Resumo: O tema dos cuidados paliativos na prática pediátrica ocupa relevante espaço de discussão no contexto da bioética. Nesse aspecto, destacamos que a dimensão espiritual é parte integrante do cuidado ao paciente pediátrico e que, portanto, a equipe de saúde precisa estar apta a acolher esse movimento de transcendência e atenta às necessidades espirituais desses pacientes, bem como de seus responsáveis.
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Artigos de atualização
A espiritualidade na prática pediátrica
Recepção: 18 Julho 2015
Revised document received: 21 Janeiro 2016
Aprovação: 2 Fevereiro 2016
Os dilemas relacionados à terminalidade da vida em pediatria ocupam relevante espaço de discussão no contexto da bioética 1. Na infância, a definição de terminalidade, por representar situação trágica, é mais complexa do que no adulto, de modo que a determinação da irreversibilidade na criança é um processo mais árduo, que demanda mais tempo. Esse fato ocorre especialmente nos países da América Latina, onde a medicina se caracteriza pelo forte componente paternalista associado ao conceito tradicional de manutenção da vida a qualquer preço, tanto do ponto de vista da sociedade civil quanto da prática médica 2.
Nesse contexto, outra questão de grande importância refere-se aos cuidados paliativos para essa faixa etária. Por definição, tais cuidados compreendem o cuidado ativo e total prestado à criança, no âmbito físico, mental e espiritual, bem como o suporte oferecido a toda sua família. Nesse aspecto, destacamos a atenção à espiritualidade, que se torna cada vez mais necessária na prática de assistência à saúde, e reconhecida como fonte de bem-estar e de qualidade de vida ao se aproximar a morte. Para tanto, é fundamental que a equipe de saúde esteja apta a acolher esse movimento de transcendência, nesse momento da existência humana 3.
No final do século XX, mais especificamente na década de 1970, a evolução tecnológica supervalorizou os aspectos científicos em detrimento dos aspectos humanísticos, levando o ensino médico não só a retirar o estudo de humanidades de seu currículo, como também a desprestigiar qualquer tentativa de retomar essa direção 4. Infelizmente, os valores presentes na interdisciplinaridade entre medicina, religião, espiritualidade, filosofia e antropologia foram esquecidos. Todavia, é nesse contexto que a medicina contemporânea merece reflexão profunda, uma vez que essas interações se refletem na relação médico-paciente.
Sabe-se que os pacientes, independentemente da idade, não só desejam como devem receber tratamento humanizado, e não voltado apenas para sua doença, e que é preciso observá-los em todos os seus aspectos, entre os quais se inclui a espiritualidade. Portanto, ignorar, entre outras, essa dimensão torna a abordagem do paciente incompleta e ineficaz 3.
A atenção à espiritualidade faz parte do que conhecemos como cuidado paliativo. O termo “paliativo” deriva do latim pallium, manto usado pelos peregrinos para proteger-se das intempéries durante suas viagens aos santuários. Por analogia, o cuidado paliativo destina-se à proteção da pessoa doente durante seu último período de vida 5. Em pediatria, esse cuidado é focado na criança e no adolescente, orientado para toda a família e construído com uma boa relação entre profissionais, pacientes e seus responsáveis. Deve-se avaliar individualmente cada paciente, bem como a respectiva família, respeitando sua espiritualidade e valores e facilitando a comunicação. Tal cuidado deve estender-se também após a morte, no período de luto familiar 6.
Na América do Sul, os cuidados paliativos surgiram na década de 1980, na Argentina e na Colômbia. No Brasil, o primeiro serviço desse gênero instalou-se em 1983, no sul do país; em 1997, foi fundada a Associação Brasileira de Cuidados Paliativos (ABCP) e, em 2005, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Em 2009, pela primeira vez na história da medicina brasileira, o Conselho Federal de Medicina (CFM) inclui os cuidados paliativos como princípio fundamental no novo Código de Ética Médica (CEM).
Não obstante a medicina paliativa ter sido reconhecida em 2012 como área de atuação médica, ainda há um longo e árduo caminho a ser percorrido por essa especialidade 7,8, haja vista que, até o momento, o Brasil não dispõe de estrutura de cuidados paliativos adequada à demanda, tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo 5. É fundamental que as escolas de medicina compreendam a real importância dessa nova especialidade médica e consigam estabelecer melhores estratégias para o ensino dos cuidados no fim da vida, tema que, de maneira geral, tem sido negligenciado nos cursos de graduação das escolas médicas brasileiras 9. Além disso, é essencial a promoção de programas de residência médica, cursos de especialização e de pós-graduação de qualidade nessa área.
