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PRÁTICAS CONTRACARTOGRÁFICAS ARTÍSTICAS E A DESESTABILIZAÇÃO DOS MAPAS 1
ARTISTIC COUNTERCARTOGRAPHIC PRACTICES AND THE DESTABILIZATION OF MAPS
PRÁTICAS CONTRACARTOGRÁFICAS ARTÍSTICAS E A DESESTABILIZAÇÃO DOS MAPAS 1
Oculum Ensaios, vol. 17, e204492, 2020
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo
Recepção: 18 Fevereiro 2019
Aprovação: 20 Maio 2019
Financiamento
Fonte: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Número do contrato: 001
Financiamento
Fonte: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
Número do contrato: 304266/2016-7
RESUMO: Este artigo tem o propósito de discutir tópicos que circundam a cartografia por meio de práticas que apontam para o sentido inverso das cartografias hegemônicas, e que permitem uma visualização crítica de tensionamentos do atual contexto hipermediado. Sob o conceito de contracartografia definido por Brian Holmes, apresenta duas práticas artísticas realizadas com o uso de mídias locativas, Meridians, de Jeremy Wood, e Monochromatic Landscapes, de Laura Kurgan. Como parte de um conjunto maior de proposições artísticas contemporâneas que investigam práticas contracartografias, esses trabalhos procuram desnaturalizar as formas com que operam as mídias locativas e os sistemas de geolocalização, assim como colocar em questão a pretensa neutralidade dos mapas. Por fim, indica-se que as modulações de visibilidades e invisibilidades com que operam os meios informacionais e de geolocalização apresentam-se como aspectos relevantes a serem investigados e tensionados com lentes críticas.
PALAVRAS-CHAVE: Arte, Contracartografia, Mídias locativas.
ABSTRACT: This article aims to discuss some topics that surround the field of cartography through practices that point to the opposite direction of hegemonic cartographies, as well as allow a critical view of some tensions in the current hypermediated context. Under the concept of counter cartography defined by Brian Holmes, it presents two artistic practices carried out using locative media: Meridians, by Jeremy Wood, and Monochromatic Landscapes, by Laura Kurgan. As part of a larger set of contemporary artistic propositions that investigate counter-cartographic practices, these works seek to denaturalize the ways by which locative media and geolocation systems operate, besides putting in question the alleged neutrality of maps. Finally, it is indicated that the modulations of visibilities and invisibilities through which the information and geolocation media operate are relevant aspects to be investigated and tensioned with critical lenses.
KEYWORDS: Art, Countercartographies, Locative media.
INTRODUÇÃO
PRÁTICAS CARTOGRÁFICAS E SUA PERVASIVIDADE NO UNIVERSO INFORMACIONAL
A cartografia foi, por muitos séculos, um instrumento de representação de pouca acessibilidade, a qual poucos conseguiam ler e reproduzir. Como instrumento de poder do dominador, era entendida como uma representação fidedigna de territórios conquistados. E, mais adiante, como uma expressão de poder assentado sobre aparatos e códigos de representação formulados ao longo do desenvolvimento das ciências, passou a perseguir a representação objetiva do mundo. Na cartografia existia uma “aura” de informação infalível e imutável sobre um determinado objeto. Segundo o geógrafo J.B. Harley, até o século XVII:
[...] os topógrafos e os leitores de mapas europeus foram promovendo um modelo científico padrão de conhecimento. [...]. Assumem que os objetos do mundo a serem mapeados são reais e objetivos, e que gozam de uma existência independente do cartógrafo; que sua realidade pode ser expressada em termos matemáticos; que a observação e a medição sistemática é a única rota para a verdade cartográfica, e que esta verdade pode ser verificada de maneira independente (HARLEY, 1989, p. 4, tradução nossa)2.
