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Uso da casuística no processo ensino-aprendizagem de bioética em saúde
Daniela Aparecida Azevedo Leite; Juliana Dias Reis Pessalacia; Patrícia Pinto Braga;
Daniela Aparecida Azevedo Leite; Juliana Dias Reis Pessalacia; Patrícia Pinto Braga; Camila Maria Pereira Rates; Cissa Azevedo; Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli
Uso da casuística no processo ensino-aprendizagem de bioética em saúde
Revista Bioética, vol. 25, núm. 1, pp. 82-88, 2017
Conselho Federal de Medicina
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Resumo: Existem vários modelos em bioética capazes de contribuir para tomada de decisão em saúde. O modelo da casuística trabalha com análise de casos reais para se tomar decisões diante de problemas bioéticos. Trata-se de estudo descritivo, qualitativo, a partir de análise temática, realizado com 16 acadêmicos da área de saúde com o objetivo de identificar suas experiências no processo de ensino-aprendizagem em bioética a partir do método de casos, fundamentado no modelo da casuística. Emergiram duas categorias: “o modelo da casuística como facilitador da formação do posicionamento ético e do processo de tomada de decisão” e “a dificuldade da aplicação prática dos paradigmas e analogias no modelo da casuística”. A partir das experiências relatadas, conclui-se que o modelo da casuística contribui significativamente para a tomada de decisão em problemas bioéticos, bem como auxilia o processo de ensino-aprendizagem de bioética durante a graduação na área da saúde.

Palavras chave: BioéticaBioética,Ciências da saúdeCiências da saúde,Tomada de decisõesTomada de decisões,EnsinoEnsino,Materiais de ensinoMateriais de ensino.

Carátula del artículo

Pesquisa

Uso da casuística no processo ensino-aprendizagem de bioética em saúde

Daniela Aparecida Azevedo Leite
Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil
Juliana Dias Reis Pessalacia
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
Patrícia Pinto Braga
Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil
Camila Maria Pereira Rates
Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil
Cissa Azevedo
Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil
Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli
Universidade de São Paulo, Brasil
Revista Bioética, vol. 25, núm. 1, pp. 82-88, 2017
Conselho Federal de Medicina

Recepção: 7 Dezembro 2015

Revised document received: 22 Setembro 2016

Aprovação: 24 Novembro 2016

A crescente variedade de problemas éticos e bioéticos presentes na área da saúde intensifica a necessidade do ensino de bioética nos cursos de graduação, sobretudo naqueles voltados para esta área, pois é importante que futuros profissionais sejam capazes de interligar conceitos teóricos apreendidos em sala de aula com a prática profissional. A bioética é capaz de oferecer subsídios para essa interligação, uma vez que o estudo precoce de alguns problemas bioéticos pode ajudar na formação do posicionamento ético dos sujeitos e, consequentemente, na tomada de decisão em situações práticas do cuidar.

A capacidade de tomar decisões diante de problemas éticos comumente presentes nos serviços de saúde colabora para que seja prestada assistência à saúde de qualidade. Sabe-se que existem inúmeros modelos e métodos de ensino capazes de contribuir para o processo de ensino-aprendizagem em bioética e, consequentemente, para a formação do posicionamento ético dos acadêmicos. No entanto, o uso de metodologias ativas no processo de ensino-aprendizagem tem sido enfatizado devido às características próprias da área em questão, que exige maior reflexão e autonomia do acadêmico.

Em bioética, o processo de ensino-aprendizagem do acadêmico envolve tudo aquilo que contribui para que pense, aja e reaja às diversas situações profissionais com as quais poderá deparar 1. Na atualidade, discute-se a necessidade de ampliar o foco de formação, expandindo questionamentos como “o que devo ou não fazer” para o âmbito das reflexões morais, da formação da autocrítica e das decisões conscientes, pautadas no valor e na dignidade da pessoa humana 2. Para tanto, faz-se necessária a apropriação e busca de tendências pedagógicas mais interativas pelos órgãos formadores, as quais lancem mão de metodologias e recursos de ensino inovadores 3. Isto é, o ensino da ética precisa motivar a reflexão sobre valores, cultura e tomada de decisões em contexto real, da experiência prática em campo 4.

