Artigos de Pesquisa

O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO DO CENTRO HISTÓRICODE URUSSANGA (SANTA CATARINA) 1

THE ARCHITECTURAL HERITAGE OF THE HISTORICAL CENTER OF URUSSANGA (SANTA CATARINA)

VIRGINIA GOMES DE LUCA
Universidade Federal de Santa Catarina, Brazil
ALINA GONÇALVES SANTIAGO
Universidade Federal de Santa Catarina, Brazil

O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO DO CENTRO HISTÓRICODE URUSSANGA (SANTA CATARINA) 1

Oculum Ensaios, vol. 17, e204668, 2020

Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo

Recepção: 19 Junho 2019

Revised document received: 21 Novembro 2019

Aprovação: 09 Dezembro 2019

RESUMO: O município de Urussanga caracteriza-se como o conjunto urbano de referência da imigração italiana mais íntegro e mais representativo do Estado de Santa Catarina. A Praça Anita Garibaldi, que é o agente conformador do espaço urbano, ainda resguarda a escala humana e a paisagem urbana, além de concentrar o valor patrimonial e os elementos históricos formadores da ocupação inicial da cidade. O conjunto de edificações do final do século XIX e início do século XX possui volumetria e gabarito ainda uniformes e, embora de caráter singelo e heterogêneo em suas linhas arquitetônicas, possui nítidas características do estilo e técnicas da arquitetura italiana. A tentativa de construir uma nova Itália em outro país provocou uma série de adaptações da cultura ao meio, o que resultou na construção de um espaço com características únicas tanto em relação aos costumes, idiomas e culinária, quanto ao uso da terra e relação com a natureza. A presente pesquisa procura tratar da importância histórica e cultural deixada pelo imigrante italiano ao longo do processo colonizador no sul do Estado de Santa Catarina. A constituição morfológica do conjunto urbano de características da imigração italiana será realizada através da metodologia do Inventário Nacional de Configuração dos Espaços Urbanos. O estudo da paisagem urbana do núcleo central de Urussanga afirma o valor do imigrante italiano para a formação da cultura brasileira e a inclusão de novas práticas de preservação voltadas para a paisagem urbana.

PALAVRAS-CHAVE: Conjunto urbano, Imigração italiana, Patrimônio edificado, Praça Anita Garibaldi.

ABSTRACT: The municipality of Urussanga is characterized as the most complete and representative urban group of reference for Italian immigration in the State of Santa Catarina. The Anita Garibaldi Square, which is the agent that shapes the urban space, still maintains the human scale and the urban landscape, and concentrates the heritage value and the historical elements that formed the initial occupation of Urussanga. The set of buildings from the late nineteenth and early twentieth centuries still has uniform volumetry and gauges and, although its architectural lines are of a simple and heterogeneous character, it has clear characteristics of the Italian architecture style and techniques. The attempt to build a new Italy in another country provoked a series of adaptations of the culture to the environment, which resulted in the construction of a space with unique traits, both in relation to its customs, languages, and cooking, and to its forms of land use and relation with nature. The present research assesses the historical and cultural importance left by the Italian immigrant throughout the colonizing process in the south of Santa Catarina. The morphological constitution of the urban set of characteristics of the Italian immigration will be carried through the Inventário Nacional de Configuração dos Espaços Urbanos methodology. The study of the urban landscape of the central nucleus of Urussanga affirms the value of the Italian immigrant to the formation of the Brazilian culture and the inclusion of new practices of preservation directed toward the urban landscape.

KEYWORDS: Urban heritage, Italian imigration, Built heritage, Anita Garibaldi square.

INTRODUÇÃO

A partir da década de 1960, comunidades, estados e municípios passaram a se envolver mais com a questão da preservação do patrimônio cultural. Como consequência, houve também um aumento da demanda junto ao governo federal pela preservação de forma mais ampla e diversificada, diferente do que era feito no passado com a criação da Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). O caráter elitista do conceito de patrimônio cultural privilegiava monumentos identificados com a cultura dominante, de características luso-brasileira, atrelada à noção de excepcionalidade e ao retrato da nação que se identificava com a cultura do colonizador europeu. A motivação ocorreu não apenas pela ampliação do conceito de patrimônio histórico e artístico, mas também por sua democratização através da participação das comunidades na constituição e no gerenciamento do seu patrimônio.

