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A SOCIABILIDADE EM CONSTRUÇÃO: CONJUNTO HABITACIONAL ZEZINHO MAGALHÃES PRADO 1
THE SOCIABILITY UNDER CONSTRUCTION: HOUSING COMPLEX ZEZINHO MAGALHÃES PRADO
A SOCIABILIDADE EM CONSTRUÇÃO: CONJUNTO HABITACIONAL ZEZINHO MAGALHÃES PRADO 1
Oculum Ensaios, vol. 17, e204570, 2020
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo
Recepção: 23 Abril 2019
Revised document received: 29 Outubro 2019
Aprovação: 10 Dezembro 2019
RESUMO: A “sociabilidade em construção” busca analisar um processo de produção do espaço em identidade à produção de relações sociais. No caso do Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, de Guarulhos, as transformações no espaço, empreendidas pelo conjunto de moradores, foram normalmente lidas como desvirtuação do projeto original. Contudo, nessa ação, ainda que contraditória, na medida em que essas transformações reduzem o espaço planejado ao pragmatismo da urbanização corrente, as relações sociais ali produzidas indicam novas possibilidades para a compreensão da relação entre espaço e sociedade, que põe luz, inclusive, sobre as determinações restritas do pensamento arquitetônico e urbanístico. Assim, mais do que celebrar, mais uma vez, seu mito original, busca analisar os possíveis que são realizados concretamente na produção desse espaço, contribuindo com a construção do devir.
PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura moderna, CECAP Zezinho Magalhães Prado, Conjunto habitacional, Habitação social, Produção do Espaço.
ABSTRACT: The idea of a sociability under construction is employed to analyze the process of space-production in its identity to the production of social relations. In the case of the Zezinho Magalhães Prado Housing Complex, in the city of Guarulhos, the transformations in the space undertaken by the set of dwellers were usually read as a distortion of the original project. However, in this action of space transformation, as contradictory as it might be, insofar as they are reduced to the pragmatism of the current urbanization, these social relations could be constituted, indicating possibilities for the understanding of the relations between space and society, and sheding light on the restricted determinations of architectural and urban planning. Thus, rather than celebrating, once again, its original myth, the article seeks to analyze the possibilities that are concretely realized in the production of this space, contributing to the construction of becoming.
KEYWORDS: Modern architecture, CECAP Zezinho Magalhães Prado, Housing Complex, Social housing, Production of space.
INTRODUÇÃO
Porque essa coisa do olhar, de você ver o outro, é algo que eu venho aprendendo também, eu acho que ‘com-vi-ver’, coisa comum, é olhar e respeitar o outro, como ele é. E você só consegue respeitar quando você vê de verdade o que o outro é (PETRELLA, 2012, p. 78)2.
Ao se voltar para o Conjunto Habitacional “Caixa Estadual de Casas para o Povo” (CECAP)3 Zezinho Magalhães Prado4, pode-se se celebrar esse retorno como mais uma oportunidade de visão crítica sobre essa densa experiência histórica. Uma experiência entendida para além do “espaço concebido” propriamente dito, lugar privilegiado do projeto arquitetônico e urbanístico: o “concebido” se relaciona aos momentos do “vivido” e do “percebido”, dimensões que impulsionam a produção do espaço ao nível da produção e reprodução das relações sociais, o que Henri Lefebvre chamaria de espaço social (LEFEBVRE, 1974). Esse retorno é uma visão amparada pela busca do que esse Conjunto aponta (ou ainda pode apontar) para a constituição do devir, o vir-a-ser em construção. Portanto, metodologicamente, lança mão a um movimento “regressivo” e “progressivo” (LEFEBVRE, 1999), cuja análise percorre do momento atual até sua origem, reconstruindo historicamente sua transformação e, posteriormente, dessa origem para o futuro, como virtualidade, buscando compreender os possíveis que não foram realizados e que escapam à concepção histórica do presente, isto é, não foram reduzidos às formas do agora, mas cujo devir já se realiza no presente de modo residual.