Com a publicação de seu artigo Desconstructing Maps em 1989 (HARLEY, 1989), colocou em xeque a neutralidade dos mapas, destacando, dentre tantos pontos, que o silêncio e as omissões representados nos mapas são tão importantes quanto as representações explícitas. A partir de sua obra, cria-se um contexto de intenso debate entre os teóricos do campo da geografia denominado posteriormente por Dodge, Kitchin e Perkins (2009), no artigo Thinking about maps, como “cartografia pós-representacional”. Além da proposição de uma nomeação para este período da teoria cartográfica, os autores o dividem em dois momentos: o primeiro que realiza a transição do conhecimento ôntico ao ontológico; e o segundo, do ontológico à ontogênese.
Em suma, o primeiro momento da “cartografia pós-representacional”, do ôntico ao ontológico, é marcado pelo movimento da teoria dos mapas em direção ao que está por trás do que todos veem - o desvelamento de camadas que vão além do entendimento imediato e consensual. Já no segundo momento, a passagem do ontológico à ontogênese, os estudos passam a procurar entender como acontecem os processos de transformação dos mapas, partindo das representações para as práticas. Nesse momento, os estudos identificam a cartografia com uma perspectiva relacional, como os autores mesmo afirmam: “[...] houve uma movimentação para considerar a cartografia a partir de uma perspectiva relacional, tratando mapas não como representações uniformes mas como constelações de processos em andamento” (DODGE; KITCHIN; PERKINS, 2009, p. 16, tradução nossa)3.
Entendendo as transformações no pensamento sobre os mapas e o que registram, percebe-se que, atualmente, dois processos simultâneos se evidenciam em relação à sua condição de “meios de representação”: ao mesmo tempo em que seu caráter de neutralidade e imparcialidade vem sendo questionado, passam a constituir-se como mediadores onipresentes da experiência urbana cotidiana. Nesse duplo movimento de distensão e pervasão, os mapas ampliam-se como dispositivos tecnocientíficos de poder e de suporte à lógica globalizante, mas convertem-se igualmente em instrumentos para a construção de contra-narrativas que visam disputar representações. Segundo o geógrafo Denis Cosgrove, em um mundo política, econômica, técnica e culturalmente globalizado, muito passa a estar “em jogo em questões como o espaço e sua representação gráfica formal” (COSGROVE, 1999, p. 4).
Sendo o excesso informacional uma realidade inegável no mundo contemporâneo, a pervasividade da informação geolocalizada é a sua realidade última. Localizar-se e mover-se, assim como localizar eventos no espaço e no tempo, são ações cada vez mais mediadas por tecnologias móveis ou mídias locativas (smartphones, smartwatches, aparelhos GPS). Essas práticas do sujeito “geo-localizado” são correlatas a um mundo que vai sendo cada vez mais representado por meio de interfaces digitais de mapeamento geridas por empresas (Google Earth, Maps, MyMaps) e iniciativas colaborativas (Wikimapia, OpenStreetMap) (FARMAN, 2010). São práticas e interfaces que vêm conformando, a partir tanto da escala das experiências cotidianas do indivíduo como da escala informacional global, uma outra condição aos sujeitos, a do “indivíduo geoglobalizado”, e às espacialidades e territorialidades contemporâneas, a conformação de uma “era da hiper-geolocalização”.
PRÁTICAS CONTRACARTOGRÁFICAS
Investigar as cartografias produzidas com o uso de mídias locativas parece ser um modo que permite indagar que tipos de representações emergem dessa condição tecnológica na contemporaneidade e o que conseguem revelar. Aprofundando as investigações sobre o tema, a incorporação crítica dos dispositivos cartográficos para a realização de práticas de experimentação estética e ação política vem se convertendo em modo chave para o desvelamento das lógicas de operação desses dispositivos e das cartografias hegemônicas. Essas práticas foram nomeadas pelo artista, teórico das mídias e ativista Brian Holmes, como “contracartografias”, à luz do pensamento de Foucault sobre as condutas e as contracondutas: “Cartografias críticas e dissidentes surgem contra o fundo da tecnologia dos mapeamentos dominantes. Elas aparecem como contracondutas no sentido dado por Michel Foucault” (HOLMES, 2006, p. 25, tradução nossa)4.
