Resumo: Este artigo esboça os principais desafios éticos, falhas e complexidades na implementação da medicina ética em tempos de turbulência política e social – mas também em períodos estáveis. Iniciamos com as sequelas da medicina nazista na primeira metade do século XX. O comportamento dos médicos nazistas incluiu crimes contra a humanidade que também ocorriam em outros países e sistemas políticos, incluindo democracias. Recebendo muito menos publicidade (e praticamente sem nenhuma prestação de contas), as experiências realizadas em menor escala por médicos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial também trazem lições dolorosas. Outros países também sofreram genocídio embora com menor envolvimento médico. Mas violações bioéticas também têm sido documentadas em sociedades e instituições não atingidas pela guerra ou por políticas genocidas. Devemos refletir profundamente a respeito das atrocidades aqui descritas que ocorreram durante o regime nazista e em outras situações fora de guerras para assegurar que elas nunca mais se repitam.
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Artigo de Atualização
Direitos humanos, ética e prática médica
Recepção: 23 Maio 2016
Revised document received: 30 Agosto 2016
Aprovação: 30 Setembro 2016
As atrocidades cometidas, incentivadas e permitidas pelos nazistas contra os judeus e outras minorias da Europa foram uma vergonha incomparável em seu planejamento e crueldade. Não há números definitivos para quantidade de mortes durante o período nazista. Estima-se que entre 5,1 a 6,2 milhões de judeus foram mortos ou morreram de fome e doença em guetos e campos de concentração1. E isso não leva em conta toda a dor infligida aos sobreviventes e suas famílias.
Cerca de 100.000 homens foram presos como homossexuais durante o período nazista, alguns dos quais foram internados em campos de concentração, onde muitos morreram2. Além disso, pessoas de outros grupos étnicos, ativistas políticos e portadores de deficiências mentais foram mortos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, cerca de 200.000 ‘ciganos’ [Romanis] foram mortos em toda a Europa pela Alemanha e seus aliados, unicamente com base em sua etnia e na “inferioridade” que lhes foi imputada3. Entre 1939 e 1941, cerca de 100.000 cidadãos alemães foram esterilizados ou mortos por apresentarem deformidades físicas, terem sido diagnosticados com doenças emocionais ou considerados deficientes mentais. No total, cerca de 5 milhões de não-judeus morreram sob o regime nazista4.
Lembrar o que aconteceu durante o período nazista é de extrema importância, já que vai ajudar a reduzir os riscos de que o fato seja relegado como um abuso esquecido no passado, o horror de um período de guerra ou abuso por parte de um governo específico em um momento determinado. Também vai ajudar a abrir os olhos para a participação inaceitável da profissão médica antes e durante a Segunda Guerra Mundial na Alemanha e nos territórios/países ocupados5 bem como para os riscos de que este comportamento volte a acontecer.
De acordo com Hanauske-Abel6, o apoio dos médicos aos militares alemães não começou com o nazismo. Um manifesto em apoio ao militarismo alemão foi assinado por figuras públicas notáveis da medicina, da ciência e das artes em 1914. Os críticos a este manifesto (como o médico Georg Nikolai) foram hostilizados. Nikolai escapou da prisão e exilou-se na América do Sul (ironicamente, o destino escolhido mais tarde por alguns médicos nazistas) onde viveu o resto de sua vida. Em janeiro de 1933 – antes de Hitler chegar ao poder – cerca de 7% dos médicos já eram membros do Partido Nazista. Em 1942, cerca de metade dos médicos eram membros do partido, em comparação com 7% dos professores7.
Antes da guerra, a profissão médica alemã participou da esterilização forçada de entre 200.000-350.000 indivíduos mental e fisicamente deficientes e teve um papel determinante na “eutanásia” de homens, mulheres e até mesmo crianças definidas vagamente como doentes mentais. Um programa de eliminação daqueles considerados “vida indigna da vida” [Lebensunwertes Leben] começou em 1939 e até 200.000 pessoas foram assassinadas neste programa.