Somente a partir da década de 1980, a proteção através do tombamento de bens de outros exemplares que não fossem as edificações de características luso-brasileira recebeu atenção. A Constituição Federal de 1988 salienta que são objeto de proteção do Estado brasileiro os bens pertencentes a todos os segmentos sociais, sejam representativos das elites, sejam das camadas ‘populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional’.

Corroboramos com Arnaut (1992) quando salienta que o Brasil possui um conjunto de leis muito expressivo para a proteção de seus bens culturais materiais - documentos, obras, sítios, monumentos e paisagens. Desde a criação da SPHAN, o governo brasileiro desenvolve ações que visam a preservação da memória e dos valores culturais do país. Quando o estado atua na proteção, no registro e na divulgação do patrimônio, valoriza-se a cultura e a identidade nacional. Nesse contexto, as correntes migratórias do fim do século XIX constituem parte do processo civilizatório brasileiro, sendo parte fundamental da cultura, da política e da economia.

O PATRIMÔNIO HISTÓRICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA

O processo de ocupação do território catarinense é baseado em etapas distintas que se sucederam ao longo de mais de 200 anos. Após o reconhecimento do território, ainda no século XVI, ocorreram as fundações de vilas litorâneas no século XVII, as imigrações açorianas no século XVIII e a alemã, italiana e polonesa ao longo do século XIX.

Os imigrantes alemães e italianos estabeleceram-se em regiões praticamente intocadas, localizadas no interior do estado e fragilmente ligadas aos núcleos luso-brasileiros já instalados no litoral. Assim, desenvolveram-se as chamadas ilhas culturais, que formaram contextos culturais praticamente inalterados e de inestimável valor patrimonial. Dialetos, técnicas agrárias, estórias, festas, hábitos alimentares, carpintaria e arquitetura, em geral os modos de fazer, são algumas das expressões ainda vivas desse contexto. Essas ocorrências existem em espaços geográficos delimitados, emoldurados por paisagem natural e cultural, o que torna a referida região uma referência no cenário nacional.

O acervo cultural caracteriza-se basicamente pela ausência de monumentalidade, diversidade de técnicas construtivas e de tipologias arquitetônicas, como resultado desse processo colonizador e como consequência das correntes migratórias que colonizaram o Estado de Santa Catarina, vindas de diferentes partes da Europa, conforme publicado na “Revista SPHAN: Pró-Memória”:

Santa Catarina não possui igrejas, teatros e edifícios públicos imponentes ou ricamente decorados, característicos do barroco, neoclássico ou do eclético vivenciado por outros estados que passaram, em dado momento, pelo apogeu econômico dos vários ciclos que o Brasil atravessou. Santa Catarina, ao contrário, foi ocupada por colonos europeus e por guarnições militares, com o único objetivo de assegurar a posse da terra, estratégica então. O resultado, aparentemente pobre em termos patrimoniais, tem se revelado ser um valiosíssimo legado cultural não monumental, original e único, que vem sendo melhor estudado e tratado através de vários projetos que estão sendo desenvolvidos atualmente a nível municipal, estadual e federal em Santa Catarina. A Sphan/ próMemória, através da 10ª Diretoria Regional, tem intensificado sua atuação no estado, com apoio da Fundação Catarinense de Cultura, da Universidade Federal de Santa Catarina e outras instituições, restaurando duas fortalezas próximas a Florianópolis, peças de grande significado histórico que remontam ao conflito com a Espanha; e realizando um cadastramento piloto dos extensos bens arquitetônicos culturais resultantes das imigrações italiana e alemã, que foram a base da ocupação e da formação do Estado, em todos os sentidos (SANTA..., 1983, p. 7).

