Resumo: Tratamento e prevenção da obesidade na infância e adolescência são discutidos entre médicos e público leigo. Há poucas informações disponíveis sobre cirurgia bariátrica nessa faixa etária quanto a consequências em longo prazo, mas dados sugerem que esse procedimento é oferecido cada vez mais frequentemente. Surgem questões éticas de extrema relevância relacionadas a conceitos como beneficência, autonomia, capacidade e igualdade. O objetivo deste trabalho é discutir aspectos éticos e biopsicossociais envolvidos na decisão sobre a intervenção cirúrgica para casos de obesidade em crianças e adolescentes. Trata-se de revisão de literatura mediante pesquisa no banco de dados PubMed entre maio de 1994 e maio de 2015, utilizando os termos “ethics” e “bariatric surgery” × “adolescents” × “children”. Verificou-se que o tratamento cirúrgico da obesidade em crianças e adolescentes é controverso. Médicos devem estar atentos ao disponibilizar para pais e pacientes todas as informações atualmente existentes.
Palavras chave: Ética-BioéticaÉtica-Bioética,AdolescentesAdolescentes,ObesidadeObesidade,Cirurgia bariátricaCirurgia bariátrica.
Pesquisa
Ética e aspectos psicossociais em crianças e adolescentes candidatos a cirurgia bariátrica
Recepção: 13 Janeiro 2016
Revised document received: 19 Outubro 2016
Aprovação: 21 Outubro 2016
Nos últimos anos tem havido interesse crescente em relação ao tratamento da obesidade, principalmente na população pediátrica, especialmente porque essa condição tende a se manter até a vida adulta e resultar em problemas clínicos e psicológicos como depressão e baixa autoestima 1. Segundo Barlow, a Academia Americana de Pediatria (AAP) 2 enfatiza a necessidade de identificar e tratar a obesidade em várias idades. Orienta que crianças entre 2 e 18 anos com índice de massa corporal (IMC) entre os percentis 85 e 95 para idade e gênero (avaliados nas curvas de crescimento) estão sob risco de obesidade e devem ser alvo de tratamento. Aquelas com IMC > percentil 95 para idade e gênero são obesas e o ganho de peso deve parar e ser revertido. Com a utilização dos critérios de 2007 da AAP 2, identificou-se aumento entre 10 e 20% da frequência de obesidade em crianças nos últimos 30 anos, com incidência ainda maior em populações de risco (50 a 60%) 3,4.
Apesar de a prevenção da obesidade em crianças e adolescentes receber atenção substancial, a efetividade dessas medidas preventivas é pouco conhecida 5,6. Há várias opções para tratamento de pacientes jovens com obesidade: mudança de estilo de vida, dietas e tratamento farmacológico, mas sua eficácia é reduzida 7-9. Os programas direcionados a mudanças dietéticas e aumento de atividade física produzem juntos perda média de 5% do peso corporal e, em geral, estudos mostram sua baixa efetividade 10-12.
O sucesso da cirurgia bariátrica (CB) em adultos gerou possibilidade de realizá-la também em crianças e adolescentes. No entanto, a intervenção cirúrgica nessa faixa etária apresenta aspectos peculiares. A questão é: a CB deve ser normatizada como tratamento para crianças e adolescentes com obesidade grave? A tentativa é minimizar os problemas de saúde, mas não há dados sobre segurança, evolução e custo-benefício do procedimento nessa faixa etária. Além disso, a pouca maturidade gera problemas em relação à autonomia 13,14.
É preciso entender também que a cirurgia não cura obesidade e que crianças e adolescentes podem não compreender realmente que não se trata de solução, e sim de intervenção que vai limitar suas atividades sociais no que se refere à alimentação. Podem não compreender que deverão aderir à dieta, realizar atividade física e repor vitaminas e outros elementos que podem não ser absorvidos em decorrência do procedimento 13.
O objetivo deste trabalho é discutir aspectos éticos e biopsicossociais envolvidos na decisão sobre a intervenção cirúrgica para casos de obesidade em crianças e adolescentes. Trata-se de revisão de literatura por meio de pesquisa na base de dados PubMed, compreendendo o período entre maio de 1994 e maio de 2015, utilizando-se os termos “ethics” and “bariatric surgery” × “adolescents” × “children”.
