou ainda, não reconhecendo a atualização constante destes territórios e o protagonismo de suas comunidades.
É em Pulhez (2007) e Lopes (2011) que se encontrou uma delimitação mais aproximada ao campo conceitual da militância que interessa aqui abordar. Pulhez (2007) elabora um vasto mapeamento, construindo a trajetória de aproximação do arquiteto à favela no Brasil. Aborda o engajamento recorrente destes arquitetos e urbanistas através da importância dada em seu campo de ação aos componentes sociais, ao projeto participativo que busca a emancipação e a relação direta destes com o desenho e as técnicas usuais da profissão. Lopes (2011) apresenta as contradições da atuação do profissional arquiteto a partir da sua trajetória pessoal em experiências no Lab Hab (Laboratório de Habitação) da Faculdade de Belas Artes e dentro da assessoria técnica Usina CTAH que possibilitam a análise crítica embasada no conhecimento empírico.
O que existia era uma impressão comum [entre os membros da Usina] de que o trabalho social que se pretende não é um trabalho assistencialista. [...] Se ele não é assistencialista, o que ele é então? Acho que para essa questão, normalmente o que a gente sempre tendeu a responder é que ele é um trabalho essencialmente político e por isso é um trabalho social. [...]. Mas o que é esse trabalho político? Eu acho que a gente sempre viveu essa crise, de ficar entre um trabalho militante, de militância efetiva, de interferência, de composição do nosso esforço como técnicos junto ao esforço dos movimentos - numa perspectiva essencialmente política - e dos próprios grupos com os quais a gente trabalhou, e por outro lado, um trabalho político, mas num sentido menos militante, num sentido de tentar compreender que necessariamente o nosso trabalho técnico não deixa de ser político também (PULHEZ, 2007, p.130).
Ambos os autores sugerem definições, reflexões e questionamentos sobre a militância aproximados ao que aqui se propõe abordar: a militância arquitetônica em urbanizações de favelas entendida como prática engajada, com diferentes enraizamentos políticos, mas sobretudo como exercício técnico, estético e ético na busca pela legitimação de direitos.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A MILITÂNCIA ESTUDADA
No entendimento de que o que se procurava eram ações políticas, surgiu a percepção de que o foco da pesquisa seriam os sujeitos, os arquitetos e urbanistas, a quem, na experiência profissional em favelas, se reconheceu as atitudes de militância acima descritas. Partiu-se então em busca de sujeitos que, agindo na favela, são instigados pela mesma e pela realidade que os rodeia, interessados em estabelecer processos dialógicos, em respeitar a histórias dos lugares sobre os quais atuam e, sobretudo, empenhados em promover transformações socioespaciais respeitosas, de baixo impacto social, mas qualificadoras da vida urbana. Restava demonstrar o quanto desta atuação e das suas ideias refletia a associação entre intenção política e ação projetual, que se propunha demonstrar.
Como casos, foram selecionados para este estudo um grupo de sujeitos (arquitetos projetistas) que pudesse demonstrar a possibilidade de correlação entre práticas que se identificavam como referência militante, nos termos já colocados, para a intervenção em favelas. Arquitetos com mais de 10 anos de experiência prática em projetos de urbanização de favelas e, sempre que possível, também em obra. A ideia inicial foi a de estabelecer uma relação entre casos distintos com a participação de cada projetista para, na comparação entre eles, compreender as motivações, condicionantes, adaptações, transformações e opiniões sobre os processos e seus resultados. Este panorama teve como intuito encontrar uma reflexão por um lado, sobre o conhecimento acumulado em urbanização de favelas e por outro, sobre a situação atual dos arquitetos projetistas perante a mesma.
Como recorte territorial focou-se em experiências desenvolvidas na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e do município do Rio de Janeiro (RJ). A seleção das atuações nas duas áreas da região sudeste do país não pretende ser restritiva. Tomam-se estes casos, nos seus contextos regionais, como representatividade chave e como possíveis exemplos de referência na atuação militante.
