Resumo: A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) contemplou a autonomia com três artigos entre seus 15 princípios: autonomia e responsabilidade individual (artigo 5º); consentimento (artigo 6º); indivíduos sem a capacidade para consentir (artigo 7º). Diante da complexidade do tema, este trabalho analisa o artigo 7º da Declaração, com foco especificamente na questão das crianças. Por causa da ausência de competência para que crianças consintam de maneira livre e autônoma, essa autorização é repassada aos responsáveis legais, geralmente pais ou familiares. A inexistência de dispositivos legais que legitimem a decisão dos menores abre espaço para atuação paternalista de profissionais e dos responsáveis legais, que agem visando ao beneficio da criança, a partir de perspectivas próprias. A bioética é responsável por estimular a discussão sobre as possíveis formas e mecanismos de proteção real dos menores de idade, considerados legalmente incapazes de fornecer o próprio consentimento.
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Artigo de Atualização
Autonomia e indivíduos sem a capacidade para consentir: o caso dos menores de idade
Recepção: 04 Fevereiro 2016
Revised document received: 15 Agosto 2016
Aprovação: 22 Agosto 2016
A discussão e a criação dos principais mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos e dos participantes de pesquisas com seres humanos trouxeram consigo princípios que passaram a nortear a prática biomédica. Dentre os primeiros princípios estabelecidos, utilizados como referência no mundo todo, estão os propostos por Beauchamp e Childress1: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.
Durante o desenvolvimento da bioética, contudo, percebeu-se que esses princípios são moralmente insuficientes para discussões éticas que vão além do campo biomédico. Com a homologação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)2, a autonomia teve sua participação ampliada no contexto acadêmico internacional, sendo sua representatividade desdobrada para nada menos que três artigos: autonomia e responsabilidade individual (artigo 5º), consentimento (artigo 6º) e indivíduos incapazes de consentir (artigo 7º).
A autonomia tem origem na expressão grega autos, que significa “mesmo”, e nomos, que se traduz por “lei”, “regra”, “governo”, indicando, portanto, a noção de “autogoverno”. O princípio de autonomia é, portanto, a capacidade de decidir e agir tendo em vista o que é melhor para si3. É princípio central na bioética principialista, focada no indivíduo. De acordo com diferentes autores e épocas, essa ideia recebeu diversas denominações como: “princípio do respeito à pessoa”, “princípio da autonomia”, “princípio do consentimento”, sendo este utilizado como base moral para a elaboração de políticas públicas destinadas à defesa dos vulneráveis.
Mesmo com as diversas interpretações da literatura, há consenso de que, para que o princípio do respeito à autonomia aconteça, duas condições são essenciais: a liberdade e a qualidade de agente. Em relação à liberdade de escolha, é necessária a ausência de influências controladoras e de forças coercitivas; ou seja, no contexto clínico, os profissionais envolvidos na assistência não devem impor condições ou exercer influências quanto à decisão do indivíduo. Outro aspecto, a capacidade de agir intencionalmente, requer o entendimento da situação, de modo que a ação seja realmente autônoma, configurando obrigação do profissional/pesquisador garantir acesso a todas as informações e às opções existentes naquela situação que garantam a autonomia dessa escolha4.
A pessoa autônoma é, portanto, indivíduo com capacidade de deliberar sobre questões pessoais e de atuar de forma consciente. Respeitar a autonomia de uma pessoa significa considerar seus valores, posições e opções, não impedir sua liberdade de ação (exceto quando esta trouxer prejuízo a outras pessoas) e proporcionar todas as informações necessárias para que ela elabore juízo próprio1.
A expressão do princípio da autonomia na prática biomédica é conhecida como consentimento informado, que consiste no pleno conhecimento, por parte do indivíduo, das possibilidades terapêuticas, de modo que possa optar, de maneira livre e esclarecida, pela que melhor lhe aprouver. Consentimento implica extensão da autonomia, pois compreende tanto a obrigação do pesquisador/profissional de informar o sujeito de maneira adequada quanto o efetivo entendimento e assentimento do paciente/sujeito da atenção ou da pesquisa. Já é consagrada, nos meios cientificos, a premissa de que o consentimento informado tem como principal função e justificativa a proteção da escolha individual autônoma5.
