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DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS NA APROPRIAÇÃO DE TERRAS DO RECIFE: OS CASOS DA COMUNIDADE DO COQUE E DO CONDOMÍNIO LE PARC BOA VIAGEM 1
THE DOUBLE STANDARD APPROACH REGARDING LAND APPROPRIATION IN RECIFE (BRAZIL): THE CASES OF THE COQUE COMMUNITY AND THE CONDOMINIUM LE PARC BOA VIAGEM
Oculum Ensaios, vol. 17, e204646, 2020
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo

Artigos


Recepção: 29 Maio 2019

Aprovação: 03 Agosto 2019

DOI: 10.24220/2318-0919v17e2020a4646

Financiamento

Fonte: Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco

Número do contrato: IBPG-1553-6.05/14

Descrição completa: Artigo elaborado a partir de dissertação de L. S. AGUIAR, intitulada “Entre o social e o interesse do Capital: O processo desigual de apropriação de terras no Recife: os casos da comunidade do Coque e do condomínio Le Parc Boa Viagem”. Universidade Federal de Pernambuco, 2018. Apoio: Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). Processo IBPG-1553-6.05/14.

RESUMO: O presente trabalho trata das desigualdades no acesso à terra urbana no Recife, em terras da União. Evidencia que, por um lado, os entraves para o reconhecimento do direito à moradia da população de baixa renda em assentamentos informais são evidentes; por outro lado, quando há o interesse do capital, o uso da terra urbana não só é permitido, como o processo de mudança de titulação é célere. Buscou-se a análise das dinâmicas que reproduzem a desigualdade social no acesso à terra urbana a partir de dois estudos de caso: a comunidade do Coque, assentamento que ainda não foi regularizado na área central da cidade e de grande valorização imobiliária, que lhe confere vulnerabilidade fundiária; e o condomínio Le Parc Boa Viagem, empreendimento imobiliário para a classe de alta e média renda, localizado próximo a uma área de preservação ambiental.

PALAVRAS-CHAVE: Acesso à terra urbana, Desigualdade social, Moradia popular, Propriedade fundiária, Terras da União.

ABSTRACT: This paper deals with the difference in the access to urban land in Recife, on Government lands. It is evident that, if on one side regarding the hindrances to the recognition of the right to housing of the low-income population in informal settlements are evident, on the other hand, when capital’s interests are involved, urban land use not only is allowed but the process of property title change is swift. We sought to analyze the dynamics that reproduces social inequality to land access, based on two case studies: the case of the Coque community, a settlement that has not yet been regularized in the central area of the city with a great real estate value which gives for this land a high vulnerability; and the condominium Le Parc Boa Viagem, real estate development for the high and medium income class located next to an area of environmental preservation.

KEYWORDS: Access to urban land, Social inequality, Popular housing, Land property, Government land.

INTRODUÇÃO

A cidade do Recife, assim como as demais grandes capitais brasileiras, é marcada pela fragmentação socioespacial, onde se observa que as melhores áreas com condições para moradia e infraestrutura são ocupadas pelas classes mais elitizadas, enquanto a população mais desassistida do ponto de vista social tende a morar em áreas de vulnerabilidade ambiental e/ou em localizações periféricas, com pouca ou total ausência de infraestrutura. No Recife, são sobretudo as mudanças econômicas, com o arrefecimento da atividade agroexportadora do açúcar em conjunto com o fim da escravidão, que irão impactar na forma desordenada e desigual como a produção do espaço urbano irá se desenvolver.

Neste cenário, a cidade do Recife, não fugindo à regra da dinâmica intraurbana das grandes cidades brasileiras, reproduz uma lógica de estrutura fundiária em que as melhores áreas são ocupadas pelas moradias das classes com melhores condições econômicas, sociais e culturais, a despeito da população destituída dessa condição. O resultado se traduz em um crescimento desordenado, espraiado e com precárias condições de moradia, de ocupações e assentamentos irregulares destinados à população pobre.

É sob esta ótica que o presente artigo pretende contemplar o processo de apropriação de terras do Recife a partir de uma lógica de reprodução de desigualdades sociais que, ora possibilita o acesso à terra para fins de interesse privado, ora atravanca a apropriação quando do interesse social. A análise parte dos casos do condomínio Le Parc Boa Viagem e da comunidade do Coque, posto que ambos fazem o uso privado da terra pública. Porém, enquanto o primeiro é direcionado para as classes abastadas, o outro é uma comunidade ocupada pelas camadas mais pobres, em situação de irregularidade fundiária.

O artigo foi estruturado em quatro partes, além desta introdução. Na primeira parte, busca-se tratar o processo de produção do espaço no Recife com ênfase na estrutura fundiária sob uma perspectiva histórica. O segundo tópico traz especificamente a Comunidade do Coque, caracterizando-a e dando luz aos conflitos fundiários e à resistência da população para ali permanecer. Na terceira parte, o Condomínio Le Parc Boa Viagem é apresentado a partir da sua inserção num processo de expansão imobiliária do Bairro de Boa Viagem, que avança sobre o bairro da Imbiribeira, onde se situa o Condomínio. Busca-se demonstrar que nesse caso não há conflito fundiário, e sim um atendimento a interesses do mercado imobiliário sem nenhuma espécie de entrave em relação à questão da terra. Por fim, nas considerações finais, são traçados os paralelos entre os dois casos estudados, evidenciando-se que há dois pesos e duas medidas no uso das terras da União, favorecendo a tramitação de processos quando do interesse privado em detrimento do interesse social.

