Artigo
A QUADRÍCULA COMO ESTRATÉGIA DE DESENHO URBANO DAS CIDADES PLANEJADAS AO LONGO DA LINHA FÉRREA NA ALTA SOROCABANA 1
GRID PLAN AS A STRATEGY FOR THE URBAN DESIGN OF THE PLANNED CITIES ALONG THE ALTA SOROCABANA REGION RAILWAY
A QUADRÍCULA COMO ESTRATÉGIA DE DESENHO URBANO DAS CIDADES PLANEJADAS AO LONGO DA LINHA FÉRREA NA ALTA SOROCABANA 1
Revista Oculum Ensaios, vol. 18, e214781, 2021
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Recepção: 05 Novembro 2019
Revised document received: 28 Abril 2020
Aprovação: 21 Maio 2020
RESUMO: Este trabalho apresenta o estudo do desenho urbano de 15 núcleos urbanos implantados no entorno das estações da Estrada de Ferro Sorocabana, na Alta Sorocabana, os quais deram origem a 15 cidades. Tem como objetivo investigar a existência de uma tipologia de desenho urbano e uma forma de produzir cidades na franja pioneira do Estado, contribuindo para a história da urbanização paulista. As análises foram realizadas a partir dos métodos da morfologia urbana ao identificar os componentes formais do plano urbano: as características do sítio, a configuração do traçado e a sua relação com a esplanada ferroviária, o formato das parcelas e os agentes que estiveram envolvidos nessa produção. Foi possível identificar uma tipologia de traçado urbano das cidades em estudo, fruto de um modo de organização da sociedade e das condições econômicas e políticas do início do século XX: grelha em tabuleiro de xadrez, disposta paralelamente à esplanada da linha férrea e tendo a estação ferroviária como marco edificatório.
PALAVRAS-CHAVE: Alta Sorocabana, Desenho urbano, Estrada de Ferro Sorocabana, Morfologia urbana, Urbanização.
ABSTRACT: This paper presents the study of the urban design of fifteen urban centers located around the Sorocabana Railway stations in the Alta Sorocabana region, which originated fifteen cities. The aim was to investigate the existence of a typology of urban design and a way to produce cities in the unexplored region, contributing to the history of urbanization in the state of São Paulo. The analyzes were performed using the urban morphology methods to identify the formal components of the urban plan: the site characteristics, the layout of the streets and its relation to the railway esplanade, and the format of the plots; as well as the agents that were involved in this production. It was possible to identify an urban design typology as a result of the organization of society and the economic and political conditions of the early twentieth century: a square grid, arranged in parallel to the railway esplanade and having the railway station as a building landmark.
KEYWORDS: Alta Sorocabanaregion, Urban design, Urban morphology, Sorocabana railway, Urbanization.
INTRODUÇÃO
A FERROVIA NO estado de São Paulo esteve, a princípio, vinculada ao escoamento da produção cafeeira, ligando as regiões produtivas já existentes ao porto de Santos; mas, posteriormente, se expandiu para regiões inexploradas do oeste (MATOS, 1974). Assim, enquanto as zonas mais antigas do café eram procuradas pelas ferrovias por causa dos interesses individuais dos plantadores, na zona pioneira os trilhos chegaram antes, constituindo-se como linha de penetração. Aldrighi e Saes (2005) destacam também o papel da ferrovia no programa estratégico do Governo Federal, de ordem política e militar, de ligar o oeste do País ao litoral.
Na Alta Sorocabana2, a Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) favoreceu o surgimento de núcleos urbanos, implantados no entorno de suas estações, e a formação de uma rede urbana como contas de um colar. De acordo com Abreu (1972, p. 42), “[...] a busca de solos virgens para o café, a especulação com terras e a colonização pelo loteamento de grandes glebas” caracterizam o seu povoamento.
Este trabalho apresenta o estudo do desenho urbano dos núcleos que originaram as cidades de Paraguaçu Paulista, Quatá, João Ramalho, Rancharia, Martinópolis, Indiana, Regente Feijó, Presidente Prudente, Álvares Machado, Presidente Bernardes, Santo Anastácio, Presidente Venceslau, Piquerobi, Caiuá e Presidente Epitácio (Figura 1), com o objetivo de investigar a existência de uma tipologia de desenho urbano e uma forma de produzir cidades na franja pioneira da região identificada como Alta Sorocabana, contribuindo para a história da urbanização paulista.