Tal cenário indica a necessidade urgente de difundir os conceitos fundamentais em cuidados paliativos em nosso país e de empreender esforços para estabelecer políticas de saúde voltadas para o final da vida 5.
A opção pela medicina exige uma vocação direcionada fundamentalmente para o cuidar do outro, e essa responsabilidade pelo outro vulnerável constitui o desafio espiritual da bioética, da arte do cuidar e especialmente do pediatra, que acolhe o paciente, e também seus familiares. Os atos médicos significam não somente o tratar com a vida, a dignidade humana e a saúde, mas também com a terminalidade e a morte de outras pessoas, e, nesse contexto, os vínculos de confiança, compaixão e compreensão estabelecidos com o paciente e sua família, somados ao respeito por seus valores espirituais são indispensáveis ao exercício profissional 10.
A espiritualidade pode ser compreendida como a busca do significado e sentido da vida, em dimensões que transcendem o tangível, que levam o sentir humano à experiência de algo maior que a própria existência, podendo ou não estar relacionada com uma prática religiosa formal. É inegável que a dimensão espiritual, bem como sua relação com a saúde, tem-se tornado claro paradigma a ser estabelecido na prática médica diária, devendo ser vistos como uma vivência genuína tanto da pessoa que é cuidada quanto daquelas que cuidam; daí a extrema importância de construir ambientes favoráveis ao diálogo 11.
As crianças, em particular, não distinguem espiritualidade de religião, mas seu senso de espiritualidade ou seu engajamento em alguma comunidade religiosa pode promover um enfrentamento estratégico positivo da doença 4.
Na prática diária, parece-nos claro que a espiritualidade auxilia alguns pacientes – principalmente os adolescentes – a lidar com doenças, sobretudo as que oferecem risco de morte, e com situações de terminalidade. Para facilitar essa ajuda, é indispensável que o profissional de saúde esteja alerta aos relatos dos pacientes e desenvolva habilidades de comunicação e de avaliação da dimensão espiritual daqueles sob seus cuidados. Com seus relatos, os pacientes descrevem a experiência de sua doença e dão sentido a ela mediante conexões e relacionamentos espirituais, manifestos pelo anseio de relacionar-se, de estabelecer vínculos dentro do hospital com a equipe e outros pacientes e de continuar sendo o que eram antes da hospitalização 12.
As crianças em idade escolar hospitalizadas, por exemplo, são capazes de revelar importantes facetas de espiritualidade, por elas utilizadas para suportar eventos traumáticos da doença e da hospitalização. A experiência do sofrimento ajuda a criança a aproximar-se da dimensão espiritual, nela encontrando forças para pensar com esperança no futuro 12.
A abordagem da espiritualidade no processo de trabalho do pediatra consiste em ampliar o olhar sobre a criança e sua família, de respeitar o ser vulnerável e de rever conceitos do processo saúde-doença, bem como da relação médico-paciente 4.
Nesse sentido, um serviço que poderia auxiliar os profissionais que atuam nessa área é a chamada capelania. Sabe-se que o acesso de religiosos de todas as confissões aos estabelecimentos civis e militares, bem como aos hospitais da rede pública ou privada, para oferecer atendimento religioso e espiritual aos internos, foi assegurado pela Lei 9.982/2000. E, dentre os serviços que prestam esse tipo de atendimento aos enfermos em hospitais da rede pública ou privada, destaca-se o serviço religioso hospitalar, ou capelania, realizado por capelães 13.
Em países como Estados Unidos e Inglaterra, o capelão faz parte da equipe multidisciplinar de assistência ao paciente, tendo acesso ao seu prontuário médico, no qual registra suas visitas, avaliações, intervenções e demais atividades de assistência espiritual. Se essa é uma ação rotineira nos hospitais desses países, o mesmo não ocorre no Brasil, onde os capelães ainda buscam o devido reconhecimento de sua profissão 14. Em nossa prática cotidiana, quando levamos em consideração o registro no prontuário, notamos que a menção a esse tipo de atendimento é praticamente inexistente. Sabe-se que o prontuário reúne todas as informações relativas ao estado de saúde do paciente, ou seja, ao registro da anamnese e a todo o cuidado e assistência prestada ao doente. Caracteriza-se por ser um veículo de comunicação entre os membros da equipe de saúde; portanto, seu correto preenchimento pela equipe (médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, nutricionista, terapeuta ocupacional) é crucial para a tomada de decisões clínicas adequadas.