O PROCESSO DESIGUAL DE APROPRIAÇÃO DE TERRAS NO RECIFE

Durante todo o século XIX, o Recife passa a crescer consideravelmente, principalmente quando ganha o status de capital em 1827, tendo as transformações econômicas dessa época forte impacto no crescimento da cidade. A queda nas vendas do açúcar pela concorrência do Caribe e a modernização da produção açucareira com a instalação de usinas ocasionaram uma migração rural-urbana. Nesta, houve a mudança das famílias abastadas da casa grande para os sobrados na cidade; também houve mudança do posseiro ou escravos fugidos ou alforriados antes da abolição para moradias do tipo mocambo, ocupando os morros ou as áreas alagáveis e de manguezais (SOUZA, 2002). O incremento populacional na cidade irá se intensificar devido à assinatura da Lei Áurea em 1888, com a migração da população de ex-escravos em busca de oportunidades de trabalho.

Antes mesmo da Abolição, a Lei de Terras de 1850 passou a regulamentar as relações de domínio sobre a terra e, consequentemente, a legitimação da mercantilização desta como a única forma de aquisição. Com a Lei de Terras no Brasil, o que se inaugura é a implementação da propriedade privada do solo. Agora, para ter acesso à terra era necessário pagar. A terra é transformada em mercadoria nas mãos dos que já detinham cartas de sesmaria ou provas de ocupação pacífica e sem contestação (FERREIRA, 2005; MARTINS, 2010). Mercadoria também para a própria Coroa, oficialmente proprietária de todo o território ainda não ocupado e que, a partir de então, passava a realizar leilões para sua venda.

Essa mudança na forma do domínio multiplicou os pedidos de demarcação de propriedades. No caso do Recife, onde parte de seu território é constituído por áreas alagáveis e manguezais, essas áreas passaram a ser de domínio do Império, na condição de terras de marinha. Como era difícil realizar a delimitação dessas terras, por insuficiência de recursos e instrumentos técnicos, o processamento das áreas foi realizado conforme os pedidos de aforamento eram feitos. Mas, no geral, esses pedidos partiam daqueles que tinham interesses sob o mangue, e não daqueles que o ocuparam como alternativa de moradia.

Se, desde o século XVII os mangues já vinham sendo ocupados por mocambos, com a abolição da escravidão essa ocupação se intensificou. Nas palavras de Souza (2002), os moradores estabeleciam uma luta diária contra as águas, aterrando e criando por conta própria o terreno onde iam morar. Assim, a luta pela propriedade da terra perpassa por uma luta diária de superação das limitações físicas da natureza para fins de moradia. Para Castro (1947) em “Um ensaio de geografia urbana”, o uso do solo em Recife nunca se deu de forma pacífica, mas sim com base em uma história construída com sucessivas expulsões da terra, seja dos nativos pelos portugueses, seja pelos holandeses, em que as características naturais do território estavam entrelaçadas com a atividade econômica e, por sua vez, com a forma de morar. A disputa do solo mantém essa essência de disputa dos recursos da terra para geração econômica, em uma relação imbricada entre povo, terra e água.

Na segunda metade do século XIX, os mocambos em mangues e seus arredores passaram a ser um problema para o planejamento urbano que à época focalizava o desenvolvimento da cidade por meio da abertura de vias, dentre outras infraestruturas, como vetores de atração de indústrias para o suporte à atividade usineira e circulação de atividades comerciais. Nessa perspectiva, os mocambos não foram compreendidos a partir da perspectiva do desigual acesso à terra urbana, e sim como um entrave para as obras de modernização da cidade.

Durante as primeiras décadas do século XX, a promessa da industrialização passou a concentrar moradores nas áreas mais centrais e perto de linhas férreas para facilitar o acesso à zona industrial, bem como ao centro comercial e financeiro da cidade. Se antes os moradores de mocambos eram invisíveis, tanto por estarem nas porções mais distantes da cidade como por sua invisibilidade social, agora, próximos a pontos estratégicos de desenvolvimento, passaram a ser alvo de perseguição dos políticos da época.

Foi assim que o interventor Agamenon Magalhães determinou a erradicação dos mocambos recifenses, vistos como “males que atravancavam o progresso” (DE LA MORA, 2010, p. 401). Por causa da especulação imobiliária, os mocambos que estavam na região central foram expulsos, posto que essas áreas tinham potencial de valorização imobiliária. O mesmo destino sofreu aqueles que estavam nas faixas alagadas e foi assim que os moradores dos mocambos foram impelidos a construir suas novas moradias nos morros do Recife, principalmente na zona norte da cidade.

No entanto, alguns mocambos centrais resistiram ao processo de higienização da Liga Social Contra os Mocambos, permanecendo nas localidades do Coque, Coelhos, Ilha de Joaneiro, Santo Amaro, Santa Terezinha e Chié (SERAFIM, 2012). Porém, as aglomerações de mocambos que estavam localizadas em bairros com potencial de expansão do mercado imobiliário, como os bairros de Espinheiro, Madalena e Torre, foram removidas para, em seu lugar, haver a provisão de moradias para as classes de média e alta renda.