É um movimento de pensamento, neste caso em particular, orientado por uma visão delicada: o Conjunto Habitacional que se torna real na medida em que as relações sociais vão se constituindo no ambiente construído, em si e para si. Uma pesquisa que foi realizada a partir de visitas ao conjunto, nas quais se pôde percorrer e reconhecer seus espaços observar seus usos e por meio de entrevistas qualitativas como moradores e ex-moradores5, realizadas tanto presencialmente quanto por meio de comunidades de redes sociais6. Nessas entrevistas buscou-se reconstituir a história de transformação dos espaços a partir desses relatos para, posteriormente, “confrontá-los” com os relatos dos arquitetos envolvidos em sua concepção, bem como de uma história institucional na qual se insere o conjunto7 (PETRELLA, 2012).
Essa dimensão de “delicadeza”, contudo, é angustiosamente acentuada na medida em que é posta à luz do embrutecimento de nossa experiência contemporânea: a urbanização pautada pela segregação socioespacial (e nela o medo, o ódio, a vingança) e pelo predomínio do “valor de troca” sobre o “valor de uso”8. São processos de desagregação social que vão se constituindo em paralelo à deterioração daquilo que se pode chamar de “cidade”. Nesse sentido, o “espaço de sociabilidade”, que estruturou as concepções mais generosas e progressistas da arquitetura e do urbanismo modernos, dentre as quais se destacam as “freguesias” do Zezinho Magalhães Prado, é perdido no interior desse embrutecimento a partir do fechamento dos espaços e sua transformação em condomínios (CALDEIRA, 2000). É desviado ao se acentuar a dimensão propriamente econômica da produção e reprodução do espaço. A lógica empresarial de produção e de gestão que acentuam a propriedade privada e a mercadoria como elementos estruturadores (MARICATO, 1979). Assim, a “habitação de interesse social” de hoje se reduz a uma provisão econômica de unidades mercantis dispostas em espaços fechados, organizados em condomínios privativos e desconectados, apartados da cidade. Visam separar rigorosamente, tanto no concebido quanto no vivido, o “público” do “privado” - ainda que a distinção público-privado seja mais ideológica do que efetiva na experiência cotidiana. A transformação do “Conjunto” em “Condomínio”, significativo inclusive no que se refere ao uso dessas palavras (GEERTZ, 1989), destitui virtudes espaciais e formas de uso coletivo concebidas a partir da delicadeza que buscou organizar as atividades segundo um crescente de densidade de encontros, de trocas, de experiências: desde os mais intimistas e individuais até o mais extrovertido e coletivo. Essa gradação, que orientou a concepção de sociabilidade, fundamenta-se na necessidade da construção da emancipação do homem, como propõem Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha (ARTIGAS, 2000; PETRELLA, 2012), que pode (ou poderia, em uma visão menos otimista) se libertar dos determinismos da sociedade, dos imperativos das desigualdades sociais entre as classes e dos determinismos da natureza, as barreiras e dificuldades da construção no ambiente (LEFEBVRE, 1971).
Assim, os “altos ideais do gênero humano” se realizam em paralelo à produção de seu espaço (HEIDEGGER, 2001), como atos-reflexos, construindo o ambiente social que desenvolve a humanidade do homem, seu ser-no-mundo, a partir da produção do espaço (LEFEBVRE, 1974). Isso se expressa na radicalidade de como é concebido o conjunto de espaços, segundo a lógica da sociabilidade e da gradação das formas de satisfação de necessidades e desejos comuns. Essas ”formas” são então universalizadas - generalizadas em uma homogeneidade do espaço -, como meio de distribuição equânime das virtudes do desenvolvimento social, sem distinção. Nessa concepção não há lugar para “diferenças formais” que possam expressar “desigualdades sociais” (BOLAFFI, 1977) ao assegurarem privilégios ou a escassez decorrente. É uma ação concebida como exemplar, associada a uma visão positiva da técnica, da ciência e, portanto, da indústria: um encontro feliz com a natureza, apropriando-se de seus recursos para a constituição de um ambiente socialmente adequado. Nesse sentido, o que organizaria a produção e a reprodução do espaço seria a garantia do ambiente amplo, saudável, que ampara a imponderabilidade das atividades cotidianas e a imprevisibilidade da vida. Uma concepção tipicamente moderna (KOPP, 1990). A unidade habitacional é livre de interferências estruturais, organiza-se em função das instalações e das aberturas plenas. Flexível às transformações trazidas pelo tempo. A vastidão dos espaços coletivos, desde os mais íntimos até o mais extrovertido, é “aberta ao infinito”, expansível à totalidade das relações sociais. Nessa distribuição essencialista não há concessões a gostos, a estilos ou a mistificações decorrentes da fragmentação da propriedade privada.
