Resumo: Em vista do elevado grau tecnológico da atualidade, precisa-se continuamente discutir e revisar a temática da ética no ambiente acadêmico. As ferramentas tecnológicas não recriaram o padrão ético, mas passaram a oferecer alternativas aos alunos, facilitando práticas como “cola”, plágio e falsificações, o que tornou ainda mais complexo o desafio da instituição de ensino. Este artigo aponta os prejuízos que a desonestidade acadêmica pode representar para a sociedade, na medida em que refletem no padrão ético dos futuros profissionais. Buscou-se caracterizar os principais tipos de desonestidade acadêmica, indicar exemplos de como algumas práticas são toleradas de forma aberta e de como algumas escolas médicas trabalham o tema em suas matrizes curriculares, comparar como outras culturas tratam essa questão, e, por fim, apresentam-se algumas recomendações gerais acerca de mudanças que possam contribuir para a melhoria do padrão ético e moral nas relações acadêmicas.
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Artigo de Atualização
Desonestidade acadêmica: reflexos na formação ética dos profissionais de saúde
Recepção: 12 Janeiro 2016
Revised document received: 05 Agosto 2016
Aprovação: 22 Agosto 2015
Quando nos aprofundamos no estudo da bioética, deparamos, às vezes, com palavras de significados variados e sem precisão semântica, como “moral” e “ética”. Segundo Beauchamp e Childress1, essas palavras não devem se restringir a meros contextos teóricos; “teoria ética” e “filosofia moral” deveriam ser os termos apropriados quando enfatizamos a reflexão filosófica sobre a natureza e o porquê da moralidade. A finalidade de uma teoria é sempre aumentar a clareza, a sistemática e a exatidão das nossas reflexões sobre a moralidade. Orientados por essa linha de pensamento, Beauchamp e Childress incluíram, em “Princípios de ética biomédica”, capítulo dedicado à moralidade comum, vista como moralidade universal, que abrangeria, entre outras regras gerais, normas como “não mentir”, “não roubar a propriedade alheia” e “respeitar os direitos dos outros”.
Se “não mentir” e “não enganar” são princípios morais – partindo do conceito de bioética como estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, examinada à luz de valores e princípios morais2 –, a desonestidade acadêmica, a exemplo da “cola” e do plágio, em seu sentido de conduzir a formas de engano, é assunto que se enquadra perfeitamente no conceito, principalmente quando se relaciona a processos avaliativos e produções nos campos das ciências da vida e da saúde3.
Como consequência, um dos grandes desafios atuais do sistema educacional brasileiro é a criação de cultura em que predominem o comportamento e a postura ética entre os acadêmicos. Esse desafio, longe de apontar fenômeno novo por essência, remete aos primórdios da educação em seus diferentes níveis, em diferentes eras e localizações geográficas. Elemento novo nesse contexto é o alto desenvolvimento tecnológico atual, que tem proporcionado meios de comunicação cada vez mais eficazes e que tornaram ainda mais complexo o desafio de lidar com o comportamento ético. Em um mundo de tantos recursos eletrônicos de comunicação, os procedimentos de “cola” e plágio, por exemplo, ganharam novos requintes e amplificação, com recursos cada vez mais elaborados, banalizados em certos contextos e ambientes acadêmicos.
Institutos nacionais e internacionais, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a European Federation of National Academies of Sciences and Humanities (Allea) e a European Research Foundation, publicaram guias que definem princípios para a integridade nas práticas acadêmicas e de pesquisa. De modo geral, esses princípios destacam a lisura da pesquisa como valor absoluto para pesquisadores e as instituições que representam, incluindo: 1) honestidade na condução e na apresentação de resultados; 2) confiabilidade na execução e na comunicação de conclusões; 3) objetividade na coleta e no tratamento de dados e na apresentação de evidências; 4) imparcialidade na execução da pesquisa; 5) respeito aos participantes e objetos do trabalho de pesquisa; 6) veracidade na atribuição dos créditos a trabalhos de terceiros, dentre outros.
Fomentar cultura em que predomine o comportamento ético depende de uma combinação de fatores. Nenhum deles, isoladamente, tem o poder de mudar ou formar a cultura. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Association to Advance Collegiate Schools of Business (AACSB) exige que suas escolas-membro incluam, em seus currículos, componente explicitamente dedicado à preparação ética na vida acadêmica4. Segundo Johns e Strand5, entretanto, ensinar ética como disciplina, isoladamente, não necessariamente implicará a formação de profissionais com melhor perfil ético.
