ARTIGO DE PESQUISA
UM OLHO PARA VER E SER VISTO: UMA ANÁLISE DO MUSEU OSCAR NIEMEYER, EM CURITIBA, BRASIL
AN EYE TO SEE AND BE SEEN: AN ANALYSIS OF THE OSCAR NIEMEYER MUSEUM, IN CURITIBA, BRAZIL
UM OLHO PARA VER E SER VISTO: UMA ANÁLISE DO MUSEU OSCAR NIEMEYER, EM CURITIBA, BRASIL
Oculum Ensaios, vol. 16, núm. 1, pp. 101-119, 2019
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Recepção: 05 Fevereiro 2018
Revised document received: 12 Abril 2018
Aprovação: 18 Maio 2018
Financiamento
Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Número do contrato: 2016/21108-2
RESUMO: Por meio de uma análise eminentemente formal do Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, o artigo trata de aspectos relativos à última etapa do trabalho do célebre arquiteto moderno carioca, enfocando permanências e transformações ao longo de sua extensa trajetória. Pondera sobre a relevância da produção de equipamentos culturais no contexto de sua obra, e analisa a genealogia do partido arquitetônico do novo setor expositivo do museu: o volume principal suspenso em apoio único. Examina também a relação de complementaridade entre os dois volumes que compõem o museu, ambos projetados por Niemeyer em momentos diferentes de sua carreira, bem como as relações da forma com aspectos funcionais e técnicos.
PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura contemporânea, Equipamentos culturais, Museu Oscar Niemeyer, Museus, Oscar Niemeyer.
ABSTRACT: Through an eminently formal analysis of the Oscar Niemeyer Museum in Curitiba, Brazil, this article deals with aspects related to the last stage of the work of the famous modern Brazilian architect, focusing on permanencies and transformations throughout his long career. It ponders on the relevance of the production of cultural equipment in the context of his work and analyzes the genealogy of the architecture of the museum’s new exhibition sector: the main volume suspended by a single support. It also examines the complementarity between the two volumes that make up the museum, both designed by Niemeyer at different times of his career, as well as the relations of form with functional and technical aspects.
KEYWORDS: Contemporary architecture, Cultural equipment, Oscar Niemeyer Museum, Museums, Oscar Niemeyer.
INTRODUÇÃO
Oscar Niemeyer, falecido em 2012, aos quase 105 anos, foi protagonista de uma das mais extensas, produtivas e célebres trajetórias que se tem notícia na história da arquitetura mundial. Já consagrado pela notoriedade de ser autor de grande parte dos edifícios mais simbólicos do Brasil, nas décadas finais de sua vida, o arquiteto idealizou um grande número de equipamentos culturais.
Com efeito, projetos para museus, centros culturais, teatros e afins compõem parte importante de seu acervo de projetos. Ainda que não contenha a relação completa de obras projetadas pelo arquiteto, a página da Fundação Oscar Niemeyer na Internet lista 450 projetos de sua autoria, desenvolvidos entre 1935 e 2010. Destes, 87 são obras que podem ser relacionadas à temática cultural, ou seja, aproximadamente um quinto do total1 . Nas últimas décadas de sua produção, especialmente a partir dos anos 1980, essa proporção aumentou significativamente. Na primeira década do novo século, por exemplo, a fundação conta 41 projetos elaborados, dos quais 22 foram para edifícios culturais.
A forte presença desse tipo de programa é, portanto, uma das características distintivas da última das cinco fases com as quais o próprio Niemeyer divide sua obra, iniciada quando o arquiteto retorna ao Brasil, após os anos de exílio durante a ditadura militar2 .
Menos analisado pela crítica, os 29 anos de produção compreendidos entre 1983 e 2012 concentram boa parte dos equipamentos culturais de grande vulto executados no país nesse período, como o conjunto do Memorial da América Latina (1986-1989), em São Paulo, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói (1991-1996), o Museu Nacional de Brasília (1999-2006), o Auditório do Ibirapuera (2002-2005) e o Museu Oscar Niemeyer (2000-2002), em Curitiba.
O caso de Niemeyer confirma a tendência segundo a qual quanto maior o reconhecimento alcançado, maior o número de encomendas para obras icônicas um arquiteto passa a receber. Em seu caso específico, além do renome, a surpreendente longevidade precipitou uma “corrida” entre cidades, ávidas por garantir seu próprio “Niemeyer”, fundindo, metonimicamente, criador e criatura.
Algo que pode ser notado também pelo incremento de seus projetos culturais feitos para o exterior. Somente na primeira década do novo século, 7 projetos foram encomendados e 3 construídos: o Auditório em Ravello, na Itália (2000-2010), o pavilhão para a Serpentine Gallery (2003), em Londres, e o Centro Cultural Príncipe de Astúrias, em Avilés, na Espanha (2006-2011).