Esta seleção procurou aqueles que em sua forma de atuação se identificou um engajamento social e político, de práticas, soluções e propostas que aparentavam maior preocupação e proximidade com as realidades dos seus interlocutores, os moradores das favelas; os projetistas que viviam “na e a favela” durante o desenvolvimento de projeto, reconhecendo e se importando com suas características físicas e sociais; aqueles que, muitas vezes, ultrapassaram as limitações legais e burocráticas exigidas ou definidas por contrato, e propunham soluções alternativas ou menos usuais para melhor se adequarem ao local e seus usuários; os indivíduos que na sua prática buscam intervir em favelas sem legitimar a precariedade do lugar mas sem serem colonizadores nas suas formas de atuação.
O Quadro 1 apresenta os arquitetos militantes e inicia-se num marco referencial histórico, a atuação do escritório Quadra Arquitetos, mais especificamente a do Arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos2, em Brás de Pina, no Rio de Janeiro, nos anos 1970. Remeteu-se a essa experiência tomando-a como parte relevante da pesquisa e da militância em urbanização de favelas através de fontes bibliográficas (BLANK, 1980; SANTOS, 1981). Aos restantes arquitetos escolhidos, chegou-se através de pesquisa bibliográfica e empírica, por uma rede de contatos de profissionais atuantes em favelas3.
| Localização | Processo de urbanização de favelas | Data | Agente/Programa viabilizador | Projetistas/Gestores | Sujeito pesquisado |
|---|---|---|---|---|---|
| Rio de Janeiro | Brás de Pina | 1968-1973 | Codesco + BNH | Quadra arquitetos | (1) Carlos Nelson F. Santos |
| Serrinha | 1996-2001 | Favela-Bairro PROAP I | Manoel Ribeiro e equipe | (2) Manoel Ribeiro | |
| Pavão-Pavãozinho e Cantagalo | 1999-2003 | Favela-Bairro PROAP II | Consórcio COBRAPE/ Mayerhoffer & Toledo + MPS Associados | (4) Vera Tangari | |
| (2) Manoel Ribeiro | |||||
| (5) Luiz Carlos Toledo | |||||
| Plano Socio- -espacial da Rocinha | 2007-2008 | PAC UAP + EMOP | Mayerhoffer & Toledo + MPS Associados | (5) Luiz Carlos Toledo | |
| (3) Jonathas Silva | |||||
| (4) Vera Tangari | |||||
| Região Metropolitana de São Paulo | Programa de urb. de favelas de Diadema | 1983-1996 | PM Diadema | [PM Diadema] | (6) Milton Nakamura |
| Vila Popular | 1994-1995 | PM Diadema | Usina CTAH | (7) Wagner Germano | |
| Tamarutaca | 2000-2003 | PIIS + Santo André Mais Igual | Peabiru TCA | (8) Caio Santo Amore | |
| Jardim Silvio Sampaio | 2006-2009 | PM Taboão da Serra + Pró-moradia + OGU/FNHIS | [PM Taboão da Serra] | (9) Heloisa Rezende | |
| Jardim Santo Onofre | 2007-2009 | PM Taboão da Serra + FNHIS | BND arquitetos [PM Taboão da Serra] | (9) Heloisa Rezende | |
| (6) Milton Nakamura | |||||
| Capelinha | 2011-2015 | PAC UAP + PMSBC | Peabiru TCA | (8) Caio Santo Amore | |
| (10) Alexandre Marques | |||||
| Batistini | 2014-2016 | PAC UAP + PMSBC | Peabiru TCA | (8) Caio Santo Amore | |
| (10) Alexandre Marques | |||||
| Complexo Chafik | 2013- | PAC UAP + PM Mauá | Tereza arquitetura [PM Mauá] | (6) Milton Nakamura |
Não se pretendeu com a seleção destes 10 sujeitos restringir o campo ou a definição de arquitetos militantes. Também não se pretende, neste artigo, apresentar uma cartilha de tarefas a serem cumpridas para quem queira tomar a direção da prática projetista militante. Busca-se antes uma reflexão sobre este campo de atuação e conhecimento que aqui interessa, a partir da exploração de determinados casos identificados por terem pontos comuns relevantes.