Estudos em escolas de finanças e negócios apontam que a desonestidade acadêmica nesses ambientes equivale à de escolas de outras especialidades, e que indivíduos que aceitam a desonestidade na esfera acadêmica estão mais inclinados a fazer o mesmo no exercício profissional e nos negócios6,7. Reconhece-se, portanto, que um dos maiores problemas da desonestidade acadêmica é que não se encerra na escola, mas se transfere para as etapas seguintes da vida do indivíduo, com fortes repercussões na justiça e no equilíbrio social.
A preocupação com a ética é válida em qualquer área de atuação profissional, mas particularmente se agrava na área de saúde, na qual vidas humanas são sujeitas a avaliação e decisão médica. O Ministério da Educação, por meio da Resolução do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior 4/2001, instituiu as diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina, que servem de espinha dorsal para as grades das faculdades de todo o país. Em seu artigo 3º, essa resolução determina que o Curso de Graduação em Medicina tem como perfil do formando egresso/profissional o médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos8.
O Código de Ética Médica (CEM)9, aprovado pelo Conselho Federal de Medicina, determina a conduta ética a ser seguida pelo médico no exercício de sua profissão. E para que o profissional atue de forma ética, é fundamental que todo o seu processo de formação se construa em ambiente acadêmico com sólida valorização desses princípios, que devem fazer parte não apenas dos regulamentos, mas também da rotina prática em sala de aula e ambulatórios.
Procura-se, portanto, discutir, neste texto, a perspectiva da ética a respeito da questão da desonestidade acadêmica, em função de seus reflexos na atuação profissional do indivíduo. A ética, no cenário cultural amplo, é tema muito vasto para ser discutido de forma integral em apenas um artigo, razão pela qual se optou por circunscrevê-lo ao âmbito acadêmico brasileiro, com ênfase no ensino superior de medicina. Entretanto, mesmo nesse universo, a conduta ética envolve uma diversidade de posturas e atitudes, razão pela qual os autores também optaram por enfatizar a “cola” e o plágio, reconhecendo que a questão ética transcende em muito estes dois aspectos.
Assim, o objetivo geral é apresentar argumentos que indiquem os prejuízos que a desonestidade acadêmica cria para a sociedade, considerando seu reflexo no padrão ético dos profissionais formados em ambientes acadêmicos que toleram práticas desonestas. Além disso, o artigo também visa contribuir com a caracterização de tipos de desonestidade acadêmica, indicando exemplos de como se toleram abertamente algumas práticas e de como algumas escolas médicas trabalham o tema em suas matrizes curriculares, comparando como outras culturas tratam o problema e, por fim, compilando material que sirva de suporte didático ao debate sobre o assunto, dentro e fora da sala de aula, de modo a propiciar o crescimento de discentes, docentes e gestores que atuam na área de formação acadêmica e na construção da cidadania.
Não é possível estabelecer, com precisão, quantas e quais são as maneiras de ação desonesta em ambiente acadêmico, mas a lista a seguir resume treze das principais formas desse tipo de atitude, não necessariamente em ordem de importância:
“Cola” em atitude ativa: é o uso ou tentativa de uso não autorizado de materiais acadêmicos ou a ajuda de terceiros por ocasião de realização de exercícios avaliativos. Em geral, ocorre com a leitura das respostas da avaliação de outro colega, a utilização de material escrito, a obtenção de respostas previamente ao exame, o uso não autorizado de equipamentos com mensagens eletrônicas, como relógios, escutas e telefones celulares, entre outros.
“Cola” em atitude passiva: é a facilitação da “cola” ativa por colegas, o agir com cumplicidade ou de alguma forma facilitar a desonestidade de terceiros. Isso pode incluir a cessão de trabalho escrito para que seja copiado, a permissão para que um colega tenha acesso a respostas em teste escrito etc.
Plágio: uso de ideias, figuras ou textos de outro autor, sem a atribuição dos devidos créditos, fazendo parecer ser o plagiário o autor da ideia ou texto original. O plágio não se resume à cópia fel, palavra por palavra, mas também inclui textos reproduzidos com mudanças superficiais, suficientes apenas para descaracterizar o original. Para Silva10, há três modalidades de plágio: 1) o integral, quando se faz a transcrição de texto completo sem citação da fonte; 2) o parcial, quando se realiza a cópia de algumas frases ou parágrafos de fontes diferentes; 3) e o conceitual, quando a pessoa se apropria de um ou mais conceitos, ou de uma teoria, e os apresenta como de sua autoria.
