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AÇÕES DE RESPOSTA E RECUPERAÇÃO A DESABRIGADOS APÓS DESASTRE SOCIOAMBIENTAL: ENTRE SITUAÇÕES-LIMITE E POSSIBILIDADES DE TRANSCENDÊNCIA

RESPONSE AND RECOVERY ACTIONS FOR THE HOMELESS AFTER SOCIOENVIRONMENTAL DISASTERS: BETWEEN EXTREME SITUATIONS AND POSSIBILITIES OF TRANSCENDENCE

LUANA TORALLES CARBONARI *
Universidade Federal de Santa Catarina, Brazil
ZULEICA MARIA PATRÍCIO KARNOPP
Universidade Federal de Santa Catarina, Brazil
LISIANE ILHA LIBRELOTTO
Universidade Federal de Santa Catarina, Brazil

AÇÕES DE RESPOSTA E RECUPERAÇÃO A DESABRIGADOS APÓS DESASTRE SOCIOAMBIENTAL: ENTRE SITUAÇÕES-LIMITE E POSSIBILIDADES DE TRANSCENDÊNCIA

Oculum Ensaios, vol. 16, núm. 3, pp. 563-582, 2019

Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo

Recepção: 26 Março 2018

Revised document received: 30 Outubro 2018

Aprovação: 16 Dezembro 2018

Financiamento

Fonte: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Número do contrato: 1623207

Descrição completa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Processo nº 1623207).

RESUMO: Pesquisa exploratória de abordagem qualitativa com o objetivo de compreender como foram as ações de resposta e recuperação aos desabrigados após o desastre socioambiental de 2011 no Morro da Mariquinha, Florianópolis (Santa Catarina). Os dados foram coletados por meio de análise de conteúdo na literatura e documentos, e nos registros de entrevistas e observação participante, realizadas junto a profissionais e moradores, e analisados pelo processo de análise-reflexão-síntese. Os resultados mostram a importância da ação do poder público, da assistência social e da liderança comunitária na resposta a desastres e na recuperação da comunidade; a importância do empoderamento comunitário para melhorar as condições econômicas da população local, autoajuda e participação social. Nos abrigos temporários, a acessibilidade, a privacidade, a segurança e a preservação do núcleo familiar são aspectos percebidos como essenciais, por todas as categorias de participantes.

PALAVRAS-CHAVE: Desabrigados, Desastres socioambientais, Participação social, Pesquisa qualitativa, Recuperação de áreas degradadas.

ABSTRACT: This is an exploratory research with a qualitative approach that sought to understand how response and recovery actions for the homeless were carried out after the 2011 socioenvironmental disaster in Morro da Mariquinha, Florianópolis (Santa Catarina, Brazil). Data were collected through the analysis of content in the literature and documents, and records of interviews and participant observation with professionals and residents, to analyze the analysis-reflection-synthesis process. Results show the importance of public power, social assistance and community leadership in disaster response and community recovery; and the importance of community empowerment to improve the economic conditions of the local population, self-help and social participation. In temporary shelters, accessibility, privacy, security and preservation of the family nucleus are considered essential by all participants.

KEYWORDS: Homeless, Socioenvironmental disasters, Social participation, Qualitative research, Degraded area restoration.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, os desastres ocasionados por fenômenos naturais têm sido assunto cada vez mais presente na mídia e no cotidiano da sociedade. De acordo com o Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (2013), este fato está relacionado com um aumento considerável na frequência e intensidade dos desastres e nos impactos gerados. Um dos principais motivos é a intensificação das alterações realizadas pelo homem no meio ambiente para modificá-lo e adaptá-lo às suas necessidades e usos.

De forma introdutória, destaca-se que, com base em Lopes, Espíndola e Nodari (2013), os desastres são definidos neste trabalho como socioambientais, pois se concretizam a partir da percepção e experiência humana. Além disso, normalmente ocorrem a partir de ações antrópicas realizadas em determinada área, fruto de modelos de interação insustentável entre os seres humanos e o meio ambiente, potencializando suas causas naturais.

De acordo com a Estratégia Internacional para la Reducción de Desastres da Naciones Unidas (2004), todos os anos mais de 200 milhões de pessoas são afetadas por desastres. No Brasil, dados do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (2013) demonstram que as ocorrências de desastres aumentaram 40% na última década. A maior parte dos municípios atingidos pertence ao estado de Santa Catarina. No período compreendido entre 1991 e 2012, 38 municípios deste estado decretaram situação de emergência.

A presença de desastres contribui para a deterioração do ambiente e da memória cultural de um lugar, destruindo infraestruturas públicas e estruturas habitáveis e provocando perdas de vidas humanas, desalojando e desabrigando milhares de pessoas e levando a mobilizações nos governos e na sociedade. Além disso, muitas vezes traz como consequência a necessidade de abrigos temporários.

Em 1996, na primeira conferência para abrigos, estabeleceu-se que o acesso a abrigo básico e contextualmente apropriado é uma necessidade humana essencial. No entanto, Anders (2007) salienta a complexidade de se determinarem padrões de desempenho para abrigos, pois existem inúmeras variáveis que afetam sua adequação. Assim, a atuação dos diversos órgãos na fase de resposta a desastres torna-se essencial para minimizar o sofrimento da população. No entanto, as ações não devem se deter à resposta, sendo primordial que se adotem estratégias para a recuperação do cenário, com medidas que visem à reabilitação das infraestruturas e moradias, do meio ambiente e da economia da comunidade, tendo como foco a utilização de estratégias para “reconstruir melhor” e evitar a instalação de novas situações de risco.