O artigo 6º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, que versa sobre consentimento, expressa em seu item a: Qualquer intervenção médica preventiva, diagnóstica e terapêutica só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido do indivíduo envolvido, baseado em informação adequada. O consentimento deve, quando apropriado, ser manifesto e poder ser retirado pelo indivíduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razão, sem acarretar desvantagem ou preconceito2.
A DUBDH prevê, ainda, que tanto a atenção profissional quanto a pesquisa cientifica se realizem com consentimento expresso do indivíduo envolvido, dado previamente de maneira livre e esclarecida. Para isso, a informação deverá ser fornecida de forma compreensível, mas com a inclusão de mecanismos que garantam a retirada do consentimento, a qualquer momento e por qualquer motivo, sem prejuízo ao participante2.
No caso de indivíduos com autonomia reduzida (como pessoas institucionalizadas e portadores de transtorno mental), ou incapazes de consentir (pessoas inconscientes e crianças), transfere-se a responsabilidade. A elas garante-se proteção especial, de modo que se conceda autorização para pesquisa e prática de saúde no melhor interesse do indivíduo afetado, devendo, sempre que possível, o participante decidir sobre o consentimento e/ou retirada, quando for o caso2.
Diante da complexidade do assunto e de seus inúmeros desdobramentos, este trabalho traz breve reflexão sobre o tema dos indivíduos incapazes de consentir, com enfoque específico em crianças e adolescentes.
Instituído como resposta a inúmeros abusos ocorridos em pesquisas clínicas com seres humanos, o princípio do respeito à autonomia representa o empoderamento do indivíduo em relação a si mesmo. Conquanto os demais princípios propostos por Beauchamp e Childress – beneficência, não maleficência e justiça – dependam basicamente da atuação do profissional/pesquisador, a autonomia está centrada, primeiramente, na perspectiva do sujeito paciente/participante da pesquisa1.
Segundo Garrafa6, a partir da forte influência exercida pela cultura anglo-saxônica na bioética, maximizou-se o princípio da autonomia em detrimento dos demais, contribuindo para que, em alguns países, a perspectiva individual passasse a ser a única vertente legítima e decisiva na resolução dos conflitos. De acordo com o autor, o perigo da utilização maximalista da autonomia está em – saindo do referencial sadio do respeito à individualidade e passando pelo individualismo em suas variadas nuanças – cairmos no extremo oposto, em um egoísmo exacerbado, capaz de anular qualquer visão inversa, coletiva e indispensável ao enfrentamento das tremendas injustiças sociais relacionadas com a exclusão social, hoje mais do que nunca constatada7.
Para Fabbro8, que descreveu as limitações jurídicas da autonomia, o principal limite seria o do direito ao próprio corpo, garantido apenas por disponibilidade parcial ou controlada, estando a autonomia individual restrita às finalidades terapêuticas ou restauradoras de saúde, conforme a doutrina jurídica nacional prevalente. Ainda de acordo com ele, essas limitações seriam principalmente oriundas do Código Civil e do Estatuto Penal. Na legislação criminal, o paciente sofre duas limitações: a direta, que proíbe determinadas condutas ao indivíduo; e a indireta, que determina vetos ao profissional de saúde. Para validar os atos na vida civil, a legislação brasileira exige que o agente esteja em pleno gozo de seus direitos, pois a legislação civil estabelece condições ou hipóteses que, uma vez satisfeitas, faz reconhecer ao indivíduo direitos ou a possibilidade de exercício pessoal destes direitos. (…) serão plenamente capazes as pessoas maiores de vinte e um anos (…) os menores de dezesseis anos, os loucos de todo o gênero, os surdos-mudos que não puderem exprimir sua vontade são absolutamente incapazes, exigindo a lei, para a prática válida dos seus direitos, que sejam representados9.