Adulteração ou invenção de dados: exemplos incluem a falsificação de dados de experimento ou relatório de aula prática, ou mesmo manipulação de magnitude ou expurgo não justificado de informações, para forçar resultados.
Múltiplas submissões: é o uso de um mesmo trabalho já submetido anteriormente pelo acadêmico, em tarefa anterior, com mudanças superficiais, sem a autorização do professor ou da instituição proponente.
Engano e adulteração: refere-se a alterações de má-fé em determinado trabalho acadêmico, o que pode incluir a falsificação de assinaturas, a imitação de grafas para simular terceiros, a falsificação de cartas de recomendação ou de credenciais em geral.
Forjar participação em grupo: refere-se ao indivíduo que tira proveito em incluir o próprio nome nos trabalhos em grupo, sem efetiva participação e contribuição. Erram também os que permitem a inclusão de alunos não contribuintes, sob pretexto de “coleguismo”. Essa atitude configura, na verdade, cumplicidade e reforço positivo a comportamento negativo, ferindo, portanto, o preceito ético do mérito.
Trabalhos em grupo com realização segmentada: nos casos de trabalhos em grupo, o professor espera que todos os componentes tomem conhecimento do conjunto da obra. Contudo, nos casos em que se atribuem tarefas individuais para cada membro, de modo que, ao final, juntem-se as peças para a composição do trabalho, é comum que o aluno entregue a parte que lhe coube, mas não se envolva no entendimento do trabalho completo. Nesses casos, há distorção do propósito da tarefa.
Desonestidade por acessos computacionais não autorizados: refere-se ao uso não autorizado de contas de e-mail e sistemas restritos, para obtenção de vantagens ou informações de terceiros.
Dissimulação: refere-se aos casos em que o aluno, ao perceber um equívoco do professor que lhe seja favorável, como a soma ou lançamento de nota maior ou atribuição de qualquer vantagem indevida, simula não perceber o equívoco para se beneficiar.
Mentira e manipulação: refere-se ao uso de informação inverídica, em geral com certo apelo emocional, para coagir o professor a alterar datas de exames ou conceder algum beneficio indevido. São exemplos o uso de atestados médicos falsos, invenção de problemas familiares inexistentes etc.
Dois pesos e duas medidas: refere-se aos casos em que o aluno apela para o uso de determinada regra definida pelo professor em contexto que lhe seja conveniente, mas casuisticamente recusa a aplicação da mesma regra em outro que lhe seja desfavorável.
Uso egoísta de material acadêmico coletivo: refere-se a fazer uso de material acadêmico coletivo como se fosse propriedade particular, ou mesmo danificá-lo como se fosse próprio. Uma prática comum, entre maus usuários de bibliotecas, por exemplo, envolve a ocultação de livros escassos em locais de difícil acesso, onde não serão encontrados por usuários regulares. Isso permite ao aluno desonesto o acesso exclusivo àquele livro sempre que desejar, ainda que isso represente prejuízo ao interesse coletivo.
Essa lista não teve o propósito de esgotar as alternativas de condutas acadêmicas desonestas, mas apenas de ilustrar situações tipicas do ambiente estudantil. Entre as modalidades mais comuns, apresentam-se mais detalhadamente, a seguir, o plágio e a “cola”, como as práticas em destaque neste artigo.
Não há um conceito único sobre plágio e “cola” que abarque toda a variação desses temas nas esferas ética, pedagógica, jurídica e institucional. Faz-se necessária, portanto, a distinção entre os termos para melhor entendê-los. A Fapesp, por exemplo, define plágio no meio científico como a utilização de ideias ou formulações verbais, orais ou escritas, de outrem sem dar-lhe por elas, expressa e claramente, o devido crédito, de modo a gerar razoavelmente a percepção de que sejam ideias ou formulações de autoria própria11.