Abordagens e metodologias pedagógicas adequadas ao desenvolvimento da competência moral e ética que envolvam o acadêmico de forma ativa incentivam e permitem confrontar ideias e opiniões, permitindo também que se relacionem questões e problemas da vida real. Esse modo de organização parece surtir mais efeito na formação moral que as tradicionais aulas expositivas 5. A metodologia ativa (MA) é concepção educativa que visa incentivar processos de ensino-aprendizagem crítico-reflexivos, em que o acadêmico participa e se envolve diretamente com seu aprendizado. Trata-se de método que cria situações de ensino para estabelecer aproximação crítica do acadêmico com a realidade e reflexão acerca de problemas desafiadores, além de disponibilizar meios para a realização de pesquisas sobre problemas e soluções, identificar e organizar soluções hipotéticas mais adequadas à situação e garantir a aplicação prática dessas soluções 6.

Essas metodologias ainda permitem que o acadêmico seja agente de sua própria transformação, além de capacitá-lo para detectar problemas éticos que surjam da realidade cotidiana e para buscar soluções originais, criativas, responsáveis e prudentes. Para tanto, são recomendados grupos pequenos, interativos e participativos, com abordagens mais práticas que teóricas 7. Sabe-se que reflexão feita em conjunto com outras pessoas, bem como diálogo e reconhecimento do contexto contribuem para reconstruir novos caminhos, voltados para a integração da teoria com a prática e do ensino com a aprendizagem, por exemplo. Enfatiza-se, ainda, que a prática reflexiva, crítica e comprometida estimula a autonomia, a liberdade e o diálogo, além do enfrentamento de resistências e conflitos 8.

Como exemplo de metodologia ativa para o ensino, pode-se citar o método do caso. Inicialmente, é importante apontar que a proximidade existente entre os termos “método de caso” e “estudo de caso” confunde, conceitualmente, aqueles que estão iniciando seu processo de formação acadêmica. Dessa forma, é necessário esclarecer que o método de caso é ferramenta pedagógica utilizada, por exemplo, na formação de advogados, juristas e administradores de empresas e que, portanto, não se trata de metodologia de pesquisa, como vem a ser o estudo de caso 9.

Uma forma de aplicar o método de caso é usar o modelo ético da casuística para o ensino de bioética na graduação da área da saúde. Esse modelo analisa casos reais para a tomada de decisão em situações com problemas éticos. O modelo da casuística validado por Jonsen e Toulmin 10 em 1988 objetiva analisar problemas éticos mediante procedimentos equacionais que têm como base casos paradigmáticos, analogias e opiniões de pessoas especializadas na existência e no rigor das obrigações morais em situações privadas. Dessa forma, esse modelo é caracterizado pelo arranjo dos casos por paradigma e analogia, apelo a máximas, análise das circunstâncias, qualificação das opiniões, acúmulo de argumentos e conclusão com a resolução do problema ético.

O modelo casuístico de Jonsen e Toulmin constitui-se em método apropriado para comitês hospitalares que necessitem resolver questões de ética clínica. Além disso, contribui também para o ensino de bioética em saúde. O método apresenta-se como taxonomia de casos, isto é, é necessário comparar o caso que precisa ser solucionado com casos paradigmáticos já resolvidos até se chegar à provável resolução 10. A casuística ordena os casos em tópicos, por paradigma e analogia, sendo que cada tópico deve fazer referência a um princípio. Os tópicos iniciam-se pela definição das palavras-chave e procedem com exemplos de casos, cuja descrição inclui as seguintes perguntas: quem, o que, onde, quando, por que, como e por quais meios. O primeiro caso do tópico trabalha com desvios mais óbvios, ou seja, exemplifica violação extrema do princípio. Esse caso emblemático é o “paradigma”. Os outros, por analogia, afastam-se do paradigma ao introduzir combinações de circunstâncias que tornam a afronta menos discrepante 10.

Para utilizar o método casuístico, deve-se analisar o caso clínico descoberto como problema ético de acordo com os seguintes tópicos: indicações médicas, preferências do doente, qualidade de vida e aspectos conjunturais. Pelo fato de analisar quatro tópicos, esse procedimento é também conhecido como método das quatro caixas11. Cabe ressaltar que, apesar de este estudo ter adotado como referencial o modelo da casuística, outro modelo amplamente utilizado é o modelo principialista de Beauchamp e Childress, o qual propõe a aplicação prima facie dos princípios da beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. A diferença essencial entre os dois modelos se encontra no fato de que no principialismo as decisões partem de princípios prestabelecidos, enquanto na casuística as decisões partem da análise do caso e individualidades dos envolvidos.