Tudo isso foi perpetrado com a ajuda e apoio dos sistemas jurídicos e de saúde. A enganação era parte do processo de convencer a opinião pública de que era correto. A linguagem usada para falar de assassinatos em massa era asséptica com a intenção de enganar o público alemão e as vítimas das políticas nazistas. Termos como “higiene” eram aplicados à sociedade, misturando assim a saúde pública com o racismo programado8,9.
O termo “eugenia” foi descrito pela primeira vez em 1883 pelo polímato inglês Francis Galton10. O espírito da eugenia – a ciência da melhoria da raça humana através de uma reprodução melhor – fez parte do título de um folheto publicado por Henry Davenport, um defensor da prática nos Estados Unidos11. Edwin Black apontou para a adoção de eugenia nos EUA, notando que: durante as primeiros seis décadas do século XX, centenas de americanos e incontáveis outros não foram autorizados a continuar suas famílias através da reprodução. Escolhidos devido a sua ascendência, origem nacional, raça ou religião, foram esterilizadas à força, erroneamente internados em instituições para doentes mentais onde morriam em grande quantidade12.
O racismo também não estava longe das ideias dos eugenistas. De acordo com Robert Yerkes, os povos mais escuros do Sul da Europa e os eslavos do Leste Europeu são menos inteligentes do que os povos claros da Europa Ocidental e do Norte, e o negro encontra-se na parte inferior da escala de inteligência13. Harry Hamilton Laughlin, diretor do Escritório de Registro da Eugenia, nos Estados Unidos, comparava o cruzamento de raças humanas com a hibridação no mundo animal e argumentava que imigrantes do Sul e Leste da Europa, especialmente judeus eram racialmente tão diferentes e geneticamente tão inferiores à população americana atual que qualquer mistura racial seria deletéria14. O psicólogo Adolf Jost argumentou que, se o estado exigia o sacrifício de milhares de indivíduos em tempos de guerra, tinha o mesmo “direito” em tempos de paz de exigir o sacrifício dos deficientes e não-produtivos que estavam drenando os recursos do estado15.
Em 1931, dois anos antes de Hitler chegar ao poder, o Dr. Fritz Lenz, primeiro professor de eugenia na Universidade de Munique, afirmou que: Hitler é o primeiro político com influência verdadeiramente ampla que reconheceu que a missão central de toda a política é a higiene racial e que vai apoiar ativamente esta missão16. Em de uma década, Hitler traduziu esse “apoio” no desenvolvimento de um programa. O Programa T4 foi nomeado em homenagem aos escritórios da Chancelaria em Tiergartenstrasse 4 em Berlim, onde os registros das pessoas com deficiência eram examinados por especialistas que decidiam se os indivíduos deviam viver ou morrer.
Os que eram selecionados para morrer eram assassinados por injeção ou por inalação de gás em “duchas” em pelo menos seis centros de “eutanásia”. De acordo com o Dr. Heinrich Bunke, médico chefe do Centro de Bernberg, ele aceitou o convite para entrar no Programa T4 como médico porque: Dava a oportunidade de colaborar com professores experientes, fazer um trabalho científico, e completar a minha formação17.
A “eutanásia” involuntária nazista nada tinha a ver com “matar por misericórdia”, já que nunca foi um ato de compaixão. Pelo contrário, era uma teoria pseudocientífica e econômica falsa decorrente de noções de “higiene” racial. Os nazistas destruíam a “vida indigna da vida”(lebensunwertes Leben),como a chamavam, não como ato de misericórdia, mas como parte de uma estratégia para assassinar parte da população que eles consideravam inferior.
Pode-se considerar que a contribuição mais importante e grave da medicina ao nazismo estava em uma perspectiva mais ampla: na incorporação da eugenia como uma ideia da medicina; na legitimação da eugenia como doutrina médica; na prestação de um verniz científico à esterilização e assassinato. Fez-se assim uma contribuição significativa para legitimar práticas nazistas, ajudando o regime a ser visto como cientificamente orientado e fazendo o assassinato parecer um evento científico legítimo. A medicina alemã não foi uma vítima do nazismo - em vez disso, pode ser considerado como uma parceira e co-inventora de práticas violentas defesa da raça e sua “purificação”.