Um dos obstáculos à autonomia é o paternalismo. Nele, o profissional, motivado pelo desejo de proteger o paciente e lhe oferecer o tratamento que julgue mais adequado de acordo com seu ponto de vista, saber e responsabilidade, termina por considerar-se a pessoa mais adequada para a tomada de decisão. E o faz sem autorização do paciente ou mediante coerção. Nesse caso, mesmo que a motivação seja para o “bem” do paciente, há desrespeito a sua autonomia10.
Assim como existe o paternalismo individual no campo biomédico, quando o profissional julga saber o que é melhor para o paciente e age nessa perspectiva de “fazer o bem”, há também a atuação paternalista por parte do Estado. No contexto de políticas públicas, o Estado limita ou impõe determinadas condutas, sob pena de punição direta (para descumprimento de algum regulamento) – como nas leis de trânsito o uso obrigatório do cinto de segurança –, ou de limitação de direitos, como na não adesão a campanhas de vacinação, que pode resultar na impossibilidade de ingressar em determinados locais, ou a necessidade de isolamento forçado, para doenças infectocontagiosas graves. Nesses casos, a premissa é de que o interesse coletivo suplante o individual. O limite entre um e outro, porém, não está muito bem definido1,3,10.
Essas limitações, oriundas de políticas públicas e normas administrativas ou legais, legitimamente impostas, são definidas como limites objetivos e compreendidas como limitações infligidas a toda coletividade, independentemente de subjetivismos individuais. Por outro lado, os limites subjetivos propriamente ditos são decorrentes de erros causados por falta de informações adequadas ou por ação de alguma força co-atora ilegítima que obrigue o paciente a decidir em determinado sentido, impedindo a livre manifestação da sua autonomia11.
Expressa-se, na prática biomédica, o princípio da autonomia individual mediante consentimento informado. Este consiste no pleno conhecimento, por parte do sujeito, mediante informações transmitidas pelo profissional/pesquisador, do efeito esperado pela ação sobre ele realizada, com a consequente liberdade de tomar a decisão daí proveniente. O indivíduo, então, só consentirá após obter, do responsável pela pesquisa ou procedimento clínico, todas as informações concernentes às possibilidades, riscos e alternativas de tratamento.
Biondo-Simões e colaboradores11 defendem que o consentimento informado é direito moral dos pacientes que implica obrigações morais para os médicos, e que seu exercício se efetiva após a junção da autonomia, capacidade, voluntariedade, informação, esclarecimento e o próprio consentimento. Em seu estudo sobre a compreensão dos pacientes acerca do consentimento informado, e os fatores que alteram seu entendimento, os autores concluíram que os sujeitos adequados para a pesquisa deveriam ser aqueles com melhor nível de escolaridade, com habitualidade para a leitura, com facilidade de acesso à internet e os que ganham melhor, dado que a legislação brasileira prevê a obrigatoriedade formal do chamado termo de consentimento por escrito8.
Outro estudo realizado recentemente aponta falha na comunicação de informações em serviço de reprodução assistida. Segundo os autores, o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) não foi redigido em linguagem totalmente adequada e tampouco aborda todos os aspectos necessários para a decisão quanto ao melhor tratamento a ser adotado12.
O uso massivo, horizontal, obrigatório e indiscriminado dos “termos de consentimento informado” (TCI), como acontece em muitos países (em particular na área das pesquisas com seres humanos), independentemente da consideração de fatores culturais específicos e do nível socioeconômico da população atendida, propicia, para Garrafa6, a distorção de seu objetivo histórico. Os TCI, segundo o autor, tinham como propósito inicial a defesa dos indivíduos, especialmente os mais vulneráveis, nos atendimentos médico-hospitalares e nas pesquisas com seres humanos; no entanto, sua aplicação, na prática concreta, acabou subvertendo – muitas vezes – a ordem das coisas, uma vez que, em poucos anos, a nova teoria mostrou ser uma faca de dois gumes, pois as universidades, corporações e indústrias também começaram a treinar seus profissionais na construção de TCI adequados a cada situação. Isso, de certa forma, obstaculizou, na prática, os objetivos iniciais e históricos da medida em proteger os mais vulneráveis, pelo menos nos países com grandes índices de excluídos sob os pontos de vista social e econômico13.