A cidade do Recife continuou se transformando sob forte impacto das intensas mudanças nas relações de produção das atividades do campo em função da desarticulação da economia açucareira, que acabou por converter senhores de engenho em proprietários urbanos, estimulando outros investimentos em atividades na cidade do Recife (GONÇALVES,1985) e impulsionando a mudança da fase mercantil - exportadora para a fase do capital industrial. Muitos proprietários fundiários passaram a desmembrar as suas terras dos engenhos do Recife e a comercializá-las. Novas propriedades surgiram: os sítios, por fragmentação das antigas propriedades fundiárias da atividade canavieira foram posteriormente parcelados em lotes residenciais, constituindo os bairros de Madalena, Torre, Derby, Beberibe, Apipucos e Várzea.

A partir dessa breve leitura do processo de produção do espaço urbano na cidade do Recife, percebe-se que o espaço não é produzido de forma aleatória. Ele é socialmente produzido, e as diferenças na apropriação fundiária se dá por agentes com interesse privados e específicos, sendo tanto o capital quanto o Estado agentes desse processo (GOTTDIENER, 1993; VILLAÇA, 1998). A terra urbana, portanto, revela, desde o final do século XIX no Recife, conflitos sociais expressos pela relação polarizada entre os investimentos públicos sobre a terra urbana e a cidade, tendo os interesses de grupos privilegiados em contraponto às expectativas dos trabalhadores de baixa renda.

Mas toda essa desapropriação e expulsão não foi sem luta. Os setores sociais excluídos se organizaram desde a década 1930 para a luta por melhores condições de moradia, iniciando o Movimento de Bairro do Recife e criando nos anos 1940 e 1950 diversas Associações de Bairros. Referido movimento culminou, em 1983, na criação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)2 e de sua regulamentação através do Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), objetivando a gestão dos zoneamentos especiais, as ZEIS (MIRANDA, 2016).

Pode-se afirmar que, além de uma vitória importante dos movimentos sociais, as ZEIS são um grande marco que regularizam a ocupação do solo e permitem a permanência da população de baixa renda em áreas já consolidadas próximas às zonas de forte dinâmica intraurbana da cidade, motivo pelo qual são constantemente ameaçadas de expulsão. A sua regulação e o controle do uso do solo se dão com a articulação do aspecto urbanístico e jurídico de segurança da posse, através da gestão e participação social, de forma a contribuir para a efetivação da posse.

As primeiras comunidades inseridas no zoneamento social foram definidas pela LUOS nº14.511/83, com base nas 27 Áreas de Interesse Social (AEIS) demarcadas no Cadastro de Assentamentos de Baixa Renda, de 1980 (RECIFE, 2016). Hoje, existe um total de 68 ZEIS em Recife com mais de 40 inscritas entre os anos 1983 e 1996, sendo do ano de 2013 as duas últimas cadastradas.

Dados do Atlas das Infraestruturas Públicas em Comunidades de Interesse Social do Recife de 2014 revelam que existem 545 Comunidades de Interesse Social (CIS) na cidade. A concentração dessas comunidades se dá principalmente na periferia, sendo 223 em morros, seguidos das áreas de planície, com 180. A área estuarina com 140 CIS é a terceira maior parte de ocupações de moradia de baixa renda. Essa área é afetada pelo regime das marés e rios, que estão majoritariamente sob aterramentos (RECIFE, 2016).

Considerando as CIS que são ZEIS, tem-se que 53,0% de comunidades de interesse social estão incluídas no zoneamento especial. Do total das ZEIS, 75,4% estão em áreas de morro, o que corresponde a dois terços da população de comunidades em ZEIS (RECIFE, 2016). A densidade mais elevada das ZEIS em morros se justifica porque são as comunidades de interesse social de ocupação mais antiga e, portanto, consolidadas.

Esses dados demonstram como o planejamento urbano, realizado principalmente entre as décadas de 1940 e 1960, foi essencialmente uma política de erradicação dos mocambos em áreas de alagados, manguezais e planícies. A alternativa que sobrou para a população de baixa renda foi a provisão de moradia em morros, encostas e áreas alagáveis. Além da vulnerabilidade jurídica fundiária, essas comunidades também estão sujeitas e expostas a problemas ambientais como alagamentos e deslizamentos, agravados pela ausência de infraestrutura dessas áreas, com riscos sanitários. Dentre essas áreas de vulnerabilidade, está a comunidade do Coque em ambiente estuarino e em constante ameaça de expulsão, como será visto a seguir.

A LUTA PELO DIREITO À MORADIA NO COQUE

A comunidade do Coque compreende parte da Ilha Joana Bezerra e parte do bairro de São José, limitando-se ao norte com o Rio Capibaribe; ao sul, com a Rua Imperial; a leste, com a Estação Central do Metrô do Recife; e a oeste, com o braço norte do Rio Capibaribe (Figura 1). Com mais de 134 hectares, possui uma posição importante tanto por sua proximidade com o centro comercial e polo médico quanto com a Zona Sul do Recife, área valorizada da cidade onde está a praia de Boa Viagem em bairro homônimo, dispondo de uma infraestrutura turística com rede de hotéis e restaurantes, além de shopping center, abrigando uma população residente, na sua maioria branca (66,35%), e com alta taxa de escolaridade, de 97,60% na população de 10 anos ou mais3.