Se as práticas contracartográficas não se circunscrevem a uma prática disciplinar5, é no campo da arte contemporânea que elas vêm ganhando potência pelo questionamento que realizam dos estatutos normativos, das objetividades tecnológicas e das neutralidades discursivas (SPERLING, 2016). Para Denis Wood, geógrafo, os artistas-cartógrafos “não rejeitam mapas. Eles rejeitam a autoridade reivindicada pelos mapas normativos unicamente para retratar a realidade como é” (WOOD, D., 2006, p. 10)6, ou seja, com desapego e objetividade.
Para a atuação dos artistas-cartógrafos que focam as várias dimensões das representações de percursos e localizações espaciais, a tecnologia das mídias locativas passou a apresentar novas condições a serem exploradas. Segundo Tuters e Varnelis (2006), no artigo Beyond Locative Media, foi com a chegada das mídias locativas que uma transição importante ocorreu para as artes visuais e para as relações entre arte e mídias, pois recolocou no debate artístico, segundo outras perspectivas, a reinvindicação de um “[...] mundo além das galerias ou monitores de computadores” (TUTERS; VARNELIS, 2006, p. 1, tradução nossa)7 como território de suas práticas.
Diante das diversas questões disparadas pelas práticas cartográficas, para alguns artistas, utilizar tecnologias locativas foi um passo natural. Além de possibilitar a exploração crítica de uma linguagem relativamente difundida, também permite levantar reflexões pertinentes à contemporaneidade. Tuters e Varnelis (2006) categorizam duas modalidades de trabalhos com mídias locativas: trabalhos anotativos (que marcam virtualmente o mundo) e fenomenológicos (que traçam a ação do sujeito no mundo). Os anotativos, segundo os autores, são “projetos que geralmente buscam mudar o mundo adicionando dados nele” (TUTERS; VARNELIS, 2006, p. 2, tradução nossa)8, enquanto os fenomenológicos são “projetos baseados em traçados [que] tipicamente buscam usar alta tecnologia para estimular práticas cotidianas quase extintas como andar ou ocupar espaços públicos” (TUTERS; VARNELIS, 2006, p. 2, tradução nossa)9.
Alguns artistas passam a incorporar mídias locativas em suas práticas contracartográficas, explorando novas abordagens para se pensar e produzir cartografias bem como outros modos de relacionamento entre mapeamentos, espaços físicos e dinâmicas sociais. Passam a explorar um amplo território de dinâmicas possibilitadas por essas mídias, que passa pelos modos de representação do mundo gerados por percursos e engloba as dinâmicas de vida impostas pelos poderes vigentes. Entre um e outro, abre-se um amplo arco de possibilidades a investigar e de questões a desvelar, assumindo:
[...] a perspectiva de sensibilizar o público sobre várias questões, como o processo de criação de mapas, localização e posicionamento preciso, a capacidade de formar redes sociais na rede urbana, a vigilância, o rastreamento de corpos ou objetos humanos ou como todas essas questões afetam as escolhas dos povos e vida cotidiana (PARASKEVOPOULOU; CHARITOS; RIZOUPOULOS, 2008, p. 2, tradução nossa)10.
DOIS CASOS: MERIDIANS E MONOCHROMATIC LANDSCAPES
A fim de indicar algumas dentre tantas linhas que vêm desenhando o campo das práticas contracartográficas na arte contemporânea com o uso de mídias locativas, serão apresentados dois trabalhos, o projeto Meridians, de 2005, do artista Jeremy Wood, e Monochrome Landscapes, de 2004, da artista Laura Kurgan, que atuam a partir de perspectivas distintas diante do contexto informacional hiper-geolocalizado.
Jeremy Wood identifica-se como um “Mapmaker”, focando seu trabalho na exploração de questões vinculadas a percurso, consciência de navegabilidade e percepção espacial com o uso da tecnologia GPS. Possui como foco a qualidade estética do traçado do GPS que realiza e que marca a trajetória de seu próprio corpo. Em seu projeto Meridians, o que parece, à primeira vista, um trabalho lúdico e despretensioso, na verdade carrega um comentário crítico à precisão tecnológica locativa. Aponta, em contrapartida, que essas informações geolocativas não possuem uma precisão absoluta, mas tão somente relativa. Indo mais além, Wood afirma que os dados geolocativos são ferramentas que auxiliam a apresentar lugares fictícios. O próprio artista questiona “[...] não estou certo se nós sabemos exatamente onde as coisas estão” (WOOD, J., 2011, p. 3, tradução nossa)11 (Figura 1).