Contudo, a crítica da casuística ao principialismo refere-se ao fato de este buscar elevado nível de segurança, baseado em juízos universais, ao passo que, no olhar da casuística, os juízos devem considerar o contexto sociocultural em que as pessoas se encontram envolvidas, isto é, a individualidade dos casos. O principialismo é uma abordagem popular porque é simples e viável, e sua simplicidade reside na aplicação de um conjunto estável de temas éticos e conceitos. No entanto, essa simplicidade constitui a principal limitação da abordagem, pois não considera o risco de deixar de fora uma série de valores e perspectivas 12.

Tendo em vista que a casuística considera primeiramente os casos e posteriormente os princípios para tomar decisões em bioética clínica, o principal método utilizado neste estudo foi o de caso, mais precisamente o estudo de casos bioéticos. Cabe dizer, de antemão, que este estudo se justifica pelo fato de expor as contribuições que o modelo da casuística pode oferecer aos acadêmicos da área da saúde para tomar suas decisões em situações envolvendo problemas bioéticos. Além do mais, sabe-se que poucos são os estudos no Brasil que têm avaliado o uso de metodologias ativas, como o método de casos, para o ensino de bioética na graduação. Portanto, o objetivo deste estudo foi identificar as experiências de acadêmicos da área de saúde no processo de ensino-aprendizagem em bioética a partir do método de casos, fundamentado no modelo da casuística.

Método

Trata-se de estudo descritivo, de natureza qualitativa, desenvolvido no campus da Universidade Federal de São João del-Rei. Por meio da abordagem qualitativa é possível compreender ampla e profundamente os comportamentos humanos e sua relação com valores, atitudes, sentimentos e crenças 13. O universo do estudo compreendeu 16 acadêmicos dos cursos de enfermagem, farmácia e bioquímica, participantes do terceiro ciclo de atividades do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Bioética (NIBio) do campus. Nas reuniões do núcleo adota-se a metodologia de casos para o ensino e discussão de problemas bioéticos, tendo como pressuposto para a tomada de decisão o modelo da casuística de Jonsen e Toulmin 11.

Os acadêmicos do núcleo participaram de capacitações sobre bioética e sobre o modelo da casuística nas reuniões iniciais. Nas reuniões posteriores foram divididos em quatro grupos, e cada um deles recebeu dois casos verídicos diferentes. Um dos casos foi o paradigmático, aquele que apresentava o desvio mais óbvio do princípio, e o outro, caracterizado como o caso propriamente dito, era aquele que ainda necessitava de tomada de decisão. Esses casos abordavam o problema bioético a ser trabalhado no dia: por exemplo, alocação de recursos na saúde, aborto, considerações sobre testemunhas de Jeová, entre outros. Os casos discutidos foram retirados de um livro de casos elaborado pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) 14.

Os critérios de seleção dos participantes foram: ter mais de 18 anos, estar matriculado nas atividades do núcleo, ter participado dos encontros do núcleo no período de abril a julho de 2014 e aceitar, por escrito, participar do estudo. Para fins de transcrição das falas optou-se por identificar os entrevistados pela letra “A” (acadêmicos) e os algarismos de 1 a 10, buscando assegurar a confidencialidade das respostas.

Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada contendo as seguintes questões norteadoras: “qual sua percepção acerca do modelo da casuística para a tomada de decisão?”; “quais as dificuldades e facilidades do uso do método de caso para o ensino?”. Os relatos foram gravados e, posteriormente, transcritos na íntegra para análise. O material transcrito foi submetido a análise de conteúdo, na modalidade análise temática. Assim, para a análise, neste estudo foram adotadas as três etapas propostas por Bardin 15: 1) pré-análise (leitura flutuante, constituição do corpus, formulação de hipóteses); 2) exploração do material; e 3) tratamento e interpretação dos resultados obtidos.

Resultados e discussão

Dos 16 acadêmicos participantes das atividades do NIBIo, dez responderam à entrevista, e seis não atenderam aos critérios de seleção. A média de idade foi de 22 anos, com idade mínima de 18 e máxima de 31 anos, sendo oito do sexo feminino (80%) e dois do masculino (20%). Quanto aos cursos, cinco (50%) eram do curso de enfermagem, três (30%) de bioquímica, um (10%) de farmácia, e uma (10%) mestranda em enfermagem. Durante a análise das entrevistas surgiram duas categorias temáticas: 1) o modelo da casuística como facilitador da formação do posicionamento ético e do processo de tomada de decisão; e 2) a dificuldade da aplicação prática dos paradigmas e analogias no modelo da casuística.