Schilderman (2004) salienta que a participação da população afetada pelo desastre pode ajudar a garantir a adequação da resposta e sua recuperação. Além disso, a mitigação de desastres baseada na comunidade pode reduzir a vulnerabilidade, envolvendo abordagens populares, conhecimento local e capital social. Exemplos derivam de lições como aprender do passado, construir relações com comunidades, incentivar a participação, envolver construtores locais, criar capacidade local, documentar e compartilhar lições.

Os desastres de menor escala, que afetam um grupo reduzido de pessoas, somam um problema tão grave quanto as grandes catástrofes. Assim, é de suma importância que se atente às ações da comunidade e organizações locais para lidar com eles e preveni-los (SCHILDERMAN, 2004). Um exemplo, objeto deste estudo, é o desastre ocorrido em 2011 no Morro da Mariquinha, em Florianópolis (SC). Neste evento, uma rocha de 200 toneladas deslizou e destruiu três casas, danificou outras três, atingiu um estacionamento e matou uma moradora. Após o incidente, a prefeitura desocupou vinte casas e tomou medidas para abrigar os moradores. Segundo Lopes, Espíndola e Nodari (2013), o desastre foi resultado da ocupação irregular no local, do desmatamento, da intensa pluviosidade, da segregação sócio-espacial e da falta de políticas públicas para remoção das pessoas da área de risco.

Diante do exposto, viu-se a necessidade de um estudo naquele local, com o objetivo de compreender como foram as ações de resposta e de recuperação aos desabrigados após o desastre socioambiental de 2011 no Morro da Mariquinha, sob o ponto de vista da população afetada e dos profissionais envolvidos no socorro e na recuperação da comunidade. Para isso, foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa, fundada por levantamento bibliográfico, documental e dados de campo.

Espera-se que este estudo contribua para a produção cientifica no Brasil sobre as ações de resposta e recuperação após desastres, com foco na cultura local e demandas da comunidade afetada direta e indiretamente, além do aperfeiçoamento das habilidades de arquitetos e urbanistas para atuarem em trabalhos de ordem interdisciplinar com alta complexidade e diferentes subjetividades.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta pesquisa se caracteriza como exploratória de abordagem qualitativa. Os métodos qualitativos buscam conhecer e compreender o significado do pensar, do sentir e do fazer humano individual e coletivo, expressos pela comunicação verbal e não verbal, preferencialmente no próprio contexto do estudo; favorecem a leitura e a compreensão da diversidade das inter-relações e da complexidade das situações construídas no âmbito socioambiental (PATRÍCIO, 1999). Segundo Karnopp et al. (2016), a pesquisa qualitativa contribui com aperfeiçoamento de habilidades do profissional de arquitetura e urbanismo para condução de situações que exigem competência para conhecer, compreender e atender a demanda complexa de componentes humanos repletos de subjetividades.

O processo de pesquisar iniciou pela pesquisa bibliográfica e documental, incluindo as políticas públicas específicas, através da técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 1991) em textos que apresentavam conceitos fundamentais. Após, foram sintetizadas as principais infraestruturas de apoio ao funcionamento de abrigos temporários, com base no manual “Administração para Abrigos Temporários”, elaborado pela Secretaria de Estado da Defesa Civil do Rio de Janeiro (2006), e foram identificadas as categorias de análise que orientaram a pesquisa de campo e posterior análise final. Estas categorias abrangem conceitos com características comuns ou que se relacionam entre si (MINAYO, 2004).

A pesquisa de campo foi concretizada em três fases: “Entrando no Campo”, “Ficando no Campo” e “Saindo do Campo”, segundo Patrício (1996). A fase “Entrando no Campo” teve início com a definição do local-contexto a ser observado e os sujeitos a serem entrevistados. Optou-se por realizar a pesquisa no Morro da Mariquinha, em Florianópolis (SC), que passou por problemas decorrentes de um desastre em 2011.

Todo o processo da pesquisa foi guiado por princípios éticos que orientam a pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução n°466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2013). Para isso, obteve-se previamente o consentimento livre e esclarecido dos participantes da pesquisa, por meio do documento Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa também foi complementada por cuidados como a obtenção prévia de autorização do líder comunitário para circular pela comunidade e acompanhamento, durante a observação participante, de uma assistente social voluntária do Núcleo Comunitário de Proteção e Defesa Civil (NUPDEC) da comunidade. Os sujeitos entrevistados1 foram essa assistente social (codificada como A1); o líder comunitário atuante na época do desastre (L1); o líder comunitário atual (L2); uma moradora cuja família ficou desabrigada (M) e uma assistente social que prestou serviços ao abrigo temporário (A2).

A fase “Ficando no Campo”, representou a coleta, o registro e o processo de análise inicial dos dados, também por análise de conteúdo. Para o levantamento dos dados, foram utilizadas as técnicas de observação participante e entrevista, com questões semiestruturadas, seguindo modelos preconizados por Patrício (1990, 1995) referentes ao “Diário de Campo” e ao “Formulário de Entrevista”, respectivamente.

A observação participante buscou verificar a categoria de análise “Ações de recuperação na comunidade”. Foram feitos registros fotográficos do local e conversas informais com moradores. Nesta etapa, tinha-se por objetivo observar a situação atual quanto às moradias, infraestruturas e paisagem, nos seguintes aspectos: residências atingidas no desastre; ações de melhoria realizadas pelos moradores e por ações externas, para reduzir os riscos e reabilitar/reconstruir as edificações; outras ações realizadas na comunidade para reduzir os riscos e melhorar a qualidade de vida na comunidade; locais que ainda apresentam risco e a percepção local sobre a condição de risco que vivenciam.

As entrevistas foram realizadas com cada participante individualmente e gravadas com sua autorização, conforme consta no Formulário, onde eram registrados os depoimentos, as intercorrências e percepções iniciais das pesquisadoras.