O Museu Oscar Niemeyer (MON), especificamente, oferece a oportunidade de cotejar características perenes e questões especificamente relacionadas à produção recente de um arquiteto, cuja obra atingiu seu auge em meados do século passado. Permite ainda investigar a temática cultural em sua produção, na qual museus maiores e mais complexos somente saíram do papel nas últimas décadas.
O MON é um exemplar representativo de um partido arquitetônico recorrente nos projetos de museus de Niemeyer, qual seja, a suspensão do volume principal em apenas um ponto de apoio. Também ilustra uma estratégia compositiva comum em sua obra, a de agregar um elemento escultórico como complemento a outro volume formalmente mais contido.
Por outro lado, guarda uma peculiaridade relevante, ao ser a única ocasião em que o arquiteto efetivamente atuou na requalificação de uma obra de sua autoria. O MON foi projetado incorporando um novo volume a um edifício escolar projetado em 1967 para o Instituto de Educação do Paraná (IEP)3 .
Considerando a função simbólica inerente aos edifícios culturais e a ênfase na expressividade plástica da obra de Niemeyer, o artigo privilegia a análise formal do museu a partir de seu novo complemento, cuja forma evoca a de um olho. A partir desse enfoque, procura a genealogia da nova forma, analisa sua interação com o volume preexistente e suas implicações funcionais, questiona o uso da técnica como meio de consecução do desenho e o potencial imagético que confere ao novo museu. Para tanto, o texto se vale de teorias e autores ligados ao estudo da forma e da semiologia, como Umberto Eco, Rudolf Arnheim, Décio Pignatari e Steen Eiler Rasmussen, entre outros.
De forma geral, a ênfase na dimensão formal da obra justifica-se ao se levar em conta que a obra de Niemeyer é comumente interpretada pela chave do “formalismo”, muitas vezes em tom acusatório ou depreciativo. Pretende-se, portanto, analisar a obra a partir de um argumento fundamentalmente arquitetônico, elevado pelo próprio arquiteto, como a razão central de sua arquitetura.
UM OLHO PARA VER E SER VISTO: DO IEP AO MON
O museu que, atualmente, leva o nome de seu criador, nasceu a partir do empenho do então governador do Paraná, Jaime Lerner, de implantar em Curitiba um museu que inserisse a cidade no cenário nacional e internacional da cultura. Lerner o vislumbrava como mais um ponto da política de “acupuntura urbana”, implantada desde sua primeira gestão como prefeito a partir de 1971, quando passou a inserir na cidade poderosos símbolos urbanos, como o Jardim Botânico (1991), de Abrão Assad, e a Ópera de Arame (1992), de Domingos Bongestabs.
A idealização do museu vinha embalada pelo “fenômeno Bilbao”, deflagrado pelo espetacular museu de Frank Ghery, inaugurado em 1997, que despertava o interesse de cidades decadentes ou de projeção secundária ao redor do mundo. Antes mesmo da experiência espanhola, Niterói havia entrado no mapa turístico do Rio de Janeiro, com a inauguração do Museu de Arte Contemporânea em 1996, obra de Niemeyer.
Curitiba, inclusive, valeu-se do projeto para entrar na briga por receber a sede brasileira de um Guggenheim, anunciada pela instituição americana em 2001 e vencida pelo Rio de Janeiro, porém nunca executada.
No ano anterior, Lerner já havia convidado Niemeyer a converter o antigo edifício que havia projetado para abrigar o Instituto de Educação do Paraná (IEP) em museu. Inaugurado em 1978, o prédio nunca chegou a abrigar sua função original de instituição escolar devido a questões políticas, passando a funcionar como sede de diversos órgãos da burocracia estatal, sendo rebatizado com o nome do General Castelo Branco (GONÇALVES, 2010).
Implantado no Centro Cívico, previsto no plano que Alfred Agache elaborou em 1943 para a capital paranaense, o museu fica no limite entre as amplas áreas verdes projetadas por Roberto Burle Marx, em 1977 - que envolvem as sedes dos governos estadual e municipal -, o Parque Papa João Paulo II, e o tecido urbano genérico de bairros tradicionais da cidade (Figura 1).
A localização estratégica e a grande dimensão do prédio, com 28 mil m² subutilizados e mal adaptados às funções burocráticas que exercia, ajudaram a definir sua escolha como sede do novo museu. Além disso, sua ascendência justificava o convite a Niemeyer, a quem coube a função de criar um ícone que reforçasse a imagem de Curitiba como cidade modelo eficiente e inovadora.
Subentende-se, portanto, que a exigência feita por Niemeyer de se construir um novo edifício, que cumprisse o papel de simbolizar a nova instituição (FIGUEROLA, 2003), foi bem recebida pelo então governador, em busca de um emblema para marcar sua passagem pelo governo estadual.
A atenção de Niemeyer concentrou-se na expansão do setor expositivo, alvo preferencial desta análise, cujo perfil evoca a forma de um olho, enquanto a adequação do edifício Castelo Branco foi capitaneada pelo escritório paulistano Brasil Arquitetura, de Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, a convite do próprio arquiteto carioca4 .