A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DO IMIGRANTE EM SANTA CATARINA

Com a criação da Fundação Catarinense de Cultura (FCC) em 1979, foi proposto um projeto chamado Inventário das Correntes Migratórias. O projeto, iniciado em 1983 e concluído em 1984, promoveu o cadastramento de edificações de importância no contexto das várias etnias que compõem o panorama cultural catarinense: povoamento açoriano (Laguna e São Francisco do Sul), colonização alemã (Joinville e São Bento do Sul) e italiana (Urussanga e Nova Veneza). Nessas cidades onde mais se destacava a arquitetura europeia, foram tombados núcleos e edificações isoladas tanto no meio urbano quanto rural, sendo considerados documentos vivos da história da colonização e da cultura do Estado de Santa Catarina, como salienta Adams:

A FCC, através da Unidade de Patrimônio Cultural, voltou sua atenção para a preservação do patrimônio edificado, com ênfase no interior do estado, ate então destituído de estruturas para responder mais diretamente essa preocupação. Iniciou-se uma proposta pioneira com o ‘Projeto do Inventário das Correntes Migratórias’, resgatando, além da luso-brasileira, também as culturas alemã e italiana, que se estruturaram respectivamente no norte e sul do estado. A partir da elaboração dos inventários foram tombados, em âmbito federal, os centros históricos de Laguna e São Francisco do Sul, inserindo-se entre as primeiras iniciativas do gênero no estado (ADAMS, 2002, p. 61).

A maioria das áreas fundadas pelos imigrantes alemães e italianos ainda mantém um grande número de edificações construídas durante o final do século XIX e início do XX, caracterizadas por uma arquitetura de notável qualidade construtiva e métodos próprios trazidos pelos imigrantes. A arquitetura da região reflete a experiência e habilidade dos construtores que vieram colonizar o estado, a diversidade étnica e a maneira como os imigrantes se adaptaram ao novo ambiente, usando conhecimentos de gerações e fontes locais de matéria prima. A evidência desses traços culturais está clara nas inúmeras edificações existentes na região e únicas no contexto nacional.

O mínimo de manutenção e intervenção nos últimos tempos, aliado à evidente necessidade de uma postura nacional de preservação, conservação e restauração resultam na necessidade premente da proteção dessas áreas como patrimônio nacional, visando preservar a autenticidade e integridade da arquitetura de imigração no sul do Brasil.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Em 2000, o IPHAN apresentou a metodologia do Inventário de Configurações de Espaços Urbanos (INCEU). Essa metodologia começou a ser desenvolvida a partir de debates sobre a questão urbana, conceitos de cultura, memória e identidade. Elaborada sob a coordenação de Maria Elaine Kohlsdorf, a metodologia estabelece uma leitura urbana, de forma a identificar elementos e qualidades semelhantes aos conceitos apresentados pela teoria de análise urbana do livro A imagem da Cidade, de autoria de Kevin Lynch. Lynch (2010) estabeleceu uma metodologia de leitura do espaço a partir de conceitos de análise urbana como legibilidade, construção da imagem, estrutura e identidade e imaginabilidade. Tratam-se de elementos visuais que são referências físicas na construção do imaginário da população que transita pelos espaços.

Cullen (1983) trata a visão como principal forma de apreensão da paisagem urbana. Entre os aspectos da experiência visual da paisagem destacados pelo autor, encontra-se a ótica, que, no percurso do transeunte pela cidade, se desenvolve em sucessão de pontos de vista. Segundo o autor, a paisagem urbana surge na maioria das vezes como uma sucessão de surpresas ou revelações súbitas. É o que se entende por visão serial (CULLEN, 1983). Del Rio (1990) realiza abordagem semelhante ao aplicar a visão serial proposta por Cullen (1983) no estudo que envolve percurso urbano realizado no centro da cidade do Rio de Janeiro.

Segundo o Manual do INCEU (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2011), as características configurativas dos lugares, captadas pela percepção, dependem das peculiaridades do aparelho visual humano, das operações mentais envolvidas e de condições de iluminação, mas também de certos atributos da forma do espaço. O mecanismo perceptivo humano faz com que os lugares sejam apreendidos por meio do movimento dos indivíduos, da seleção das informações ofertadas pela forma do espaço e da transformação de suas características morfológicas.