Se inicialmente foi dada preferência para arquitetos com atuação estritamente projetista, compreendeu-se que os sujeitos de atuação militante assumem nos seus percursos outros papéis na intervenção em favelas, como o da gestão pública, se responsabilizando, não só pela gestão, mas também pela viabilização de processos e definição das orientações técnicas. Por fim integrou-se no estudo alguns sujeitos com históricos em gestão, para além do ato de projetar como é o caso de Milton Nakamura ou Heloisa Rezende que atuaram em governos municipais da RMSP. Esse alargamento reforça a compreensão de que o sujeito militante em urbanização de favelas, é militante em qualquer campo de atuação, mesmo dentro de limitações habituais da ação pública4.
Compreendendo que a procura por referências em urbanização de favelas ultrapassava as representações gráficas usualmente utilizadas para ilustração, análise e avaliação de projetos de arquitetura e urbanismo, utilizou-se como base fundamental da metodologia de pesquisa a entrevista aos sujeitos selecionados enumerados no Quadro 1. As entrevistas foram semi-orientadas e trataram-se de longas conversas entre entrevistado e entrevistadora5. A partir da análise de cada um dos diálogos, agruparam-se considerações semelhantes relativas às formas de atuação em favela e às reflexões individuais sobre a mesma. Compreende-se que é no exercício de certas práticas que a ação militante se efetiva no território e junto daqueles que vivem em contextos de precariedade e reitera a ação técnica que também é política do arquiteto urbanista.
Para além da entrevista, foi realizado um mapeamento dos currículos profissionais dos sujeitos entrevistados no campo de atuação junto a assentamentos precários e favelas, que demonstrasse a recorrência da sua atividade sobre contextos semelhantes; a análise da sua produção gráfica e escrita das experiências destacadas procurou contextualizar cada uma delas e as possibilidades de ação dos projetistas em cada uma, em certos casos, realizou-se visita de campo. A análise foi complementada com a revisão bibliográfica sobre os casos de estudo e o cruzamento com outras informações que também contribuíram para a análise dos processos e da contextualização da ação dos sujeitos.
PRÁTICAS MILITANTES EM URBANIZAÇÃO DE FAVELAS
Da sistematização das informações recolhidas ao longo da pesquisa foram identificadas algumas práticas comuns que se reproduziam em mais do que um dos processos e por mais do que um dos sujeitos e que se denominou como Práticas Militantes em Urbanização de Favelas.
É nas práticas que se observou as características habitualmente identificadas como atitudes horizontais, de participação, comunicação, relações dialógicas e sensíveis, atuações multidisciplinares e de consideração pelo conhecimento popular, associadas ao que se relaciona como a função social de arquitetos e urbanistas, e que, nesta pesquisa, procurou-se organizar pelas informações empíricas de forma a identificar referências de ação.
Em Ferreira (2017) ilustra-se exaustivamente cada uma destas práticas com os exemplos empíricos retirados dos depoimentos pessoais ou dos documentos analisados. Neste artigo propõem-se uma breve apresentação sobre cada uma das práticas identificadas. Só a partir dessa conceituação/delimitação consegue-se contextualizar as ações dos sujeitos, a fim de se procurar entender as reflexões daí derivadas e apresentadas adiante.
É importante lembrar que os depoimentos retratados são parte de longas conversas, onde se dialoga sobre as experiências específicas pessoais em urbanização de favelas, mas também sobre o olhar do entrevistado para a sua própria ação e para a totalidade do campo que se pretende analisar.