A fase “Saindo do Campo”, para Patrício (1996), representa momentos de findar as interações entre pesquisador e pesquisado, inclusive validar dados. O pesquisador afasta-se do campo para desenvolver a análise final dos dados, refletir criticamente e elaborar o relatório da pesquisa. Esta análise final, com vistas a identificar temas emergentes, foi realizada pelo processo de análise-reflexão-síntese, com o intuito de integrar os dados, refletir e dialogar com o referencial teórico, especialmente entre as categorias iniciais e aquelas identificadas posteriormente pela análise dos dados empíricos.

RESULTADOS: ENTRE O PRESCRITO E A REALIDADE

Os resultados estão divididos em três partes. A primeira, composta por conceitos fundamentais à pesquisa, identificando as categorias de análise para orientar a pesquisa de campo. A segunda e a terceira, relativas ao estudo de campo.

IDENTIFICANDO CATEGORIAS DE ANALISE: UMA COMPLEXIDADE SOCIOAMBIENTAL

Segundo Brasil (2012), “desastre” é o resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ambiente vulnerável, que excede a capacidade de resposta do sistema social atingido. Suas consequências geram prejuízos socioeconômicos, patrimoniais e ambientais, sendo proporcionais à vulnerabilidade e exposição dos elementos em risco. De acordo com a Estratégia Internacional para la Reducción de Desastres das Naciones Unidas (2004, p.7), vulnerabilidade é uma “[...] condição determinada por fatores ou processos físicos, sociais, econômicos e ambientais que aumentam a suscetibilidade e exposição de uma comunidade ao impacto de ameaças”.

No Brasil, serviços públicos voltados para a proteção e defesa civil têm o objetivo de fazer frente aos desastres e aos danos causados por eles. A atual Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) (BRASIL, 2012) prevê ações que abrangem cinco fases: Prevenção, Mitigação, Preparação, Resposta e Recuperação. Estas ações ocorrem de forma multissetorial e nos três níveis de governo, com ampla participação comunitária.

A fase de resposta visa à prestação de serviços de emergência e de assistência pública durante ou imediatamente após o desastre e se concentra predominantemente nas necessidades de curto prazo. Esta fase compreende ações que incluem o fornecimento de água, material de abrigamento, higiene pessoal etc. Além de diversas ações para o restabelecimento dos serviços essenciais, destinadas a recompor as condições de segurança e habitabilidade, incluindo a avaliação dos danos, a remoção de escombros, a desmontagem de estruturas danificadas ou comprometidas etc. (NACIONES UNIDAS, 2009).

Após o período emergencial inicia-se a fase de recuperação. O Decreto n°7.257 (BRASIL, 2010) define “recuperação” como um conjunto de ações de caráter definitivo que tem por objetivo restabelecer e aprimorar o cenário destruído pelo desastre e as condições de vida da comunidade. Algumas ações são a reconstrução de habitações, infraestruturas, sistema de abastecimento de água, estradas vicinais, contenção de encostas, entre outros. Nesta fase também se promovem as mudanças necessárias para a redução de desastres e se aplicam medidas para redução dos riscos.

Uma ação importante para minimizar os desastres é a redução do número de pessoas residentes em áreas de risco, pois após desastres podem ter que abandonar suas casas e se convertem em desabrigadas ou desalojadas. De acordo com o Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (2014), desabrigado é aquele cuja habitação foi danificada ou destruída por desastres, ou que está localizado em áreas com risco iminente de destruição, e que necessita de abrigo alojar-se. De outra parte, o desalojado é aquele cuja habitação foi danificada ou destruída, mas que não necessita de abrigo, pois buscará hospedar-se na casa de amigos ou parentes.

A provisão de abrigos temporários refere-se ao processo de abrigar a parcela da população desabrigada, até o momento em que seja fornecida uma estrutura habitacional individualizada para as famílias. Quarantelli (1995) define quatro etapas na provisão de abrigo e habitação pós-desastre: abrigo de emergência, tem curta duração, geralmente de algumas horas a um dia, e exige pouca infraestrutura e serviços. Abrigo temporário, com duração de dias a semanas. Exige mais infraestruturas e serviços, porém, ainda não se restabelece a rotina diária. Habitação temporária, que se refere à retomada da rotina e das atividades diárias dos desabrigados e se estende por meses a anos. Habitação permanente, referente ao retorno dos desabrigados para suas casas reconstruídas ou reparadas, ou o reassentamento a outra localidade, de forma permanente.

Para o planejamento e administração de abrigos temporários muitas organizações de defesa civil adotam procedimentos baseados no Proyecto Esfera (2011), desenvolvido por um grupo de ONG e pelo Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Esta publicação define um conjunto de normas mínimas de resposta humanitária, mas apresenta algumas especificações que não condizem com a realidade brasileira, pois tratam, em grande parte, de desastres que não são comuns neste país. Sendo assim, a Secretaria de Estado da Defesa Civil do Rio de Janeiro desenvolveu em 2006 o manual de “Administração para Abrigos Temporários”, com o intuito de obter uma literatura nacional adequada à realidade do país.

Os abrigos temporários podem ser organizados em instalações fixas ou móveis. As primeiras são edificações públicas ou privadas adaptadas para abrigar temporariamente a população, como escolas, ginásios, clubes etc. As segundas referem-se a barracas e geralmente são locadas em áreas pré-determinadas. Para que os abrigos funcionem adequadamente são necessários diversos serviços e infraestruturas, detalhados no manual “Administração de Abrigos Temporários” (SECRETARIA DE ESTADO DA DEFESA CIVIL DO RIO DE JANEIRO, 2006) (Figura 1).

Serviços/infraestruturas de apoio a abrigos.
FIGURA 1
Serviços/infraestruturas de apoio a abrigos.
Fonte: Carbonari e Librelotto (2017).