Essa radicalidade no modo exemplar de provisão, no entanto, é carregada de uma visão um tanto quanto “messiânica” (TODOROV, 2012) da produção social, na medida em que se coloca como portadora de uma verdade absoluta e concebida a priori. Sua concepção, abstrata e ideal, realiza-se descolada das contradições reais e concretas dessa mesma sociedade. Em decorrência do choque prático entre esses dois momentos, essa radicalidade se desmantela diante do “amesquinhamento” da ocupação do espaço por essa sociedade, aqui representada pelo conjunto de moradores, que o “reduz” ao torna-lo real. Evidentemente, à luz da contemporaneidade, os olhos marejam diante dos “possíveis” dessa experiência em particular que se tornaram “impossíveis” pela história recente: espaços pensados para a solidariedade, a troca, a comunidade, reduzidos ao pragmatismo da mercadoria. Assim se impõe a desistência dessa “radicalidade” e passa-se à resignação ao pragmatismo econômico, do cálculo das ações cotidianas e de sua derivação mistificadora de “modos de vida”: a não-vivência do condomínio fechado em particular, mas que se complementa com diversas formas do antiurbano, do Shopping Center ao turismo e lazer administrados. A felicidade do agora é regulada por “imagens”, aparência fictícia oriunda do “fetiche do mundo da mercadoria” (MARX, 1985-1986; DEBORD, 1997).
Por isso, o retorno ao Conjunto de Guarulhos é empreendido com um grande respeito. Não aquele dedicado ao santuário intocável posto aos olhos apenas a título de contemplação, mas um respeito que atua como necessidade e desejo de restituir a delicadeza da vida ao horizonte das possibilidades de produção do espaço e da arquitetura. Uma satisfação plena. Busca-se se agarrar a resíduos que ainda escapam da redução ao pragmatismo calculado, da vida reduzida à mercadoria, que forma os enclaves fortificados, a sociedade administrada que reduz ou anula o espaço da sociabilidade coletiva. Resíduos, portanto, que ainda sobrevivem nessa experiência (LEFEBVRE, 1999) e que podem, por ventura, ser exacerbados “na” e “para a” construção de um futuro menos obscuro. Contudo, aqui se ilumina outro problema, pois não se trata de uma tarefa simplesmente conceitual: contraditoriamente, a imagem do “obscuro” é acentuada objetiva e subjetivamente pelas joias arquitetônicas e urbanísticas da contemporaneidade, tão reluzentes quanto únicas. Sua presença “diferenciada”, ofuscante, exacerba o enigma que não mais deciframos: qual o fim da arquitetura e do urbanismo quando suas “formas” se descolam de sua relação (dialética) com os “conteúdos” sociais que as animam?
Nesse sentido, o presente artigo não pretende mostrar o que “foi” o CECAP de Guarulhos, reproduzindo uma mistificação de origem, suas decisões técnicas e estéticas que organizaram a produção e que se reproduziram em outras experiências ao longo do tempo. Essa tarefa já foi realizada “tão mais e melhor” por trabalhos de grande fôlego (THOMAZ, 1997; PIGNANELLI, 2003) e que podem ser considerados como clássicos do estudo da produção arquitetônica desse período. Também não se deseja mostrar o que ele “teria sido” caso houvesse escapado aos desvios de rota que o “deturparam” e o “corromperam’, em uma visão nostálgica e melancólica, purismo idealista que busca conservar apenas seu mito fundador a ser reproduzido mecanicamente em um “futuro imaginário”. Esse ensaio pretende lançar luz àquilo que ele ainda “pode ser”, expandindo as suas fronteiras, de espaço e de tempo, através de suas contradições reais, que emergem de sua condição particular e empírica e se projeta como possível leitura das contradições de nossa sociedade, de nosso tempo, apontando para possibilidades do ainda não realizado. Nesse sentido, busca-se reconhecer sua condição prática e concreta ao refletir sobre as formas reais de ocupação por um grupo social e, pela observação e interpretação do presente, confrontar e relacionar as concepções arquitetônicas e urbanísticas com as formas de organização e uso social desse espaço. Desse modo, pretende se despir-se desses “desvios” e romper com cascas de seus dogmas. Almeja tocar em sua “essência”, praticamente realizada, de modo delicado e respeitoso, como um tesouro.