PRÁTICA: A “IMERSÃO”
Conhecer a favela de forma intrínseca é fundamental para todos os sujeitos abordados. Entende-se por “imersão” a prática que permite a estes sujeitos conhecer e serem reconhecidos dentro do assentamento e pela comunidade, através de intensas vivências quotidianas, e algumas vezes com a participação de interlocutores locais nas equipes técnicas. Este conceito foi apresentado por Manoel Ribeiro, quando o mesmo relata a necessidade dessa “imersão” como primeiro e prolongado contato com a favela. No seu caso, para a intervenção realizada na Serrinha (Figura 1), a “imersão” acabou por se estender por cerca de 6 anos, em duas etapas distintas às quais corresponderam também dois contratos distintos, nos quais permaneceu regularmente dentro da comunidade mantendo o seu contato assíduo com moradores e trabalhadores: “primeira coisa, é confiar também na sua capacidade de ler aqueles espaços. Para isso, é preciso muito tempo de convívio” (RIBEIRO, 2015, informação não publicada).

PRÁTICA: ANTROPOLOGIA E ARQUITETURA
Carlos Nelson inaugura nas leituras em favelas uma aproximação com o campo disciplinar da antropologia se intitulando “antropoteto” ainda antes de se aproximar formalmente da disciplina (SANTOS, 1981). A aproximação entre a arquitetura e antropologia resulta em leituras sensíveis que ultrapassam as questões físicas, na importância dos aspectos culturais e sociais e a sua influência nas propostas projetuais.
Exemplo disso é o relato de Wagner Germano (2015) sobre a Vila Popular, Diadema (1994-1995). Na necessidade de alargamento de uma via, o mapeamento do assentamento indicava a remoção das casas mais precárias. Na confirmação e conversa com os seus moradores, a equipe projetista descobriu a existência de uma casa, do lado da rua mais precário, que funcionava como cuidadora para as crianças da comunidade. Removê-la implicaria a perda desta estrutura social. Assim, os projetistas, num acordo com os restantes moradores, propuseram a remoção parcial das construções do lado mais consolidado da rua (GERMANO, 2015).
PRÁTICA: PARTICIPAÇÃO COMO EMANCIPAÇÃO
Para os militantes a participação, mais do que a obrigatoriedade de resposta a regras programáticas ou institucionalizadas, acontece quando se permitem diálogos horizontais com os moradores. Isso implica, algumas vezes, o compartilhamento da técnica através de iniciativas específicas. Nessa abertura para o diálogo tornam-se possíveis decisões coletivas e, por vezes, adaptações individualizadas como resposta a relacionamentos aproximados que se traduzem na aderência dos moradores às propostas colocadas.
Na Tamarutaca, a Peabiru foi contratada para acompanhamento da implementação do projeto de espaço público e assistência técnica aos projetos individuais de cada casa dos moradores que permaneceram na favela. “O fato de você estar próximo e ir construindo uma relação com as pessoas [...] dava uma outra perspectiva para os projetos, para as obras [...]. Cada projeto tinha o nome da pessoa, o cadastro, e todas as adaptações” pedidas pelo morador (SANTO AMORE & MARQUES, 2015, informação não publicada) (Figura 2).

PRÁTICA: COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL
A participação emancipada só é possível ou é facilitada com o recurso a ferramentas acessíveis, inteligíveis e apropriáveis pelos interlocutores. Na Rocinha (RJ, 2007-2008), Toledo (2015) relata a prática utilizada em diagnóstico para o levantamento de percursos realizados dentro da comunidade. Sobre uma grande tela onde aparecia a projeção da fotografia aérea da Rocinha, os moradores foram convidados a identificar a sua moradia e os caminhos que percorriam a partir dela (Figura 3).

PRÁTICA: A “MÃO LEVE” (SENSIBILIDADE DO FAZER)
No contexto desta pesquisa, entende-se como prática da “mão leve” as representações e ações preocupadas, interessadas pelo outro e pelo local, procurando uma atitude quase horizontal e vernacular, no encontro da resolução das necessidades da maioria, e da fuga pelo traço autoral e genial (e porque não, autoritário) comumente associado à prática do arquiteto. A ‘mão leve’ revela-se nas atitudes e no desenho. O termo foi cunhado pela arquiteta Vera Tângari (2016) na sua reflexão sobre este conjunto de arquitetos (no qual está inclusa) e suas práticas de fazer urbanização de favelas.