FIGURA 1
Delimitação da ZEIS Coque.
Fonte: Elaborada pelas autoras (2019), a partir de Google Earth (2019).

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), no Coque vivem 12.755 habitantes e, considerando a sua maior área, situada na Ilha Joana Bezerra, 58,22 % dos habitantes são declarados pardos, 24,62% brancos e 16,17% pretos. O Coque é a comunidade do Recife que apresenta o pior índice de Desenvolvimento Humano, além de ter a maior porcentagem (42,52%) de pessoas com renda até um salário mínimo (VASCONCELLOS, 2013)4.

É a partir da Ilha que a comunidade inicia, em um aterro, e a partir de consecutivos aterramentos das terras alagadas que as casas foram ocupando o lugar do mangue. Toda a sua área é constituída de terras pertencentes à União, por ser terreno acrescido de marinha, conforme a Linha do Preamar Média (LPM) de 18315.

Foi por volta do final do século XIX que o Coque começou a ser povoado com a construção de mocambos (FREITAS, 2005), estando as primeiras moradias localizadas em um engenho de propriedade atribuída ao Barão Correia de Araújo. O assentamento se expandiu com a chegada de pessoas, descendentes de ex-escravos e pequenos posseiros, que migraram do Agreste, Sertão e da Zona da Mata do Estado (VALE NETO, 2010) para a cidade em busca de novas oportunidades de trabalho, como resultado do processo de industrialização dos engenhos e da seca no setor rural.

A industrialização urbana e as mudanças nas atividades econômicas de Pernambuco influenciaram no crescimento acelerado da comunidade nos anos 1940-1950 e entre 1970-1980, resultando na ocupação do Coque associado às necessidades dos trabalhadores de baixa renda em se instalarem próximos a estruturas de apoio ao setor produtivo e industrial, como a linha férrea, que facilitava o acesso ao trabalho.

Muitas foram as mudanças implementadas por parte de obras de interesse público que, por um lado, proporcionaram infraestrutura para a cidade, como é o caso da construção do viaduto Capitão Temudo e do Terminal Integrado Joana Bezerra; já por outro lado, implicaram na remoção de famílias do Coque, muitas que estavam no assentamento desde o começo da ocupação, mas que, no entanto, não possuíam a posse da terra.

Infere-se que a sua centralidade na cidade do Recife, somada à condição de vulnerabilidade associada à irregularidade fundiária, são fatores que influenciaram gradativamente na expulsão dos moradores, diante da perspectiva de valorização imobiliária (BORGES, 2015) e de se auferir lucro.

Foi essa realidade emblemática de remoção dos moradores que deu origem a movimentos de luta pela permanência na terra ocupada. Esses movimentos não tiveram expressão apenas na comunidade do Coque; a partir das décadas de 1970 e 1980, aparecem em outros assentamentos informais do Recife (FREITAS, 2005).

No caso do Coque, esse processo se inicia no começo do século XX, quando surge uma sucessão de disputas judiciais de pessoas contestando o domínio da área, como o Barão Correia de Araújo. Foi uma época marcada por grande pressão sobre cada nova ocupação que surgia. A cada área que ia sendo aterrada e ocupada, os moradores eram continuamente obrigados a desocuparem sob o uso da força policial devido ao surgimento de proprietários privados reclamantes da posse das terras. Foi nesse cenário de conflito que, ao longo do século, o assentamento foi aterrado gradativamente pelos moradores (FREITAS, 2005). Durante as décadas de 1970 e 1980, o movimento toma mais corpo a partir da criação de associações comunitárias assessoradas por Organizações Não Governamentais (ONG), em conjunto com outras comunidades na luta.

Data de 1979 a primeira iniciativa de resolução dos conflitos, quando a Prefeitura do Recife solicitou a transferência do domínio útil das áreas situadas em terras da União à margem do Rio Capibaribe. A proposta fez parte do projeto de regularização do “Vale do Capibaribe”, firmado segundo a condição de que as terras estavam cedidas à população desde que fosse realizada a urbanização da área pelo Município em até cinco anos, a partir da data da assinatura (FREITAS, 2005), autorizando a cessão sob regime de aforamento do terreno de 134 hectares (delimitado em vermelho na Figura 2) que, além do Coque, contemplava a Ilha do Zeca6, o Fórum do Recife e a Vila Brasil7.


FIGURA 2
Zoneamento do contrato de cessão de aforamento da União para a prefeitura de Recife de 1979 e os elementos nela inseridos.
Fonte: Elaborada pelas autoras (2019), a partir da imagem extraída do Google Earth (2019).

Desde então, sucederam-se uma série de entraves e disputas judiciais que interferiram na efetivação do título de posse que asseguraria o direito à permanência e o reconhecimento da consolidação do assentamento, que vão desde as recorrentes apresentações à Prefeitura de documentos que comprovariam a titularidade de proprietários privados das terras do Coque, até impasses institucionais, como a expiração do prazo de cinco anos para a urbanização necessária visando à regularização fundiária (BORGES, 2015).