As análises foram realizadas a partir dos métodos da morfologia urbana com foco na gênese do plano, identificando as características do sítio, a configuração do traçado e a sua relação com a esplanada ferroviária, bem como o formato das parcelas, buscando explicá-lo à luz das forças que o criaram (COSTA, 2015).
A morfologia urbana enquanto ciência que estuda a forma física da cidade, bem como os agentes e os processos que as moldam ao longo do tempo, preocupa-se com o modo como a cultura se reflete na forma urbana (BARKE, 2018). As cidades desse estudo são frutos de um processo de colonização e de urbanização deliberado como parte de negócios acerca da especulação da terra. Desse modo, este trabalho tentou responder algumas questões: Quem eram os agentes que estiveram na base social daquelas cidades e quais as suas necessidades? Quais princípios formais orientaram os seus traçados e estiveram envolvidos com a estratégia de comercialização das terras?
Este artigo se divide em três partes: a primeira aborda, a partir da revisão bibliográfica, a origem dos núcleos urbanos, a forma de ocupação do território e os agentes que estiveram presentes nessa ocupação; a segunda apresenta a análise morfológica e as características dos traçados urbanos a partir da base cartográfica3 e a terceira parte apresenta uma discussão acerca da existência de uma tipologia de desenho urbano e seu modo de implantação.
A ORIGEM DOS NÚCLEOS URBANOS
Toda a área correspondente à Alta Sorocabana pertencia, inicialmente, ao mineiro José Teodoro de Souza, que havia registrado o termo de posse em 1856 e, posteriormente, dividiu-a entre seu filho e seu genro. Ao primeiro, couberam as terras delimitadas pelo espigão entre os rios Peixe e Santo Anastácio (corresponde à linha da ferrovia da Figura 1), desde o Rio Paraná até a altura do Rio Laranja Doce (em Martinópolis) e, ao segundo, do espigão até o Rio Paranapanema. O restante, a partir de Martinópolis, ficou com o pioneiro (ABREU, 1972). No final do século XIX, após outras divisões, a área configurava-se em cinco fazendas: Boa Esperança do Aguapehy e Montalvão, a norte do espigão, e Pirapó – Santo Anastácio, Anhumas e Laranja Doce, a sul desse elemento geográfico. Nesse espigão e nos recortes dessas fazendas primitivas seriam implantados os núcleos urbanos das 15 cidades.
Na República, a diminuição da influência da Igreja, a Lei de Terras e o Código Civil influenciaram a livre negociação das terras, o que fez com que as fronteiras agrícolas se expandissem e uma nova prática de divisão dos solos urbanos e de criação de cidades fosse adotada. De modo mais organizado, a comercialização era feita por organizações nacionais ou estrangeiras que compravam grandes glebas para lotearem ou revenderem. A propaganda se dava por meio de jornais, boletins e cartazes e a negociação era feita por corretores que percorriam todo o Estado de São Paulo e estados vizinhos (ABREU, 1972).
Assim, ao adentrar o século XX, toda a área da Alta Sorocabana já havia sido retalhada em porções menores e vendida a centenas de proprietários que buscavam por terras férteis ou que tinham como objetivo a especulação (LEITE, 1998). Fundadas em solos laicos, as cidades tinham função comercial e de serviços, a fim de apoiar o comércio de terras rurais. Com exceção de Presidente Epitácio, que teve início com a Estrada Boiadeira4, todos os outros núcleos urbanos tiveram origem a partir da informação exata do percurso da estrada de ferro. Em Rancharia, Presidente Prudente e Santo Anastácio, os fazendeiros apostaram na abertura do arruamento urbano antes mesmo da estação ser inaugurada, apenas conhecendo o local exato das estacas. Já João Ramalho, Martinópolis, Indiana, Regente Feijó, Álvares Machado e Presidente Bernardes tiveram seus arruamentos desenhados após a chegada da ferrovia. Nas outras cidades, Quatá, Rancharia, Presidente Venceslau, Caiuá e Presidente Epitácio, os arruamentos foram implantados concomitantemente à inauguração da estação. O Quadro 1 fornece uma visão geral das fazendas e das estações a partir das quais se originaram os patrimônios laicos, bem como da evolução administrativa dessas cidades.