PRÁTICA: PROJETISTA DE CANTEIRO
A prática de projetar e desenhar no canteiro ou fazer ambos simultaneamente com o andamento da obra eram mais comuns nas experiências dos anos 80, 90 e começo dos anos 2000 através dos regimes de contratação por administração direta. Como lembra Milton Nakamura (2015, informação não publicada) sobre as experiências de Diadema (1989-1996), por vezes, nem existia projeto. Eram os técnicos em obra que tomavam as decisões, em diálogo direto entre moradores e trabalhadores da própria obra (Figuras 4 e 5).


Se recentemente os projetistas militantes são alijados da etapa de obra, estes sujeitos reconhecem a importância e necessidade da sua presença para a adaptação das decisões projetuais aos imprevistos que surgem recorrentemente numa intervenção desta natureza, embasados no conhecimento acumulado e aproximado do projetista e nos seus impactos sobre o território.
PRÁTICA: O MEDIADOR (DE DISCIPLINAS, AGENTES, ATORES...)
Se a mediação entre disciplinas é prática comum do arquiteto em outros projetos, na urbanização de favelas a mediação surge num diálogo permanente com as demais disciplinas. Desenho urbano surge simultaneamente ou decorrente de decisões adaptadas às soluções de infraestrutura ou de geotecnia, por exemplo. Os militantes aparecem também na mediação entre agentes e interesses procurando soluções que se adequem às possibilidade e limitações, e respondam às necessidades dos moradores.
PRÁTICA: GLOBALIDADES E PARTICULARIDADES
Milton Nakamura (2015, informação não publicada) lembra como as primeiras intervenções dos anos 80 e 90 em Diadema pretendiam apenas resoluções pontuais dos problemas e como isso se sofisticou a ponto das reivindicações hoje serem mais complexas.
Atualmente há um reconhecimento da importância de processos desta natureza tomarem a escala de plano de intervenção urbana ampliada compreendendo que a intervenção na favela não se restringe aos seus limites físicos. Ainda assim, se vê os militantes preocupados com as particularidades materiais e imateriais, realizando recorrentemente levantamentos casa-a-casa, que vão embasar as leituras territoriais globais (Figura 6).

REFLEXÕES SOBRE AS PRÁTICAS MILITANTES EM URBANIZAÇÃO DE FAVELAS
Se as práticas identificam algumas possibilidades técnicas que podem iluminar atuações e outras soluções militantes na urbanização de favelas, é nas entrelinhas dos depoimentos que se encontram as reflexões e revisões críticas sobre o que implica ser militante nos contextos colocados. No questionamento sobre as motivações que os levaram à atuação profissional em processos de urbanização de favelas e às práticas que deliberadamente executaram esses processos, revelam-se intenções políticas e de justiça social. Ao mesmo tempo, aparecem as contradições dos processos e das práticas destes sujeitos, ou às quais são submetidos face ao posicionamento técnico-social e político que assumem.
É sobretudo nestas reflexões que se encontram não só o engajamento, a ação política associada à ação técnica, mas também as limitações, dificuldades e frustrações encontradas nestes percursos individuais e coletivos. Apresentam-se em seguida algumas destas análises para que, a partir delas, se consiga refletir sobre o campo de ação militante em urbanização de favelas.
REFLEXÃO: INOVAÇÃO E CONSERVADORISMO
Na auto-avaliação sobre suas práticas, foi possível identificar na fala dos sujeitos entrevistados um reconhecimento de algum protagonismo na inovação e criatividade das metodologias desenvolvidas e praticadas. A necessidade de inventar formas de atuar frente a um campo pouco conhecido e explorado da arquitetura e urbanismo indica um certo pioneirismo reconhecido na intervenção em favelas.