Em algumas culturas, trata-se o plágio como algo muito grave, havendo fartos exemplos de figuras públicas de renome cujos títulos foram cassados ou que tiveram de renunciar a cargos. Um caso amplamente noticiado ocorreu em março de 2011, quando o ministro da Defesa da Alemanha, Karl-Theodor zu Gutenberg, renunciou ao cargo como desdobramento de processo a que respondia por suposto plágio em sua tese de doutorado em direito pela Universidade de Bayreuth12. Na ocasião, o ministro chegou a desculpar-se pela gravidade do erro e solicitou a revogação de seu título acadêmico. Embora sua função pública não tivesse relação direta com a tese, o fato gerou desgaste público que corroeu sua credibilidade e culminou em renúncia.
Ainda na Alemanha, em 2011, a ministra da Educação, Annette Schavan, renunciou ao cargo depois de perder o título de doutora pela Universidade Heinrich Heine, de Düsseldorf, sob a acusação de plágio. A universidade confirmou, após denúncias, que ela copiara sistematicamente trechos de sua tese, e, embora o fato tivesse ocorrido em 1980, não se considerou a prescrição do erro em 2011. Ela foi a quarta autoridade pública do país a perder, por plágio, o título de doutora.
Outro caso emblemático, ocorrido em abril de 2012, levou ao afastamento do presidente da Hungria, Pál Schmitt, que também renunciou ao cargo, diante do parlamento, em função de processo por plágio em sua tese de doutoramento. Além da perda do cargo público, a Universidade de Semmelweis, em Budapeste, também cancelou seu título de doutor. Essas posturas não são exclusividades europeias. Casos de perdas de títulos são comuns em universidades canadenses e dos Estados Unidos, onde há legislação rigorosa sobre a matéria.
Na América Latina, diante de índices de corrupção mais elevados, comparativamente aos países europeus e norte-americanos, seria mais improvável que um caso de plágio fosse suficiente para afetar a carreira política de uma autoridade pública, o que mostra como o peso de um mesmo fato varia conforme o contexto geográfico, temporal e cultural. No meio científico, entretanto, essas distâncias tendem a se reduzir, em vista da universalização da ciência, das publicações e acordos internacionais na área.
No Brasil, a Universidade de São Paulo (USP) demitiu recentemente um professor por plágio em sua pesquisa. O fato ocorreu em 2011, tendo sido a primeira exoneração nos últimos quinze anos naquela instituição, segundo matéria divulgada pela própria universidade11. Na ocasião, uma aluna de doutorado, sob orientação do mesmo professor, coparticipante da pesquisa, também perdeu o direito a seu título. Esses exemplos evidenciam a existência de pessoas e comissões, no meio acadêmico brasileiro, trabalhando contra a banalização do plágio. A eventual progressão dessa tendência pode, algum dia, aumentar a importância do tema no Brasil, tornando-o equivalente à alcançada em países como Alemanha, Hungria, Canadá e Estados Unidos.
Segundo Pithan e Vidal13, deve-se entender o plágio nos âmbitos ético, jurídico, pedagógico e institucional. No campo ético, assim compreendido como o estudo da conduta humana na medida em que ela pode ser chamada de boa ou má, considera-se plágio a conduta de má intenção, eticamente incorreta e, portanto, reprovável no meio acadêmico. Aspecto lamentável, segundo esses autores, é que a prática de fraude acadêmica faz parte da cultura de desonestidade em algumas instituições. Por isso, eventuais punições exemplares são mal vistas pelos membros da comunidade discente, que as interpretam como exagero de medida coercitiva.
Na esfera jurídica, o assunto é tratado como proteção de direitos autorais, a começar pela Constituição Federal14, que caracteriza, em seu artigo 5º, que aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar. A Lei de Direitos Autorais15 enfatiza as regras de citação, afirmando a obrigatoriedade da indicação de autoria e local da publicação das obras citadas. Ou seja, o plágio não se configura propriamente pelo uso de ideias ou palavras de terceiros, mas pela omissão dos créditos apropriados. O Código Penal16, por sua vez, tipifica como conduta criminosa a violação de direitos autorais. A violação desses direitos pode implicar pena de detenção de três a doze meses, ou em multa.
Parece enraizada na cultura estudantil de muitos ambientes a ideia de que “colar” faz parte do processo. São comuns os casos de alunos que se vangloriam por seus métodos cada vez mais elaborados de “cola”, e considera-se o fato de enganar um professor como triunfo da esperteza de um sobre a distração do outro. Passada a avaliação, o aluno que “cola” costuma não esconder o feito dos colegas mais próximos; ao contrário, compartilha-o com seu círculo de amizades, na certeza de que não será repreendido, mas protegido.