A inversão dos parâmetros éticos de proteção aos vulneráveis tem sido estudada criticamente por autores latino-americanos, que relatam as tentativas de pesquisadores – sobretudo em estudos clínicos patrocinados pela indústria farmacêutica multinacional – de introduzir duplo padrão ético nas pesquisas, situação conhecida como double standard. Em outras palavras, essa premissa indica a aplicação de padrão metodológico de pesquisa para os países ricos e desenvolvidos, onde a maioria da população tem condições socioeducativas asseguradas, que possibilitam a compreensão e a decisão relacionadas com as informações do estudo em questão; ou a utilização de outro padrão, “mais flexível” (em outras palavras, “mais frouxo”), direcionado aos países pobres ou em desenvolvimento, nos quais as pessoas não estão suficientemente empoderadas educacional ou economicamente para a real tomada de decisão com relação à aceitação – ou não – do referido estudo clínico14.
Embora o conceito de autonomia seja polissêmico, há consenso de que duas condições básicas são necessárias para sua expressão: a liberdade e a capacidade de agir intencionalmente. Para a liberdade de ação, subentende-se a independência de qualquer tipo de controle. Entretanto, sabe-se que nenhum indivíduo pode ser considerado completamente livre de influências externas, como a exercida por familiares, grupo social, instituição à qual se vincula profissionalmente ou à própria cultura a que pertence. Portanto, existem variadas e diferentes situações cotidianas que se configuram como de limitação na autonomia. Há, entretanto, casos extremos, como o dos indivíduos em restrição de liberdade3.
Por causa da enorme complexidade e singularidade particular presente na questão dos indivíduos com autonomia reduzida, e daqueles que não possuem capacidade de fornecer seu consentimento, o foco do presente estudo relaciona-se à autonomia dos menores de idade – crianças e adolescentes –, considerados legalmente incapazes. De acordo com Hostiuc15,
Para que o consentimento informado seja válido, cinco requisitos devem ser atendidos: 1) O paciente ser informado; 2) entender a informação; 3) agir por vontade própria (de forma autônoma) ao concordar em assinar o termo de consentimento informado; 4) ter competência legal para concordar; 5) autorizar o procedimento. Desses cinco requisitos, três dependem principalmente do paciente (2, 3, 5), um depende principalmente do profissional (1), e um é requisito legal (4). (…) Em pediatria, o paciente que atender os requisitos 1, 2, 3 e 5 é capaz de dar uma autorização autônoma para o médico realizar seu trabalho (…) mas geralmente não é válida em um tribunal de justiça, visto que o consentimento informado deve ser assinado por uma pessoa legalmente competente para assinar um documento oficial16.
Com relação especificamente ao consentimento na área de pediatria, dois termos se destacam: a capacidade e a competência para tomar decisões. Há que se diferenciar que “capacidade” é termo psicológico que descreve um conjunto de habilidades mentais que as pessoas necessitam em suas vidas cotidianas (memória lógica, capacidade de cuidar de si mesmo etc.), enquanto competência se refere a capacidade legalmente estabelecida de criar uma norma legal (ou efeitos legais) através e de acordo com enunciados (atos jurídicos ou declarações dispositivas) a esse respeito16.
Por conta da ausência de competência legal para que crianças e adolescentes forneçam seu consentimento de maneira livre e autônoma, essa autorização é repassada aos responsáveis legais, geralmente pais e familiares. Entretanto, Teixeira17 aponta que menores de idade representaram um terço dos pacientes-alvo de pesquisas para novos medicamentos realizadas por laboratórios estrangeiros no Brasil, em 2001. Essas crianças, em especial nos países em desenvolvimento, estão sujeitas a exploração por parte de pesquisadores ou mesmo de pais e familiares, que, por vezes, sequer informam ao indivíduo sobre sua participação nessas pesquisas17.