Telford Taylor, chefe do conselho da promotoria em Nuremberg, descreveu nos seguintes termos os médicos que foram julgados e condenados por assassinato: Os réus (…) são acusados de assassinatos, torturas e outras atrocidades cometidas no nome da ciência médica (…) Estes réus não mataram no calor do momento, nem para enriquecimento pessoal. Alguns deles podem ser sádicos (…) mas nem todos são pervertidos. Não são homens ignorantes. A maioria deles são médicos treinados e alguns são cientistas distintos. E ainda assim, esses réus, todos os quais eram completamente capazes de compreender a natureza de seus atos, e a maioria dos quais eram excepcionalmente qualificados para formar um juízo moral e profissional a este respeito, são responsáveis por assassinato em massa e torturas indescritivelmente cruéis18.
Seidelman19 e Moe20 chamaram a atenção para as numerosas referências na literatura científica citando trabalhos escritos por médicos que trabalharam no sistema científico nazista. A questão sobre o que fazer com as descobertas derivadas de pesquisa antiética vem sendo objeto de discussão sem que um consenso surja nos debates. Pross21 traçou as falhas e sucessos na tentativa de desnazificar as instituições após a Segunda Guerra Mundial.
Médicos já se envolveram em muitas formas de abuso mas o exemplo da Alemanha é tão forte que pode nos levar a subestimar o papel da medicina em uma série de questões contemporâneas de direitos humanos que refletem tanto grandes ataques à integridade física e mental das vítimas quanto abusos de ética médica que podem ter o mesmo efeito. Isso surge muito claramente em uma gama de situações em pesquisa e também em prisões, imigração, saúde mental, direitos sexuais e de gênero e na chamada “guerra ao terror” ou questões globais de segurança. Estes são discutidos a seguir.
Com muito menos publicidade e praticamente não tendo sido sujeitos a responsabilização22, há os experimentos médicos realizados por médicos e pesquisadores japoneses na Unidade 731 na cidade de Harbin no território Chinês ocupado. Entre 1937 e 1945, essa unidade realizou “pesquisa” médica abusiva, antiética e criminosa, incluindo vivissecção, infecção proposital, exposição ao frio e exposição à radiação de prisioneiros, em sua maioria chineses. Mais de 200.000 prisioneiros morreram lá. Embora o Japão tenha emitido declarações gerais de desculpas pelo comportamento durante a Segunda Guerra Mundial – o Japão pacífico de hoje está sinceramente arrependido se esforça para reparar os erros do passado23 – não houve pedido de desculpas específico pela Unidade 731.
Os assassinatos em massa não terminaram com a derrota do aparato militar nazista em 1945. O desrespeito e a violação dos direitos humanos ocorreram e ainda ocorrem em países que não estão em guerra. Podem acontecer em nome da ciência ou da “proteção pública”, por exemplo, confinamento ilegal de pessoas com doença mental ou daqueles que são socialmente marginalizados. Em alguns casos, os presos são incluídos na pesquisa médica sem o respeito pela ética médica - particularmente sem o direito de consentir24.
Em 1975, o Khmer Rouge, sob o comando de Pol Pot, tomou o poder em Phnom Penh. Aproximadamente 2 milhões de cidadãos morreram entre 1975 e 1979 quando a intervenção militar vietnamita acabou com o governo do Khmer Rouge. Estes crimes tinham um contexto – entre 1970 e 1974, aproximadamente 750.000 Cambojanos morreram como resultado de bombardeios por aviões B-52 dos EUA, que lançavam napalm e bombas de fragmentação para destruir forças vietnamitas suspeitas que viajavam pelo território cambojano. Uma consequência dessa campanha de bombardeio foi prestar assistência ao Khmer Rouge liderado por Pol Pot para que tomasse o poder com sua promessa de combater a “Frente Nacional de Libertação do Vietnã” (conhecida por seus oponentes como ‘Viet nam Cong San’ (‘Viet Cong’ ou ‘Comunistas vietnamitas’)25.