Assim, o INCEU propõe sete categorias no nível projetual ou da representação geométrica: Categorias de totalidade (planta baixa e conjunto de planos verticais), Categorias parciais (elementos sítio físico, elementos edílicos, elementos de engenharia urbana, elementos complementares) e Categoria síntese (estrutura interna do espaço). Cada uma delas permite analisar as possibilidades de como os atributos de cada um de seus respectivos elementos configuram a identidade do sítio considerado no que se refere à sua forma. Acredita-se que esse conjunto organizado de representações do espaço contemple a análise de sítios urbanos tombados, inventariando características como definição das silhuetas, composição geométrica das unidades morfológicas e das temáticas de composição das diversas partes do conjunto urbanizado, ou verificando como o mobiliário urbano, a vegetação, as águas, o relevo do solo e os diversos veículos de propaganda (placas, letreiros etc.) participam de sua configuração urbana.

O patrimônio arquitetônico de Urussanga foi tombado pela Fundação Catarinense de Cultura (FCC), sendo que os processos de tombamentos tiveram início no ano de 1994 e foram homologados em 2001. Atualmente, Urussanga conta com 18 edificações tombadas na zona urbana central, todas no entorno da Praça Anita Garibaldi, e outras 6 edificações na zona rural.

Para este estudo em específico, foram utilizadas as Categorias de totalidade e as Categorias parciais dos elementos do sitio físico e dos elementos edílicos para a análise da morfologia urbana do conjunto edificado no entorno da Praça Anita Garibaldi, com foco nas edificações tombadas pela FCC.

Conforme o Manual de Aplicação do Inventário de Configurações de Espaços Urbanos (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2001), nas Categorias Analíticas de Representação Projetual do Espaço recolhem-se dados sobre a configuração da área considerada (cidade ou uma fração urbana).

Nas Categorias de Totalidade (Categoria Planta Baixa) é analisada a área considerada como representação em planta baixa, isso é, em projeção ortogonal no plano horizontal. Nessa representação, observa-se como certos elementos incidem nos traços de identidade da cidade, setor ou fração sob preservação, pois sua presença é, muitas vezes, responsável por estações, campos visuais e efeitos topológicos e perspectivos das sequências apreendidas na percepção. Nessa categoria são analisadas a malha, macroparcelamentos, microparcelametos e a relação de cheios e vazios da Praça Anita Garibaldi.

Nas Categorias Parciais (Categoria de Representação Projetual: Elementos de sitio físico) apenas parte das informações necessárias para a análise são encontradas nos sistemas cadastrais e georreferenciados, pois elas expressam os atributos territoriais em planta, com informações sobre relevo (em curvas de nível), por vezes indicações sobre as águas, mas poucos dados sobre vegetação. Por isso, é necessário buscar as demais informações em outros meios (fotografias, desenhos e outros), implicando coleta em campo ou a partir de fontes documentais. Na categoria Sítio Físico, os seguintes elementos devem ser analisados: relevo do solo, vegetação e água de superfície. Na Categoria de Representação Projetual: Elementos Edilícios observa-se como a configuração dos edifícios, isoladamente e formando conjuntos, participa da identidade da área inventariada. Portanto, na análise de configuração urbana, os edifícios são analisados em seu papel na composição dos lugares ou situações e não por si mesmos, importando apenas suas características morfológicas externas. Sabe-se que, na maioria dos casos, os conjuntos de edifícios são os principais estruturadores das áreas livres públicas das cidades - do espaço propriamente urbano -, e os elementos mais presentes na formação dos eventos sequenciais, sejam eles as estações, os intervalos, os campos ou os efeitos visuais. São analisadas as relações intervolumétricas entre os edifícios, a volumetria dos edifícios e as fachadas dos edifícios.

A PRAÇA ANITA GARIBALDI

Dentre as diversas etnias que compõem a população dos municípios do sul do estado, a cultura de origem italiana se sobressai por apresentar maior expressão cultural, tanto pelo número de núcleos urbanos e rurais, quanto pelos testemunhos dos primeiros colonizadores.