A mudança institucional mais significativa veio com a criação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), em 1983, as quais adquiriram posteriormente maior respaldo com a criação do Fórum Prezeis a partir da criação da Lei nº14.947/1987, que estabelece o Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis). Ao ser zoneado como área de interesse social, o Coque passou a ser compreendido a partir dos novos instrumentos jurídicos que têm como finalidade a garantia da permanência da população no assentamento, bem como impedir o avanço da especulação imobiliária e a ameaça de expulsão. Portanto, ao ganhar status de ZEIS, o poder público, em tese, reafirmaria a consolidação desse território e sua destinação para as famílias de baixa renda.

Um ano depois, em 30 de agosto de 1984, foi aprovada a prorrogação dos efeitos dos contratos de aforamento de forma a possibilitar a realização do plano urbanístico. A partir disso, grande parte da área passou por melhorias na infraestrutura, como pavimentação de ruas, construção de habitações em alvenaria, abertura de vias, esgotamento sanitário, construção de escolas (FREITAS, 2005). Ainda que essas mudanças tenham sido realizadas, o Coque continua enfrentando problemas de precariedade habitacional e ausência de infraestrutura básica.

Quanto à questão fundiária, apesar de iniciativas como pesquisas socioeconômicas e capacitações sobre o tema, não houve avanço no processo de titulação das famílias do assentamento. A despeito do Coque ser uma ZEIS e a proteção que o zoneamento impõe, a regularização fundiária, apesar de obrigatória, ainda não foi realizada. Essa situação perdura desde a concessão do terreno pela União, ainda em 1979.

Essa insegurança fundiária reflete, ao longo de 40 anos, a perda de cerca de 51% do seu território ocupado, segundo estimativa de levantamento das associações representantes dos moradores, devido aos constantes processos de remoção desde a década de 1960 (BORGES, 2015). Após a realização do projeto de readequação urbanística para evitar cheias em 1975, famílias foram desalojadas em 1978 para a construção do viaduto Capitão Temudo. Em 1982, 700 famílias foram expulsas da comunidade devido às obras do metrô. Em 1998, parte do terreno do Coque foi cedida para a construção do Fórum Rodolfo Aureliano e a AACD, com famílias desapropriadas. Em 2012, mais famílias foram removidas para as obras de alargamento do viaduto Capitão Temudo e para a ampliação da Estação de Metrô Joana Bezerra. E, no caso mais recente, o terreno doado à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi cercado com um muro que removeu feirantes do local, em 2013, para a realização de uma Operação Urbana Consorciada (Lei Municipal nº17.645/2010), com a criação de Polo Jurídico na área. No mesmo ano, obras no canal Ibiporã iniciaram a remoção de famílias que moravam na beira do canal (LUCIENNE, 2014).

Todos esses casos de remoções e ameaças e a não consolidação fundiária fazem uma história de disputa e conflito pela terra entre os interesses público e privado com os moradores do Coque. Em que pese o zoneamento de interesse social e a sua obrigatoriedade de regularização, o instrumento fundiário não consolidou a segurança da posse, mantendo-se a negação dos direitos dessa população.

PARA O LE PARC, A “TERRA DE MÃO BEIJADA”

Em situação diametralmente oposta à área do Coque, o Condomínio Le Parc Boa Viagem é um empreendimento imobiliário da associação entre Cyrela Brazil Realty e a construtora Andrade Mendonça em conjunto com o Grupo João Carlos Paes Mendonça, responsável pela propriedade fundiária (CAVALCANTI, 2011). A sua localização, a despeito do nome, está em uma área inserida e delimitada, no bairro da Imbiribeira, na Zona Sul do Recife, próxima aos limites estabelecidos do bairro com Boa Viagem.

Além da sua localização próxima ao Bairro de Boa Viagem e ao corredor viário Via Mangue, o empreendimento está, de forma emblemática, próximo à maior reserva de mangue da cidade que faz parte da Bacia do Pina, o Parque dos Manguezais Josué de Castro (Figura 3). A reserva verde é uma Zona Especial de Proteção Ambiental (ZEPA), sendo de importância a sua preservação para o equilíbrio ecológico e das amenidades ambientais. São mais de 60 mil m² de área verde preservada, garantindo uma vista permanente ao empreendimento.


FIGURA 3
Le Parc em amarelo, identificado dentro do bairro da Imbiribeira, com a identificação do Parque dos Manguezais em verde e o bairro de Boa Viagem.
Fonte: Elaborada pelas autoras (2019), a partir da imagem extraída do Google Earth (2019).

Historicamente no Recife, o mangue está associado às moradias de baixa renda, mas na estratégia de marketing utilizada pelo Grupo JCPM para o empreendimento Le Parc Boa Viagem, o mangue adquiriu nova função de indutor de valorização, ao destacar como “o primeiro Residencial Resort da cidade, totalmente integrado ao Parque dos Manguezais” (CAVALCANTI, 2011, p. 135).

A ocupação da área da Zona Sul do Recife onde está o Le Parc começou a partir do bairro de Boa Viagem, em 1707, por doação de terras de Baltazar da Costa Passos ao padre Leandro Camelo (SILVA, 2016).