A fim de ser terminado antes do final do mandato de Lerner, o museu foi construído em apenas 185 dias, entre 2001 e 2002, quando foi inaugurado como Novo Museu. A generalidade do nome denuncia a indeterminação expositiva, que não contou com projeto museológico. Seu acervo inicial foi formado por obras pertencentes ao Museu de Arte do Paraná (MAP) e ao extinto Banestado, dificultando a formação de um acervo coerente. Em 2003, teve seu nome alterado para homenagear seu arquiteto, passando a ser chamado Museu Oscar Niemeyer (MON).
GENEALOGIA DA FORMA
A “Torre do Olho”, como rapidamente ficou conhecida entre os curitibanos, possui um protagonismo evidente em relação ao antigo edifício, um austero bloco horizontal opaco e elevado do solo, em forma de barra retangular de concreto protendido. Implantada defronte e paralelamente ao edifício Castelo Branco, tem caráter marcadamente escultórico e autônomo, dado que não há contato físico visível entre ambos.
O novo objeto integra uma família formal de volumes suspensos sobre um apoio central único, cujo ponto de partida foi o projeto de Niemeyer para o Museu de Caracas (1954), no qual uma pirâmide invertida pousa, leve e instavelmente, sobre um estreito promontório, dominando a vista da cidade a seus pés.
O museu na Venezuela teria sido também um dos marcos iniciais de um processo de inflexão em sua obra, cujas caprichosas composições de elementos soltos unificados por formas livres e sinuosas vinham sendo alvo de ataques críticos. Em seu célebre texto de autocrítica publicado em 1958, Niemeyer explicava as premissas que passariam a reger sua arquitetura dali em diante:
Neste sentido, passaram a me interessar as soluções compactas, simples e geométricas; os problemas de hierarquia e de caráter arquitetônico; as conveniências de unidade e harmonia entre os edifícios e, ainda, que estes não mais se exprimam por seus elementos secundários, mas pela própria estrutura, devidamente integrada na concepção plástica original (NIEMEYER, 1958, p.5).
A primeira viagem de Niemeyer à Europa, em 1954, teria sido outro fator determinante nesse processo. A partir do contato direto com monumentos ancestrais, ele teria compreendido o significado das construções do passado enquanto símbolo do estágio de uma civilização e, principalmente, o valor permanente de sua beleza (BRUAND, 2002).
Desde o museu-monumento de Caracas, o partido de um edifício levantado sobre um apoio central único reapareceu em muitos outros projetos, como no Centro Musical da Barra (1968) e no Museu Expo Barra 72 (1969), ambos no Rio de Janeiro, e no Museu da Terra, do Mar e do Ar (1974), em Brasília, nos quais volumes escalonados configuram balanços maiores conforme a altura aumenta. A ideia prototípica que define o MON foi concretizada pela primeira vez com a construção do Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói, cuja forma de cálice também havia sido a base de um curioso Monumento Hino à Natureza (1991), projetado para o Rio de Janeiro, do Museu de Arte Moderna (MAM) de Brasília (1997). Como também do volume de base octogonal envidraçado do Museu do Mar (2003), em Fortaleza, e na Estação Cabo Branco (2008), centro de ciências, arte e cultura construído em João Pessoa. Em todos os casos, além da forma ascendente, o apoio destacado do corpo suspenso abriga as circulações verticais (Figura 2).
Partido que configura também projetos como o Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, na Praça dos Três Poderes de Brasília e para uma torre-mirante em Natal (2006), além de aparecer como forma complementar em diversos outros conjuntos idealizados por Niemeyer. Já no museu da Fundação de Brasília (1958), a suspensão de uma grande viga em um só ponto de apoio poderia ser considerada uma variação desse princípio.
Não é mero acaso que este mesmo partido tenha sido retomado tantas vezes em seus projetos para museus ou edifícios de grande valor simbólico. Segundo o próprio arquiteto: “Se eu vou fazer um projeto mais audacioso, complicado, onde posso me expandir melhor, então começo reduzindo os apoios. Quando reduzo os apoios das colunas a arquitetura se faz mais audaciosa” (NIEMEYER, 2007, p.12).
No MON, duas superfícies de concreto branco encurvadas e contrapostas repousam sobre uma torre revestida de azulejos amarelos, induzindo a uma leitura bipartida definida pela percepção de um “fuste e um capitel”. Entre a continuidade do traço que configura o edifício colunar que caracteriza o MAC de Niterói, e o corte brusco definido pelo pedestal sobre o qual se equilibra uma escultura no MON, perde-se parte da elegância orgânica do traço de Niemeyer.
É interessante notar que no MON a contraposição entre as duas cascas parabólicas também difere da integridade formal gerada pela revolução, ou rebatimento do perfil do corte, ao redor do eixo central de apoio que caracteriza a maioria de seus museus levantados sobre apoio único.