A região sul do Estado de Santa Catarina, pela quantidade de imigrantes italianos que recebeu, configura-se como uma verdadeira região de cultura ítalo-brasileira. A cultura italiana deixou traços na arquitetura civil e religiosa, na indumentária, na música, nas danças e na culinária. É nessa região que se encontra a mais forte manifestação da arquitetura rural da Itália setentrional, ainda hoje preservada nas antigas construções e em parte das construções novas que mantém algumas referências formais e espaciais tipicamente italianas. Entre os recursos culturais, a região dispõe de rico patrimônio pouco explorado, onde é destaque a importância dos acervos de interesse histórico-cultural que representam os municípios de Nova Veneza, Pedras Grandes, Orleans e Urussanga.

Do núcleo colonial fundado em 1878 pelos imigrantes italianos, o município de Urussanga passou por intensas transformações em sua paisagem urbana. A Praça Anita Garibaldi, por sua vez, é o agente conformador do espaço urbano e até os dias atuais mantém o caráter agregador e de encontro. O núcleo de Urussanga configura-se como o maior conjunto urbano de características tipicamente italianas do Estado de Santa Catarina. Todo o conjunto urbano do entorno da praça configura a estrutura matriz de formação do povoamento, conforme atesta a iconografia de 1940 (Figura 1).

Praça Anita Garibaldi e o centro de Urussanga vistos a partir da torre da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, final da década de 1940.
FIGURA 1
Praça Anita Garibaldi e o centro de Urussanga vistos a partir da torre da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, final da década de 1940.
Fonte: Acervo do Jornal Panorama, disponível em Ferri (2019).

Os sobrados coloniais localizados no entorno da praça compõem, juntamente com a Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, uma visualidade específica da colonização e que deve ser preservada em sua totalidade enquanto conjunto. Embora de caráter singelo, a arquitetura traduz um quadro evolutivo, que vai desde unidades expressivas da cultura italiana, como os sobrados austeros, passando por unidades próprias do ecletismo. Mesmo apresentando essa heterogeneidade de linhas arquitetônicas, o conjunto de edificações preservadas possui uma volumetria e um gabarito ainda uniforme, sendo a Praça o agente conformador do espaço urbano (Figura 2).

Localização das edificações tombadas no entorno da Praça Anita Garibaldi.
FIGURA 2
Localização das edificações tombadas no entorno da Praça Anita Garibaldi.
Fonte: Elaborada pela autora Virginia Gomes de Luca (2019), com base em arquivo digital da Prefeitura Municipal de Urussanga (2019).

Atualmente a Praça Anita Garibaldi pode ser dividida em dois tempos. Parte dela é composta por edifícios típicos do tecido urbano colonial, preservados em nível estadual. Essas pré-existências são interrompidas vez e outra por edificações recentes de grande volume e que variam de dois a oito pavimentos.

ANÁLISE MORFOLÓGICA DA PRAÇA ANITA GARIBALDI

Na categoria planta baixa serão analisados a malha, macroparcelamentos, microparcelametos e a relação de cheios e vazios da Praça Anita Garibaldi, conforme demonstra a Figura 3.

Mapa do entorno da Praça Anita Garibaldi para análise da malha, macroparcelas, microparcelas e relação entre cheios e vazios.
FIGURA 3
Mapa do entorno da Praça Anita Garibaldi para análise da malha, macroparcelas, microparcelas e relação entre cheios e vazios.
Fonte: Elaborado pela autora Virginia Gomes de Luca (2019).

A “malha” é formada pelos eixos dos canais de circulação da área em estudo. A Praça Anita Garibaldi está localizada entre dois cursos de água: o Rio Urussanga e o Rio dos Americanos. A malha da área em estudo é predominantemente ortogonal, com grandes eixos visuais e formação de poucas conexões.

O “macroparcelamento” refere-se ao conjunto de áreas adjacentes aos canais de circulação. No caso em estudo, as quadras no entorno da Praça são de grandes extensões e de formato linear, o que resulta em uma menor diversidade de campos e efeitos visuais. O espaço livre público gerado pelo formato das macroparcelas, nesse caso a Praça Anita Garibaldi, resulta em um formato triangular e na construção de um efeito em Y, no qual a paisagem construída é passível de leitura total. O “microparcelamento”, por sua vez, é o conjunto de lotes e no caso resultam em um conjunto de parcelas com frentes pequenas, o que tende a gerar maior quantidade de estações na sequência. Os lotes no entorno da praça possuem testadas de tamanhos variados, o que resulta em uma maior variedade de estações na sequência.