Antes do afluxo das classes média e alta para o uso da praia de Boa Viagem, o que ocorrerá ainda que de forma incipiente a partir de 1920 para fins de lazer e por conta da construção da ponte do Pina e inauguração da avenida Beira Mar em 1925 (SOUZA, 2009), a região era composta de moradias de baixa renda, ainda que poucas. Eram sobretudo mocambos e palafitas próximas à costa, na porção mais norte da região, conhecida como Ilha do Nogueira, atuais bairros do Pina e Brasília Teimosa. Por muito tempo, a área ficou conhecida como moradia de negros livres e fugidos (SILVA, 2008) que se estabeleceram através de aterros sobre os alagados. Os moradores viviam basicamente da atividade pesqueira local.

A partir dos anos 1950, com o intenso processo de urbanização, a ocupação dessa área também iria se modificar. O uso para veraneio seria potencializado com a construção da ponte da avenida Agamenon Magalhães, que melhorou o acesso à região e consequentemente aumentou a construção de edifícios, principalmente na orla.

Em 1970 fortes chuvas inundaram bairros como Madalena e Casa Forte, tradicionalmente ocupados por famílias de classe média e alta, originárias da desintegração de sítios e depois em lotes dos antigos engenhos da região. O bairro de Boa Viagem se tornou nesse processo o novo local de valorização imobiliária, atraindo essas famílias e consolidando a sua influência sob a cidade, a partir da década de 1980, com a instalação de um shopping center.

Na leitura da dinâmica da produção do espaço intraurbano (VILLAÇA, 1998), enquanto a região central do Recife foi popularizando a moradia, a Zona Sul, por sua vez, verticalizou-se e sofreu adensamento na sua porção mais costeira, no bairro de Boa Viagem, concentrando os moradores mais abastados, o que comprova a lógica do fator localização e renda de monopólio (a vista mar) como preponderante para o alto valor imobiliário da orla. Em oposição, a população de baixa renda se estabeleceu nas áreas mais distantes da costa, onde o valor do m² é mais baixo, dando origem aos bairros da Imbiribeira, Jordão e Ibura.

Diferentemente de Boa Viagem, o bairro da Imbiribeira, onde está o terreno do Le Parc, caracteriza-se por um concentrado de galpões, depósitos, comércios e serviços que tem como apoio o tráfego movimentado da Avenida General Mac Arthur. Essa avenida é uma via que faz importante conexão entre a Avenida Mascarenhas de Morais, que dá saída para a Rodovia BR-101, e o bairro de Boa Viagem. Devido à característica comercial e à ocupação por galpões, o bairro da Imbiribeira nunca teve o seu endereço valorizado (CAVALCANTI, 2011), apresentando moradias mais simples do que Boa Viagem e logicamente com um valor de m² mais baixo, por se encontrar literalmente atrás do bairro de Boa Viagem.

O empreendimento, ainda que próximo aos limites estabelecidos com Boa Viagem, está, portanto, situado no bairro da Imbiribeira, segundo delimitação do poder público municipal. Comercializar o Le Parc como pertencente ao bairro de Boa Viagem é uma questão simbólica que remete ao imaginário da orla e configura uma prática comum do setor imobiliário, que é a de prolongar os limites de áreas valorizadas que já se encontram com alto nível de adensamento e, por consequência, pouca oferta de terrenos. Enquanto estratégia do mercado imobiliário, é a forma de compensar as visões negativas ligadas a um bairro mais popular e menos atraente, seja por estar mais distante da orla, seja pela capacidade de aglomeração do ponto8 que, nesse caso, tem menor conexão com o comércio e serviço mais nobre, que está localizado em Boa Viagem.

Ainda que se refira a questões sobre mercado imobiliário e suas práticas, essas ações reverberam o que interessa neste texto: a estrutura e apropriação fundiária, pois é uma forma que o capital encontra de se reproduzir na terra urbana ao atribuir novos valores a áreas que têm estoque de terras, mas que ainda não estão sob demanda, ou seja, que ainda não assumiram valor de troca e, portanto, interesse por parte da especulação imobiliária.

Quanto à área que hoje compreende o Le Parc, a propriedade era de origem da União, tendo no Grupo JCPM seu mais recente detentor que, segundo o processo de passagem da terra no processo administrativo levantado em 2018 na Superintendência de Patrimônio da União de Pernambuco (SPU), revela subsídios a respeito das dinâmicas subjacentes ao acesso à terra urbana, e no caso, terra urbana da União, quando há interesses privados envolvidos.

O primeiro registro sobre o terreno data de 1978, no Registro Geral de Imóveis. Nos 20 anos antecedentes foi utilizado para fins militares, com o funcionamento de uma Estação Transmissora do Comando da 7ª Região Militar, 7ª Divisão do Exército, sendo registrado como patrimônio da União Federal, conforme Decreto nº79.911/77, que passou a reconhecer como bens móveis da União as propriedades que são utilizadas por órgãos da Administração Federal e por unidades militares, desde que não tenha ocorrido contestação quanto ao domínio e à posse do imóvel.

Depois de registrar a terra em nome da União (em 1978), a área foi permutada com a Fundação Habitacional do Exército (FHE), em 1998, entidade supervisionada pelo Ministério do Exército. Segundo o Registro da Matrícula, em 1998 a área foi permutada com base nos termos de um Contrato de Permuta de Próprio Nacional9, para a construção de edifícios em outro terreno da União Federal, no bairro do Curado. O imóvel, então, passou a ser de responsabilidade do Exército.