Outra clássica inversão de valores se observa em relação a como são considerados os colegas que recusam fornecer “cola” durante uma avaliação. Costuma-se estigmatizar essa atitude de não compactuar com a manobra como “egoísta”, ou “falta de solidariedade e de companheirismo”, rótulos que visam desencorajar o aluno honesto a preservar sua integridade. Essas são práticas comuns em ambientes de ensino fundamental, médio, superior e até mesmo em cursos de pós-graduação. Trata-se, portanto, de costume relativamente aceito que permeia o meio acadêmico em diferentes níveis.
Nos âmbitos pedagógico e institucional, entra o papel dos administradores e educadores no contínuo processo de formação do caráter de seus alunos. Além da questão de cunho ético e da previsão de regras nos regimentos internos e no ordenamento jurídico, deve-se falar da desonestidade escolar, em tese, no ambiente acadêmico, como parte cotidiana na formação do caráter e do amadurecimento de alunos. Aparentemente, a maioria das instituições de ensino entende que seu papel em relação ao aluno se restringe ao que ocorre durante o período em que se estabelece vínculo direto entre ambos, ou seja, durante a vigência do contrato estudantil. O problema é que as lições que o aluno aprende no campo moral produzirão reflexos que perdurarão muito além da vigência desse contrato e influenciarão o comportamento do indivíduo no exercício de sua profissão.
A cultura brasileira, em certos aspectos, permite a banalização dessas condutas. Alguns sítios na Internet, por exemplo, apresentam vasta coletânea de dicas sobre como ser “efetivo” na “cola” ou como distorcer textos de forma que o plágio não seja percebido.
Apenas para exemplificar, o internauta Ferreira17 posta, em seu blog, coletânea de 25 dicas infalíveis (segundo o autor) para “colar” em provas. O autor não demonstra nenhum constrangimento; ao contrário, coloca-se como prestador de serviços aos que irão usufruir de suas dicas, sobre as quais comenta, em certo tom de orgulho: aqui vão 25 dicas infalíveis, desenvolvidas e utlizadas por mim, para você colar nas provas17. À postagem, segue-se uma enxurrada de comentários positivos de seus seguidores, enaltecendo as dicas, citando seu próprio testemunho, complementando-as, parabenizando o autor.
Ao fazer esse tipo de postagem o internauta não incorre em crime previsto em lei. Não há dispositivo legal que preveja “crime de incitação à ‘cola’”, ou “incitação à desonestidade acadêmica”. E talvez não deva haver mesmo, afinal essa não é questão a ser resolvida nas esferas legislativa e jurídica, mas na esfera moral, à medida que as instituições e a sociedade evoluam em seus valores e conceitos, e se autorregulem.
Há também o curioso caso de professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú, detentor de alguns títulos de pós-graduação18, com visão bastante peculiar sobre escola, “cola” e aprendizagem. Em seu blog, afirma: Vejo a cola não como fraude ou ato clandestino do aluno, mas como manifestação ou recurso de liberdade de aprender do aluno e estratégia de recuperação dos alunos de baixo rendimento18. Também revela que a cola foi introduzida, na minha prática educacional, como estratégia de recuperação para os alunos de baixo rendimento assim como o sol, por osmose, interpenetra a carne18. Segue apresentando vários argumentos em defesa da “cola” como recurso pedagógico de inclusão social, acrescentando:
Podemos ver no procedimento da cola um instrumento para assegurar, na verificação do rendimento escolar, um princípio de ensino como preconiza a Constituição Federal, no seu inciso II, do artigo 206, que enumera, entre os princípios de ensino, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. Encaro, pois, a cola como uma manifestação de liberdade de aprender do aluno18.
É muito provável que essas linhas de raciocínio não constituam casos isolados. Quando se compara o rigor da disciplina nas escolas de quarenta anos atrás com o de hoje, percebe-se quanto conceitos como o de “liberdade de expressão” têm se confundido com o de “liberdade para burlar regras”, para subverter valores. Basta verificar as pichações na parede da escola pública, que em boa parte são fruto da dita liberdade de expressão, a tão desejada liberdade após anos de governos ditatoriais. Seguindo esse tipo de argumentação em nome da política inclusiva e da liberdade, há os que defendam que o estudante se valha de quaisquer recursos para aumentar suas chances de aprovação. E, para legitimar essas práticas, relativizam-se conceitos e valores no campo da ética.