O tratamento da obesidade infantil gera inúmeras questões éticas, morais e legais. O significado da obesidade na sociedade ocidental é elemento crucial, que vai além da questão médica, pois o corpo é parte importante da autorrepresentação do indivíduo. Um corpo magro ou esbelto é considerado bonito e interpretado como normal e saudável 15. O controle dos hábitos alimentares passa a representar uma maneira de disciplinar o corpo. Parece haver pensamento disseminado que o indivíduo obeso é aquele que não “se controla” 16, tornando-o responsável primário por complicações decorrentes do peso 17.
Há, pelo menos, dois discursos sobre obesidade que diferem em sua interpretação 17: 1) obesidade não é doença, mas característica individual. É consequência das escolhas individuais e, por isso, o indivíduo assume total responsabilidade; 2) obesidade é doença ou pelo menos fator de risco para outras doenças (hipertensão, diabetes etc.) e deve ser tratada.
Apesar de expressões como “epidemia de obesidade” e a identificação de um gene para obesidade, que se ligam a fatores ambientais e genéticos e dão a entender que ser obeso não é simplesmente uma escolha 18,19, existe a crença disseminada que obesidade é apenas questão comportamental ligada a falta de controle tanto por parte das crianças quanto pelos seus responsáveis legais. Essa crença infere que pessoas obesas são assim porque comem demais e não fazem exercícios, o que gera estereótipos e discriminação 20 como: pessoas com sobrepeso e obesas são preguiçosas, sem motivação, menos competentes e não têm autodisciplina 21.
Estereótipos e preconceitos resultam em discriminação sobre a aparência e afetam a integridade e dignidade de pessoas jovens que são obesas e vivem fase vulnerável e suscetível do desenvolvimento. Também levantam a questão sobre se intervenções farmacológicas ou médicas não seriam soluções para um problema social 22. Nos Estados Unidos (EUA), o grupo de pessoas mais discriminadas é o de obesos, e essa discriminação ocorre de forma legal. Há restrições a locais públicos e discriminação no trabalho 23. Crianças obesas apresentam maior risco de não continuar os estudos 24 devido a diversos fatores: características físicas da escola, com cadeiras e mesas inadequadas para obesos; bullying; falta de oportunidades sociais, como participar dos esportes e brincadeiras; e discriminação por parte dos professores.
Para Christopher Mayes 25, o argumento utilizado por alguns estudiosos do tema de que obesidade é uma escolha, visto que decorre de alimentação errada e pouco exercício, é muito simplista. Os que argumentam que existe escolha colocam consequentemente que o indivíduo “tem que pagar por elas” e que o Estado deve intervir visando diminuir os custos para a sociedade. Porém, Mayes faz um contraponto ao questionar os ganhos da própria indústria que combate a obesidade. Obviamente que o comportamento individual contribui para ganhar peso, mas focar apenas no indivíduo e esquecer fatores genéticos, sociais, culturais, econômicos e ambientais que antecedem o comportamento individual gera estigmatização ainda maior da obesidade.
Segundo Venkatapuram, Bell e Marmot 26, considerável corpo de evidências sugere que saúde em geral e obesidade em particular sejam resultado da maneira pela qual a sociedade se organiza por meio de políticas e práticas econômicas e sociais. Nesse contexto, surge também a questão de a obesidade ser mais prevalente em grupos socioeconômicos menos privilegiados e de etnia não caucasiana, o que pode dificultar o acesso ao tratamento de pessoas pertencentes a minorias 3,27,28.
A obesidade é mais bem entendida como doença cuja fisiopatologia de resposta a fatores ambientais é geneticamente determinada e que, de forma simples, é resultado do desequilíbrio entre consumo e gasto de energia. Atualmente, a regulação da fome, da saciedade e o uso de energia são pouco conhecidos cientificamente 29, e portanto a cirurgia bariátrica surge como solução sintomática que pode ser vista como parte da medicalização da esfera privada, da vida de cada um 27.