Para a instalação de abrigos em áreas fixas (objeto deste estudo) devem ser considerados: o tipo e as características da edificação, com relação ao número de pavimentos, às compartimentações do espaço, ao número de sanitários, entre outros. As condições de higiene e limpeza, referentes à existência no local de lavanderia, chuveiros, entre outro. As infraestruturas existentes, para o fornecimento de água, luz, banheiros, cozinha, dormitórios, área de recreação, ventilação, entre outros. Somado a isso, os desabrigados devem dispor de um espaço coberto suficiente para se proteger das adversidades climáticas, com condições adequadas de temperatura, segurança e privacidade A área coberta total por pessoa é de 4m², atentando para alguns indicadores mínimos de infraestrutura: 2m² de área de dormitório por pessoa, 15m² de área de cozinha para cada fogão industrial de 6 bocas, que atendam a até 250 pessoas; banheiros com 1 lavatório para cada 10 pessoas, 1 vaso sanitário para cada 20 pessoas e 1 chuveiro para cada 25 pessoas; 20m² de área no setor de triagem; área de serviço com 1 tanque para lavar roupa a cada 40 pessoas; 1,5m² de área de refeitório por pessoa e 1,5m² de área para espaço recreativo por criança (SECRETARIA DE ESTADO DA DEFESA CIVIL DO RIO DE JANEIRO, 2006).

Os recursos necessários à organização dos abrigos devem ser planejados para o período de 7 dias, podendo ser reorganizados, pois não é possível precisar sua duração, visto que depende de cada contexto. No Brasil há uma preferência da defesa civil por abrigos fixos, pois normalmente já possuem rede de abastecimento de água, esgoto e coleta de resíduos, entre outras infraestruturas. Cabe ressaltar que as comunidades mais pobres são as mais vulneráveis a desastres e à permanência prolongada em abrigos (SECRETARIA DE ESTADO DA DEFESA CIVIL DO RIO DE JANEIRO, 2006).

O Proyecto Esfera (2011) aponta algumas questões que devem ser consideradas ao escolher um local para ser utilizado como abrigo temporário: verificar a distância do local às áreas de risco; avaliar a possibilidade de expansão do abrigo, caso haja um aumento no número de desabrigados; possibilitar o controle de entrada e saída de pessoas e estar, ou poder ser, murado; verificar as condições de acesso ao local para pessoas e veículos e o estado de conservação das vias locais; dar preferência a abrigos com fácil acesso ao centro da cidade e aos serviços e subsistência; entre outros. Também é importante considerar aspectos relacionados com a acessibilidade universal, dando preferência para instalações térreas, com boa conexão entre os espaços de vivência, refeitório e dormitório, além de instalações para lavagem de roupa, chuveiros e banheiros acessíveis.

CATEGORIAS DE ANÁLISE PARA O ESTUDO DE CAMPO

A partir da análise de conteúdo dos textos que compõe o referencial teórico desta pesquisa, seguindo o processo metodológico, identificaram-se as categorias de análise que nortearam a pesquisa de campo (Quadro 1).

QUADRO 1
Categorias de análise.
Categorias de análiseAspectos das categorias para análise
Ações de resposta (curto prazo)- Socorro e assistência à população afetada - Encaminhamento dos desabrigados a abrigo temporário - Restabelecimento das condições de segurança e habitabilidade da área atingida pelo desastre
Abrigo temporário- Abertura e desmobilização do abrigo - Principais infraestruturas e serviços e características físico-espaciais do abrigo - Localização do abrigo temporário
Ações de recuperação (longo prazo)- Reabilitação / reconstrução de unidades habitacionais e infraestrutura pública - Atendimento às famílias desabrigadas e desalojadas - Restabelecimento da condição de vida da comunidade afetada - Aplicação de medidas de redução dos riscos de desastres

CONTEXTO DE ESTUDO: O DESASTRE DE 2011 NO MORRO DA MARIQUINHA

O Morro da Mariquinha é uma das localidades de encosta do Maciço Central da cidade de Florianópolis (SC), caracterizado como um complexo suburbano, pois grande parte das comunidades ali presentes não dispõe da maioria dos dispositivos urbanos. Isto inclui a comunidade da Mariquinha, principalmente a parte alta do morro, que não tem rede de água e esgoto, serviços de transporte e coleta de lixo. Além disso, somam-se as más condições topográficas e a precariedade e instabilidade das estruturas, que transformam o local numa área de risco (PIMENTA & PIMENTA, 2011).

Em dezembro de 2011 o risco presente na Mariquinha transubstanciou-se em desastre. Neste evento, de acordo com a Defesa Civil (2011), um talude rochoso, com altura aproximada de 15 metros, apresentou movimento de massa, com queda de bloco e corrida de solo. O bloco, uma rocha de 200 toneladas, deslizou, atingindo algumas casas e um lava-jato e matou a moradora de uma das casas destruídas (Figura 2). Os geólogos constataram ser uma área de risco permanente. Após o incidente, a prefeitura desocupou dezenove casas e tomou medidas para abrigar os moradores.

Esquemas gráficos do deslizamento do bloco e das residências demolidas e interditadas em seção vertical e implantação, respectivamente.
FIGURA 2
Esquemas gráficos do deslizamento do bloco e das residências demolidas e interditadas em seção vertical e implantação, respectivamente.
Fonte: Adaptada de Diretoria Municipal de Defesa Civil de Florianópolis (2011).

Duas famílias desabrigadas (11 pessoas) foram encaminhadas para um abrigo temporário localizado no sambódromo municipal, que atualmente é o espaço onde as escolas de samba se apresentam durante o carnaval de Florianópolis (SC). O local tem acesso pela Av. Governador Gustavo Richard e está a cerca de 800 m do Morro da Mariquinha (Figura 3).