Na “relação entre cheios e vazios” considera-se o conjunto de áreas fechadas, abertas e semiabertas públicas e privadas que compõem a área em estudo. Percebe-se na área estudada a predominância de cheios contínuos, cujas fachadas frontais no alinhamento da rua resultam em canais de circulação publica com paredes bem definidas e efeito visual forte, reforçando o formato triangular da Praça. Nessa categoria de análise é possível perceber os grandes volumes (cheios) das construções mais recentes, que ocupam grande parte do lote urbano (microparcelas) do entorno da Praça Anita Garibaldi.

Em relação à “Categoria sítio físico”, mais especificamente em relação ao “relevo do solo”, nota-se que o mesmo é plano, com exceção do talude no qual se localiza a Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição (URU001). A igreja foi construída no local mais alto do sítio, em uma espécie de talude, acentuando o destaque visual desse elemento, conforme demonstra a iconografia histórica apresentada na Figura 4.

Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, década de 1930. Urussanga, SC.
FIGURA 4
Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, década de 1930. Urussanga, SC.
Fonte: Acervo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, disponível em Ferri (2019).

A “vegetação” do local estudado configura-se como um grande conjunto volumétrico de grande destaque visual, pois encontra-se em uma grande massa vegetal no centro da Praça. Com a Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição ao centro e a Praça Anita Garibaldi em frente à igreja, é demonstrada a forte presença de vegetação no núcleo urbano do município de Urussanga. A densa massa vegetal forma um grande teto no espaço público e limita a percepção da totalidade da paisagem urbana da Praça Anita Garibaldi.

Como dito anteriormente, a forma das “superfícies hídricas” presentes no sítio urbano, o Rio Urussanga e o Rio dos Americanos, definiram fortemente a configuração urbana em formato triangular da praça.

A categoria elementos edílicos observa como a configuração dos edifícios, isoladamente e formando conjuntos, participa da identidade da área em estudo. Nas “relações intervolumétricas entre os edifícios” é analisada a relação dos edifícios com o lote e o espaço público e a forma de implantação no lote e acessos às edificações. Essa relação poderá ocasionar diferentes sensações aos usuários da cidade, pois caracterizam as sequências visuais e os canais de circulação.

A implantação da edificação e sua relação com o espaço público poderá ocorrer de duas formas: direta (quando as fachadas se colocam sem afastamento frontal) e indireta (quando há barreiras, como muros e recuos, entre o edifício e o espaço público). Em comum a todas as edificações do espaço urbano da Praça Anita Garibaldi, independente da época de construção, é a ausência de recuo frontal (conforme já demonstrado na análise de cheios e vazios).

Ao longo da praça, os recuos laterais existentes nos edifícios criam quebras entre eles, proporcionando um ritmo diferenciado. Percebe-se uma maior descontinuidade no lado esquerdo da Praça, onde concentram-se edificações de dois a cinco pavimentos e nota-se a presença de recuos laterais. É também nessa porção da praça que se concentra o maior número de edificações históricas sequenciais: Casa Bez Batti (URU009), Casa Bez Batti (URU010), Palácio de Lucca (URU011), Casa Marchet (URU012), Casa Bez Batti (URU013), Casa Escaravaco (URU014) e Casa Martins (URU015). Na porção direita da Praça a descontinuidade é mais acentuada, na qual concentram-se edificações de volumetria variada: desde terreno baldio até edifício de oito pavimentos.

Em relação à “volumetria dos edifícios”, percebe-se uma desproporção volumétrica entre os edifícios novos e os pré-existentes. As edificações mais recentes se destacam como elementos verticais dominantes no skyline do espaço urbano, desde a proporção lateral (falta de recuos), até em altura (edificações de dois a oito pavimentos).

Em relação aos edifícios tombados, a maior parte possui dois pavimentos: Casa Fornasa (URU004), Casa Mazzucco (URU006), Casa Miotello (URU008), Casa Bez Batti (URU010), Palácio de Lucca (URU011), Casa Bez Batti (URU013), Casa Escaravaco (URU014), Casa Martins (URU015), Casa Serafim (URU016) e Sobrado Nichele (URU017) e cumeeiras paralelas à rua.