Além dos aspectos psicossociais já citados, a obesidade está associada a diversas comorbidades: diabetes tipo II e hiperinsulinemia 30, apneia do sono e hipertensão arterial 31, esteatose hepática 32, miocardiopatia 33 e doença do refluxo gastroesofágico 34. Em longo prazo, pessoas obesas apresentam expectativa de vida menor, aumento do risco de doenças cardiovasculares e aumento do risco de câncer (cólon, próstata e mama) 35. Algumas das complicações já estabelecidas podem ser revertidas com efetiva perda de peso, porém outras não 25-27,36.
Além das questões éticas de beneficência, não maleficência, autonomia e justiça, deve-se considerar que cirurgia bariátrica é tratamento relativamente inovador e suas consequências em longo prazo são desconhecidas 37,38. Tal circunstância deve ser cuidadosamente sopesada, principalmente quando se considera o procedimento na população pediátrica 39.
Algumas informações são de extrema relevância para o entendimento da questão. Entre elas, quais cirurgias estão disponíveis, quais as recomendações das guidelines (diretrizes) no que se refere a indicação e contraindicações da CB, seus pontos controversos e riscos na faixa pediátrica. Há três procedimentos atualmente disponíveis para cirurgia bariátrica:
Brei e Mudd 43 avaliaram as diretrizes norte-americanas e canadenses em relação a cirurgia bariátrica em adolescentes no período compreendido entre 2007 e abril de 2013. Foram sete diretrizes avaliadas, e os autores observaram variações no critério de definição de adolescência. Yermilov e colaboradores 44 definiram faixa etária entre 12 e 18 anos. August e colaboradores 45 definem pelo estadiamento puberal. Barlow 46 usou maturidade física como critério mínimo, mas especificou a idade de 15 anos para meninos e 13 para meninas, como geralmente utilizado. Pratt e colaboradores 42 classificaram pelo alcance de 95% da altura esperada na idade adulta a partir de radiografias e concluíram que esse ponto de corte limita a realização da CB para menores de 12 anos de idade.
Assim, em geral, os autores concordam que maturidade esquelética é recomendável como critério para candidatura de adolescente à cirurgia, dado que as microdeficiências decorrentes do procedimento cirúrgico podem comprometer o crescimento. Outro dado relevante do estudo de Brei e Mudd 43 é a falta de consistência sobre quais comorbidades e em que nível de gravidade devem indicar cirurgia e ainda qual IMC deve ser o ponto de corte. O IMC > 40 kg/m2, independentemente de comorbidades, seria indicativo de CB 40,47, enquanto outras diretrizes 44,45 consideram indicação de cirurgia para IMC > 40 kg/m2 apenas se houver comorbidades graves. Michalsky e colaboradores 41, Pratt e colaboradores 42 e Barlow 46 também usam IMC > 40 kg/m2 com presença de comorbidades, mas também não especificam qual seria seu grau de severidade.
Há os que consideram o IMC > 35 com comorbidades graves indicação de CB em adolescentes 41,44,47, mas a Society of American Gastrointestinal and Endoscopic Surgeons 40 não especifica quão severas devam ser. Em geral, comorbidades incluem diabetes tipo II, apneia obstrutiva do sono, pseudotumor cerebral, esteatose hepática não alcoólica, dislipidemia e comprometimento da qualidade de vida 41,42,44. Depressão é a contraindicação mais considerada, mas se estiver controlada a CB pode ser realizada, assim como em outros quadros psicopatológicos 40-42,45. Gravidez e síndrome de Prader-Willi são critérios de exclusão 45, assim como endocrinopatia não tratada 47.
Inge e colaboradores 48 realizaram o maior estudo sobre complicações relacionadas a CB. Avaliaram 242 adolescentes em cinco centros nos EUA e efeitos adversos foram classificados em maiores (risco de morte) e menores. Durante os primeiros 30 dias do pós-operatório, 8% dos pacientes apresentaram complicações maiores, incluindo obstrução intestinal, sangramento e vazamento da anastomose. Complicações menores (infecção do trato urinário, lesão em órgão sólido, atelectasia, pneumonia, sangramento sem necessidade de transfusão) ocorreram em aproximadamente 15% dos pacientes. Dados do The Bariatric Outcomes Longitudinal Database indicam taxa de 0,13% relativa a mortalidade e de 10,27% decorrente de outras complicações, em geral consideradas menores 49.