A necessidade da precisão na demarcação das terras – imposta pela Lei de Terras –, fez com que o agrimensor assumisse papel preponderante. Inclusive, isso leva o Governo a exigir melhor preparo desses profissionais por meio do Decreto Imperial nº3.198, de 16 de dezembro de 1863, que estabelecia uma série de conhecimentos básicos que o agrimensor deveria ter para obter a carta profissional (GHIRARDELLO, 1997).
A adoção do sistema métrico francês e os conhecimentos de Topografia e Desenho Linear contribuíram para o sucesso da mercantilização das terras no Brasil ao abandonar as medidas pautadas no corpo humano e permitir a representação gráfica de figuras espaciais num só plano, facilitando a demarcação das áreas.
Monbeig (1984) já havia observado que existe semelhança entre o modo de dividir as terras rurais e as urbanas nas zonas pioneiras, independente das escalas. Esse procedimento pode ser visto na Alta Sorocabana e, inclusive, foi realizado pelos mesmos profissionais engenheiros agrimensores ou engenheiros práticos5 que acumulavam a função de agrimensor e de arruador (Quadro 2) – ao menos nas cidades onde foi possível obter esse tipo de informação.

Como a posse de terras nessa região era duvidosa, os vendedores se apressaram em fundar patrimônios a fim de atrair um número grande de pessoas e assegurar o seu direito. Isso explica o número de patrimônios fundados quase concomitantemente à inauguração das estações ferroviárias. Na marcha do café e da ferrovia, os fazendeiros plantaram pés de cafés e construíram cidades, necessárias para apoiar os pequenos produtores.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS TRAÇADOS URBANOS
Em 13 das 15 cidades estudadas, o traçado se configura como uma quadrícula regular com vias em ângulo reto e quarteirões quadrados; isso é, em tabuleiro de xadrez, disposto paralelamente à linha férrea (Figura 2), com apenas duas exceções: Álvares Machado e Rancharia.

Observa-se ainda na Figura 2 que os traçados foram implantados a partir dos limites das esplanadas ferroviárias. Esses espaços se constituíam de amplos retângulos alongados em proporções que variam entre 1:3, 1:4 e 1:5. A princípio, as esplanadas continham apenas a estação e uma ou duas edificações para a moradia dos ferroviários. Com o tempo, sobretudo na década de 1930, por meio de reformas administrativas empreendidas pela direção da EFS, novas casas e armazéns são construídos e algumas estações são substituídas (MOREIRA, 2008). Devido ao crescimento urbano e à ausência de espaços públicos, parte desses espaços foram doados à prefeitura municipal para construção de praças ou outros equipamentos e até mesmo vendidas para particulares.
As quadras em formato quadrado, na grande maioria, têm dimensões que variam entre 80x80 metros e 120x120 metros. Os lotes são, majoritariamente, retangulares e voltados para duas frentes do quarteirão (Figura 3a), variando suas medidas em função da dimensão da quadra: 20x40 metros em Presidente Bernandes, Piquerobi, Caiuá, Paraguaçu Paulista e Quatá; 22x44 metros em Presidente Epitácio, Presidente Venceslau, Santo Anastácio e Presidente Prudente; 20x50 metros em Indiana. Duas são as exceções, com lotes voltados para as quatro faces do quarteirão: Martinópolis, com quadras de 80x80 metros e lotes de 20x30 metros, 20x30 metros e 30x30 metros, sendo esses os únicos exemplos de lotes quadrados (Figura 3b), e Regente Feijó, com lotes de 20x30 metros, 20x40 metros e 20x50 metros (Figura 3c). Álvares Machado e Rancharia não apresentam regularidade de traçado e de lotes. João Ramalho apresenta quarteirões de 120x120 metros, entretanto não foi possível obter informações a respeito dos lotes.

As vias – retas e com cruzamento em 90 graus –, apresentam ampla variação quanto às suas dimensões, como consequência da ausência de um código de posturas que orientasse os desenhos, tanto para Presidente Prudente quanto para Conceição de Monte Alegre – os dois municípios que configuravam a Alta Sorocabana.
A QUADRÍCULA COMO ESTRATÉGIA DE DESENHO URBANO DAS CIDADES
No período em que Estado e Igreja eram indissociáveis, o antigo patrimônio religioso era formado a partir das terras doadas por um senhor de terras – ou vários deles –, a um santo padroeiro. O patrimônio organizava a vida da população de uma região envoltória que vivia do comércio e da prestação de serviços e servia também de pouso de tropeiros. Entretanto, a razão da criação das cidades em frentes pioneiras está ligada às leis de mercado e não mais às leis eclesiásticas. A sua natureza vincula-se à questão da terra, do seu domínio e distribuição e, portanto, os mecanismos para fundar e expandir cidades são outros: o patrimônio leigo dispensaria a capela, mas não a gleba sobre a qual se plantaria o casario (MARX, 1991).