Em estudo sobre implante coclear em crianças surdas, Miziara e colaboradores18 destacam a vulnerabilidade dos tutelados, uma vez que a decisão dos pais acerca do procedimento está, muitas vezes, voltada mais para eles próprios do que para a criança. Essa constatação é verificada tanto no caso de pais ouvintes, que trazem consigo a angústia pela dificuldade de comunicação com os filhos – e por isso tendem a desejar o implante –, quanto de pais surdos, que podem não entender a deficiência como problema, estando mais propensos a rejeitar o procedimento. Entretanto, os autores não parecem considerar a possibilidade de crianças terem papel participativo, mesmo que limitado, nesse processo decisório.
Munhoz19 defende a participação da criança nesse processo, por meio do assentimento. Nesses casos, ela seria informada sobre a finalidade de determinado tratamento, de maneira clara e adequada à sua condição, para que possa assentir, ou não, a realização do procedimento.
No contexto brasileiro atual, a idade mínima considerada apropriada para a validade legal do consentimento está entre 16 e 21 anos. Considerando, inicialmente, apenas esse fator, percebe-se que os menores de 16 anos de idade não terão qualquer tipo de autonomia sobre sua situação médica, em termos legais.
Nessas situações, o consentimento para a realização de tratamento ou procedimento terá de vir dos pais ou responsáveis pela criança ou adolescente, o que gera um embate. Embora, legalmente, os tutores tenham a autonomia necessária para autorizar ou negar o ato médico, não há como garantir que sua decisão realmente vise ao melhor para a criança. Por não possuir voz ou capacidade legal, o paciente em questão não teria direito de fazer valer sua vontade. Teria, por isso, de submeter-se à heteronomia de seu tutor, visto que, embora existam processos de tomada de decisão conjunta, estes ainda apresentam pouco espaço nas decisões atuais no Brasil, principalmente pela ausência de respaldo legal consistente.
A falta de dispositivos legais legitimadores da participação efetiva de crianças e adolescentes no processo de decisão e o paternalismo – dos pais, dos profissionais da área de saúde e mesmo dos juristas – são enormes empecilhos para a garanta da autonomia desses indivíduos. Quando há conflito entre os pais e a criança a respeito da continuidade do processo terapêutico, os profissionais geralmente respeitam a decisão dos pais em detrimento das crianças. A exceção, pautada justamente na lógica paternalista, costuma ocorrer quando há dissenso sobre procedimento considerado benéfico por parte dos profissionais – situação na qual a justiça costuma ser acionada para intervir, com base na doutrina parens patriae, segundo a qual o Estado pode intervir para a proteção daqueles que a necessitam 20,21. Ou seja, os menores são ouvidos e considerados competentes quando consentem com procedimento médico recomendado por profissionais de saúde, mas não são tidos como capazes de recusar procedimento “claramente benéfico”15.
Entretanto, deve-se lembrar que o exercício da autonomia se revela também na livre decisão do paciente em recusar tratamento22. A recusa a tratamento ou procedimento em saúde possui inúmeras motivações e deveria ser tão respeitada quanto o assentimento. A complexidade das situações relacionadas com a participação de crianças e adolescentes nos processos decisórios que lhes dizem respeito diretamente mostra um dos problemas do principialismo. Do mesmo modo, evidencia a fragilidade decorrente da ênfase exacerbada à autonomia do indivíduo, que não considera a especificidade de cada caso e demais fatores relacionados a cada situação particular.
Pauta-se a formação do profissional de saúde na ação, com o objetivo de promover e restaurar a saúde das pessoas. Por isso, há dificuldade inerente em aceitar a recusa ao tratamento por parte dos pacientes. No caso de crianças, que culturalmente constituem grupo-alvo de maior proteção e cuidado, a aceitação torna-se ainda mais complexa, pois os profissionais se sentem em falta com suas responsabilidades laborais e humanas. Aliado a isso, há o temor da responsabilização jurídica, em possível discordância entre a decisão da criança e do responsável legal, ou mesmo quando não há consenso entre os responsáveis.