De abril a julho de 1994 (100 dias) estima-se que 500.000 – 1 milhão de Tutsis e Hutus moderados foram mortos por membros da maioria Hutu. As principais armas eram facões e facas. As vítimas constituíam aproximadamente 20% da população de Ruanda26. A resposta das Nações Unidas e membros individuais da comunidade internacional foi criticada posteriormente como tardia e insuficiente. O governo que chegou posteriormente ao poder no país traumatizado foi, ele mesmo, criticado por falhas de direitos humanos27, embora tenha, em grande parte, mantido o apoio da população.
Quando a antiga Iugoslávia se fragmentou no início da década de 1990, os territórios que tinham sido parte da Iugoslávia entraram em conflito. Sob as políticas da Sérvia, liderada por Slobodan Milosevic e a Republika Srpska, o território Sérvio da Bósnia liderado pelo Dr. Radovan Karadžić, cerca de 100.000 pessoas foram mortas na Bósnia-Herzegovina. Da mesma forma que os nazistas queriam “limpar” a Europa dos judeus, o objetivo dos Sérvios era a remoção (“limpeza étnica”) de qualquer Bosniak [Muçulmano Bósnio] ou Croata em território mantido ou reivindicado pelos Sérvios. Contudo, é significativo que eles não tenham se dedicado à eliminação física dos Bósnios como política e não tenham construído uma máquina de matar no estilo nazista. Apesar disso, em julho de 1992, quando os primeiros relatórios e fotografias da imprensa internacional foram publicados, evocavam o horror do Holocausto de 50 anos antes. Apesar do ultraje popular, a comunidade internacional se recusou a intervir durante os primeiros anos do conflito28.
Os assassinatos em massa em Ruanda e na ex-Iugoslávia deram origem a tribunais especiais Ad Hoc estabelecidos por resoluções do Conselho de Segurança da ONU. O Tribunal Internacional para Julgar as Pessoas Responsáveis por Violações Graves do Direito Internacional Humanitário cometidas no Território da Antiga Iugoslávia desde 1991, conhecido, mais comumente como o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, é um órgão da Organização das Nações Unidas estabelecido para processar crimes graves cometidos durante as guerras na ex-Iugoslávia e para julgar seus autores. O tribunal está localizado em Haia, Holanda, e tem jurisdição sobre violações graves das Convenções de Genebra, violações das leis ou costumes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade cometidos na ex-Iugoslávia desde 1991.
Um tribunal ad hoc semelhante foi criado para lidar com crimes em Ruanda. O Tribunal Internacional para Julgar as Pessoas Responsáveis por Violações Graves do Direito Internacional Humanitário cometidas no Território de Ruanda e os Cidadãos de Ruanda Responsáveis por Genocídios e Outras Violações Cometidas no Território de Estados Vizinhos entre 1° de janeiro de 1994 e 31 de dezembro de 1994, conhecido mais comumente como Tribunal Criminal para Ruanda, foi estabelecido em novembro de 1994.
Nem todos os abusos de direitos básicos são realizados por ditadores, militares violentos ou criminosos brutais. Alguns ocorrem como resultado de práticas e procedimentos que vem sendo seguidos dentro de instituições por muitos anos.
Entre 1930 e 1960, 60.000 brasileiros, a maioria negros, foram mortos em um único hospital psiquiátrico, o Hospital Colônia de Barbacena. Não foram mortos por armas de fogos ou em câmaras de gás, mas de fome, frio e infecções. Eram epilépticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, meninas grávidas de seus empregadores ou pais, tios, irmão ou padrastos, mulheres confinadas pelos maridos, mulheres que tinham perdido a virgindade antes do casamento, e suas mortes, é claro, não foram causadas por doença mental29. Um registro hospitalar detalhava a venda de 1.853 cadáveres para escolas de medicina, para serem usados em aulas de anatomia. Um psiquiatra italiano que visitou a instituição no final dos anos 1970, classificou-a como um campo de concentração30. A instituição foi fechada em 1980 e transformada em museu.
