Resumo: Objetivando avaliar projetos submetidos ao Comitê de Ética no Uso de Animais em relação ao uso de analgesia em cirurgia experimental, este trabalho avaliou 106 projetos, coletando as seguintes informações: metodologia do procedimento cirúrgico, utilização de analgesia, justificativa do não uso de analgésico e aplicação do grau de invasividade. Dos projetos avaliados, 64,2% empregaram técnica cirúrgica. Destes, 65,6% não utilizaram analgesia no pós-operatório, sendo a principal justificativa a de que o analgésico poderia alterar os resultados; em 17%, empregou-se a classificação de grau de invasividade de forma irregular. Assim, o estímulo e a divulgação dos conhecimentos relacionados a analgesia devem partir tanto dos comitês responsáveis quanto do corpo de pesquisadores.
Palavras-chave: BioéticaBioética,Animais de laboratórioAnimais de laboratório,Cirurgia experimentalCirurgia experimental.
Artigo de Pesquisa
Analgesia de animais de laboratório: responsabilidade dos comitês de ética e obrigação dos pesquisadores
Recepção: 15 Fevereiro 2016
Revised document received: 22 Setembro 2016
Aprovação: 26 Setembro 2016
A experimentação animal provê importante conhecimento técnico-científico, principalmente nas áreas biomédicas, permanecendo, por isso, etapa central dos estudos clínicos e, em consequência, gerando muita polêmica 1-3. Atualmente, os estudos que utilizam animais não humanos também aderiram a parâmetros éticos baseados no conceito do “bem-estar” do sujeito de pesquisa, que são aspectos basilares para a realização do projeto 3,4.
Em consequência, dor, sofrimento e higiene no manejo dos animais em um projeto de pesquisa são aspectos que devem ser observados, por questões metodológicas e éticas, sendo apontados, tanto pela comunidade científica quanto por organizações internacionais em defesa dos animais, como fatores importantes que interferem no resultado final da pesquisa 5-7. Legislações nacionais e internacionais resguardam direitos e cuidados desses animais, principalmente em relação a sofrimento e dor, sendo responsabilidade dos pesquisadores a garantia de aplicação das normas8,9. Por isso, não se permite a realização de pesquisa em casos em que o dano ao animal for maior que os ganhos do conhecimento, e nos casos em que se apliquem métodos alternativos de pesquisa 1,5,8.
Diante desse quadro, que aponta para o uso continuado de animais em estudos clínicos e da necessidade de eliminar ou reduzir o sofrimento dos espécimes utilizados, este trabalho tem como objetivo levantar a utilização de analgesia em procedimentos experimentais com animais e a utilização correta do grau de invasividade.
Realizou-se estudo de caráter transversal, quantitativo e observacional. Conduziu-se coleta de dados durante o período de julho até novembro de 2015. Analisaram-se 106 projetos submetidos ao Comitê de Ética no Uso de Animais (Ceua) de uma universidade brasileira no período de dezembro de 2010 até dezembro de 2014. Participaram da pesquisa todos os projetos que utilizaram animais para fins de pesquisa.
Analisaram-se os projetos segundo os preceitos éticos internacionais e as normas para pesquisas envolvendo seres humanos (Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde 10). Como objeto de estudo, escolheram-se projetos de pesquisa submetidos ao Ceua – que resguarda sigilo sobre dados dos pesquisadores –, que foram avaliados e aprovados pelo Comitê de Ética da Universidade do Estado do Pará e então aceitos pelo diretor do Ceua. Além disso, são projetos que receberam aceite para termo de utilização de banco de dados, sendo resguardado o sigilo acerca dos dados da investigação.
Estabeleceu-se protocolo de pesquisa, elaborado para coletar os dados dos prontuários, a partir da hipótese da pesquisa “Há respeito à legislação vigente referente a analgesia de animais de experimentação que sofrem cirurgias experimentais em projetos submetidos ao Ceua?”, e das bibliografias consultadas. Correlacionaram-se as variáveis estatisticamente por meio de teste G, com p < 0,05, comparando-se os resultados com as literaturas atuais.
Nenhum ganho científico pode ser justificado com base no sofrimento de outros seres vivos. Dos 106 projetos submetidos ao Ceua de uma universidade pública, a maioria (64,2%) empregou cirurgia como meio ou fim, em acordo com o que está definido na descrição metodológica do estudo, sendo a analgesia usualmente indicada em procedimentos pós-operatórios, de forma a garantir o bem-estar dos pacientes. Por isso, a analgesia se mostra elemento ético importante a se analisar minuciosamente.
A dor é elemento essencial para sobrevivência e manutenção da vida dos organismos complexos; porém sua continuidade reduz a qualidade de vida, causa instabilidade homeostática e provoca reações bioquímicas e comportamentais extremamente danosas, como indicado por Coutinho 11 e Andrade, Pinto e Oliveira 12. Apesar das legislações e manuais que tratam do assunto, e de dados que confirmam a necessidade de preservar a fisiologia normal, ainda há desconsideração da dor dos animais de experimentação por parte de pesquisadores.