Distância entre o Morro da Mariquinha e o sambódromo e imagens do acesso ao local.
FIGURA 3
Distância entre o Morro da Mariquinha e o sambódromo e imagens do acesso ao local.
Fontes: Elaborada pelas autoras (2018) e Google Earth (2018) respectivamente.

A partir de informações fornecidas em entrevista pela assistente social (A2), para abrigar essas 11 pessoas foi utilizada a parte térrea dos camarotes do sambódromo, sendo disponibilizadas 2 salas para dormitório (uma para cada família) e banheiros masculinos e femininos. Externamente foi preparado um espaço utilizado como recepção e uma área para refeitório, compartilhada com o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) (Figura 4).

Pavimento térreo dos camarotes.
FIGURA 4
Pavimento térreo dos camarotes.
Fontes: Elaborada pelas autoras (2018).

Com relação aos aspectos de implantação, dimensionamento e funcionalidade do abrigo temporário, em comparação com os requisitos apresentados no referencial teórico, verifica-se que o mesmo se situa em um local de fácil acesso, distante de áreas de risco e próximo a infraestruturas e serviços. Além disso, está localizado no centro da cidade, a aproximadamente 750m de distância do Terminal de Integração do Centro (Ticen). A edificação é cercada por muro e permite o controle de entrada e saída de pessoas. Quanto aos aspectos físico-espaciais, observa-se que a infraestrutura existente atende a quase todos os requisitos mínimos, fornecendo um espaço privativo para as famílias, o que confere maior segurança. Além disso, caso houvesse sido necessário, teria espaço para expandir a sua capacidade de abrigamento. No entanto, observa-se que o número reduzido de pessoas favorece a funcionalidade do espaço, o que é atípico, visto que na maioria dos casos o número de desabrigados é maior e a necessidade de espaços recreativos, de cozinha, lavanderia, entre outros, torna-se mais relevante.

De acordo com Abreu (2015), a comunidade do Morro da Mariquinha como um todo foi afetada pelo desastre, com um registro de 2.053 pessoas afetadas direta e indiretamente. Apesar de todo o transtorno causado, tal adversidade contribuiu para que a comunidade se organizasse, naquele momento, a fim de exercer o seu papel de cidadania, compondo espaços democráticos de participação. A seguir são apresentados os resultados obtidos durante a observação não participante e com as entrevistas.

PERCEPÇÕES DOS PARTICIPANTES: ENTRE CONCEITOS, POLÍTICAS PÚBLICAS E SUAS SITUAÇÕES-LIMITE E EXPECTATIVAS DE SUPERAÇÃO

AÇÕES DE RECUPERAÇÃO NA COMUNIDADE

O acesso às residências danificadas e destruídas no desastre permitiu observar que muitas ainda estão em processo de recuperação (Figura 5). Em alguns casos famílias estão morando em uma parte da residência enquanto outra parte está repleta de entulhos e em outros casos os moradores estão vivendo de aluguel social, em casas alugadas na própria comunidade, enquanto suas residências são recuperadas. Por outro lado, algumas moradias, interditadas após o desastre, receberam melhorias e não apresentam mais risco aos moradores. Em parte, estas melhorias foram realizadas pelos próprios residentes e em parte por ações do poder público e da assistência social. Alguns moradores apontaram a falta de recursos próprios como um entrave no processo de recuperação de suas casas.

Residências destruías no desastre.
FIGURA 5
Residências destruías no desastre.
Fonte: Acervo pessoal das autoras (2017).

O clima estava propício e facilitou o acesso a áreas com pouca infraestrutura, íngremes e com muitos entulhos (Figura 6), mas que possibilitaram visualizar os pontos mais altos do morro e as áreas de maior risco. Quanto mais acima do morro mais difícil circular no local e mais precária a situação da comunidade. Devido ao conhecimento prévio da assistente social sobre a condição local, puderam-se conhecer algumas obras e benefícios realizados nos últimos quatro anos na comunidade. Como exemplo, pode-se citar o beneficiamento de algumas famílias com módulos sanitários, melhorando a condição de saneamento básico no local. O acesso a áreas de risco permitiu observar que algumas famílias não percebem a sua situação de risco, pois vivem em casas próximas a grandes rochas instáveis e expressaram despreocupação quanto a isso. Também se percebeu a condição precária de várias residências, instabilidade estrutural e autoconstrução.

Locais de difícil acesso e muitos entulhos.
FIGURA 6
Locais de difícil acesso e muitos entulhos.
Fonte: Acervo pessoal das autoras (2017).

Por fim, verificou-se o local do desastre para observar sua condição atual e averiguar as ações de recuperação e redução de risco que foram realizadas. Algumas destas ações foram: a construção de um gabião para estabilizar o talude, que é um tipo de estrutura armada, flexível, drenante de grande durabilidade e resistência; a contenção de uma rocha instável; e a canalização da água no lado direito do terreno, para reduzir o volume de água que corre pelo terreno em dias de chuva. Atualmente o local do desabamento está desobstruído e em sua base funciona um estacionamento.

Uma importante categoria de analise emergente foi “A condição de vulnerabilidade social na comunidade”. Segundo Monteiro (2011), a vulnerabilidade social se constitui como construção social e deve ser compreendida a partir da relação dialética entre o contexto de referência e as características básicas de indivíduos ou comunidades. Além disso, está relacionada com seus recursos, constituídos a partir de ativos, os quais devem ser avaliados a partir de quatro aspectos: físico, financeiro, humano e social. A privação destes ativos, relacionados à infraestrutura urbana, capital humano, renda e trabalho, determinam as condições de bem-estar das populações nas sociedades contemporâneas.