Dentro da perspectiva do patrimônio imobiliário estatal, novos usos podem ser conferidos visando o interesse público e a diminuição dos gastos do Estado em manter o seu patrimônio. Com a crise dos anos 1980 e 1990, conhecida no jargão econômico como décadas perdidas, o Estado brasileiro, sob a prática de políticas neoliberais, promoveu a desregulamentação de vários setores da economia, abrindo-os para o mercado. Isso afetou a redefinição das atividades estatais, trazendo no seu arcabouço uma reforma patrimonial como recurso à diminuição dos gastos públicos, incluindo aí, o patrimônio imobiliário estatal como importante potencial de negócios (BRAGA, 2007).

Com a crise financeira do período, o Estado cuidou para que as Forças Armadas não fossem acometidas, por isso estas passaram a integrar a lista de órgãos que poderiam afetar os seus bens móveis sem autorização prévia da SPU. Ao mesmo tempo, importante destacar que os estoques de terras situados nas áreas urbanas adquirem, ao longo do tempo, valor com a expansão das cidades ao despertar interesse de investimentos nessas áreas até então sem atratividade para o capital imobiliário. Ora, essas áreas estocadas passam então a funcionar como captação de recursos financeiros e moeda de troca para a manutenção da estrutura das Forças Armadas.

As transações entre particulares envolvendo as terras da União revelam a livre incorporação dos bens públicos ao mercado imobiliário privado, restando como retorno aos cofres públicos por tais destinações a arrecadação das taxas devidas, dirigidas de forma genérica ao Orçamento Geral da União (BORGES, 2015, p. 198).

Foi assim que no ano seguinte à permuta, em 1999, a Fundação Habitacional do Exército vendeu o terreno para o BOMPREÇOPAR S.A., hoje JCPM. Esse processo de venda para o grupo JCPM revela, no cenário local, como a retenção (geração de estoque) de terras e a exoneração de outras se relaciona com a desigual dinâmica da apropriação fundiária da terra urbana.

Em 2009, a SPU retifica a natureza jurídica do terreno do empreendimento, sendo este tanto constituído de área própria (31.482m²) quanto de parte de terreno de marinha e acrescido de marinha (93.219,04m²), o que, dessa forma, representa o domínio pleno e o seu desdobramento do direito de propriedade. Além disso, o terreno do empreendimento torna-se domínio útil, caracterizando como foro a possibilidade de uso e o recolhimento do tributo por este uso, ou seja, a incidência do Laudêmio, que é o valor pago ao proprietário do domínio direto, no caso à União, pelo uso do domínio útil. Explicita-se, assim, que a empresa compradora só tinha domínio pleno da parte alodial, sendo a parte de marinha e acrescido de marinha, o domínio útil em que a empresa, como foreira, estaria sujeita ao ônus decorrente pelo seu uso.

Da área de marinha e acrescido de marinha que totalizam cerca de 93 mil m², determinou-se que 49 mil m² compreenderia área non aedificandi correspondendo à área de preservação permanente em função do manguezal. Em respeito à Lei Federal nº6.766/79, que versa sobre o parcelamento do solo, 35% da área foi doada à cidade e reverteu na implantação do acesso viário local ao empreendimento e em uma praça localizada na rua principal do condomínio, a Rua General McArthur.

O condomínio Le Parc Boa Viagem está em pleno funcionamento desde 2014, com suas 09 torres de apartamentos, ampla área de lazer e serviços integrados ao condomínio. Dez anos depois da compra do terreno em 1999, o empreendimento teve o reconhecimento do seu uso privado da terra da União, algo pelo qual o Coque tem lutado desde o começo do século passado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Recife está inserido em uma lógica na qual o acesso à terra urbana reflete a reprodução das desigualdades sociais. Apresenta-se como um espaço de lutas e disputas ora entre o homem e a natureza, vencendo esta para a autoconstrução habitacional por meio do aterramento de mangues, ora contra o capital imobiliário que, ao enxergar potencial valor de troca em determinada área, faz pressão para a expulsão. Ademais, revela cumplicidade quando se trata da apropriação das terras pelo mercado imobiliário.

Apesar de haver o pioneirismo institucional do Recife, a partir dos movimentos sociais que lutaram pelo reconhecimento da legalidade da posse das moradias e do direito de permanecerem onde vivem, com a criação das ZEIS, há ainda muitas tensões sociais que entravam a segurança jurídica de boa parte dos assentamentos informais, muitos ainda vivendo sobre o risco de expulsão.

Este é o caso da comunidade do Coque que, apesar de ser uma ZEIS, e uma das primeiras a ser reconhecida como uma área de interesse social, passados 35 anos do zoneamento, ainda sofre pressão e consecutivas supressões da sua área original, posto que luta pela regularização fundiária dos terrenos de seus moradores, como aqui demonstrado.

A situação é oposta quando se analisa a apropriação de terras públicas de interesse do capital. O processo de passagem das terras da União onde está hoje o condomínio Le Parc Boa Viagem, como visto, ocorreu sem maiores impasses e, dez anos após a aquisição pela iniciativa privada, o direito à posse foi plenamente reconhecido pela União, diferentemente do que tem ocorrido com o Coque.