Em todos esses casos, a falta de uma base no encontro do eixo vertical do edifício com o plano do chão faz parecer que o mesmo “brota da terra”, tão organicamente quanto uma árvore cujo tronco tem continuidade abaixo da linha do solo (ARNHEIM, 2001). No caso do MON, assim como no MAC de Niterói e na proposta para o Museu do Mar, a colocação de um grande espelho d’água circundando a base do eixo central sugere que o prédio emerge da água, sublimando ainda mais sua materialidade.
A expansão vertical rumo ao infinito só é interrompida pela presença do capitel-olho, cuja hipertrofia comprime o fuste e limita o efeito dinâmico da vertical. A sensação de peso e achatamento gerada pela proporção entre as duas partes é compensada pelo aspecto leve conferido pela expansão dos balanços laterais.
A analogia à coluna transcende a relação formal e atinge a dimensão simbólica. Desde a antiguidade usadas como marcos comemorativos, marcam e alteram o grau de hierarquia de um lugar no contexto da cidade. Assim como uma dessas colunas, a torre do Olho afirma-se como expressão monumental autônoma, cujo sentido simbólico independe de suportar qualquer função ou de fazer parte de um conjunto maior.
RELAÇÕES FORMAIS NO TEMPO E NO ESPAÇO
O novo adendo tem, justamente, o papel de ativar a significação e potencializar o papel representativo do museu. O perfil escultural do audacioso desenho agrega singularidade a uma preexistência discreta e marcada pela sugestão de racionalidade e possibilidade de pré-fabricação. O antigo edifício é configurado por quatro vigas-paredes longitudinais apoiadas sobre pilares em tronco de pirâmide, com vãos de 30 e 60 metros, que definem um sistema construtivo idealmente reprodutível e expansível.
Niemeyer lançou desse partido em diversas outras ocasiões, na maior parte dos casos em edifícios de destinação funcional, eminentemente técnica ou especializada. Exceto da primeira vez que utilizou essa técnica, no Museu da Civilização (1962), que formaria parte, porém, de um conjunto maior projetado para a Universidade de Brasília. Construído pela primeira vez em Curitiba, a barra suspensa por pilotis reapareceu no Edifício de Classes da Universidade de Constantine (1968), na Argélia, no Centro Comunitário de Santo André (1972), na Estação Rodoferroviária de Brasília (1973), no Centro de Treinamento do Banco do Brasil (1986), e nos Plenários do Supremo Tribunal de Justiça (1989), também na capital federal.
A forma do novo edifício definiu-se, portanto, com base na relação que forçosamente deveria estabelecer com o bloco existente. Em palavras do próprio Niemeyer:
Para o projeto a elaborar, eu tinha que levar em conta ainda o fato de essa escola já fazer parte da cidade de Curitiba como uma de suas obras mais representativas. Não deveria, portanto, ficar escondida, o que explica ter projetado o Novo Museu solto no ar, dois metros acima de sua cobertura. E lá está o Novo Museu a surpreender a todos que passam. Uma arquitetura que foge a tudo que viram antes. Toda feita de audácia, de técnica e de fantasia (NIEMEYER, 2002, online).
A solução do volume autônomo não foi, no entanto, a primeira cotejada pelo arquiteto. Inicialmente, Niemeyer previra duas cascas abobadadas construídas sobre o volume do edifício original, em uma composição que transformaria um edifício antigo em outro completamente novo. O entrelaçamento entre os edifícios, que apagava a leitura temporal entre eles, haveria sido abandonada pela dificuldade técnica de sua implantação (Figura 3).
Além dos impedimentos técnicos que teriam inviabilizado a primeira ideia, a criação de um elemento independente permitia maior liberdade formal e a possibilidade de delegar integralmente à outra equipe de arquitetos a readequação do prédio preexistente. Ademais, à primeira proposta faltava a força visual desejada para o novo museu. De acordo com o ex-secretário de Assuntos Estratégicos do governo Jaime Lerner, Alex Beltrão: “Ele adicionava uma estrutura de concreto e um espelho d’água, que não valorizava o ambiente onde o museu estava inserido e não teriam o impacto proposto [...]. Quando vimos o Olho foi amor à primeira vista” (BELTRÃO, 2012, online).
A imposição do Olho como “Arquitetura-escultura, forma solta e dominadora sob os espaços infinitos” (NIEMEYER, 2013, p.17), preenche as expectativas dos idealizadores do museu e transforma o grande volume horizontal branco em plano de fundo e medida reguladora da composição do anexo escultural. A torre está postada a aproximadamente 1/3 do início dos 200 metros de comprimento da barra retangular, a contar da esquina mais próxima. O comprimento longitudinal de 70 metros do Olho também possui proporção aproximada em relação à extensão total da barra (Figura 4).
Para resolver a relação entre os volumes, Niemeyer se vale de uma estratégia comum em sua obra: a criação de formas esculturais habitáveis como complemento do corpo funcional principal, como na Bolsa do Trabalho de Bobigny (1972) e na Casa da Cultura de Le Havre (1972-1982), ambas na França, no estudo de um pavilhão para o edifício da Bienal de São Paulo (1993), na escola estadual Milton Campos (1954) em Belo Horizonte, entre outros. No projeto original para o IEP, a cobertura curva de uma quadra de esportes agregaria expressividade ao silencioso paralelepípedo suspenso.