O modelo da casuística como facilitador da formação do posicionamento ético e do processo de tomada de decisão

Esta categoria demonstra a importância da avaliação conjunta do método e suas contribuições para a prática no ensino, além de seu uso diante de caso-problema. A hegemonia em relação ao posicionamento dos entrevistados quanto às facilidades de compreensão que o método proporciona deixa claro que, para melhor percepção dos princípios e valores em cada situação, o uso da casuística é de grande relevância. Nas falas pode-se observar termos como humanização, cuidado, valorização e solução, como segue:

“A minha percepção é de que é de grande importância esse modelo da casuística, porque nos permite ver a situação de todos os ângulos, tanto da forma jurídica quanto da forma bioética do paciente, uma forma de humanização do atendimento” (A3);

“É, eu acho que tem uma boa base, que serve como um exemplo na tomada da decisão e ajuda muito porque de frente para um problema ajuda a construir uma solução, fazendo com que novos erros não sejam repetidos” (A10).

Nota-se por meio dos enunciados que os participantes consideram importante ter casos práticos para compará-los à situação que precisa ser solucionada. Dessa forma, o modelo da casuística apresenta-se como facilitador da formação do posicionamento ético, uma vez que estimula a percepção dos princípios e valores pessoais no processo de tomada de decisão:

“Eu achei diferente do que estava acostumada a usar, porque vou muito pelo modelo principialista que é autonomia, beneficência, não maleficência e justiça, e a casuística proporciona, valoriza mais o caso, porque quando você usa um modelo mais principialista sempre você já lê pensando no que tem ali nos princípios, você já lê olhando os princípios” (A2);

“A casuística valoriza mais a situação, então por mais que seja uma situação dilemática, na casuística eu achei que valoriza cada indivíduo que está relacionado, você usa os princípios, mas valoriza mais o caso, o posicionamento de cada indivíduo dentro daquela situação” (A2).

Nesta categoria temática estão agrupados os relatos que remetem à compreensão do modelo da casuística. Esse fato se deve à facilidade de visualizar o problema ético envolvido e os possíveis posicionamentos multidisciplinares no modelo casuístico, uma vez que exige minuciosa apresentação do caso clínico para a melhor tomada de decisão. Argumento predominante nas respostas dos entrevistados é a afirmação de que a casuística é um método importante para se tomar decisões. Com isso, pode-se considerar aceitável a ideia de que o método reforça o raciocínio moral prático, a compreensão da relevância dos casos durante cada análise e a obtenção de olhar crítico para se chegar à prioridade das particularidades de cada um. A partir daí, é possível respeitar o desejo e a autonomia das pessoas, ajustando o atendimento às circunstâncias até se chegar à excelência de uma solução 16.

Sendo assim, o ensino de bioética nos cursos de graduação é de extrema relevância, pois proporciona embasamento teórico e contato dos acadêmicos com problemas bioéticos da realidade. É necessário também ter professores com conhecimento em bioética, capazes de contribuir para o processo de ensino-aprendizagem dos acadêmicos, e consequentemente para seu amadurecimento quanto à competência ética. Em estudo 17 com objetivo de avaliar metodologias existentes para tomar decisões no âmbito da ética clínica, ficou claro que cada problema tem solução racional mesmo que o processo para alcançá-la tenha muitas incertezas. A complexidade das decisões éticas está no fato de que pessoas podem ter opiniões diferentes, uma vez que cada indivíduo tem sua própria percepção sobre qualquer dilema ético 17, mesmo que se considere a influência condicionante do meio cultural e de fatores sociais e fisiológicos (sexo, idade, grau de instrução, condição e situação de vida, saúde etc.).

Cabe também dizer que se a doença e a saúde dos seres humanos e a vida em geral dos seres vivos são realidades essencialmente complexas e dependentes de inter-relacionamentos, não devem ser compreendidas somente a partir de teorias enquanto objetos de técnicas. Torna-se então necessário estimular e desenvolver atitudes de sabedoria e discernimento ético, característicos da casuística. Sendo assim, a casuística revela-se método adequado tanto para solucionar dilemas éticos implicados na doença, na saúde e na vida em geral 18 quanto para promover reflexão ética, como processo para se tomar consciência dos valores que envolvem a existência.