AS FORMAS DO CONJUNTO
O Conjunto Zezinho Magalhães Prado se constitui como um sistema ideal de distribuição de usos e atividades no espaço, realizado a partir de uma matriz abstrata que articula unidades habitacionais, equipamentos coletivos e de lazer, conectados de modo funcional e sistêmico: fragmentado, hierarquizado e homogeneizado (LEFEBVRE, 1999). Essa matriz poderia se reproduzir e se expandir ad infinitum sobre o território, na medida em que a pré-existência, tanto social, quanto espacial, é despida das virtudes necessárias à constituição do habitar proletário moderno em harmonia com a natureza (PETRELLA, 2012) na medida em que concebe todos os tempos do cotidiano da reprodução da força de trabalho resolvidos através de uma escala espacial: gradação de usos, de dimensões e de densidades populacionais ordenadas, desde o mais individual ao mais coletivo. Essa gradação se realiza a partir do módulo mínimo, a unidade habitacional, e se expande até alcançar a totalidade de relações sociais concebidas a princípio (Figura 1).

Quatro unidades habitacionais são agrupadas em torno de uma escada, um conjunto com circulação horizontal e vertical em “H”. Cinco módulos desse “H” compõem um pavimento (20 unidades). Três pavimentos compõem um “bloco”, que toca o solo por meio dos pilotis (60 unidades). Os blocos são situados paralelamente e criam uma sucessão de espaços cobertos e descobertos, alternando os pilotis e as áreas livres. Esses espaços amparam atividades diretamente ligadas às habitações: área infantil, lazer, verde, estacionamento. O conjunto de oito blocos, distribuídos quatro a quatro (480 unidades), forma uma “unidade de vizinhança”. Quatro dessas unidades formam a “freguesia” (1920 unidades), em cujo centro, entre duas unidades de vizinhança de um lado e duas de outro, estão localizados os equipamentos e serviços coletivos destinados ao conjunto de moradores, tais como escolas primárias, centros comerciais de dimensão local, áreas de lazer e de esporte. Entre as freguesias, estão localizados os equipamentos e serviços coletivos de maior porte, destinados a um maior número de pessoas, tais como centro de abastecimento, estádio de esportes e clube, cujo porte e escala fazem a mediação e a integração do Conjunto com a Metrópole (PETRELLA, 2012) (Figura 2).

Nesse sentido, compõe-se uma matriz que se repete e assim se expande, formando uma malha (uma trama, rede ou tecido) que virtualmente pode atingir todo o território. É uma concepção que parte idealmente da eleição e organização de atividades e suas formas de sociabilidade correspondentes. Portanto, uma concepção descolada da prática social real e concreta, bem como do contexto urbano, acentuado pelo fato de efetivamente eles não existirem nessa situação: é a urbanização que avança sobre os territórios rurais, dissolvendo as fronteiras da cidade ao incorporar o campo. No nível da totalidade social, o Conjunto de Guarulhos acentua a necessidade e o desejo de construção de “um novo espaço para um novo homem”, centralizado na figura do trabalhador assalariado moderno e em posse dos meios de produção e reprodução de sua vida. Uma sociedade que reside (ou residia) apenas no porvir. Assim, para a realização desse “projeto” (arquitetônico, urbanístico e social), a localização das moradias dos trabalhadores deveria ser próxima dos locais de trabalho, notadamente a indústria que se desenvolvia - condição essa que foi assegurada pela ligação do Conjunto com a Rodovia Dutra. Sucessivamente, em função do grande número de unidades habitacionais a ser produzido, a produção apareceu (1967) como um momento privilegiado do desenvolvimento da indústria da construção civil ao se estabelecer a relação direta entre o conhecimento e as técnicas (engenharia e arquitetura), a incorporação do capital produtivo das empresas privadas e a formação do operariado industrial e imobiliário. Para tanto, constituiu-se a grande gleba. Em função dessa magnitude e de sua condição inaugural de urbanização, o “lugar” novo e distante da “cidade existente”, foi necessário prover essa “nova cidadela” que se formaria com equipamentos e serviços coletivos para amparar a totalidade da vida cotidiana (PETRELLA, 2012) (Figura 3).