Cria-se, desta forma, uma relação de complementaridade entre os edifícios do conjunto, a partir de tensões estabelecidas por um jogo diacrônico entre contenção e exuberância, reta e curva, horizontal e vertical, estabilidade e instabilidade, fechamento e abertura.
Complementaridade formal que encontra rebatimento na animação pública que a força imagética do ícone atrai para o térreo do edifício horizontal, utilizado como praça e espaço de acolhimento do museu - algo que, infelizmente, os estacionamentos que rodeiam o prédio não permitem que se estenda pelos arredores. O fato é que a eficácia visual da silhueta do MON, aliada ao novo programa cultural, tem papel preponderante na criação um dos lugares mais animados e significativos da capital paranaense.
FORMA E FUNÇÃO
Um número restrito de elementos e estratégias compositivas, constantemente aplicadas e recombinadas, define o sistema compositivo de Niemeyer. Se as espacialidades geradas pelas “famílias formais” do arquiteto são, na maioria das vezes, surpreendentes, muitas vezes são incapazes de bem atender aos requisitos do programa. Ao analisar a relação entre forma e função nos trabalhos de Niemeyer, deve-se relembrar que para o arquiteto, entre as funções primordiais de uma obra de arquitetura estava a busca das formas inesperadas que compunham o espetáculo arquitetural desejado, o que justificaria, a seu ver, certos constrangimentos funcionais.
Uma simples visita ao passado mostra-nos que as obras que ficaram e que a todos surpreendem e emocionam são obras da sensibilidade e da poesia. E, na verdade, diante desses monumentos de graça e beleza, passam a plano secundário, para as épocas futuras, características funcionais e utilitárias (NIEMEYER, 1956, p.41).
No MON, a aplicação desse entendimento é inequívoca e responsável por suas maiores fragilidades funcionais como museu, a começar pelo confuso esquema de acesso. A bifurcação da rampa que parte do passeio público defronte ao museu induz o visitante, guiado pela força magnética do olho, a tomar o trecho que em subida leva à saída do museu, ao invés de optar pela parte em leve declive que leva à entrada no térreo do edifício horizontal.
Assim como no MAC, de Niterói, as rampas abertas que serpenteiam soltas ao redor do volume principal confundem a lógica de entrada e saída. Ademais, a falta da inebriante paisagem da Baía de Guanabara e do ilusório encontro das águas do espelho d’água com o mar limitam, no caso curitibano, o encantamento do “passeio arquitetural” pelo exterior da obra.
No mesmo sentido, a falta de integração entre soluções formais e funcionais, verificada na conexão subterrânea entre os edifícios, gera um inexplicável anticlímax arquitetônico. Um sugestivo corredor sinuoso, cujas formas arredondadas e iluminação feérica criam uma ambientação sugestivamente futurista, faz a ligação entre os espaços expositivos do museu, divididos entre o subsolo e o pavimento suspenso do bloco horizontal, e o novo salão do Olho. Contrariamente ao efeito arrebatador experimentado na Catedral de Brasília (1960), ao final desse caminho de expectativas, o visitante encontra uma parede e uma pequena abertura de entrada na lateral esquerda.
O estranho arremate seria fruto de uma modificação do projeto original, que não previa ligação subterrânea para visitantes. Sugerido pelos arquitetos do Brasil Arquitetura, um estreito túnel de serviços foi alargado, porém ao encontrar as fundações já executadas da torre, resultou no desencontro descrito acima (GONÇALVES, 2010).
A atenção à parte visível do novo objeto revela outras improvisações, como as saletas distribuídas pelo corpo da torre, semelhantes a ordinários halls de edifícios comerciais, precariamente adaptadas para exposição de fotografia e videoarte (Figura 5).
A forma volta a demonstrar sua força no interior do grande salão do Olho, suspenso aproximadamente a 18 metros do solo, onde a amplidão do espaço de 1500m² impressiona. A curvatura superior é internamente revestida por centenas de plaquetas de alumínio que difundem a luz artificial, e as divisórias não atingem o teto, a fim de não alterar a percepção da totalidade do espaço expositivo.
Na configuração original da sala, a distensão formal da cobertura sem apoios, a escala do espaço e a visão da cidade, que se oferecia por meio do belo rendilhado da proteção metálica instalada nas fachadas envidraçadas, criavam um ambiente de encantamento, mas competiam com as obras expostas pela atenção do visitante. Na avaliação de Paulo Herkenhoff, um dos mais eminentes curadores, historiadores e críticos de arte brasileiros:
Inútil esperar que fosse um prédio para a arte. Tudo ali se constrange, se atemoriza ou pede autorização para uma provisória presença, pede desculpas pela perturbação da grandeza arquitetônica. O Olho é o poder da arquitetura. No entanto, finalmente há uma vingança da arte. Sem a arte, o Olho se torna um mirante e um edifício antropomórfico vulgar. A arquitetura de Niemeyer pode ser um puro ato poético de volúpia espacial (HERKENHOFF, 2008, p.67).