Com isso, deixa-se de criar espaço definido que divida o certo do errado, e cria-se, em seu lugar, uma área de relativização, em que, dependendo da argumentação e da suposta nobreza de propósitos (inclusão social, por exemplo), recurso de caráter antiético em determinado contexto passa a ser aceito como método viável de inclusão em outro.
Trabalho realizado por Grime4, com a devida representatividade estatística, buscou estabelecer correlação entre a conduta de estudantes em ambiente acadêmico e o comportamento destes na esfera do trabalho, com base em questionários que avaliassem a percepção dos estudantes sobre determinados valores. O trabalho demonstrou que a correlação é significativamente alta, como se esperava na hipótese inicial.
No ambiente acadêmico, a pesquisa analisou parâmetros como: iludir o professor com razões falsas para faltar a aulas ou exames; não colaborar com os demais participantes em trabalhos em grupo; receber informações não autorizadas (“cola”) antes ou durante a realização de exames; incluir nome de colegas não participantes em trabalhos em grupo; copiar e colar trabalhos diretamente da Internet (plágio); copiar trabalhos de colegas etc. No contexto do exercício da profissão, levantaram-se situações como: observância ao horário autorizado no intervalo de almoço; relatar ao empregador o real motivo de ausências; e a valorização, nos projetos em equipe, tanto do empenho individual quanto do coletivo. Questiona-se ao entrevistado, também, se ele(a) obteria a lista de clientes de concorrente de forma não autorizada; se escreveria relatório para um colega; se preencheria relatório financeiro com recibos inventados, para aumentar o valor de reembolso de viagem; se apresentaria ideias de colegas como se fossem suas; se registraria o ponto para colega ausente etc.
Estabelecer essa correlação entre comportamento na vida acadêmica e na vida profissional, como feito nesse estudo, pode ajudar a explicar, por exemplo, se um médico que hoje tenha por hábito emitir atestados com declarações falsas, para atender a interesses diversos, é possivelmente resultado de um estudante de medicina acostumado a ambiente acadêmico em que se banalizavam práticas antiéticas. Observa-se que, embora sejam contextos distintos, o padrão ético no ambiente acadêmico tende a se reproduzir no profissional, com amplo reflexo na formação dos valores da sociedade. Essa forte correlação reforça a importância de se aprofundar a questão da desonestidade acadêmica em todas as etapas de formação do indivíduo.
As matrizes curriculares das escolas médicas, em geral, apresentam três ou quatro disciplinas que tangenciam a discussão sobre desonestidade acadêmica, mas nenhuma costuma tratar o assunto com profundidade proporcional à relevância do tema. As grades se baseiam em diretrizes do Ministério da Educação8. Normalmente, as matrizes reservam uma disciplina relacionada à metodologia científica, em que a tônica da discussão é a observância de normas de redação, nos termos da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Há também disciplina voltada a discussão do CEM, em que o foco é a deontologia médica, os direitos e deveres do médico, sobretudo em relação a seu paciente.
Existe ainda outra disciplina que aborda a legislação médica, discutindo os aspectos jurídicos da conduta profissional. Por fim, há a bioética, cujo foco está no debate de polêmicas que envolvem direitos dos pacientes sobre a vida. Assim, o tema da honestidade acadêmica, em sua essência, é tratado como questão implícita, virtude ou conhecimento que todos os que entram no curso já trouxeram consigo desde o ingresso na faculdade, não sendo, portanto, papel da escola discuti-la de forma explícita.
Baber19 afirma que a escola e os professores não têm o papel de fazer pelos alunos o que os próprios pais não conseguiram. Ora, de certa forma isso equivale a repetir o mantra de que “a educação vem de berço”, e, assim, passada a fase do berço, a escola não teria papel na continuidade desse processo. Se o professor não for também um educador, apenas lhe restará o papel de comunicar a ementa da disciplina? Isso, definitivamente, não seria correto, visto que a formação do caráter é processo contínuo, e os indivíduos são altamente influenciáveis pelos sucessivos ambientes em que vivem nas diferentes fases da vida.