Observou-se nesta pesquisa que, além de estar em um local que apresenta riscos de desastre por fatores ambientais, a comunidade se encontra em uma situação de grande pobreza, presença de tráfico e criminalidade, precariedade das construções e deficiência de infraestruturas e serviços essenciais. Estes problemas acentuam a fragilidade, o risco e, consequentemente, a vulnerabilidade social da população que vive nessa comunidade.

Segundo Monteiro (2011), uma forma de diminuir a vulnerabilidade social pode ser por meio do fortalecimento dos sujeitos para que possam acessar bens e serviços, ampliando seu universo material e simbólico. Neste estudo, a partir dos momentos de interação com os sujeitos, observou-se que as ações de conscientização realizadas pela assistência social e pela liderança comunitária após o desastre reduziram a vulnerabilidade social, pois fortaleceram a comunidade e levaram a reivindicações para a melhoria da condição de vida local e das residências e infraestruturas. Essas ações são de grande importância para a percepção do risco e para a mitigação de desastres.

AÇÕES DE RESPOSTA E RECUPERAÇÃO NA COMUNIDADE E O ABRIGO TEMPORÁRIO

Quatro importantes categorias emergiram da análise de conteúdo das entrevistas: “O papel do poder público, da assistência social e da liderança comunitária na resposta ao desastre, recuperação da comunidade e percepção do risco”, “O Empoderamento comunitário após o desastre”, “A acessibilidade, a privacidade, a segurança e a preservação do núcleo familiar como aspectos fundamentais em abrigos temporários” e “A influência do tipo de abrigo, tempo de funcionamento e do número de desabrigados na qualidade e gestão de abrigos temporários”.

• O papel do poder público, da assistência social e da liderança comunitária na resposta ao desastre, recuperação da comunidade e percepção do risco

Grande parte das famílias que perderam suas casas no desastre não tinha a percepção do risco que corriam e tampouco suficiente informação sobre isso.

A comunidade convive há muito tempo com o risco e não tem a sua percepção. É como a pedra que fomos ver que tem a casa na frente com gente morando, é um rochoso grande que vem desde lá de cima e pode desmoronar. Com um olhar técnico de fora a gente percebe, mas eles estão acostumados com aquilo ali, acham que nada vai acontecer. É uma obrigação dos órgãos públicos pelo menos orientar para caso houver uma eventualidade eles poderem se retirar do local (A1).

Nunca pensei que aquela pedra ia cair. Achava que algumas árvores que estavam ali antes da pedra desabar poderiam cair, mas aquela pedra daquele tamanho não (M).

O líder comunitário atuante na época do desastre destacou que a área onde ocorreu o desastre não estava mapeada como área de risco e salientou a importância da preparação para situações de desastre e da atuação do poder público nos dias subsequentes.

Foi surpresa porque a área de risco era uma área ao lado, onde não aconteceu nada. [...] antes do desastre eu já tinha há 16 anos minha casa e local de trabalho ali e nunca tive problema. Eu perdi meu local de trabalho e infelizmente minha mãe estava em casa quando ocorreu o desastre e ela foi morta. Desde o socorro houve um despreparo do poder público, que levou a ações inadequadas, como o modo que minha mãe foi removida dos escombros. A defesa civil interditou a área, mas não enviaram pessoal para monitorar e no terceiro dia as pessoas estavam tirando móveis, sem saber o que fazer, porque não tinha ninguém da prefeitura para orientar (L1).

Na opinião das assistentes sociais uma resposta de emergência ideal deve considerar aspectos psicológicos e o acolhimento às vítimas. Além disso, salientam a importância do fornecimento das necessidades básicas iniciais, da atuação da liderança comunitária e da continuidade na prestação de assistência após a fase inicial.

Essas famílias têm que ser acolhidas com assistente social e com psicólogo, pois emocionalmente estão muito abaladas. A assistente social, além de amparar e acolher as pessoas fornece as primeiras necessidades básicas, oferece um local para elas poderem ser acolhidas, dormir dignamente, com banheiros, refeições. [...] logo em seguida providencia auxílio moradia ou outra coisa enquanto se busca uma solução definitiva (A1).

Após o desastre nós fomos acionados para fazer um cadastro imediato, com nome de um responsável familiar, das pessoas da família e telefone para contato. Depois verificamos quem teria que ir para o abrigo, nisso o líder comunitário ajudou muito [...] ali já fizemos a primeira triagem [...] o que se procurou olhar diante da situação é que todo ser humano precisa ser acolhido de modo respeitoso, que eles estavam numa situação extremamente frágil, sem saber o que ia acontecer. [...] procuramos dar apoio para que eles se sentissem acolhidos e amparados [...] depois do desastre também (A2).

Na opinião da mulher que ficou desabrigada a assistência prestada foi rápida e muito eficiente, o que gerou um sentimento de segurança e acolhimento, que minimizou seu desespero diante da situação.

[...] com 55 anos eu nunca tinha recebido ajuda de ninguém sem ser do meu pai e da minha mãe. Eles trataram a gente super bem, deram comida, deram tudo. Foi muito rápido, quando a pedra desabou eles tiraram todo mundo e ficaram ali, não deixaram mais ninguém subir. Quando eu cheguei do serviço disseram que eu tinha 10 minutos pra pegar roupas e documentos. Colocaram a gente num carro e levaram para o abrigo. No abrigo ia assistente social, ia médico, ia psicólogo, ia todo mundo, a gente saiu na TV, todo mundo queria saber o que a gente precisava. Na verdade, a gente só precisava de um lugar pra ficar, mas eles fizeram muito mais (M).

Na percepção dos entrevistados o comprometimento e as ações realizadas pelo poder público, pela assistência social e pela liderança comunitária após o desastre tiveram um efeito muito positivo no psicológico e na resiliência das vítimas.