Willowbrook era uma instituição para crianças “mentalmente deficientes” em Staten Island, Nova York. Em 1965, o Senador Estadunidense Robert Kennedy visitou a instituição Willowbrook sem avisar. Ele declarou mais tarde que as enfermarias eram menos confortáveis e alegres do que a jaula em que colocamos os animais no jardim zoológico31. Em 1972, o documentário para televisão do repórter Geraldo Rivera sobre a instituição mostrou como crianças deficientes eram mantidas em condições deploráveis de negligência, em um ambiente insalubre e sujo. Posteriormente, ele documentou o que viu em um livro32.
As condições inaceitáveis de higiene de Willowbrook facilitaram a disseminação de muitas doenças parasitárias e infecciosas, incluindo hepatite A e B, e tornaram-se foco de pesquisa sobre doenças infecciosas, o que mais tarde foi criticado como quebra de ética médica33. Entre 1956 e 1972, a pesquisa em Willowbrook tinha o objetivo de definir as diferenças entre hepatites infecciosas dos tipos A e B. Como parte desta pesquisa, crianças com deficiência mental eram expostas a preparações contendo os vírus de hepatite. Beecher escreve que os pais davam consentimento para a injeção intramuscular ou administração oral do vírus, mas nada é dito sobre o que era informado a eles com relação aos riscos consideráveis envolvidos34. De acordo com Rothman, Experimentos baseados na privação social são suscetíveis de manipular o consentimento dos sujeitos35. Os pesquisadores argumentaram que o risco inerente de hepatite era alto e que a infecção controlada traria benefícios que superavam os riscos. A instituição foi fechada em 1987, após um processo de desinstitucionalização. A privação social, que consiste nos numerosos fatores correlatos que contribuem para a exclusão social, mencionados por Rothman, era claramente o caso de ambos os estudos, Willowbrook e Tuskegee.
Talvez seja mais sutil hoje, mas em certas regiões e sob determinadas condições, as falhas e o desrespeito com os direitos humanos podem ser ainda tão ruins quanto os mostrados anteriormente. É preciso reconhecer que tomar decisões sobre estudos médicos pode incluir um equilíbrio difícil entre os resultados benéficos em potencial, o dano potencial à população de teste e o dano possível à reputação dos próprios pesquisadores, particularmente quando há pressão pública crescente para “fazer algo” acerca de doenças específicas (como HIV e Ebola) ao mesmo tempo em que há ceticismo com relação à indústria farmacêutica e pesquisas internacionais. Abertura, transparência e consulta/participação da comunidade são outros fatores importantes para a montagem de um programa bem sucedido e ético de investigação. Deve-se também mencionar que a inclusão de disciplinas de ética nos currículos escolares de graduação das profissões relacionadas com a saúde podem ajudar o estabelecimento de éticas efetivas tanto na prática clínica quanto na de pesquisa.
O estudo de sífilis de Tuskegee (1932-1972), Alabama, USA
O estudo foi conduzido pelo serviço de saúde pública dos EUA, para examinar a história natural da sífilis entre 600 meeiros algodão negros e pobres em Macon County, Alabama; 399 tinham contraído sífilis antes do julgamento e 201 não tinham a doença. Os indivíduos receberam atendimento médico, refeições e seguro funeral gratuitos para participar no estudo. No entanto, os indivíduos não deram consentimento informado; eles nunca foram informados de que tinham sífilis, e tiveram acesso negado à penicilina quando esta se tornou amplamente disponível em meados da década de 1940.
A divulgação na imprensa em 1972 foi decisiva para a interrupção do experimento. Isso levou ao Relatório Belmont de 197936 e à criação do Gabinete dos Estados Unidos para Proteções Pesquisa em Seres Humanos (“Office for Human Research Protections” - OHRP). Em 1997, 25 anos após o fim do estudo, uma cerimônia de pedido público de desculpas foi oferecido pelo presidente Clinton na Casa Branca37.