As escolas médicas, em geral, editam regimentos internos nos quais preveem regras para lidar com a “cola”, o plágio e as falsificações entre seus discentes. Embora a desonestidade acadêmica seja tema muito mais amplo, conforme mencionado, a “cola” é a conduta mais recorrente nesses regimentos, e o plágio às vezes nem mesmo é mencionado. Ainda que com variações pontuais, esses regimentos se assemelham em seus aspectos conceituais.
A maior diferença, aparentemente, não está no texto regimental em si, mas na implementação prática do rigor previsto no regimento e no tempo e esforço que cada instituição dedica para efetivamente orientar e educar seus acadêmicos, levando-os a internalizar valores éticos da formação superior. Apenas para exemplificar, algumas faculdades de medicina (Unifenas20, Faminas-BH21, FCMMG22, UFMG23, Fepar24, UFF25) preveem, em seus regimentos internos, que os membros do corpo discente estão sujeitos a penas disciplinares que variam de advertência verbal, repreensão e suspensão ao desligamento. Determinam também que “cola” ou uso indevido de aparelho celular durante avaliações, bem como situações de plágio em trabalhos acadêmicos, são consideradas faltas graves, passíveis de punição, com atribuição de nota zero na avaliação e suspensão automática por certo número de dias.
Usam-se os regimentos dessas instituições, entretanto, para punições pontuais. Em geral, não há políticas institucionais no sentido de fazer esse debate ser pauta permanente em salas de aulas, de modo a encorajar os alunos a seguirem padrões éticos, de formar uma cultura de rejeição a quaisquer modalidades de desonestidade acadêmica. As instituições, de modo geral, parecem adotar a postura sugerida por Barber19, e optam por não se envolver no que consideram papel dos pais.
Característica observada no regimento de muitas dessas instituições de ensino é que tratam a questão do plágio de forma apenas protocolar e algumas abordam o assunto apenas no âmbito da disciplina “Metodologia Científica”, ou análogas. Dessa forma, ensina-se o aluno, em tese, durante o semestre em que se oferta a disciplina, a respeito do plágio, definindo-o, caracterizando-o e configurando-o. Encerrada a disciplina, o assunto não constará na pauta das demais, que seguirão, por essência, o conteúdo de suas próprias ementas.
Da mesma forma, deixa-se de tratar as outras questões relativas à desonestidade acadêmica. Usualmente se discute ética apenas no contexto da disciplina pedagogicamente planejada para esse fim. Tome-se, como exemplo, a disciplina “Bioética médica” (ou suas análogas), que dá grande ênfase a intervenções médicas polêmicas, como a eutanásia, o aborto, os transplantes de órgãos, mas apenas tangencia os deslizes do cotidiano, como a emissão de atestados médicos irregulares, as ausências e atrasos aos plantões médicos, o desrespeito aos pacientes, as consequências desses atos para a sociedade e de que forma a desonestidade acadêmica pode influenciar o comportamento do futuro médico. Encerrada a disciplina, ainda que o aluno tenha sido aprovado com a nota máxima, esta pouco dirá sobre a conduta ética futura daquele profissional.
Além disso, são raros os cursos de graduação em que se estabelece vínculo formal entre aluno e seu professor, de modo que este o acompanhe frequentemente em reuniões, avalie seu desempenho acadêmico e o oriente adequadamente. Como a instituição costuma cobrar o professor apenas pelo cumprimento de seu cronograma de aulas, as atividades de orientação, publicação, análise dos textos produzidos pelos alunos, aconselhamento e feedback quanto à conduta ética ficam relegadas a segundo plano, ou a plano algum. Isso ocorre pois, não raro, a atividade docente é exclusivamente dedicada ao cumprimento de cronograma de aulas e à aplicação de avaliações. Também, não raro, a remuneração do professor é função exclusiva de sua carga horária em aulas. Ou seja, nesse cenário, que incentivo tem o professor para orientar o aluno, conduzir a pesquisa junto com ele, publicar em parceria, acompanhar seus trabalhos e avaliações, fornecer feedbacks, cobrar resultados?
Para se formar um bom médico no Brasil, por exemplo, não são suficientes apenas os seis anos do ensino superior, mas pelo menos dezesseis, considerando que a educação formal desse indivíduo não foi iniciada apenas após o vestibular, mas evoluiu desde a pré-escola, influenciada pelos feedbacks positivos e negativos que recebeu ao longo desse tempo, e que foram internalizados ao longo da jornada. Esses feedbacks incluem o conjunto de consequências, ou de falta dessas, para quaisquer atitudes de desonestidade acadêmica a que se tenha exposto esse indivíduo no decorrer de sua formação.