No entanto, o conjunto de edificações e de espaços concebido não foi construído completamente como o planejado. Foram descartados processos e partes fundamentais ao desempenho das atividades cotidianas: construção baseada na extensão do uso da força de trabalho em detrimento da intensificação do uso da maquinaria industrial, menor número de unidades habitacionais e ausência de equipamentos coletivos de maior densidade de uso. O espaço decorrente, desolado pelas ausências, reduziu-se a um tipo de satisfação (de necessidades e desejos) “básica”. Mínima. Ele apenas pôde se constituir em sua “totalidade” ao longo do tempo e a partir de sucessivas intervenções e modificações realizadas pelo conjunto de moradores (como relatado nas sucessivas entrevistas com moradores e ex-moradores do conjunto). Essas transformações minimizaram paulatinamente a carência e a homogeneidade dos meios de satisfação “originais”, assim como a abertura do conjunto ao infinito e imponderável da vida, aproximando-o objetiva e subjetivamente da urbanização periférica tradicional (Figura 4).

O CECAP Zezinho Magalhães Prado foi construído originalmente a partir de rigorosas fronteiras socioespaciais, entre o “Conjunto” e o “não-Conjunto”: o “Ser” e o “Ser-outro”. No interior, a provisão das unidades habitacionais e dos equipamentos coletivos propriamente ditos. No exterior (ou nos interstícios da ausência desoladora), “o vazio”, percebido em todos os sentidos do termo: espaços desocupados, ermos, ou ocupados por loteamentos irregulares que se constituíram, em sua precariedade, na “sombra do planejamento” e do próprio Conjunto. Com o passar do tempo, as transformações espaciais realizadas dissolveram a clareza dessas fronteiras, de dentro para fora e de fora para dentro. Paulatinamente foi deixando de ser “Conjunto Habitacional” ao se integrar ao entorno imediato que também se urbanizava. Essa dissolução, por assim dizer “urbanística”, se realizou ao mesmo tempo em que houve o fechamento “arquitetônico” das unidades habitacionais, que se resguardaram a partir de seu cercamento, formando os “Condomínios”: um aparente “emburguesamento” de seus moradores. É, portanto, uma transformação composta por dois momentos contraditórios e complementares: de “integração” socioespacial do Conjunto ao seu entorno, tornando-se efetivamente uma cidade, e de “cercamento” das unidades habitacionais, segregando-se, inclusive em termos semânticos, na transformação da “freguesia” em “condomínio”. Essa transformação justapôs o “Ser” ao “Ser-outro”9, acentuando a privatização do espaço coletivo através do condomínio e exacerbando sua individualização, ao mesmo tempo em que se “protege” da violência presente-ausente do entorno. Esses dois momentos, contraditórios e complementares, integração e cercamento, modificam as relações socioespaciais “originárias”, transformando aquilo que foi uma “imediaticidade engenhosa”, algo como as relações estabelecidas entre o grupo social e o espaço a partir dos escassos recursos materiais existentes (as brincadeiras infantis sob os blocos dos edifícios, os equipamentos improvisados nas praças ou as reuniões e festas nos apartamentos, conforme entrevistas), em “equipamentos centralizados”, cuja administração se dá através de instituições alheias e impessoais10. Nesse sentido, o “coletivo”, que seria a base da relação social necessária, equilibra-se entre um “comunitário familiar”, representado pelo espaço burguês patriarcal e sua necessidade de individualização contra o “coletivo em abstrato”, e a “impessoalidade pública”, representado pela interferência do mundo institucional sobre o Conjunto através da administração de relações sociais (Figura 5).