A Vinícola Cadorin (URU002), a Casa Daminani (007) e a Casa Marchet (URU012) possuem sótão habitável. Apenas a Casa Mazzucco (URU006) possui sótão na facha frontal, uma vez que a cumeeira é perpendicular à rua.

Como dito anteriormente, os porões elevados da Casa Miotello (URU008) e da Casa Bez Batti (URU013) configuram-se como um pavimento. No caso da Casa Bez Batti (URU009) o sótão elevado não possui acesso, diferentemente do sótão da Casa Bez Batti (URU010), que possui acesso lateral e encontra-se abaixo do nível da rua.

Uma característica comum a todas as edificações, com exceção da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição (URU001), independente da época da construção, é a presença de platibanda.

Em relação às “fachadas dos edifícios”, nota-se a predominância de cheios (vedações) sobre os vazios (aberturas). Todas as edificações participam fortemente como elementos constituintes do conjunto edificado. Em relação especificamente às edificações tombadas, embora de caráter singelo, apresentam heterogeneidade de linhas arquitetônicas.

Segundo Pieri (2015), o casario histórico da Praça pode ser caracterizado, em sua maioria, como eclético, possuindo algumas edificações com características do Art Déco. Grande parte dos sobrados e das casas térreas possui um refinamento nos elementos decorativos, com cimalhas e cunhais marcados, platibandas balaustradas, lambrequins, entre outros. Outra característica da arquitetura ítalo-brasileira encontrada no centro histórico de Urussanga é o uso frequente das ripas no sentido perpendicular à cumeeira, o inverso do encontrado na arquitetura luso-brasileira. As edificações tombadas pela FCC localizadas no entorno da Praça Anita Garibaldi estão descritas na Figura 5.

Descrição das características arquitetônicas das edificações tombadas.
FIGURA 5
Descrição das características arquitetônicas das edificações tombadas.
Fonte: Fotografias do acervo pessoal das autoras (2019), texto elaborado a partir de Matiola e Pereira (2010).

Descrição das características arquitetônicas das edificações tombadas.
FIGURA 5 Cont.
Descrição das características arquitetônicas das edificações tombadas.
Fonte: Fotografias do acervo pessoal das autoras (2019), texto elaborado a partir de Matiola e Pereira (2010).

Descrição das características arquitetônicas das edificações tombadas.
FIGURA 5 Cont.
Descrição das características arquitetônicas das edificações tombadas.
Fonte: Fotografias do acervo pessoal das autoras (2019), texto elaborado a partir de Matiola e Pereira (2010).

Descrição das características arquitetônicas das edificações tombadas.
FIGURA 5 Cont.
Descrição das características arquitetônicas das edificações tombadas.
Fonte: Fotografias do acervo pessoal das autoras (2019), texto elaborado a partir de Matiola e Pereira (2010).

Quanto às fachadas das edificações mais recentes, é possível perceber o pavimento térreo destinado à prestação de serviço e uso comercial, resultando em grandes aberturas. Nota-se também o acesso destinado ao uso residencial, que ocorre nos pavimentos superiores. A maior parte dos edifícios não possui acesso de veículos. Em alguns dos edifícios de dois pavimentos é possível perceber o uso de elementos vazados, principalmente nas varandas. Nota-se que a continuidade entre as edificações mais recentes resulta em fachadas laterais cegas, criando por vezes grandes panos laterais cegos.

De modo geral, apesar da existência de alguns edifícios em altura, as edificações históricas se destacam no conjunto urbano da Praça Anita Garibaldi. Os referenciais visuais são exercidos principalmente por dois marcos visuais principais: a Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição (URU001), exercido pela volumetria e a implantação em local de destaque, e o Sobrado Nichele (URU017), que também possui destaque enquanto marco visual, estando localizado no eixo visual da Rua Barão do Rio Branco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou identificar traços da morfologia e da configuração do espaço urbano da Praça Anita Garibaldi, considerada o maior conjunto urbano de características tipicamente italianas do Estado de Santa Catarina. Para isso, utilizou o Inventário de Configuração de Espaços Urbanos (INCEU), cuja supervisão, marco teórico e metodologia foram desenvolvidos por Maria Elaine Kohlsdorf. Para tanto, foram empregadas as categorias de análises referentes à representação geométrica do espaço urbano: planta baixa (malha, macroparcelamentos, microparcelametos e a relação de cheios e vazios), elementos de sítio físico (relevo do solo, vegetação e água de superfície) e elementos edilícios (relações intervolumétricas entre os edifícios, volumetria dos edifícios e fachadas dos edifícios).