Meridians refere-se a uma performance de 737,89km de distância caminhada pela qual o artista “escreveu” uma citação textual de comprimento linear de 71,12km. O projeto durou 3 meses e, durante sua execução, Wood enfrentou chuva, neve e sol para que fosse completado. O texto escrito consiste de uma citação extraída da obra literária Moby Dick (1851), de Herman Melville: “It is not down in any map; true places never are” (MELVILLE, 1851, p. 67)12 (Figura 2).
A citação elucida o questionamento da obra tanto de maneira literal quanto metafórica, pois o ato de escrever essa frase ao longo de dois meridianos parece confirmar o sentido literal da frase de Melville. Esses dois meridianos utilizados possuem uma função além do simples apoio referencial para o percurso: ambos são demarcações e padronizações cientificas. São eles: Greenwich Mean Time (GMT) e GRS80.
O GMT foi estabelecido em 1884 por um acordo internacional como padrão da linha Meridiano que atribui o ponto zero de longitude. Este padrão assume que o formato da Terra é aproximado e baseado na Triangulação principal da Grã-Bretanha (1791-1853). Já o sistema GRS80 é mais complexo para calcular qualquer ponto locativo na Terra. Este é o padrão utilizado na tecnologia GPS, baseado no tempo atômico e suas coordenadas tridimensionais se utilizam do GRS80 elipsóide.
Por mais que esses padrões sejam aceitos pela ciência como referências locativas, Meridians expõe o hiato existente entre eles e os confronta em sua aura de veracidade e certeza. Destacar, como o artista faz, o espaço entre as duas demarcações faz emergirem indagações quanto à localidade das coisas e o que orienta o deslocamento do corpo no espaço.
Esses dois padrões são marcados no meu desenho para indicar a escala de acordos entre o sistema local e o sistema mundial, já que as sensibilidades locais são mais confiáveis que projeções globais. Nossa navegação pessoal está evoluindo do olhar para cima e ver estrelas para olhar para baixo para dispositivos mediados por satélites que ficam na palma da mão. As duas linhas dos meridianos são bordas de mapas que não se encontram: entre eles há lugares que não existem. Com essa área de ajuste, o hemisfério Leste-Oeste não se encaixa (WOOD, J., 2006, p. 274, tradução nossa)13.
O foco conferido ao desencontro entre os dois padrões locativos traz uma reflexão crítica sobre o que é assumido como realidade e questiona de forma direta a noção de localização, que é tomada pelo senso comum como absoluta e verdadeira. Lauriault sintetiza bem a obra Meridians: “Eu sei onde estou, é aqui, na verdade, mas não consigo precisamente te dizer exatamente onde” (LAURIAULT, 2009, p. 361, tradução nossa)14.
Laura Kurgan, por sua vez, apresenta uma abordagem que mobiliza tanto referências da história da arte quanto teorias espaciais críticas da área de arquitetura. Os Monochromes Landscapes, à primeira vista, são retângulos monocromáticos nas cores branco, azul, verde e amarelo, respectivamente, e foram exibidos em grandes painéis impressos de dimensões aproximadamente 1mx2m (40’x80’). No entanto, esses painéis, a princípio abstratos e envolventes em seu cromatismo, que remetem à pintura color field americana dos anos 1950, abrigam diferentes graus de profundidade informacional, conforme o zoom ou a atenção dirigida a cada uma delas. Monochrome Landscapes é composta por um conjunto de fotos capturadas pelos satélites Ikonos e Quickbird, precisamente escolhidas e compradas pela artista.