Essa ambiguidade ainda pode ser percebida através das diferentes representações do espaço coletivo que são empreendidas pelo conjunto de moradores entrevistados, relatos que servem de material para as interpretações que aqui se seguem. Por um lado, ele é “pequeno” quando é sinônimo de superexposição decorrente da falta de privacidade ou do excesso de vigilância; por outro lado ele é “grande” quando há a pré-disposição para os encontros e para a exposição. Esses dois valores, normalmente associados a “quantidades” espaciais, aqui expõem diferentes “qualidades” que explicitam sua relação com os momentos da apropriação cotidiana de espaços de lazer. Essa forma de representação do espaço se reproduz nas intervenções realizadas para a satisfação de necessidades e desejos decorrentes do “tempo do não-trabalho”: a provisão doméstica de equipamentos e serviços coletivos, descartados no processo “oficial” de produção, tais como as padarias, os trailers (restaurantes e mercearias), os bares e quiosques. Eles são produzidos no interior do processo de “integração” e “cercamento” e acentuam a dimensão coletivo-comunitária através do avanço das relações e dos espaços privados sobre os vazios subjetivos e objetivos do público.
Apesar de intervenções como essas desmantelarem a radicalidade original da concepção do Conjunto, elas proporcionaram efetiva e contraditoriamente a apropriação cotidiana dos espaços. O Conjunto tornou-se habitado, produziu novos relacionamentos sociais e garantiu a melhoria efetiva das condições de vida dos trabalhadores, e houve uma alegria nessa constituição. A sociabilidade real e concreta, ainda que reduzida e redutora, foi produzida em paralelo às transformações do espaço construído: o espaço e o homem, não mais tão novos assim. No entanto, esse grupo social que se constituiu torna-se consciente de sua ação, de seu ser-no-mundo: “habitat” e “habitar” em unidade concreta (HEIDEGGER, 2001), embora essas transformações tenham sido contraditórias e conflituosas na medida em que as diferenças sociais, antes obscurecidas no momento da homogeneidade das soluções universalistas, puderam se expressar como desigualdades sociais, ao imprimir de modo “diferenciado” os meios de distinção social através da produção do espaço.
Esse processo é acentuado por sua condição de espaço social novo, considerado imaturo, infantil. Tudo está por vir. Por um lado, em função de sua recente existência, pois é objetivamente uma nova “pequena cidadela”: cinquenta anos. O tempo ainda lhe impinge transformações que mudam quantitativa e qualitativamente seu caráter. Essa “imaturidade” é também parte constitutiva da própria metropolização, que acentua a “diferenciação espacial” e sua relação com a exacerbação das “desigualdades sociais”, e extrapola as fronteiras do Conjunto e da Metrópole e se liga ao processo histórico: o Brasil é objetivamente um país novo, impregnado de personalismo, de sucessos privados e fracassos públicos, condição que é aguçada, ainda que não seja de modo determinista, pelo passado colonial que ainda ecoa na sociedade do presente, efetiva e ideologicamente organizada a partir de uma sociabilidade de características comunitárias, patriarcal, rural e religiosa (Figura 6).

Mas como então transformar esse “comunitário” arcaico em “social”, na medida em que se quer apontar possibilidades do devir? A densa experiência do CECAP mostra um momento dessa transformação, ao menos parcialmente. Em certa medida realiza, através de um primeiro encontro brusco, a justaposição “violenta” e “primitiva” das relações comunitárias ao contato “social e coletivo”. Produziu um choque que, evidentemente, gerou sucessos e insucessos. A repetição homogênea, fragmentada e hierarquizada das soluções universalistas, é representada e vivida pelo conjunto de moradores como uma virtude da razão se comparada ao “laissez-faire” dos “puxadinhos amontoados” da autoconstrução, o “Ser-outro”. A “beleza” ganha um novo sentido quando identificada à geometria decorrente dessa razão (como pode ser observada no conjunto de fotografias presente neste ensaio). Uma educação estética (MÉSZÁROS, 2006) que pretende contribuir com a tomada de consciência e a transformação efetiva das formas de vida (conforme se vê na fala de uma ex-moradora, que abre este ensaio), embora também seja reconhecido que, nessas casas autoconstruídas, a sua conformação física possa ser mais maleável aos desejos individuais de seus ocupantes que a “trans-formam” livremente no interior de sua intimidade. Essa “intimidade” é posta em oposição às possibilidades de “relacionamentos” mais intensos proporcionados pelos edifícios paralelos do Conjunto: é a potência do coletivo e da troca de experiências. Nesse sentido, o CECAP de Guarulhos se situa entre promessas abstratas de emancipação social e o rebaixamento concreto e efetivo de necessidades e desejos a serem satisfeitos. O possível e o real em contradição. E eis a sua virtude: a “delicadeza” como uma manifestação “inconformista” diante dos determinismos da sociedade e da natureza. Não uma delicadeza purista, original, fundadora, mas uma amparada pelo reconhecimento de práticas sociais concretas que orientam sua efetiva constituição como espaço social, portanto, como “produção social do espaço em contradição”. Nesse sentido, dependendo da forma como se organiza a produção do espaço em identidade com a produção de relações sociais, o “ser-no-mundo”, pode-se engendrar transformações mais amplas: das necessidades mínimas às fruições máximas! (Figura 7).