[...] fiquei um ano e oito meses todos os dias na prefeitura e dentro da comunidade, eu não trabalhei. Não tinha aluguel social no município, entramos com pedido ao ministério público, levamos toda a comunidade para apoiar e votaram a favor. Também intermediei o desmanche de duas casas que estavam a ponto de cair e consegui módulos sanitários para muitos moradores. Após o desastre muitas coisas boas aconteceram, toda a área de cima da comunidade era uma área muito precária e foram feitas melhorias com a ajuda da prefeitura, que trouxeram outra vida para a comunidade (L1).

[...] depois que as famílias perceberem as melhorias habitacionais realizadas e como sua casa ficou melhor do que antes, elas ficaram muito felizes e agradecidas. A resiliência delas foi muito grande e aos poucos fomos fortalecendo os moradores (A1).

Com relação às famílias que ficaram desabrigadas e desalojadas, após 5 anos do desastre a situação ainda não está totalmente resolvida. No entanto, a maioria das famílias já recuperou a sua habitação. Na opinião da assistente social os esforços para a recuperação local com o intuito de manter os desabrigados e desalojados em casas na comunidade têm um resultado melhor para as vítimas do que o reassentamento das famílias em situação de risco para conjuntos habitacionais em outras localidades.

As comunidades são muito unidas, apesar de terem problemas sociais sérios. [...] dentro das grandes diferenças eles se respeitam. Eles gostam de morar na comunidade, até porque é uma comunidade no centro da cidade, bem localizada, e com vistas maravilhosas. [...] quando se constroem conjuntos habitacionais, para reassentamento, tem que se construir toda uma infraestrutura próxima, que exige investimentos altos. A adaptação e aceitação das famílias são difíceis, porque geralmente as relações afetivas da comunidade no processo de reassentamento são rompidas (A1).

• O empoderamento comunitário após o desastre

Para Paulo Freire, a pessoa, grupo ou instituição empoderada é aquela que realiza, por si mesma, as mudanças e ações que a levam a evoluir e se fortalecer. Isto implica na obtenção de informações adequadas, reflexão e conscientização da sua condição atual, formulação das mudanças desejadas e da condição a ser construída (SCHIAVO & MOREIRA, 2005). O empoderamento comunitário está relacionado à organização de comunidades para resolver problemas sociais e melhorar suas condições econômicas, estando diretamente relacionado à participação social.

Após o desastre, a comunidade, os representantes públicos e demais profissionais envolvidos se organizaram rapidamente. Durante as entrevistas, percebeu-se a importância da atribuição de domínio e poder aos moradores locais sobre sua condição, que foi promovida, em grande parte, pela criação do NUPDEC. Além disso, a realização de cursos de capacitação e o simulado de desastre feito em 2014 promoveram ainda mais esse empoderamento, tendo um resultado positivo na recuperação da comunidade após o desastre e na redução de sua vulnerabilidade.

Os moradores estão muito mais preparados hoje, eles têm orgulho de terem o NUPDEC na comunidade [...] apesar de todo o sofrimento a comunidade aprendeu muito e tem hoje um olhar mais atento de percepção de risco (A1).

Depois que o NUPDEC foi montado, formamos um grupo de umas vinte pessoas e acho que temos hoje pessoas capacitadas que conseguiriam orientar os moradores dentro da comunidade (L1).

A simulação de desastre realizada pela Defesa Civil em conjunto com a ASA (Ação Social Arquidiocesana) em 2014 foi muito positiva, demarcamos áreas de fuga, a comunidade se envolveu bastante (L1).

• A acessibilidade, a privacidade, a segurança e a preservação do núcleo familiar como aspectos fundamentais em abrigos temporários

Algumas questões apontadas pelos entrevistados mostram suas percepções sobre requisitos prioritários nos abrigos temporários.

O abrigo tem que estar bem localizado na cidade, pois as pessoas necessitam continuar com sua vida diária, tem que ter acessibilidade, estrutura para que as famílias fiquem separadas entre si e garanta a sua privacidade mínima [...] além da estrutura sanitária básica, alimentação, água [...]. Na Mariquinha as famílias desabrigadas foram acolhidas na passarela Nego Quirido e por sorte o espaço estava vazio naquele momento, ficava próximo e tinha infraestrutura adequada [...] mas não seria o melhor local, principalmente devido à falta de acessibilidade. Cada família ficou em uma sala, por uma questão de segurança e respeito (A2).

No abrigo minha família ficou em uma sala com a chave, ninguém mais entrava. Nós ficamos em 6 adultos e 2 crianças no quarto. Continuei com minha vida normal, com meu trabalho. [...] meus outros filhos iam trabalhar. Um deles chegava tarde, mas tinha um segurança que cuidava do acesso. [...]. A família tem que ficar junta, porque daí um pode defender o outro. Imagina ter que dormir com outra família estranha que você nunca viu e não sabe quem é. A privacidade e a segurança são muito importantes (M).

Pode-se observar que apesar do número reduzido de pessoas no abrigo (11 pessoas), a questão da privacidade, da segurança e da preservação do núcleo familiar são umas das maiores preocupações, tanto por parte dos desabrigados como também na visão de quem está prestando serviços no abrigo. Em comparação com a literatura, observa-se que os maiores problemas de abrigos com um grande aglomerado de pessoas são geralmente relacionados a estas questões e, provavelmente, é por isso que no geral considerou-se a experiência dos desabrigados no Morro da Mariquinha como positiva.

• A influência do tipo de abrigo, tempo de funcionamento e do número de desabrigados na qualidade e gestão de abrigos temporários

Como apontado na fundamentação teórica, existe uma preferência por abrigos fixos, pois normalmente possuem rede de abastecimento de água, esgoto e coleta de resíduos, além de infraestruturas como áreas para refeições, sanitários, dentre outras. O abrigo temporário utilizado no desastre da Mariquinha, além de ter estas infraestruturas, acomodou um grupo pequeno de desabrigados, dividido em apenas duas famílias e teve um tempo de duração curto, comparado com a grande maioria dos casos de abrigos temporários.