A volúpia espacial a que se refere Herkenhoff perdeu grande parte de seu poder de arrebatamento após o escurecimento dos vidros em 2006, quando a pretexto de proteger as obras de uma exposição5 . Um filtro têxtil foi instalado entre os vidros duplos da fachada e não mais retirado, aniquilando a leveza e os contrastes entre as superfícies (Figura 6).
A independência física entre os dois edifícios encontra paralelo na autonomia projetual que o escritório paulistano Brasil Arquitetura teve ao idealizar a intervenção no bloco preexistente. Livre de interações funcionais diretas com a torre, objeto sobre o qual Niemeyer concentrou sua atenção, a requalificação limita-se praticamente a operar dentro dos limites internos do edifício, sem alterar em quase nada seu aspecto e sua estrutura original.
Se compositivamente funciona como fundo neutro para o novo objeto, o antigo prédio abriga as maiores salas expositivas, aproveitando a configuração linear dos três espaços gerados entre as vigas-paredes longitudinais. Além da praça preservada sob os pilotis, o térreo abriga a entrada do museu, bilheteria, café, loja e a parte alta do volume do auditório. No subsolo do museu estão as áreas técnico-administrativas restritas e educativas, o auditório, e dois dos espaços hierárquicos mais importantes do museu: o grande espaço circular dedicado a homenagear Oscar Niemeyer - única parte em que o arquiteto carioca interferiu no projeto de adequação -, e o pátio de esculturas, um recinto retangular ao ar livre de 900m², resultante da abertura do porão do antigo edifício, que presenteia a praça e o parque circundante com a visão permanente das obras expostas (Figuras 7 e 8).
Essa breve descrição serve como retrato de uma situação curiosamente contraditória sobre a relação forma-função no MON. Mesmo com restrições para a adequação, inelutáveis em uma reciclagem, o edifício de corte racionalista, que fora idealizado para outra finalidade, possui espaços mais adequados a exposições que o novo, em princípio projetado para essa finalidade.
Isso demonstra que, na obra de Niemeyer, a arquitetura de edifícios simbólicos, como museus, estabelece uma relação mais intensa com a arte em si mesma do que com aquela que abriga em seu interior. Longe de ser exclusiva do arquiteto carioca - como atesta uma expressiva parte dos novos museus contemporâneos - essa peculiar relação entre arte e arquitetura caracteriza-se por seu alto grau de “imageabilidade”, conforme definição de Hall Foster, para quem:
Alguns desses museus são tão performáticos ou escultóricos que os próprios artistas devem se sentir os últimos à chegar à festa, colaboradores à posteriori. Outros edifícios se esforçam de tal modo por captar nosso interesse visual que poderiam competir num registro que os artistas gostam de reivindicar como seu - o visual (FOSTER, 2017, p.11).
A TÉCNICA DA FORMA
A exibição de formas belas e emancipadas, claramente fruto do que o próprio arquiteto chama de “intuição”, submete às “fantasias” formais de Niemeyer tanto a espacialidade quanto a técnica. No entanto, enquanto as questões funcionais são tratadas como coadjuvantes e constantemente sacrificadas em seus projetos, em seu discurso de síntese entre forma e estrutura, o desenho explora conscientemente as possibilidades da técnica, cuja lógica corporifica e desafia.
As linhas finas que configuram a forma do Olho decorrem da extrusão de seu contorno e, opostamente ao sólido de revolução que define o MAC niteroiense, transforma a ideia de volume na percepção de um perfil sem interior, sensação potencializada pela pele externa de vidro que unifica sua estrutura bipartida.
Sophia Telles define como uma de suas características mais distintivas “[...] a intuição do perfil de um elemento (ou de todo o corpo do edifício) a partir de uma forma que sugere campos de tangência não habituais para a geometria cartesiana, mas perfeitamente solucionáveis pelo cálculo moderno” (TELLES, 2010, p.256).
Na realidade, conforme bem observa Telles, são justamente essas tangências que definem as formas leves e retiram da matéria toda carga expressiva, sublimando a leitura do esforço necessário à sua realização. “Esse esquecimento da técnica no olhar contemplativo provoca, por sua vez, a dissolução da matéria. O projeto é apenas um desenho” (TELLES, 2010, p.261).
A tensão entre o tronco vertical e o volume suspenso na horizontal aumentam a potência expressiva do delicado equilíbrio. Sobre as paredes portantes da torre que suspende o Olho, apoiam-se duas grandes vigas longitudinais encurvadas de 70 metros, sustentando balanços de 5 e 30 metros em cada sentido. Comprimindo suas extremidades, a curva parabólica da cobertura é estruturada por uma ossatura em vigas arqueadas em concreto armado. Como a copa de uma árvore que se equilibra simetricamente ao redor do eixo vertical, a estrutura da torre do Olho apresenta-se como o protótipo da forma no espaço gravitacional (ARNHEIM, 2001) (Figura 9).