Pierre Monbeig (1984), ao abordar os planos de colonização da franja pioneira do Estado de São Paulo, afirma:
Fundar um patrimônio é pratica antiga no Brasil. Até o final do século, era um ato de caráter religioso. O fundador ‘doava’ uma parcela de terra a um santo e ali fazia construir uma capela. [...]. O nome conservou-se, mas a instituição laicizou-se. Da tradição religiosa, conservou-se o habito de elevar uma cruz na clareira destinada à construção da cidade. Essa é uma ocasião de grande festa, de que o loteador fará o maior alarde possível, convidando os personagens importantes da região. Terminada a festa e a bênção da cruz, tudo se passa como loteamento urbano qualquer
(MONBEIG, 1984, p. 235).Com a laicização do solo, muitas das cidades novas passaram a ostentar o nome de seus fundadores, como é o caso de Martinópolis e Álvares Machado (GHIRARDELLO, 2002). Outras receberam nomes em homenagem a estadistas – Presidente Prudente, Presidente Bernardes, Presidente Venceslau, Presidente Epitácio e Regente Feijó –; ou a índios – Indiana, Caiuá, Piquerobi e Paraguaçu; ou a rios – Santo Anastácio. Quatá faz referência ao som emitido pelo macaco-bugio que vivia na região.
Em todas as cidades estudadas, a formação do núcleo urbano se deu como um “loteamento urbano qualquer” e nelas foram observados os mesmos princípios destacados por Ghirardello (2002), nos quais a estação se torna o “marco edificatório” e o limite da esplanada, a referência para a disposição dos arruamentos.
A partir das análises do tópico anterior, foi possível inferir que as características gerais do desenho urbano dos núcleos das cidades analisadas se resumem em: malha em tabuleiro de xadrez disposta paralelamente à estação ferroviária, no lado frontal ou em ambos os lados (Figura 4). Nesse último caso, a ligação se faz através de uma via no limite da esplanada, podendo ou não dar continuidade às ruas existentes.

De maneira geral, observa-se o seguinte perfil na formação dos núcleos primitivos das cidades estudadas: partindo da cota mais elevada, do espigão, tem-se a esplanada com o conjunto formado por pátio de manobras, estação e praça. Descendo, em um ou ambos os lados, o arruamento (Figura 5). A pouca inclinação do relevo não se mostrou empecilho para o desenho desses arruamentos, visto que a estrada de ferro foi implantada no espigão entre rios de planície.

Nessas cidades estudas, o largo da igreja seria substituído pela praça da estação ou largo da estação – o que foi observado também por Ghirardello (2002).
Francisco (2015) demonstra que o quadrado regular e ortogonal se mostrava como a figura geométrica mais adequada para o retalhamento de uma gleba: com 88x88 metros e ruas de 13,20 metros que, somadas, perfaziam a soma de 101,20 metros medidos de eixo a eixo das ruas – dimensões correspondentes à cidade de Presidente Prudente (Figura 6). Essa área, de 10.241,44m2 equivalia a aproximadamente um hectare, que era a medida usual do agrimensor-arruador, que saberia de antemão que a área disponível corresponderia ao número de quadras a serem projetadas. Ainda que essas medidas pudessem se alterar de cidade a cidade, o quadrado perfaz aproximadamente um hectare.

Desde os tempos de Hipódamo, em Mileto, no século V a. C., a grelha fora utilizada como traçado regulador da cidade; entretanto, não se confina a um contorno geométrico. Santos (1988) coloca que o traçado em grelha no urbanismo ocidental sofre uma inflexão, resultado da racionalidade no modo de planejar a cidade. A grelha seria utilizada pelos americanos na colonização do oeste, onde o princípio de geometrização é ao mesmo tempo simples e aberto a inúmeras possibilidades. Por vezes, seria cortada por largas avenidas ou por praças, na tentativa de introduzir a perspectiva barroca, como no plano de Washington, de 1791, ou no plano de Belo Horizonte, de 1891. Entretanto, Pinto (2013) refuta essa relação dicotômica regular/planejado; isso é, a ortogonalidade, regularidade dimensional e ângulos retos das plantas urbanas como principal indicação da presença de uma consciente e racional ação de urbanização.