Exemplo recente de situação que envolveu a inclusão de crianças no processo decisório ocorreu em 2014, na Bélgica, onde, de forma inédita, foi alterada a legislação, estendendo para as crianças o direito de solicitar a eutanásia em casos de doenças terminais, e removendo qualquer referência a restrições de idade (na Holanda, por exemplo, para uma decisão como essa, os indivíduos devem ser maiores de 12 anos). A lei prevê que a criança deva estar em condição de sofrimento fisico constante e insuportável, impossível de se aliviar, podendo resultar, ao curto prazo, em sua morte. Embora a exigência de que a criança possua consciência, e ainda que sua compreensão acerca da decisão seja subjetiva e não esteja claramente descrita na lei, a necessidade da certificação dessas condições por psiquiatra infantil ou psicólogo, bem como o apoio da decisão por um dos pais ou responsáveis legais, traz respaldo aos envolvidos e caracteriza uma solução pertinente23.
Embora seja de enorme importância garantir instrumentos para preservar a autonomia de crianças e adolescentes em tomadas de decisão clínica, sua participação se justifica não apenas pelo respeito ao princípio da autonomia e a seu próprio consentimento, mas também pelo fato de que uma recusa a sua participação desmereceria e anularia a presença delas no processo de decisão. Além da utilização dos três princípios elencados no início deste artigo, e aqui discutidos, podem se considerar, no contexto da presente discussão, outros princípios da DUBDH, como os: da dignidade humana e direitos humanos (artigo 3º), do beneficio e dano (artigo 4º) e do respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual (artigo 8º). Esses princípios, aliados aos da autonomia e responsabilidade individual, do consentimento e dos indivíduos incapazes de consentir, proporcionam subsídios concretos para aprofundamento maior dessas questões, tomando como base o que preconiza o artigo 27 da mesma Declaração, que se refere à inter-relação e complementaridade de seus princípios.
O fato de que a autonomia possui sua limitação no paternalismo é amplamente conhecido, em se tratando de todo e qualquer indivíduo que se submeta aos cuidados dos profissionais de saúde. O “dever de fazer o bem” por parte do profissional também encontra força no medo das consequências legais, o que pode ser amenizado por meio do instrumento do termo de consentimento informado. Este, no entanto, passa de protetor dos pacientes/sujeitos de pesquisa – em muitas ocasiões e situações – a mecanismo de proteção dos profissionais e pesquisadores, para isentá-los de responsabilidades judiciais.
A ausência de dispositivos legais que legitimem a decisão de crianças e adolescentes sobre procedimentos clínicos a serem nelas executados abre enorme margem para a atuação paternalista de profissionais e responsáveis legais, que agem visando a um beneficio para o paciente, mas com base na própria perspectiva. É preciso pensar, para o futuro, em instrumentos que proporcionem respeito progressivo à autonomia de crianças e adolescentes, situação que – se trabalhada com participação e cuidado – não representa ameaça aos profissionais e responsáveis.
É necessário que a bioética discuta com mais vigor e coragem as possíveis formas e mecanismos de proteção real de indivíduos considerados legalmente incapazes de fornecer seu consentimento. Na prática clínica atual, equipes multidisciplinares de saúde, e que formam os comitês de bioética clínica e/ou hospitalar, parecem ser a melhor alternativa disponível para garantir a autonomia e proteção desses sujeitos.
Raylla Albuquerque, na condição de mestranda, elaborou e escreveu originalmente o artigo. Volnei Garrafa, como orientador do estudo, participou no seu delineamento, acompanhamento e revisão.
Correspondência Campus Universitário Darcy Ribeiro. Faculdade de Ciências da Saúde. Programa de Pós-Graduação em Bioética CEP 70910-900. Brasília/DF, Brasil.