A ênfase no gesto único e contínuo entre superfície e estrutura resulta em objetos que se revelam pelo todo, ofuscando a percepção das partes constitutivas e detalhes construtivos. No MON, a precariedade dos acabamentos e a despreocupação com pequenos detalhes exemplifica um padrão nas obras de Niemeyer, nas quais a fascinação pelo desenho sintético e a monumentalidade embotam o reconhecimento dos defeitos. Segundo a aguda observação de Iñaki Ábalos, em seus prédios:
[...] os detalhes desapareciam a ponto de fazer-nos imaginar que fossem desnecessários. Tudo - guarda-corpos, rodapés, portas, detalhes de marcenaria -, praticamente tudo em seus edifícios, simplesmente deixava de existir de modo assombroso (ÁBALOS, 2009, p.59).
FORMA ABERTA E ICÔNICA
Na torre do MON, a contraposição das duas finas superfícies onduladas gera o desenho do perfil de um olho humano estilizado, reforçado pela cortina de vidro que camufla a presença de uma laje intermediária. Como em tantos outros casos ao longo de sua longa trajetória, Niemeyer se vale um de um modo altamente eficaz para causar uma forte impressão nos observadores: empregar formas familiares às quais se incutem interpretações excêntricas que apanham o espectador de surpresa, criando uma intriga que o força a observar a obra mais detalhadamente (RASMUSSEN, 1986).
As obras de Niemeyer combinaram abstração moderna com sugestão figurativa de forma única. Em seus edifícios, uma multiplicidade de interpretações povoa a mente de quem os contempla. A “ave-flor” que Ferreira Gullar enxergou no Museu de Caracas pousa como nave espacial em Niterói, e se transmuta em olho ao pousar em Curitiba.
No museu curitibano, a metáfora do olho coincide com sua realidade arquitetônica: é feito para ser visto, mas também para ver. De dentro, funcionaria como um mirante para ver a cidade e o parque; de fora, uma vitrine da arte, transparente ao público externo, tal como Lina Bo Bardi havia feito décadas antes no Museu de Arte de São Paulo (MASP) (1958-1968).
A sugestão do perfil de um olho encontra precedente no auditório desenhado por Niemeyer na citada escola Milton Campos, na capital mineira, cuja forma também lhe rendeu a alcunha de “mata-borrão”. Reapareceu mais recentemente na torre-mirante em Natal, onde a relação entre a altura do fuste e do objeto horizontal praticamente inverte a proporção observada no MON (Figura 10).
Porém, onde muitos visualizam um olho, outros tantos enxergam no MON a forma do tronco e da copa de uma araucária, a árvore símbolo do Paraná, indicando que o mundo das formas admite múltiplas interpretações e elide a univocidade. Nesse sentido, o MON é uma obra aberta, pois sua poética “[...] tende a promover no intérprete atos de liberdade consciente ao colocá-lo como centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis a partir da qual ele instaura sua própria forma” (ECO, 2010, p.41).
Esse tipo de associação, que surge como fruto do rico diálogo entre a mensagem do emissor-arquiteto e a resposta do receptor-visitante, é o que faz a obra transcender sua condição de signo utilitário e passar à categoria de signo cultural.
Se o signo arquitetônico tem por característica principal a não distinção entre representação e coisa representada, quando essa distinção tende a acontecer, como no caso de Niemeyer, a arquitetura passa a compartilhar da natureza da escultura (PIGNATARI, 2004).
Nos casos exemplificados de museus suspensos sobre um apoio central único, o sentido ascendente da forma reforça a leitura da arquitetura como monumento, e em seu contraintuitivo desafio à gravidade, gera formas compactas e facilmente identificáveis por silhuetas verticais de assombrosa pregnância imagética. A força simbólica da obra de Niemeyer sugere a existência de um pensamento icônico, independente de qualquer explicação lógica ou funcional que justifique sua formalização. “Um ícone conduz a outros ícones. Pode-se chegar até ao adorno sem adorno. Oscar Niemeyer poderá vir a ser considerado, um dia, precursor da chamada ‘arquitetura simbólica’” (PIGNATARI, 2004, p.163).
Ao longo de sua trajetória, Niemeyer produziu símbolos de incomparável sentido coletivo. Outrora suporte da consolidação de uma identidade nacional, na contemporaneidade, a “arquitetura simbólica” de Niemeyer passou a atuar como âncora de estratégias urbanas calcadas no estímulo ao consumo cultural e ao turismo de massas. A potência formal que forjara os símbolos do Brasil moderno parecia ajustar-se perfeitamente às novas demandas comunicativas da arquitetura a partir da pós-modernidade. Para Fernando Diez, Niemeyer,
Intuiu como ninguém o signo da nova época, e pode-se dizer que foi ele quem conseguiu converter a arquitetura ao sistema de comunicação de massas, antecipando-se por várias décadas ao fenômeno que o final do século viu se globalizar da mão de Thomas Krens e Frank Ghery com o Guggenheim de Bilbao (DIEZ, 2009, p.34).