Milton Nakamura (2015, informação não publicada), por exemplo, lembra os avanços realizados pelos técnicos em Diadema nos anos 80 e 90, mas ao mesmo tempo, reconhece como alguns dos parâmetros definidos nessas intervenções foram difundidos e reproduzidos sem grande questionamento. Milton lembra especificamente da definição das dimensões dos lotes para as áreas irregulares, assim como as dimensões de rua. Foram padrões de intervenção mínimos, adaptados às necessidades de sobre-densidade e limitações técnicas e financeiras da Prefeitura de Diadema na época, que acabaram por se perpetuar como referência para a urbanização de favelas em outros municípios).
A pesquisa revelou situações em que os sujeitos estudados realizaram propostas ousadas, diferentes ou em sentido totalmente oposto ao que habitualmente se encontrou na atuação do poder público e dos próprios arquitetos e urbanistas na mesma época. Tratam-se de soluções que questionaram e propuseram transformações aos modos habituais de fazer, introduzindo avanços técnicos ou metodológicos que contribuem para a reflexão e prática de urbanização de favelas e se estenderam ao campo da arquitetura e urbanismo.
Apesar da sua contribuição e possibilidade de avanço, não foi raro que esta ousadia propositiva se deparasse com barreiras no conservadorismo, protagonizadas por outros atores participantes do processo.
Exemplo disso foram os desafios encontrados pela proposta da Quadra Arquitetos para Brás-de-Pina (RJ, 1968-1971) com algum sentido mais socializante do espaço, da distribuição em lotes coletivos, prevendo as potencialidades de densificação e transformação futura da região. Esta proposta foi negada pela população moradora que preferia uma solução mais semelhante ao que se fazia no resto da cidade (SANTOS, 1981).
Ainda sobre a necessidade de exploração de um “novo” campo de trabalho, Heloisa Rezende (2016, informação não publicada) lembra que, ao longo do desenvolvimento do projeto de Silvio Sampaio, ela e demais equipe aprenderam na prática, já que, por serem jovens, não tinham experiência, nem profissional nem das respetivas formações técnicas. Isso revela o conhecimento truncado sobre a temática e a dificuldade de acesso às experiências, práticas e casos de estudo, no sentido de aprendizado, avaliação ou acesso à informação sobre os processos o que, em certa medida, pode dificultar o seu progresso. Revela também a deficiência do tema na formação de arquitetos e urbanistas, pouco preparados em suas graduações para enfrentar os desafios de projetos em favelas (REZENDE, 2015).
REFLEXÃO: REVISÃO CRÍTICA
Apesar de reconhecerem alguns dos avanços que protagonizaram, os sujeitos aqui estudados reconhecem também os seus erros de percurso e atuação. Verifica-se uma predisposição para um constante aprendizado. A auto-avaliação crítica admitindo os erros ou práticas menos adequadas aplicadas a determinada situação ou em determinado momento, reforça a designação destes como militantes.
Milton Nakamura (2015), por exemplo, compreende a limitação da escala de atuação das intervenções de Diadema (1989-1991), e procurou na experiência do Chafik-Macuco (Mauá, 2013) uma ampliação que chega a alcançar disciplinas menos comuns em outros processos de urbanização de favelas como a consultoria feita por biólogos e o mapeamento dos cursos de água para a definição das diretrizes de atuação.
Também Jonathas Silva (2015) na comparação entre a sua própria postura como técnico em Cantagalo e Pavão-Pavãozinho (RJ, 1996-2003) e 5 anos mais tarde na Rocinha (RJ, 2007-2008), reflete sobre a transformação do seu entendimento sobre as intervenções em favelas, e sobre o projeto participativo com as comunidades. No Favela-Bairro, Jonathas encara a intervenção como a proposta limitada ao desenho dos espaços vazios feito apenas pelos projetistas. Já na Rocinha, a intervenção toma escala de plano diretor, com a especificação de desenho sobre uma área que deverá ser tomada como referencial para as outras áreas de intervenção e dialogada com a população através da presença constante da equipe e reuniões recorrentes.