Diante das análises realizadas na categoria Planta Baixa, observou-se que o formato triangular da Praça Anita Garibaldi condiciona fortemente a percepção da totalidade da paisagem urbana do núcleo original de Urussanga. O forte eixo visual é reforçado pelos grandes eixos de canais de circulação (malha) e macroparcelas. Além disso, as relações entre cheios e vazios indicam que as edificações reforçam ainda mais o eixo visual da área de estudo, uma que vez se encontram alinhados ao passeio público.

Na categoria Sítio Físico, notou-se que o relevo plano da Praça também contribui para fortalecer a apreensão da totalidade do espaço da área em estudo. A exceção ocorre na Igreja Matriz, localizada em uma porção elevada que, juntamente com a escala imponente do bem, conferem o destaque desse elemento ao conjunto edificado. A vegetação, presente no centro da praça, é um grande elemento de destaque visual, o que por vezes dificulta a apreensão da totalidade da paisagem urbana do entorno da praça.

Na categoria Elementos Edilícios, observa-se a ausência de recuo frontal e majoritariamente o acesso à edificação dá-se de forma direta. A descontinuidade visual ocorre em relação aos recuos laterais, gerando um ritmo diferenciado e descontinuidades visuais. Isso ocorre ora na porção da praça onde está localizado o maior número de edificações tombadas na sequência, em razão da descontinuidade por causa dos recuos laterais, ora na porção da Praça em que se concentram ocupações de volumetria variada (desde terrenos baldios até edificações de oito pavimentos). Por fim, nota-se a desproporção entre a volumetria dos edifícios novos e os pré-existentes, sendo que todas participam como elementos constituintes do conjunto edificado.

Diante do que foi apresentado, conclui-se que as categorias de análise de configuração do espaço urbano possibilitaram revelar os traços fisionômicos da área em estudo. Os atributos pré-determinados incialmente, coletados através da metodologia do INCEU, descreveram a configuração do espaço e ofereceram comparações capazes de fazer com que tanto as permanências quanto as desfigurações sofridas pelo sítio descrevam um mesmo lugar em vários tempos históricos. Essas conclusões são instrumentos de preservação na medida em que mostram, objetivamente, predicados dos lugares que devem ser protegidos de descaracterização porque atestam sua identidade histórica.

REFERÊNCIAS

ADAMS, B. Preservação urbana: gestão e resgate de uma história; patrimônio de Florianópolis. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002. p. 61.

ARNAUT, J. H. E. A proteção do patrimônio cultural. In: INSTITUTO BRASILEIRO DO PATRIMÔNIO CULTURAL. Memória e educação. Rio de Janeiro: IBPC, 1992. p. 31-35.

CULLEN, G. Paisagem urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p. 11.

DEL RIO, V. Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento. São Paulo: PINI, 1990.

FERRI, G. K. Urussanga, retratos da memória. Brasil Talian, Três Palmeiras, 2019. Disponível em: www.brasiltalian.com/2019/04/urussanga-retratos-da-memoria-por-prof.html. Acesso em: 2 maio 2019.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Inventário de Configurações de Espaços Urbanos (INCEU): manual de aplicação. Brasília: IPHAN: 2001.

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NOTA

Artigo elaborado a partir da dissertação de V. G. LUCA, intitulada “O patrimônio arquitetônico e a paisagem cultural em sítios históricos rurais de imigração italiana”. Universidade Federal de Santa Catarina, 2007.

Autor notes

COLABORADORES V. G. LUCA colaborou na revisão bibliográfica, pesquisa de campo, análise e conclusão e A. G. SANTIAGO na revisão e aprovação da versão final do artigo.

Correspondência para/Correspondence to: V. G. LUCA | E-mail: vgdeluca@gmail.com

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