Esse constituir-se, contudo, tem significações diversas. Inclusive no modo como é representado no interior da heterogeneidade social do conjunto de moradores, variando de acordo com a faixa etária e a inserção nas relações de trabalho. O Conjunto foi vivido intensamente apenas no período da infância desses moradores, cujos horizontes espaciais abertos e infinitos (veja, por exemplo, as fotografias presentes neste ensaio) proporcionaram a extensão de relações e de sua conquista pelo conjunto de crianças. O “galgar espaços” realizado em paralelo ao amadurecimento individual e coletivo; processo de formação. Essa sociabilidade infantil é representada pelos que hoje são adultos (PETRELLA, 2012), portanto, como um momento em particular e que já não pode mais ser visto com a mesma intensidade: a relação espacial, por assim dizer lúdica, com sua beleza e erotismo11, produto da delicada concepção arquitetônica que relaciona as potências humanas à transformação da natureza, acabou se restringindo às crianças.
No entanto, até mesmo elas envelhecem e nesse amadurecimento se integram às relações de trabalho (sua divisão social e técnica). Paulatinamente o espaço coletivo se tornou incômodo, disciplinador, restritivo. Redutor. Nesse processo de inserção no mundo do trabalho, perdeu-se a sociabilidade “intra-Conjunto” ao expandir a sociabilidade “extra-Conjunto” (ver entrevista que se inicia na página 30 do referido trabalho). Quer dizer, a partir do mundo do trabalho, ausente na constituição do espaço coletivo-comunitário, as relações sociais extrapolaram as fronteiras do Conjunto Habitacional e alcançaram a metrópole, ainda que seja uma metrópole que não se oferece e nem aparece como apropriada. A sociabilidade infantil interior reitera o espaço do lazer, o espaço do “não-trabalho”, o espaço que se efetiva cotidianamente sem a presença do trabalho12 - o que não deixa de ser mais uma contradição: no mundo adulto do trabalho, o coletivo de lazer é constituído por relações comunitárias ambíguas, situadas entre o individualismo exacerbado e a impessoalidade pública em vias de privatização. “E a construção do CECAP de Guarulhos?” Há de se perguntar. “Como foi e como é a construção desses espaços? Quem são (ou foram) seus trabalhadores-construtores?”.
O produto deste trabalho materializou o expandir da sociabilidade coletiva para o campo do inapropriado e impôs, em certa medida, a demarcação da individualidade e de formas de distinção no interior do Conjunto. Para quem lá vive e está fora das relações de trabalho, como os desocupados, os desempregados ou os trabalhadores domésticos, o Conjunto parece ter lhes retirado o tempo da experiência do “tempo do trabalho”, resignados ao convívio comunitário, apartando-os do convívio metropolitano (ver entrevista que se inicia na pág. 68 do referido trabalho). Isolamento acentuado pelo poder mistificador do “condomínio fechado” que isola e se isola ao se constituir pratica e semanticamente em oposição ao “conjunto habitacional” (Figura 8).