A comunidade do Coque é apenas um exemplo, dentre tantos outros no Brasil, onde as classes dominadas servem para a reprodução do capital. A exclusão não se dá apenas pela renda, e não só ela explicaria as desigualdades no acesso à terra urbana. Para a parcela da população sem acesso significativo aos privilégios materiais e ideais, como socialização familiar e educação, resta a condição de subcidadania que, no caso da moradia, traduz-se pela ocupação informal e insegurança jurídica. Além dos problemas de desemprego, educação, saúde, moradia e saneamento, essa parcela da população ainda recebe a pecha de ser violenta e perigosa, restando culpada pela sua própria (falta de) sorte.

As desigualdades na apropriação fundiária urbana é, dessa maneira, produto da produção social do espaço por agentes com interesses específicos e/ou privados. O Estado e o mercado imobiliário são, indubitavelmente, os principais agentes desse processo. Portanto, as contradições na cidade não se dão na ordem do uso privado da terra urbana, mas nos interesses privados sobre o potencial valor de troca que a mercadoria terra aufere.

Trata-se de um movimento de expansão da cidade orientada, em que a produção do espaço urbano é direcionada para os interesses dos proprietários de terras na reprodução do capital. Ou seja, as melhores localizações, com qualidade ambiental, climática e de infraestrutura básica, funcionam para os investimentos do capital imobiliário.

Na estruturação do espaço e dinâmica intraurbana, as melhores localizações vão ser destinadas à apropriação pelo mercado imobiliário para provisão de habitações para as camadas de média e alta renda, restando às camadas populares as localizações mais distantes e com infraestrutura precária.

Para os acrescidos de Marinha e terras da União, segue-se a mesma lógica, sobretudo se sua localização for central. Se de interesse do capital, a outorga é dada; se de interesse social, há morosidade e um longo caminho de luta pelo reconhecimento da posse. Tem-se, assim, dois pesos, duas medidas.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Artigo elaborado a partir de dissertação de L. S. AGUIAR, intitulada “Entre o social e o interesse do Capital: O processo desigual de apropriação de terras no Recife: os casos da comunidade do Coque e do condomínio Le Parc Boa Viagem”. Universidade Federal de Pernambuco, 2018. Apoio: Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). Processo IBPG-1553-6.05/14.
2 Caracterizadas como assentamentos habitacionais surgidos espontaneamente, existentes e consolidados, onde são estabelecidas normas urbanísticas especiais, no interesse social de promover a sua regularização jurídica e a sua integração na estrutura urbana (LUOS nº14.511/1983, Art. 14).
3 O município de Recife é dividido em seis regiões político administrativas (RPA). A comunidade do Coque pertence a RPA 1 e o bairro de Boa Viagem a RPA 6, de onde foram extraídos os dados relacionados ao bairro de Boa Viagem (RECIFE, 2012).
4 Tais indicadores reverberam o que Jessé Souza (2003, 2015, 2017) assevera sobre a desigualdade social brasileira e sua relação com o processo de modernização quando o negro liberto é colocado à sua própria sorte. O que faz surgir uma classe (de pretos e pardos, somados aos brancos que migraram do campo para a cidade) destituída das condições materiais e culturais para se inserir no mercado competitivo do capitalismo industrial, vivendo à margem. O acesso precário à educação, à cultura e socialização familiar comprometida, para além do fator econômico, conferem no máximo a subcidadania a um número considerável de pessoas.
5 Os Terrenos de Marinha são bens da União, medidos a partir da linha do Preamar Médio (LPM) de 1831, considerando as marés máximas daquele ano, que delimita a faixa litorânea, até 33 metros contados a partir da faixa do mar em direção ao continente ou ao interior das ilhas costeiras com sede do município. Além destas áreas ao longo da costa, também são considerados terrenos acrescidos de marinha as margens de rios e lagoas que sofrem influência da maré, bem como porções de terras que anteriormente eram cobertas por espelho d’água, ou eram mangues, praias ou canais marítimos, sendo aterrados após o ano de referência da LPM (BRASIL, 2018).
6 A Ilha do Zeca foi transformada em uma Zona Especial de Preservação Ambiental (ZEPA) em 2003 (instituída pela Lei de Uso e Ocupação do Solo da Cidade do Recife, Lei nº16.176/1996). Porém, dois decretos mais recentes, um de 2008 e outro de 2012, criaram a permissão de parte de cessão da área de aproximadamente 32 hectares para a construção de empreendimentos imobiliários.
7 Trata-se de uma ocupação de moradias em palafita situada na Ilha Joana Bezerra onde à priori se iria construir o residencial Vila Brasil. As obras ainda não foram concluídas.
8 Para Villaça (1998, p. 74), a capacidade de aglomerar é um valor de uso produzido. “Cada terreno particular permite maior ou menor valorização pelo acesso que sua localização propicia aos efeitos úteis da aglomeração”. Ou seja, a proximidade às escolas, lazer, comércio, serviços etc.
9 O próprio nacional é todo domínio da União que é utilizado para serviço público federal ou instalações de órgãos federais.

Autor notes

COLABORADORES L. S. AGUIAR e C. P. ARAUJO colaboraram conjuntamente na concepção, estruturação do artigo, análise, edição de figuras, redação e revisão final.

Correspondência para/Correspondence to: C. P. ARAUJO | E-mail: crisaraujo.edu@gmail.com



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