Devido às características especificas desse abrigo, pode-se observar o resultado positivo, tanto para os responsáveis por coordenar o abrigo, como para os desabrigados. Grande parte das infraestruturas apontadas pela literatura como essenciais foram sanadas facilmente, como o fornecimento de água, o saneamento básico, o fornecimento de refeições e a acomodação. Alguns serviços essenciais foram facilitados devido ao número reduzido de pessoas, como a atenção psicossocial, a triagem, a recepção e o controle de entrada e saída dos desabrigados no local. Por outro lado, questões como a biossegurança, cuidados em saúde e espaço recreativo, que em muitos abrigos são problemas sérios a serem administrados, neste caso acabaram não sendo necessários. O estabelecimento de uma rotina e regras para o abrigo foi enfatizada como essencial para a sua organização.

Como tinham só duas crianças e um bebe não foi necessário um espaço de recreação, mas pela minha experiência é muito importante em abrigos ter um local para atividades com as crianças em pelo menos um período do dia (A2).

A definição de uma rotina e de regras no abrigo foi muito importante, mesmo com apenas duas famílias no local. Às 7 horas da manhã ia um responsável organizar o café da manhã e eles saiam para o trabalho. Alguns ficavam lá. Por volta das 7 horas da noite era servida a janta e ficava um membro da guarda municipal monitorando o local até umas 10 horas da noite, quando o abrigo era fechado (A2).

Essas questões evidenciam que um dos maiores problemas na qualidade e gestão de abrigos temporários é o aglomerado de pessoas e o tempo de permanência no local. A experiência dos desabrigados no desastre da Mariquinha, com relação ao abrigo, foi no geral bastante positiva também devido a isso.

A partir do exposto, observa-se que, durante a fase de resposta, a falta de preparo prévio da comunidade local impossibilitou uma participação efetiva. Além disso, a carência de informações na orientação dos procedimentos a serem adotados, reforçou um sentimento de desamparo e insegurança nas pessoas atingidas. No entanto, a preocupação com o restabelecimento da segurança e retorno dos desalojados e desabrigados para suas residências despertou o interesse de muitos moradores locais em participar e contribuir com a reorganização comunitária. Após a fase de resposta houve um trabalho continuado, com diversas ações realizadas a partir das demandas comunitárias de recuperação e aprimoramento dos sistemas estruturais de prevenção. Além disso, foram desenvolvidas medidas não estruturais de planejamento, estudo das áreas de risco e preparação comunitária, principalmente com a criação do NUPDEC. No entanto, durante a realização desta pesquisa observou-se que a comunidade ainda se encontra em uma situação de vulnerabilidade social, com edificações em situação de risco e obras inacabadas. Este fato evidencia a necessidade de se trabalhar mais efetivamente a percepção de risco no local e da continuidade de ações de prevenção, mitigação e preparação a desastres. Na Figura 7 é possível ter um panorama geral da situação no Morro da Mariquinha antes e depois do desastre e das ações de resposta e recuperação realizadas no local.

Panorama geral da situação e das ações após o desastre.
FIGURA 7
Panorama geral da situação e das ações após o desastre.
Fonte: Elaborada pelas autoras (2018).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa evidencia que os participantes perceberam como muito importância o papel do poder público, da assistência social e da liderança comunitária na resposta a desastres e na recuperação da comunidade. Essa percepção tem origem nas experiências vividas por eles após o desastre de 2011 no Morro da Mariquinha, e, também, por crenças e opiniões sobre o que foi mais efetivo e gerou melhores resultados na atuação após o desastre. Houve o entendimento da importância e da necessidade do empoderamento comunitário para melhorar as condições econômicas da população local, sua autoajuda e participação social. Na Mariquinha esse empoderamento foi promovido, em grande parte, pela criação do NUPDEC na comunidade e realização de eventos como o simulado de desastre.

Observou-se que em abrigos temporários a acessibilidade, a privacidade, a segurança e a preservação do núcleo familiar são aspectos percebidos como fundamentais, tanto para os desabrigados como para os responsáveis por coordenar o abrigo. Além disso, a influência do tipo de abrigo, do seu tempo de funcionamento e do número de desabrigados no local foi percebida como determinante para a qualidade do serviço prestado, facilitando muito as atividades de coordenação e organização do local.

Por fim, destaca-se a importância da pesquisa qualitativa no aperfeiçoamento das habilidades de arquitetos e urbanistas para a compreensão e condução de situações de alta complexidade, envolvendo diferentes componentes humanos repletos de subjetividades.

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NOTAS

1 . Por questões éticas, os nomes dos participantes não foram mencionados neste trabalho. Optou-se por citar a fala dos participantes e codificá-los conforme descrito nos Procedimentos Metodológicos.
Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Processo nº 1623207).

Autor notes

ELABORAÇÃO L.T. CARBONARI contribuiu inicialmente com o desenvolvimento do estudo em campo e, após isso, na concepção e redação do artigo, na análise e interpretação dos dados e na revisão crítica do conteúdo intelectual. Z.M.P. KARNOPP contribuiu principalmente com suporte teórico e metodológico relativo à pesquisa qualitativa e aos cuidados éticos durante todo o trabalho. Também participou da análise e interpretação dos dados e da revisão crítica do conteúdo intelectual. L.I. LIBRELOTTO contribuiu na revisão crítica do conteúdo intelectual.

Correspondência para/Correspondence to: L.T. CARBONARI | E-mail: <luanatcarbonari@gmail.com>.

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