Em nosso meio, o atendimento espiritual é realizado pelo capelão e pelo voluntariado, os quais não têm acesso ao prontuário, o que prejudica a emergência desse tema no âmbito da equipe multidisciplinar. Nesse sentido, desejamos salientar que esse documento deveria comportar não somente os aspectos clínicos, de presença ou ausência de doenças, mas também questões preventivas, dificuldades socioeconômicas, conflitos de vida, de convivência e de crenças, que precisam – sim – ser registrados, tendo em vista a melhor atenção ao paciente e seus familiares.
Apesar de vários autores contribuírem para o entendimento da espiritualidade da criança e do adolescente por meio da abordagem das fases de desenvolvimento cognitivo 15,16, a ênfase nesses estágios não responde às questões diariamente levantadas pelos profissionais de saúde que assistem essa faixa etária: a espiritualidade da criança seria uma imitação do que ela vê nos adultos ou algo que ela própria cria? A ideia que a criança tem da morte e da transcendência seria a mesma do adulto? Como abordar esse tema com ela?
Tais questionamentos prestam-se a enfatizar que a manifestação da espiritualidade da criança não está relacionada apenas com a fase de seu desenvolvimento cognitivo, e é nesse sentido que a psicanálise pode contribuir para o debate, uma vez que situa a criança como sujeito do inconsciente, a partir de sua entrada na linguagem. Isso equivale a dizer que a concepção de espiritualidade da criança, apesar de receber influências daqueles que participam do seu cuidado, é única e relacionada diretamente com sua própria constituição subjetiva – e não muito diferente da visão do adulto.
De acordo com Freud 17, a relação do sujeito com a religião segue o protótipo infantil; ou seja, sua relação com Deus nada mais é que a repetição da relação com os próprios pais e advém do estado de desamparo que ele sente diante de situações que fogem ao seu controle, como as inevitáveis frustrações da vida em sociedade e a própria força da natureza. Nesse contexto, surgidas de uma necessidade do ser humano, as ideias religiosas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos e que, por isso, reivindicam a nossa crença.
Freud 17,18 vê na criança o paradigma da relação do homem com o religioso e, nesse sentido, ressalta que, apesar das diferenças entre criança e adulto, nossa posição inconsciente é infantil. Com isso, a espiritualidade na criança não difere da do adulto em sua estrutura, mas apenas em sua manifestação, razão pela qual a criança tem direito de ser ouvida como sujeito singular em suas crenças.
Com base na compreensão do aspecto espiritual como parte integrante do paciente pediátrico, é essencial que especialistas em cuidados paliativos, assim como o pediatra geral e das diversas especialidades, como oncologistas, hematologistas e neonatologistas, exerçam de maneira efetiva esse cuidado, amparados no conhecimento das necessidades da criança e de sua família e no reconhecimento da importância de um trabalho multi e interprofissional, destinado à atenção individualizada e integral a cada paciente 6.
Para tanto, o modelo pedagógico das escolas médicas, alicerçado no racionalismo científico, precisará ser revisto. Este é o desafio a ser enfrentado pelas faculdades de medicina: estabelecer diretrizes curriculares de acordo com o modelo cartesiano-flexeriano, ou então formar um profissional que compreenda e saiba integrar os determinantes biológicos, psicológicos, sociais e espirituais das doenças 10. Introduzir essa temática ao longo de toda a formação do médico e, especificamente, dos pediatras é necessidade real e absoluta, que beneficiará toda a equipe envolvida, e principalmente os pacientes, ao proporcionar um fim de vida e morte dignos 6.
Marlene Pereira Garanito delineou o desenho do manuscrito e, em conjunto com Marina Rachel Graminha Cury, participou da elaboração e revisão crítica do texto e da aprovação da versão final.
Correspondência. Marlene Pereira Garanito – Rua Venâncio Aires, 315 CEP 05024-030. São Paulo/SP, Brasil.