As informações sobre esses experimentos foram descobertas por Susan Reverby em 2005 enquanto pesquisava sobre o estudo da sífilis de Tuskegee38. De 1946 a 1948, o Serviço de Saúde Pública dos EUA (“U.S. Public Health Service”) e o Escritório Sanitário Pan Americano (“Pan American Sanitary Bureau”), junto com agências do governo da Guatemala, conduziram experimentos que expunham pessoas à sífilis, gonorreia ou cancroide (cancro mole). O objetivo era determinar o efeito da penicilina na prevenção e tratamento de doenças venéreas.
Os pesquisadores pagavam prostitutas infectadas com sífilis para terem relações sexuais com prisioneiros. Além disso, soldados, prostitutas, prisioneiros e pacientes com transtornos mentais foram infectados por inoculação direta. Todos os sujeitos foram infectados sem seu consentimento informado. No total, foi relatado que 32 experimentos com gonorreia, 17 experimentos com sífilis e um experimento com cancro mole foram conduzidos, envolvendo 1.308 pessoas, incluindo profissionais do sexo, soldados, prisioneiros e pacientes psiquiátricos. As idades dos sujeitos variavam entre 10 e 72 anos, com média na casa dos 20 anos. Desse grupo, apenas metade (678 indivíduos) podem ser documentados como tendo recebido algum tipo de tratamento, mas o tratamento completo foi documentado para apenas 26% dos sujeitos.
Uma comissão organizada pelo Presidente Obama dos EUA, avaliou milhares de documentos e declarou que essa foi “uma parte vergonhosa da história da medicina”. O relatório especula que é provável que os locais na Guatemala tenham sido escolhidos especificamente porque estariam “fora da vista do público nos Estados Unidos e além do alcance de nossas leis e normas de pesquisa”39. Além disso, os sujeitos podem ter sido vistos como indefesos e facilmente disponíveis e as autoridades locais não apenas cooperaram, mas foram parceiros entusiastas40.
Muitas pessoas aplaudiram a administração de Obama por dar mais visibilidade a isto. No entanto, mesmo que a pesquisa de hoje não seja tão ignominiosa como o experimento da Guatemala, a indústria farmacêutica continua testando drogas de modo antiético nas populações pobres, vulneráveis e exploráveis no mundo em desenvolvimento41.
Em meados da década de 1990, foi estabelecido, através de testes nos EUA, que a transmissão vertical do HIV de mãe para filho pode ser efetivamente prevenida através da administração de zidovudina para a mãe grávida e, em seguida, para a mãe e a criança42. O problema de transferir este protocolo para o contexto dos países em desenvolvimento foi o custo, e foi proposta uma pesquisa que envolvia protocolos mais curtos e mais baratos para drogas, juntamente com um grupo placebo. Esses estudos receberam fortes críticas por razões éticas43,44, e o debate que se seguiu teve reflexo em alterações na Declaração de Helsinki, especialmente em relação às versões de 200045,46 e 2008.
Angell traçou paralelos com a pesquisa de Tuskegee. Ela listou as violações éticas, que eram muitas: os sujeitos não deram consentimento informado; foi negado a eles o melhor tratamento conhecido; o estudo foi continuado mesmo depois que um tratamento altamente eficiente estava disponível. Ela conclui: As justificativas para os estudos de transmissão vertical do HIV financiados pelos EUA são uma reminiscência daquelas para o estudo Tuskegee: As mulheres no Terceiro Mundo não iam receber tratamento antirretroviral de qualquer maneira, de modo que os investigadores estão apenas observando o que aconteceria com os filhos dos sujeitos se o estudo não existisse47.
Alguns dos envolvidos na pesquisa rejeitaram as críticas argumentando que o fator custo, a ausência do tratamento sistemático existente, o fato de que os testes não impõem riscos adicionais ao grupo placebo, e que a pesquisa havia sido aprovado por comitês de ética relevantes a tornava aceitável48.
