Editorial
Editorial
O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro, que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nascem a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.1
O texto em epígrafe, atribuído a Brecht, sublinha a alienação, a relutância, a resistência ou até mesmo o horror que as pessoas muitas vezes sentem diante das dificuldades para exercer sua cidadania. Há décadas essa condição é atribuída, ao menos em parte, ao medo da liberdade e da responsabilidade que acarreta2. Mas o fato de não serem ouvidos, a pouca identificação com os eleitos para representá-los, a impunidade perante a malversação da coisa pública, a falta de acesso aos direitos fundamentais, como saúde e educação, também minam a esperança dos cidadãos, contribuindo para provocar apatia e produzir “analfabetos políticos” em larga escala.
Esse diagnóstico, que em grande parte pode ser identificado em todas as sociedades e em diversos períodos da história, também vinha sendo imputado aos brasileiros, aos quais se atribuía “memória curta”, além de incapacidade para exercer escolhas políticas consequentes ou para exigir seus direitos de cidadania. Essa condição é também herança perversa de mais de vinte anos de ditadura militar, que se abateu sobre o país a partir da década de 1960. Ainda que se considere 2016 como ano atípico na vida nacional, marcado por turbulências políticas e revezes econômicos que inevitavelmente agudizam a percepção das relações de poder na vida em sociedade, a forma como os cidadãos discutiram e reivindicaram seus pontos de vista sobre a política revelou que não podem mais ser caracterizados à tabula rasa como em períodos anteriores. Sustentando posições e ideologias distintas, e algumas vezes francamente antagônicas, a sociedade alcançou consenso ao menos no que tange ao exercício de seu direito de participar da vida política nacional.
E é exatamente o desejo de justiça e de probidade no trato do bem comum, voltado à construção de uma sociedade mais igualitária, que deve prevalecer como objetivo maior, meta a ser cobrada como compromisso de Estado, e não apenas como projeto de governo, que deve se estender à garantia de acesso aos direitos fundamentais. Mesmo que o analfabetismo tenha revelado queda nos últimos anos, ainda atinge 13 milhões de pessoas no Brasil, às quais se podem somar outros 38 milhões de analfabetos funcionais3. Para eliminar essa situação que, em conjunto, se abate sobre aproximadamente um quarto da população, precisamos defender arduamente a educação pública, de qualidade e acesso gratuito, tendo a convicção, inclusive, de que é pré-requisito para a promoção e recuperação da saúde, contribuindo tanto para afastar situações de risco quanto para instrumentalizar a luta pelas garantias constitucionais aos serviços essenciais, facultados pela Carta Magna4.
Se saúde e educação não caminham separadas, criando em conjunto a chave para abrir as portas dos direitos fundamentais, deve-se considerar que o acesso a elas também influencia diretamente a sustentabilidade ecológica. Seja na forma de cobrança aos governos ou por meio de consumo responsável, a manutenção do ambiente, tendo em vista a qualidade do ar, da água, o controle dos agentes que alteram os fatores climáticos, a preservação do solo e a conservação das espécies ameaçadas, está diretamente relacionada à capacidade dos povos da Terra de entenderem que vivemos em um sistema com recursos limitados, que devem ser preservados e distribuídos entre todos, considerando inclusive as gerações futuras.
Neste sentido, vale a pena comemorar a assinatura por 200 países, em Kigali, Ruanda, de acordo para a eliminação paulatina dos hidrofluorocarbonos (HFC), um dos gases responsáveis pelo efeito estufa, considerado extremamente prejudicial ao clima5. Ainda que estejamos longe de eliminar as ameaças à vida no planeta, a assinatura do pacto, em 15 de outubro, é marco na luta contra o aquecimento global, pois, ao contrário de outros documentos firmados anteriormente, esse acordo é vinculante, ou seja, os governos signatários estão efetivamente comprometidos com a implementação das medidas elencadas no documento:
O calendário adotado este sábado prevê que um primeiro grupo de países, os chamados desenvolvidos, reduza sua produção e consumo de HFC em 10% antes do final de 2019 em relação aos níveis de 2011–2013, e 85% antes de 2036. Um segundo grupo de países em vias de desenvolvimento, entre eles a China – o maior produtor mundial de HFC – e os africanos, se comprometeu a iniciar sua transição em 2024. Deverão alcançar uma redução de 10% em relação aos níveis de 2020–2022 para 2029, e de 80% para 2045. Um terceiro grupo de países em desenvolvimento, incluindo Índia, Paquistão, Irã, Iraque e os países do Golfo, não começará, por sua parte, até 2028, para chegar à redução de 10% em relação ao período 2024–2026 em 2032, e de 85% em 20476.
A consciência ambiental na dimensão mundial e as lutas por saúde e educação no âmbito interno reportam às três gerações de direitos humanos7–9, cujas recomendações caminham do direito do indivíduo à vida para os direitos coletivos à preservação do planeta, passando, indiscutivelmente, pelas garantias à qualidade de vida associada a direitos políticos, sociais e culturais para todos. Esses direitos assinalam o reconhecimento paulatino pela humanidade da dignidade intrínseca de cada ser humano, que o torna único mesmo em uma sociedade de massa, e, concomitantemente, da intangível pujança que entrelaça nossas raízes com a Terra e nossos semelhantes. Ainda que olhando em volta às vezes seja difícil divisar algo além do caos, é possível acreditar que a humanidade caminha para aceitar as diferenças inerentes aos seres humanos e às culturas que construímos, para preservar o planeta com a força de nossa capacidade de sonhar e criar.
Buscando exortar à alegria e estimular a serenidade, lembramos nesta última mensagem editorial do ano que, em 2017, a Revista Bioética completa 25 anos de publicação ininterrupta em prol da reflexão e da prática éticas em nossa sociedade. Esperamos nesta comemoração contar com o apoio de nossos colaboradores e leitores, que fazem deste o periódico de Bioética mais antigo e respeitado do Brasil.
Os editores