Uma vez na faculdade, o futuro médico, ainda em fase de formação de caráter, será influenciado pela cultura do meio. Se este for mais, ou menos, tolerante com erros e com a desonestidade acadêmica, isso certamente influenciará sua formação profissional e suas atitudes no exercício de sua profissão. Os níveis de tolerância e os valores transmitidos aos alunos configurarão a cultura institucional, da mesma forma que o aluno ingressante tenderá a se adaptar ao meio que encontrar quando de seu ingresso. Veja o exemplo da USP, citado anteriormente: ao exonerar um professor com quinze anos de carreira, por plágio, que mensagem a instituição passou a seus alunos?
A ética é tema de discussão desde sempre e para sempre, muitas vezes confundida ou conectada à moral e a temas relacionados à legalidade. Enquanto a moral e a lei são passíveis de mudanças, temporais ou geográficas, somente a ética é inerente ao livre-arbítrio do indivíduo.
A desonestidade acadêmica, em toda a sua amplitude, e em especial as questões relativas ao plágio e à “cola”, definitivamente não é tema limitado a disciplinas específicas de um curso superior; permeia toda a extensão de um programa de formação do indivíduo. Em geral, as universidades/faculdades de Medicina acolhem jovens de 18 anos e os entregam à sociedade aos 24, como médicos formados responsáveis por atender a demandas de saúde da população. A honestidade profissional desses indivíduos estará fortemente correlacionada à honestidade acadêmica que internalizaram durante seus anos de estudo.
É natural, portanto, concluir que a instituição mais bem-sucedida na formação de profissionais de primeira linha será aquela que, além de todo o conteúdo de natureza técnica, também muito se empenhe para enraizar a cultura da integridade, orientando e cobrando dos alunos a honestidade em caráter integral. Essa questão, pois, é para ser tratada continuamente, em todas as disciplinas, em todas as etapas do curso, por todos os professores, que também precisam ser continuamente treinados pela instituição. As regras devem ser claras, reiteradas como rotina. Deve-se acompanhar sua aplicação e cultuar os bons exemplos; os maus, por sua vez, devem ser tratados à luz de sanções amplamente divulgadas, e não pinçadas em casos isolados.
É necessária a criação de ambiente que desencoraje o plágio, que leve ao banimento da “cola”, que estimule a criatividade e encoraje a honestidade acadêmica em todas as suas formas. Em todos esses casos, a instituição de ensino pode e deve instituir medidas para desestimular más condutas, sob pena de, em não o fazendo, encorajar o aluno a transferir para a vida profissional futura o exercício das mesmas práticas, o que implica forte prejuízo do interesse coletivo.
Entretanto, isso somente será possível por “efeito cascata”. Ou seja, os princípios e valores institucionais, da alta administração, do médio escalão, dos professores e demais colaboradores e dos alunos, devem estar sob o mesmo guarda-chuva ético. Não há receita de sucesso que possa abranger determinado nível sem que todos estejam contagiados pelo espírito de incorporação de boas práticas, determinando, assim, a cultura da instituição.
Nesse caminho, talvez o Brasil chegue ao ponto em que chegou a Alemanha, onde uma situação de plágio levou à renúncia de um ministro. Políticos brasileiros costumam não sucumbir mesmo diante de grandes escândalos financeiros, o que nos dá a dimensão em que nossa sociedade ainda precisa rever seus valores.
Rodolfo Neiva de Sousa propôs a estrutura preliminar do artigo, articulou a argumentação, fez revisão bibliográfica e foi o principal redator. Valdinei Klein Conti incluiu tópicos, fez revisão bibliográfica e crítica e recomendou melhorias no texto. Alvaro Angelo Salles incluiu tópicos, recomendou exclusões, fez revisão bibliográfica, ortográfica e crítica e sugeriu alterações e melhorias na fundamentação de argumentos. Ivana de Cássia Raimundo Mussel fez a revisão geral, ortográfica e crítica, recomendou inclusões e supressões sobre formatação e estrutura.
Correspondência Rodolfo Neiva de Sousa – Rua Luther King, 210, apt. 401, Cidade Nova CEP 31170-100. Belo Horizonte/MG, Brasil.