Tanto a capacidade de esquadrinhar o planeta com a captação de fotografias em altíssima resolução por aparatos que se deslocam na órbita terrestre quanto a sua atuação na condição de equipamentos de empresas privadas passam a emergir. O satélite Ikonos, pertencente à empresa americana Space Imaging, Inc., tem a capacidade de produzir fotos de resolução de até 1m por pixel. Já o satélite Quickbird, de propriedade de outra empresa americana, a DigitalGlobe Inc., capta fotografias de resolução de 0,6m por pixel.
Kurgan explica que definiu a priori as cores que gostaria que compusessem a obra (branco, azul, verde e amarelo), o que naturalmente levou à escolha de pontos com predominância de neve, água, árvores e areia, respectivamente. Cada foto revela, no entanto, mais que simples cores, padrões e texturas dos elementos naturais predominantes. A formalidade estética da obra vai descortinando a carga política, ecológica e militar que as fotos revelam, como Kurgan menciona no livro Close Up at a Distance: “Eu estava interessada na ideia de que os lugares na Terra que aparecessem de cima como mais ou menos uma única cor também fossem lugares que eram contestados, frágeis e submetidos a aparelhos de vigilância cada vez mais detalhados” (KURGAN, 2013, p. 153, tradução nossa)15 (Figura 3).
Cada uma das imagens é acompanhada de seu título (a respectiva cor), a descrição da área registrada e suas coordenadas geográficas, a data de captura da fotografia, a identificação do satélite e a indicação dos direitos reservados da imagem pela empresa proprietária.
O painel Branco é a foto do Artic National Wildlife Refuge (ANWR), localizado no Alaska. Trata-se de uma área protegida pela diversidade natural de espécies animais e que também possui uma expressiva quantidade de petróleo bruto (o equivalente a 10.4 bilhões de barris). Devido a esse potencial econômico, foi cenário de tensos debates e de diversas tentativas para liberar a exploração de petróleo. Este debate perdura até os dias atuais e ocorre nas esferas política, econômica e ecológica.
As coordenadas da foto azul correspondem à Latitude -0.00195 e Longitude -0.00045, no globo terrestre, indicando a intenção de registrar o ponto zero da cartografia atual, ou seja o encontro do Equador com o Meridiano de Greenwich. Ao mesmo tempo em que confere visibilidade ao ponto de referência para o padrão cartográfico, e por extensão, para toda a grelha que define os paralelos e meridianos, expõe o vazio de um ponto determinado na imensidão azul do Mar Atlântico e que referencia todas as posições dos sistemas de geolocalização em atividade.
A foto verde, por sua vez, corresponde a uma pequena seção de uma floresta localizada em Camarões (África). Para escolher a área verde, Kurgan contou com a orientação da ONG Global Forest Watch16 e, de forma indireta, tornou-se uma investigadora para a organização. A imagem, a princípio, pretendia ser apenas o registro de um local verde ameaçado pelo desmatamento ilegal. No entanto, ao observá-la com maior atenção, percebe-se que, em meio a toda a exuberante e contínua textura verde, é possível notar uma discreta estrada, que à primeira vista parece inofensiva. Após investigações, descobriu-se que a estrada não consta nos registros do país e provavelmente é utilizada para tráfego de madeira oriunda do desmatamento ilegal.
Por fim, a foto amarela foi escolhida quando a artista buscava nos arquivos do satélite QuickBird por imagens que correspondessem ao momento da chamada Operation Iraqi Freedom em Bagdá. Ela tinha interesse em visualizar os tanques de guerra das forças armadas americanas na região, como um documento da invasão do Iraque em 2003. No entanto, segundo Kurgan “[...] a DigitalGlobe de maneira informal e voluntariada ‘não estava distribuindo’ imagens de Bagdá nas quais tropas americanas pudessem ser vistas” (KURGAN, 2013, p. 159, tradução nossa)17. Sendo assim, contentou-se em pedir uma imagem da mesma região, mas sob outros critérios, que fossem imagens datadas de duas semanas que precediam a operação. Para sua surpresa, ao receber a imagem, foi possível observar, após um zoom, que havia dois helicópteros em formação sobrevoando o deserto entre as cidades de Al Busayyah (Líbano) e An Nasiriyah (Iraque).