REFLEXÃO: ARRISCAR SER MILITANTE
A Peabiru TCA e a Usina CTAH assumem publicamente o seu papel político como assessorias técnicas na luta pelo acesso e defesa por moradia digna e cidade para todos. A partir da definição deste papel as assessorias vão desenvolvendo ações e práticas que sublinham o seu sentido politizado, mas também fragilizam ou arriscam as organizações e afetam os seus técnicos diretamente. Como o caso de desenvolverem ou aplicarem práticas em processos para além dos que foram contratados, e assim colocarem em risco, entre outras condicionantes, a situação financeira da organização e seus colaboradores, ainda que acreditem na sua necessidade e efetividade de implementação.
Foi o que aconteceu com as consultorias e oficinas realizadas com os moradores para o Batistini (São Bernardo do Campo, 2014-2016), feitos pela Peabiru. Muitas vezes, este empenho e dedicação não adquirem um sentido quantitativo de medição, o que pode justificar a sua ausência em processos de contratação. Mesmo assim, estes sujeitos aplicam os contributos justificáveis e determinantes para o desenvolvimento do processo.
Também outros projetistas militantes aqui abordados, e que não integram assessorias técnicas politicamente engajadas no sentido público, tomaram decisões de risco em urbanização de favelas. Muitas vezes estes riscos são induzidos pela imaturidade dos processos ou desconhecimento dos órgãos promotores e demais agentes envolvidos, riscos esses que se demonstram na inadequação de valores, definição de prazos ou produtos. Para o desenvolvimento dos projetos de Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, Jonathas Silva, Vera Tângari e equipe tiveram que ir acumulando outros projetos e contratos que possibilitassem a viabilização financeira da equipe, pois os projetos de urbanização de favelas foram mais dispendiosos e demoram mais tempo do que inicialmente estava previsto.
Contudo, Silva (2015) tinha entrado da licitação para o Favela-Bairro porque acreditava que aquele deveria ser o seu papel como técnico: “Eu acreditava que o arquiteto tinha que se colocar naquela situação mesmo [...]. Eu achava que a coisa inovadora estava no próprio pensar a requalificação dos espaços não usados da favela. Que era um pouco a proposta do Favela-Bairro” (SILVA, 2015, informação verbal).
REFLEXÃO: FRUSTRAÇÃO E MILITÂNCIA
Das reflexões acima colocadas e ao longo de toda a pesquisa, um sentimento aparece permeando os relatos dos sujeitos militantes - a frustração. Nas entrevistas, que se aproximaram mais de conversas informais, há uma grande parcela dedicada ao desabafo sobre os processos, às reflexões sobre as partes menos positivas destas experiências. Esta ‘necessidade de desabafar’, levanta o questionamento sobre o processo de urbanização de favelas em si, mas também sobre o motivo da insistência destes sujeitos perante estes mesmos processos.
Reconhece-se a inadequação da grande parte dos sistemas de contratação, seja por questões financeiras, de prazos ou da compreensão e conhecimento sobre um processo de urbanização de favelas. A esta inadequação, estão associadas limitações legais, burocráticas ou às vezes impostas pelos organismos promotores, como a dificuldade de acesso a informações ou até à própria comunidade. Também a oposição face ao sentido inovador das propostas de alguns destes sujeitos, como anteriormente foi colocado, sobrecarregam alguma dificuldade. O tempo dos processos, das etapas entre levantamento, diagnóstico, projeto e obra, onde, muitas vezes surgem diferentes diretrizes a responder ou não há a garantia que as etapas se efetuem, sobretudo a obra, acrescenta uma dose de grande incerteza sobre a concretização do trabalho. A ausência recorrente dos projetistas em fase de obra, e a possibilidade, quase certa, de haverem adequações e transformações de projeto na fase de execução sem a sua participação, contribui para um descrédito na materialização da sua dedicação.