Os testes de profilaxia pré exposição com Tenofovir, realizados com uma população de alto risco de profissionais do sexo foram terminados depois de ativistas protestarem que estes eram antiéticos. Mas, eram? Assim como os ensaios anteriores sobre prevenção de HIV em crianças, e com a crise de assistência médica para o Ebola depois, os ensaios de tenofovir no Camboja causaram polêmica. Neste caso, os ensaios terminaram em meio a protestos de ONGs. As principais razões citadas para as manifestações incluíram alegaram aconselhamento inadequado prevenção pelos pesquisadores do estudo, a falta aconselhamento sobre o HIV pré e pós-teste, e a não prestação de serviços e seguro médico para aqueles convertidos durante o estudo ou que sofreram efeitos adversos relacionados com a droga em estudo49. Esses e outros encerramentos prematuros levaram a uma reflexão considerável sobre a necessidade não apenas de protocolos efetivos, mas também para a comunicação clara e oportuna com o público, inclusive através dos meios de comunicação50,51.
As pressões impostas pelo Ebola surgiram a partir do desequilíbrio entre a escala crescente da epidemia e a falta de medicamentos potenciais devidamente testados. Nos primeiros dias do que poderia ser uma epidemia, embora não testada, a preparação de drogas (Mapupa) estava disponível, mas em pequenas quantidades. Esta foi usada quando os trabalhadores médicos estrangeiros foram infectados.52. Isso expôs imediatamente a tensão entre “privilegiar” pessoal médico branco estrangeiro com drogas novas, versus a visão (e parafraseamos o Dr. Paul R. Tolpe) que, …se as primeiras pessoas (a receberem doses de Zmapp) tivessem sido liberianos, as manchetes teriam gritado que a droga ‘experimental’ foi testado em africanos pobres53.
Conforme os protocolos de pesquisa de drogas eram debatidos, surgiu uma diferença de opinião entre os que defendiam estudos controlados aleatórios tradicionais e aqueles que acreditavam que a crise não permitia o luxo de uma abordagem tradicional54. No momento da escrita deste trabalho, algumas destas questões estão sendo ultrapassadas pela contenção significativa da epidemia de Ebola, embora elas ainda precisem ser abordadas no futuro.
Não há respostas simples para as muitas situações de abuso dos direitos humanos descritos aqui, mas um denominador comum tem a ver com situações de vulnerabilidade, impotência, discriminação e opressão de “não-cidadãos”. Como explicar o fato de que muitas vezes as pessoas parecem apenas aceitar diferentes formas de agressão e negação dos seus direitos humanos? O que aconteceu durante o regime nazista é um exemplo. Uma explicação pode ser o que Foucault disse sobre o corpo dócil: um que possa ser sujeitado, usado, transformado e melhorado. E … esse corpo dócil só pode ser alcançado através de regime rigoroso de atos disciplinares.
Se as pessoas são dóceis, deve ser fácil de controlá-las e governá-las. Foucault propôs que (…) os métodos, que tornaram possível o controle minucioso das operações do corpo, que assegurou a sujeição constante de suas forças e impôs sobre elas uma relação de docilidade/utilidade, podem ser chamados de disciplinas. Com o controle dos indivíduos, as massas são então controladas55.
Olhando os abusos do lado do agressor, os experimentos de Milgram da década de 196056 sobre “a obediência à autoridade” demonstraram que seres humanos realizam atos abusivos quando instruídos a realizá-los por alguém com autoridade. Esses experimentos são reconhecidos agora como sendo baseados em engano antiético dos sujeitos (que foram informados que a pesquisa se centrava na aprendizagem por um “sujeito” que, na verdade, era um ator) e experimentos semelhantes já não podem ser realizados. Os estudos, no entanto, foram extremamente influentes57.
Esses insights podem explicar parcialmente como as sociedades podem ser controladas e até mesmo participar de ações atrozes. Hoje, na segunda década do século XXI, os níveis de violência e abuso dos direitos humanos deixam muito claro que ainda temos um longo caminho a percorrer para alcançar sociedades estáveis e baseadas em direitos. Os profissionais de saúde têm papel importante na luta contra estes abusos.
Os dois autores foram igualmente responsáveis pela idealização e elaboração do manuscrito.
Correspondência Dirceu Greco – Rua Goitacazes, 14 CEP 30190-050. Belo Horizonte/MG, Brasil.