Na realidade, o uso de edifícios e monumentos como emblemas de poder econômico, político ou cultural não é um fenômeno novo, nem para a arquitetura, nem para Niemeyer. Arquiteto preferido dos políticos brasileiros em busca de notoriedade, ele demonstrava perfeita compreensão da motivação que leva à implantação desses novos equipamentos:
É importante - esta é a preocupação de qualquer governante - deixar como lembrança de sua passagem pelo cargo uma obra que a justifique [...]. Dizem que o museu que desenhei na entrada de Niterói deu nova vida àquela cidade, levando os que visitam o Rio a estender o seu passeio até Niterói, curiosos de ver o novo museu - o que antes não acontecia (NIEMEYER, 2009, p.88).
Mas a perene e inegável importância cultural de sua obra transcende motivações políticas de ocasião. No potencial icônico da arquitetura de Niemeyer, David Underwood reconhecia uma busca por “eternidade”, atualizando o sentido de permanência simbólica por ele verificado nos monumentos europeus em sua citada viagem ao velho continente (UNDERWOOD, 2001). Dessa forma, assumia a responsabilidade de criar os testemunhos monumentais de nossa civilização para o futuro.
[...] a monumentalidade nunca me atemorizou quando um tema mais forte a justifica. Afinal, o que ficou da arquitetura foram as obras monumentais, as que marcam o tempo e a evolução da técnica. As que, justas ou não sob o ponto de vista social, ainda nos comovem. É a beleza a se impor na sensibilidade do homem (NIEMEYER, 1989, p.23).
CONCLUSÃO: A FORÇA E O DESGASTE DE UM PROCEDIMENTO
Oscar Niemeyer transita tranquilamente entre as categorias dos inventores e mestres, definidas na literatura por Ezra Pound para designar homens que descobriram um novo processo, ou aqueles que foram capazes de combiná-los tão bem ou até melhor que seus próprios inventores (POUND, 2013).
Desde o princípio, sua obra desafiou corajosamente os limites da arquitetura moderna, equilibrando-se entre o internacional e o local, o abstrato e o figurativo, o racional e o ilógico, o mínimo e o excessivo. Essa ambiguidade é a raiz da graça e da desgraça de sua arquitetura. Sir Nikolaus Pevsner, já em 1961, considerava que sua originalidade e força degeneravam em um antirracionalismo, curiosamente denominado de pós-moderno, que Segawa identifica como um dos primeiros usos do termo na crítica de arquitetura (SEGAWA, 2014).
É bem verdade que a obra de Niemeyer, ao transcender o racionalismo e o próprio organicismo, não somente adaptou-se bem aos tempos pós-modernos, como antecipou muitas de suas estratégias, especialmente no que tange ao poder imagético e comunicativo de suas formas.
Com a consolidação da arquitetura moderna, a livre exploração formal passou a ser causa de um mal-estar latente entre os arquitetos, cujas reivindicações por uma arquitetura mais econômica e racional acabaram degenerando no moralismo de um funcionalismo opressivo, ao qual Niemeyer reagiu corajosamente. Sua arquitetura sempre resistiu à razão que segue a via reta da utilidade da eficácia, que coloca o mundo das formas e dos ícones como superficial e frívolo, e sua força fascinante como sedutora e imoral (MAFFESOLI, 1995).
As justas críticas ao privilégio da forma, sobre a função em muitos de seus projetos não devem, no entanto, colocar a riqueza de sua pesquisa formal sob suspeita. Contudo, é perceptível que seus últimos trabalhos não exibem o frescor e a elegância de sua fase áurea, denunciando o esgarçamento de um procedimento levado à exaustão.
Além de uma sensível perda de sutileza na linguagem, na produção recente de Niemeyer, a recombinação de elementos de seu sistema compositivo provoca certa sensação de reprise, causando um paradoxo entre a busca pela surpresa e o cansaço da previsibilidade. Efeito colateral do sucesso, em sua última etapa produtiva verifica-se a recorrência de um programa genérico, relacionado a certa vaguidão temática, à qual os equipamentos culturais acomodam-se facilmente.
A qualidade de juventude terna e irreprimível que caracteriza as obras clássicas é assegurada pela manutenção de uma linguagem eficiente, precisa e clara (POUND, 2013), algo que, inegavelmente, permanece nas obras de Niemeyer até Brasília. A perda de vitalidade na obra de arquitetos e artistas começa quando cessam seus esforços de pesquisa, abrindo espaço à repetição de fórmulas anteriormente bem-sucedidas. Para Christian de Portzamparc: “na realidade, nunca sentimos a busca em Niemeyer, mas a evidência oriunda de um lampejo” (PORTZAMPARC, 2009, p.10).
AGRADECIMENTOS
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo nº 2016/21108-2).
REFERÊNCIAS
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NOTAS