As dificuldades acima colocadas e provavelmente outras não abordadas, dificultam testar ou avaliar adequadamente intervenções em favelas. Por fim, e lembrando a reflexão de Heloisa Rezende (2016), sobre o fato de que, na verdade, se tem feito poucas intervenções em favelas no país por comparação com as necessidades existentes. Mesmo defendendo as práticas e os sujeitos militantes, Heloisa entende que não foi feito o suficiente para defender que esta é a melhor forma de atuar face à grande parcela do território urbano em situação de precariedade.
Mesmo na frustração, na incerteza, na falta de garantias, se encontra estes sujeitos defendendo e reiterando as suas práticas e formas de olhar para a favela. Na dificuldade de atuação pública, dadas as dificuldades de contexto (contratual ou outros) e, mais recentemente, de crise econômica e política, se verifica a tendência destes sujeitos se aproximarem de outras formas de atuação, principalmente através da formação de outros técnicos.
Nesta exploração, mais do que experiências transformadoras, encontrou-se sujeitos-referência. Indivíduos com formação oriunda das mesmas escolas de arquitetura e urbanismo que hoje formam arquitetos e urbanistas no Brasil, mas que se tornaram sujeitos de ação política no campo da urbanização de favelas quando admitiram nas suas práticas existir uma intenção política, mesmo que inconsciente, de vontade de alteração dos contextos físicos e sociais injustos que lhes são colocados, ou perante os quais eles se colocam. Mais do que pela educação formal estes sujeitos admitem serem formados pelas experiências práticas, pelos desafios reais, pelas reflexões pessoais para uma atuação em favelas e, de certa forma, tensionam esse paradigma propondo introduzir essas mesmas questões quando são eles que tomam o papel de formadores.
O militante aqui explorado é o militante possível. Não é o militante da revolução na produção do espaço nas favelas, mas é o militante da revolução da prática numa arquitetura que, no Brasil e no mundo, ainda se mantém como uma profissão muito elitizada.
Nesse sentido, as considerações que aqui foram tecidas sobre o arquiteto militante partem de referências que não são diretamente relacionadas com este termo, como utilizado mais correntemente, mas que inspiraram a ensaiar algumas considerações que parecem relevantes para esclarecer o elemento central desta pesquisa: a militância como um campo de ação política e sensível, em busca de uma ética, uma estética que se consolida através de experimentações técnicas no campo da urbanização de favelas. Nos militantes em Urbanização de Favelas parece haver a opção deliberada por uma atuação respeitosa com pré-existências sócio-espaciais, um olhar cuidadoso com histórias de vida e espaços autoconstruídos na carência de recursos, uma capacidade de projetar respeitando essas histórias e reivindicando representações e técnicas projetuais que dialoguem com a materialidade e a subjetividade nas favelas.
Estes sujeitos reconhecem as desigualdades sócio-espaciais na população moradora, ainda que não necessariamente as tratem nos marcos da crítica capitalista e nas formas de luta política já abordadas. São sujeitos que se sensibilizam pela situação da favela e atuam no sentido de transformá-la, mesmo compreendendo as limitações e contingências para isso. Mas esta sensibilização e, principalmente, atuação, está longe de ser uniforme. Encontrou-se, nestes sujeitos indivíduos transformados nas suas experiências acumuladas, e reflexões colocadas sobre as situações e pelos que nela vivem. Episódios e realidades que os emocionam, inspiram ou incomodam ao ponto de quererem agir sobre, mas ao mesmo tempo numa atitude de aproximação, onde acabam procurando agir com quem e o que lhes é apresentado. Reconhece-se neles também uma forma de atuação dialógica, sensível, assumindo a sua função e contribuição técnica mas também política, e que procura não se confundir com uma postura assistencialista.
AGRADECIMENTOS
A todos os que contribuíram substancialmente para esta pesquisa, em especial aos sujeitos de pesquisa, pela disponibilidade, dedicação e cedências.
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NOTAS
Autor notes
* Correspondência para/Correspondence to: K.O. LEITÃO | Email: <kaoleitao@gmail.com>.