Pode-se verificar esse descaso, principalmente, em cirurgia experimental, visto que 65,6% dos projetos avaliados não realizou analgesia, mesmo com a utilização de metodologia cirúrgica, corroborando os dados encontrados em outros Ceua, como citado por Filipecki, Machado e Teixeira 13 e Paixão 9. Diversas foram as justificativas para a não aplicação da analgesia, sendo que os pesquisadores mais mencionaram a possibilidade de interferência dos analgésicos nas leituras anatomopatológicas de estruturas renais e hepáticas, correspondendo a 96% das justificativas.
Entretanto, mesmo sem análise mais aprofundada, essa justificativa se mostra incoerente, pois não se mostraria viável a aplicação da mesma técnica, sob as mesmas condições, no ser humano, visto que um procedimento cirúrgico é seguido de analgesia adequada no pós-operatório. O estresse causado pela dor se mostra mais danoso a estruturas anatomopatológicas que qualquer analgésico, por causa da liberação de inúmeros mediadores inflamatórios e da alteração comportamental, que pode gerar inapetência, atos de mutilação e alterações de sono-vigília, como citam Kohn e colaboradores 6 e outros autores 6,9.
Com o objetivo de evitar situações similares, o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) elaborou estratificação do grau de invasividade (GI), em que cada procedimento deve ser enquadrado para melhor visualização do nível de dor apresentado pelos animais, o que consequentemente levaria ao cuidado com o protocolo analgésico utilizado. São quatro os graus de invasividade: o primeiro refere-se a experimentos que causam pouco ou nenhum desconforto ou estresse; o segundo, de leve intensidade; o terceiro, com intensidade intermediária; e o quarto e último, experimentos que causam dor de alta intensidade. O que se observou nos estudos analisados, todavia, é que, mesmo com a correta classificação do grau de invasividade, não houve devida atenção à analgesia, pois apenas 34,4% dos projetos que realizaram procedimento cirúrgico fizeram uso de analgesia pós-operatória. Diante dessa evidência, não é demais repetir que não se pode justificar nenhum ganho científico com base no sofrimento de outros seres vivos.
É responsabilidade do pesquisador o acompanhamento dos animais operados e o reconhecimento de sinais de dor, não sendo justificável a ausência de analgesia nos animais em cirurgia experimental que apresentem algum grau de invasividade, como colocado por diversas entidades nacionais e tratados internacionais. O GI não deve substituir a avaliação clínica, e, para melhor conforto do animal 11, deve-se utilizar analgesia leve em metodologias minimamente invasivas.
Os resultados levantados na análise dos projetos que envolvem procedimentos cirúrgicos em animais não humanos, em universidades públicas brasileiras, mostram total irregularidade no que tange ao cumprimento das normas éticas que regulam os estudos realizados com animais. A maioria dos 106 projetos submetidos a análise do Ceua usou técnica cirúrgica, e mais da metade destes não utilizou analgesia no pós-operatório, provocando dor e sofrimento nos animais que participaram do estudo. Essa situação alarmante denota a necessidade urgente de treinamento e aprimoramento dos avaliadores dos Ceua, que devem familiarizar-se com fármacos, dosagens e parâmetros metodológicos, para julgar o desconforto dos animais envolvidos nos projetos de estudo. É importante que os integrantes dos Ceua estejam capacitados e, assim, aptos para verificar as condições de vida e situações de manejo dos animais nas visitas aos biotérios, que devem ocorrer de forma regular, para acompanhar o andamento dos procedimentos e os cuidados adotados.
Deve-se promover, nas instituições, um trabalho de esclarecimento quanto às normas éticas que regulam a pesquisa com animais não humanos no Brasil 14, para capacitar estudantes e docentes, a fim de que adotem a melhor metodologia de pesquisa possível para seu projeto, sem promover dor e sofrimento desnecessários e injustificados nos animais que participam dos estudos. Também se recomenda a realização periódica de fóruns de discussão, de modo a levantar e debater questões relacionadas ao assunto, como o uso de determinados fármacos e suas dosagens teste-terapêuticas, visando promover a consciência da comunidade acadêmica sobre o melhor desenho e condução dos experimentos.
Por fim, considera-se que o levantamento e a divulgação de dados analisados estatisticamente sobre os experimentos realizados nos Ceua ajudam a comunidade científica a conhecer e reconhecer aspectos complexos e concomitantemente delicados do uso de animais não humanos em pesquisas, bem como a debater e aprimorar o conhecimento e as práticas adotadas em relação a esse tema polêmico, que se revela de suma importância para o avanço científico, como apontam Zuanon, Benjamin e Fonseca 15. Por isso, são necessários mais estudos a respeito dos parâmetros éticos de pesquisas com animais.
Caio Botelho Brito é o autor do artigo. Rosa Helena e Nara Macedo Botelho atuaram como orientadoras e revisoras.
Correspondência Caio Vinicius Botelho Brito – Avenida Cabanos, 2.264, Ed. Fort Lauderdale, apt. 1.101 CEP 66033-000. Belém/PA, Brasil.