Não se observa nos traçados das cidades da Alta Sorocabana uma ação de urbanização. O traçado regular é resultado de um processo econômico e técnico que facilitava a demarcação dos lotes, a sua comercialização e a expansão do traçado. O arruamento constituía, portanto, em um método prático e eficiente, compatível com a rapidez e a natureza do processo urbano das frentes pioneiras, caracterizado pelo estabelecimento do loteamento anterior à ocupação. A retícula poderia ser estendida por adições sucessivas, sem a necessidade de adaptações ou transição.
Para as cidades fundadas a partir de um patrimônio religioso, no século XIX, os procedimentos eram os seguintes: a partir da doação do chão para a igreja, providenciava-se o arruamento, por conta da Câmara. A edilidade indicava o arruador para executar a medição e demarcação. Esse, conhecendo o sítio e submetendo-se ao Código de Posturas da Câmara Tributária, esquadrejava o traçado urbano tomando por base um dos alinhamentos retilíneos, preferencialemnte um dos pontos cardeais. Em virtude dos patrimônios serem religiosos e pertencerem à Igreja, o largo para a construção da capela, futura matriz, era a referência do traçado, sendo disposto no local mais elevado. As quadras seriam ocupadas a partir desse centro para as bordas (MARX, 1991).
Entretanto, para as cidades fundadas na Alta Sorocabana, um novo procedimento foi instaurado: primeiramente, o traçado era desenhado no papel pelos agrimensores-arruadores para depois ser lançado no terreno. O processo de demarcação era simples e rápido. O proprietário da fazenda abria um arruamento defronte à estação (ou futura, quando se conhecia apenas o local da estaca); depois, chegavam os primeiros moradores e construíam as primeiras casas, juntamente com as casas dos operários da ferrovia, e só então acontecia a expansão do primeiro arruamento, contiguo a esse ou do outro lado da linha. Depois disso surgiam os edifícios que permitiriam a vida cotidiana do povoado: a igreja, a escola, a praça, os edifícios públicos (Figura 7). Mesmo no caso em que os núcleos surgiram em ambos os lados – como no caso de Presidente Prudente e Presidente Venceslau –, a expansão aconteceu antes mesmo da ocupação dos lotes das duas vilas.

A estação, apesar de protagonista, não se vale como pólo irradiador como no caso dos patrimônios religiosos. Além disso, como os alinhamentos estão prontos, os edifícios não serão construídos em uma sequência, mas de modo disperso.
Ghirardello (2002) observa que esse desenho, quase mecânico, será implantado às centenas em São Paulo; o que comprova seu sucesso comercial independentemente das condições topográficas do sítio, do tipo de solo, da paisagem natural ou de qualquer outro fator relevante para ação de urbanização; apenas visando o lucro imediato.
Esse novo procedimento alterou de maneira significativa a paisagem urbana, caracterizada não mais pela igreja e sim pela estação ferroviária. A igreja, em um país cuja religião oficial era a católica, continuaria a exercer papel importante na organização da sociedade e da cidade, porém não mais preponderante. Nessas cidades, a praça e a igreja, centrais nas cidades antigas, ficariam em segundo plano e, na maioria das vezes, nem apareciam no desenho inicial. Os terrenos eram doados pelos loteadores tempos depois. Em cidades pequenas como Rancharia, Quatá, Martinópolis, Indiana, Regente Feijó, Álvares Machado, Presidente Bernardes, Santo Anastácio e Piquerobi, ainda hoje a estação e a igreja são os dois principais edifícios da cidade.
Apenas nos núcleos de Rancharia, Presidente Prudente e Martinópolis é possível observar alguma hierarquização de vias (rever Figura 2), na medida em que foram concebidas apenas como locais de passagem e de acesso aos lotes. Com a definição dos usos e da dinâmica citadina, as cidades passam a estabelecer certa hierarquia entre as vias. O comércio se estabeleceria em uma determinada rua em função de condicionantes do dia a dia como, por exemplo, a rua da estação ou uma perpendicular que liga os dois lados da linha – como em Presidente Prudente.