DISCUSSÃO
Como é possível notar, Meridians e Monochrome Landscapes introduzem uma preocupação estética particular ao universo das cartografias cada vez mais tecnologicamente mediadas. Em ambas, subsiste o tensionamento de duas dimensões inerentes a qualquer ação inscrita no Sistema de Posicionamento Global: a do sujeito em deslocamento, ponto geolocalizado produtor de informações para uma grande rede de informações; e, em sentido reverso, a da rede informacional que alimenta e orienta o indivíduo com uma grande quantidade de dados referenciais.
Por sua vez, retomando-se as distinções sugeridas por Tuters e Varnelis, o projeto Monochrome Landscapes de Laura Kurgan apresenta-se como um claro trabalho anotativo. Trata-se de uma ação de apropriação de fotografias de satélite de coordenadas GPS específicas para revelar as várias camadas informacionais que possuem. Meridians, por outro lado, é um trabalho que transfere dados do sujeito, de uma experiência traçada pelo próprio artista e inscrita no território, para um conjunto de dados da nuvem informacional. Reconhece-se um caráter fenomenológico neste caso, mas também a utilização de uma linguagem de caráter anotativo, que faz uso dos deslocamentos de seu corpo no espaço, para inscrever um comentário endereçado ao mesmo tempo a um lugar específico e a todo o sistema cartográfico.
Wood e Kurgan incorporam aspectos singulares em suas práticas contracartográficas no próprio ato de subversão das tecnologias locativas empregadas. Wood utiliza o aparelho GPS para desenhar/escrever, enquanto Kurgan transforma fotografias de satélite de alta definição imagética e geopolítica em abstrações poéticas. Ambos, além de revisitarem criticamente conceitos e padrões já estabelecidos historicamente, realizam aproximações poéticas e inesperadas que, além de resultarem em novas formas de representação do território vivido, indagam questões políticas, econômicas, sociais e de poder que essas mediações tecnológicas abarcam.
Vale notar ainda que ambos enfatizam o binômio visibilidade e invisibilidade que persiste nos mapas fazendo ver a falsa neutralidade de que os sistemas georreferenciados são revestidos. Diante de seus trabalhos, fica o convite a se fazer perguntas diante de qualquer mapa ou imagem de satélite, afinal estes “[...] bem como os conjuntos de dados e as tecnologias usadas para traçá-los - não são neutros” (KURGAN, 2013, p. 17, tradução nossa)18.
Nesses trabalhos, Wood e Kurgan destacam ainda certos ajustes dos sistemas de georreferenciamento, sobre os quais assentam todo seu funcionamento. Meridians faz isso ao comparar dois padrões de meridianos (de épocas e bases de cálculos distintas), evidenciando que são convenções não coincidentes. Já o painel azul de Monochrome Landscapes apresenta o ponto convencionado como de coordenadas 0,0 do globo, instituído a partir da criação de uma ilha imaginária de 1m².
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Wood e Kurgan situam-se em um campo expressivo de práticas contracartográficas que os artistas vêm mobilizando para problematizar as representações espaciais. Os debates iniciados no campo da Geografia acerca das cartografias pós-representacionais encontram nessas práticas um amplo universo de proposições que apresentam sempre novas reflexões sobre as espacialidades e territorialidades contemporâneas.
Os dois projetos contracartográficos apresentados nesse artigo deslocam significativamente as mídias locativas do seu uso e senso comuns. Atuando nos interstícios das lógicas de operação desses sistemas, indicam que há abertura para outras possibilidades de ação a serem exploradas no sentido da desnaturalização tanto das normatividades que cercam as mídias locativas quanto dos modos de percepção que modulam.
Diante da “era da hiper-geolocalização”, o que esses trabalhos apontam por fim é que a disputa pelo poder sobre as visibilidades e invisibilidades é um projeto que está posto, o qual se mostra tão intrincado quanto necessário.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Código de Financiamento 001) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Bolsa de Produtividade PQ-2 nº304266/2016-7).
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NOTAS
Autor notes
Correpondencia pra/Correspondence to: D. M. SPERLING. E-mail: sperling@sc.usp.br