Observa-se que aplicar o modelo da casuística no processo de ensino-aprendizagem em bioética contribuiu para se estabelecer posicionamento ético e tomar decisões diante de problemas bioéticos da prática em saúde, conforme análise das falas dos participantes. A esse respeito cabe ressaltar que o objetivo de integrar ciência e ética em configuração educacional, mediante adoção de metodologias ativas, permite que acadêmicos comecem a desenvolver habilidades de pensamento crítico e conhecimentos necessários para identificar e enfrentar os desafios de suas profissões 19.

Esse tipo de metodologia também pode contribuir para o próprio sistema de avaliação do acadêmico, que pode medir seu aprendizado, reconhecendo-o como conhecimento construído e incorporá-lo com mais facilidade, já que se trata de um modelo que estimula acadêmicos a atitudes voltadas para a busca de suas próprias respostas éticas 20. Aplicar o modelo da casuística no processo de ensino-aprendizagem permite avaliar as habilidades dos acadêmicos no processo de tomada de decisão, no desenvolvimento de seu raciocínio crítico e na aplicação dos preceitos morais e éticos.

Assim como é importante avaliar o desempenho do acadêmico, é relevante que o ensino possibilite reflexão sobre vários temas da prática profissional, a partir da exposição de valores e princípios que servem como “instrumentos” para o pensamento crítico, para a compreensão e a tomada de decisões diante de desafios éticos.

Se estratégias pedagógicas se restringirem à transmissão de informações e ao treinamento de habilidades, o pensamento crítico não será plenamente desenvolvido 4. Nesse contexto insere-se a relevância da utilização do modelo da casuística no ensino de bioética, uma vez que por meio dessa metodologia ativa é possível estimular o raciocínio dos acadêmicos quanto à tomada de decisão.

A dificuldade da aplicação prática dos paradigmas e analogias no modelo da casuística

Essa categoria temática apresenta relatos que se referem às fragilidades da aplicação prática do modelo da casuística. Sobretudo, percebe-se que a principal dificuldade apontada pelos participantes se relaciona aos casos paradigmáticos selecionados. Sabe-se, por exemplo, que existem casos de diferentes nacionalidades, o que provoca conflito até mesmo do ponto de vista jurídico; isto é, as legislações de cada país influenciam na tomada de decisão. A seguir, é possível conhecer as principais dificuldades elencadas pelos participantes no uso do modelo da casuística:

“As dificuldades são que nem sempre você pode seguir aqueles parâmetros, porque cada caso é um caso” (A9);

“Quanto às dificuldades, talvez possam existir certos casos peculiares em que possa haver alguma dificuldade em comparar com os casos paradigmáticos, mas eu considero isso muito raro, e a gente sempre consegue, sim, utilizar um método e o objetivo principal, que é a tomada de decisão” (A6).

Percebe-se que interpretação, conhecimento, compreensão e análise minuciosa de analogias entre os casos são cuidados que devem ser tomados a fim de se obter a melhor decisão ética, levando-se em consideração principalmente a qualidade de vida do paciente e o contexto de toda a situação. Ainda nesse aspecto, muitas dificuldades da aplicação do método podem estar ligadas ao fato de que os casos, apesar de verídicos, não apresentam todas as informações necessárias para trazer situações reais ao acadêmico. Isso porque apenas simulam contextos fragmentados, permitindo diversas interpretações de um mesmo problema. Isso pode ser superado utilizando-se casos que se aproximem das próprias vivências dos acadêmicos durante as atividades curriculares.

Na instituição de ensino em que foi realizado este estudo, esse fato pode ser ainda mais facilmente superado, pois os alunos estão inseridos na prática profissional desde os períodos iniciais do curso. É importante apontar ainda que, por meio dos relatos dos participantes, foi possível notar a existência de certa comparação entre o modelo bioético principialista e o casuístico, conforme explicitado na fala que segue:

“Eu achei mais difícil usar a casuística do que o modelo principialista, que eu já estou acostumada, é porque você enxergar o caso é mais complicado, você ver quem que tem mais importância ali, e no caso do principialista não. Como já disse, vai para o princípio e você já tem né? Já vai resolvendo… mas a casuística eu achei mais difícil de compreender, de buscar uma solução bioética, mas é muito mais interessante até porque as situações não são iguais, né? Variam os casos, então a casuística proporciona isso independente da situação, eu consigo solucionar valorizando cada um” (A2).