Em um estudo sobre 55 praças construídas na área do patrimônio original em 23 cidades localizadas ao longo das estradas de ferro na Alta Araraquarense, Nordeste, Alta Paulista e Alta Sorocabana, Enokibara (2010) observou que a maioria dessas cidades, apesar de não formarem patrimônio religioso, tem uma praça dedicada à Igreja Matriz e outra à estação ferroviária. Entretanto, este estudo mostrou que, na maioria das vezes, esses espaços foram construídos com o tempo, a partir da reivindicação dos moradores, sendo a praça da estação a primeira a ser construída na maioria dos casos.
Monbeig (1984, p. 343), ao abordar o plano das cidades novas no planalto ocidental, ressalta a ausência de preocupações urbanísticas, tanto com relação à estética quanto com relação ao sitio: “Provinham da uniformidade dos sítios a monotonia da paisagem urbana e a repetição constante do mesmo plano de cidades”. Ghirardello (2002) faz a mesma observação sobre as cidades formadas a partir da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, onde prevaleceu o traçado em xadrez, com desenho monótono e uniforme. A exceção, segundo o autor, eram a esplanada e a estação, centros da vida local.
Como aponta Monbeig (1984), os planos precisavam “andar depressa” e “limitar despesas”. Os fundadores não tinham tempo e nem interesse em projetar cidades originais constituídas a partir da urbe. Isso ficou claro no estudo das cidades da Alta Sorocabana, uma vez que os agrimensores chamados para lotearem as glebas rurais se “transformavam” em arruadores. Eles faziam aquilo que sabiam: dividir uma gleba obedecendo aos princípios de rapidez e economia.
Esses planos urbanos são fruto de um modo de organização da sociedade e das condições econômicas e políticas do início do século XX. Assim, a quadrícula constituiu-se a partir da melhor estratégia de desenho, satisfazendo as exigências do loteador independente das condições do sítio. Se o patrimônio se desenvolvia, seja por quaisquer motivos, era fácil prolongar as ruas retas. Munford (1998) se refere a esses planos como simples loteamentos urbanos, típicos dos países capitalistas.
Observa-se a partir da Figura 8 que as primeiras expansões urbanas se deram pela extensão das vias da quadrícula original, sendo que a malha urbana atual de Caiuá, João Ramalho e Indiana praticamente delineia os seus núcleos primitivos. As ruas são o elemento morfológico mais permanente e os lotes foram os que mais se alteraram, sobretudo nas cidades que mais se expandiram. Observa-se a ocupação parcial ou total da esplanada ferroviária por praça e edifícios, com abertura de novas vias. O comércio central e os principais edificios públicos de todas essas cidades estão contidos nesse traçado original, apontando a sua importância histórica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos planos das 15 cidades foi importante para compreender o nível de complexidade e o significado cultural da paisagem urbana da região denominada Alta Sorocabana, fruto das condições sociais, econômicas e políticas do início do século XX. O exíguo espaço de tempo de construção da ferrovia e o modo de ocupação pautado nas relações capitalistas de compra e venda de terra apontaram para um jeito específico de desenhar cidades, caracterizado pela ausência de preocupações de ordem estética, de composição e mesmo sanitária, dada a pressa de se implantar o núcleo urbano e limitar as despesas com a obra.
Foi possível identificar uma tipologia dos traçados urbanos das cidades em estudo: grelha em tabuleiro de xadrez, disposta paralelamente à esplanada da linha férrea, podendo ser de um lado ou de ambos os lados da estação, tomando-a como marco edificatório e a esplanada como alinhamento das ruas. Desenhados em sua maioria por agrimensores, a quadrícula regular e ortogonal mostrava-se como a figura geométrica mais adequada para o retalhamento de uma gleba; de fácil desenho, implantação e expansão.
Em que pese a simplicidade, a uniformidade e a monotonia desses traçados urbanos, com o tempo, as construções que imprimiriam à cidade sua condição de “teatro de ação social” – a igreja, a escola, a praça, o hospital etc. –, e o modo de apreensão do espaço urbano pelos moradores foram criando peculiaridades e construindo outras paisagens. Na simplicidade dos planos, estabeleceu-se a complexidade da vida urbana e a formação de uma identidade regional.
Esse trabalho pode fornecer subsídios para posteriores investigações sobre as permanências e transformações dos núcleos urbanos primitivos em razão do crescimento e da expansão dessas cidades, bem como sobre a peculiaridade dessas outras paisagens e das identidades locais.
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Notas
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