A relação cotidiana entre trabalho, lazer e moradia, mediada pela apropriação e produção privada do espaço, engendra um processo de negação prática da “forma Conjunto Habitacional” (PETRELLA, 2011), integrando o Conjunto ao entorno e cercando suas unidades habitacionais em condomínios. Se o “Conjunto Habitacional” é associado a trabalhadores assalariados, “todos iguais”, o “Condomínio” aparece como a expressão da individualização, meio de “distinção”. Assim, aquele “coletivo” identificado à “freguesia”, com suas gradações espaciais, é substituído pela segregação e separação de espaços, reduzindo as formas de convívio. A “freguesia” (e sua dissolução) é representada de modo ambíguo: aparece “negativamente”, como sujeição a uma autoridade alheia, em função da impossibilidade de transformação estrutural do construído: as unidades habitacionais e o próprio edifício, onde a “casa” é representada como o modelo onde isso é possível, e “positivamente”, na medida em que essa mesma forma construída efetivamente não apartava pelo apartamento, possibilita encontros, trocas e laços de amizade que se realizam no ambiente produzido e reproduzido com qualidades e quantidades superiores às do entorno. Quando alguns de seus moradores deixam o Conjunto (representando uma superação da “forma Conjunto Habitacional”), esse movimento de “sair para o mundo” também aparece de modo ambíguo. Por um lado, um sinal de “liberdade” em função da constituição da individualidade associada à impessoalidade das relações que a metrópole proporciona (as atividades, os encontros sem a vigilância do “outro” que está atrás das cortinas); mas, por outro lado, essa liberdade conquistada a partir da experiência urbana também aparece como “privação”, como efetivo isolamento: o mundo sem encontros e trocas de experiências. A solidão brutal (ENGELS, 1975) no momento de expansão das fronteiras da experiência individual que se enriquece em relação àquelas restritas ao Conjunto. Essa ambiguidade, que tanto expressa liberdade e privação, parece nos apontar a necessidade de constituição do “espaço coletivo”, negando as restrições impostas pelas fronteiras espaciais rígidas e pré-determinadas e, também, pela abstração dos indivíduos e suas relações que se estabelecem na cotidianidade. Negatividades redutoras de experiências (Figura 9).

Por outro lado, ainda, se o Conjunto Zezinho Magalhães Prado apareceu como um lugar de redução de experiências, também apareceu como forma de conhecimento e de produção de espaços superiores às atividades parcelares e isoladas, a urbanização periférica, os loteamentos irregulares. A potência produtiva do Conjunto, portanto, é uma positividade que é engendrada no interior das relações de produção identificadas à indústria13 (em oposição ao “artesanato comunitário” desses loteamentos). Assim, o Conjunto Habitacional, mediado pela experiência do CECAP, mesmo que historicamente determinada, expressa a constituição de um “repertório”, de uma possibilidade e de um processo concreto de “educação estética” (MÉSZÁROS, 2006) onde a necessidade e o desejo de beleza, a “obra” em oposição ao “produto”, aparece como ato-reflexo dos sentidos humanos humanamente desenvolvidos. Isso representa, ao menos no campo do “possível”, uma forma de organização do espaço com finalidades e sentidos especificamente humanos, superando as determinações da sociedade e da natureza.
Ainda que se realize contraditoriamente, rompe suas fronteiras pelo galgar espaços e amadurecimento das relações sociais; as reproduz de outro modo através dos cercamentos. O Conjunto se integra ao entorno, rompendo as fronteiras que o isolariam de contatos sociais mais amplos. Nessa dissolução, proporciona a constituição da individualidade em relação com o coletivo, ainda que marcada pelo aspecto comunitário. Nega, desse modo, a negatividade da impessoalidade burocrática do Estado e a solidão brutal do individualismo. Restitui o momento do “trabalho”, ausente na “cidade dormitório” que se formou por suas ausências, a partir da criação de espaços coletivos de lazer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A “eterna incompletude” abre horizontes à constituição do ser-no-mundo, identidade entre produção do espaço e produção de relações sociais. Espaço e homem reais. Nesse sentido pode-se destacar uma positividade radical no Conjunto de Guarulhos: sua abertura ao ato. A incompletude aparece como meio possível de completude, pela experiência concreta e cotidiana. Pelas formas de apropriação e das relações de produção do espaço14. Esse Conjunto aposta na sociabilidade em construção como “processo” e como “arquitetura e urbanismo”, aposta essa que se dá pela configuração espacial que visa amparar a imponderabilidade da vida, de usos e atividades: um meio de se conquistar as “não-coisas”, a sociabilidade, através das “coisas”, a construção (Figura 10).

REFERÊNCIAS
ARTIGAS, R. (org.). Paulo Mendes da Rocha: textos de Paulo Mendes da Rocha e Guilherme Wisnik. São Paulo: Cosac & Naify, 2000.
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NOTAS