Tornou-se evidente a ideia de que os participantes do estudo têm mais habilidade para aplicar o modelo principialista em detrimento do modelo da casuística. Alegaram utilizar o principialismo de forma instintiva, enquanto o modelo da casuística ainda é mais desafiador, principalmente por ser um modelo que valoriza a reflexão, ao contrário do chamado check list principialista. Essa facilidade de se trabalhar com o principialismo pode ser relacionada ao fato de que, desde as primeiras edições da obra “Princípios de ética biomédica” 21, a base fundamental do modelo principialista, muitas foram as modificações realizadas pelos autores com vistas a sanar críticas.

Essas críticas se referem ao modelo como puramente dedutivo e que contém obrigatoriedades, ou seja, indicam a necessidade de respeitar os princípios propostos 22. Entretanto, acredita-se que, de forma geral, os pontos fracos do paradigma principialista são os pontos positivos da casuística, e os pontos fortes da consideração dos princípios são os aspectos negativos da análise de casos 18.

Em estudo 22 cujo objetivo foi explicar as principais semelhanças e diferenças entre o modelo bioético principialista e o casuístico, tem-se que uma das características do modelo casuístico inclui as próprias dificuldades advindas quando casos paradigmáticos existentes não se aplicam ao caso a ser discutido. Esse fato deve ser resolvido escolhendo-se o caso paradigmático que mais se aproxima do caso em consideração. Em outras palavras, uma vez que não há caso análogo que claramente se aplica ao presente caso, deve-se confiar na própria capacidade de escolher a melhor opção entre as disponíveis. É importante considerar que, em se tratando da inexistência de casos paradigmáticos passíveis de comparação, a tomada de decisão torna-se, então, referência para futuras discussões 22.

O processo de discutir e analisar diferentes princípios e valores dos casos aprofundando-se nas sutilezas e realidade de cada um faz surgir posicionamentos multidisciplinares, os quais serão responsáveis por apontar melhores caminhos e argumentos em determinada situação. É importante ter visão mais ampla dos casos, sob diferentes pontos de vista, pois a partir do momento em que são conhecidas as diversas implicações que a tomada de decisão pode causar é possível refletir com mais propriedade sobre as escolhas a serem feitas.

Considerações finais

Considerando as principais discussões levantadas neste estudo, acredita-se que o modelo casuístico contribui significativa e positivamente para o processo de ensino-aprendizagem de bioética durante o curso de graduação na área da saúde, capacitando futuros profissionais para tomar decisões quanto a problemas éticos. Percebe-se que algumas das críticas citadas pelos acadêmicos são relativas ao método, requerendo sua melhor compreensão e utilização para aprimorar o uso e evitar abusos. A utilização da abordagem qualitativa por meio de entrevistas semiestruturadas possibilitou aos acadêmicos expressar de forma clara suas experiências com o modelo da casuística. Esse modelo contribui para discussões no âmbito do ensino-aprendizagem da bioética e torna os acadêmicos sujeitos ativos de seu aprendizado.

Considerando-se a importância da participação do acadêmico no processo de construção do conhecimento, especialmente na bioética, com os resultados do estudo fica patente a importância do uso de metodologias ativas no processo de ensino-aprendizagem – ou seja, metodologias que apresentem estratégias pedagógicas que levem os estudantes à reflexão sobre questões e casos reais da prática estudantil e futura prática profissional.

No entanto, especialmente quanto ao uso do método da casuística como metodologia ativa, cabe apontar que existe certa dificuldade em encontrar casos paradigmáticos. Assim, sugere-se que, antes de se utilizar o modelo da casuística para o ensino, seja realizada vasta pesquisa e seleção de casos que melhor se adaptem a cada contexto. Além disso, é importante oferecer aos alunos momentos de estudo voltados para a conceituação do modelo.

Material suplementar
Referências
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Notas
Declaração de interesses
Declaram não haver conflito de interesse.
Autor notes
Participação dos autores

Daniela Aparecida Azevedo Leite, Juliana Dias Reis Pessalacia, Patrícia Pinto Braga e Camila Maria Pereira Rates participaram de todas as etapas da pesquisa, desde a concepção do projeto, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e versão final a ser publicada. Cissa Azevedo e Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli colaboraram nas etapas de análise e interpretação dos dados, redação do artigo e versão final a ser publicada.

Correspondência. Juliana Dias Reis Pessalacia – Av. Ranulpho Marques Leal, 3.484, Caixa Postal 210 CEP 79620-080. Três Lagoas/MS, Brasil.

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