A beneficência é o princípio ético que determina que o médico deve agir em benefício do paciente, procurando maneiras de restaurar a saúde e promover o bem-estar 39. Para atender adequadamente a esse princípio, quando a decisão da cirurgia é tomada há que se responder algumas indagações para se verificar as providências adicionais que devem ser tomadas a fim de mitigar possíveis efeitos indesejados do procedimento. 1) Há apoio da sociedade de pediatria/cirurgia para realizar a intervenção em crianças e/ou adolescentes?; 2) o hospital ou serviço que realiza o procedimento dispõe de programa de acompanhamento, indicado tanto antes quanto depois do procedimento?; 3) o cirurgião ou médico clínico a recomenda, e a família e o paciente consentem?
Para Hofmann 13, há três perguntas básicas a serem respondidas no sentido de assegurar a beneficência em caso de cirurgia bariátrica em crianças e adolescentes: 1) a cirurgia bariátrica beneficia adolescentes e crianças?; 2) quais os efeitos em longo prazo?; 3) qual sua eficácia, efetividade e eficiência? Para que seja preservado o princípio da beneficência em caso de CB, o procedimento cirúrgico deve se mostrar superior em seus resultados quando comparado ao tratamento clínico (dietas restritivas, programas de exercícios, terapia comportamental) no que se refere a reversão de problemas médicos e psicológicos decorrentes da obesidade. A violação da beneficência ocorrerá quando crianças e adolescentes com obesidade mórbida não forem submetidos a avaliação pré-operatória adequada das comorbidades. Será igualmente violada se não for tentado tratamento médico/comportamental e se a equipe cirúrgica ou o hospital não apresentar condições para realizar o procedimento e oferecer o acompanhamento necessário após a cirurgia 39.
A associação entre obesidade e aumento da morbimortalidade evidencia a necessidade de tratamento efetivo para a obesidade. No entanto, as atuais intervenções médicas e comportamentais para obesidade mórbida (IMC ≥ 40 kg/m2) raramente resultam em perda efetiva de peso e, quando isso ocorre, a manutenção não é comum em longo prazo 12. Dessa forma, a cirurgia deve ser mais eficaz não somente em relação à redução do peso quando comparada a tratamentos clínicos, mas também quanto à manutenção de seus possíveis efeitos benéficos em longo prazo 13,39.
A CB realizada em adolescentes resulta em redução de 33 a 37% do IMC inicial durante o primeiro ano após sua realização, e estudos sugerem que quanto mais precocemente for realizada, maiores as chances de resultados que se aproximem das metas da “normalidade”. Ou seja, quem é submetido ao procedimento com IMC de 55 kg/m2 deverá chegar, se bem-sucedido, a 35 kg/m2. Da mesma forma, se feita CB em adolescente com IMC de 45 kg/m2, seu resultado esperado será de 30 kg/m2. Como o ponto de corte para indicar a cirurgia no que se refere ao IMC é alto, chega-se na maioria dos casos à obesidade grau I, o que obriga manutenção de dieta, atividade física e acompanhamento por equipe especializada, e essa informação tem que ser reiteradamente repetida 50-52.
Olbers e colaboradores 51, em estudo prospectivo de dois anos em adolescentes submetidos a CB, evidenciaram que a perda de peso se manteve naquele período. Sugerman e colaboradores 38 relataram que 20 adolescentes com IMC médio de 52 kg/m2 perderam em média 36% do IMC, chegando a 34 kg/m2 em cinco anos, o que se manteve por cerca de dez anos após a cirurgia, resultado semelhante aos observados em adultos. Não há informações nesse estudo se após esse seguimento houve ganho de peso. Além disso, o número da amostra foi pequeno.
Revisão sistemática feita por Treadwell, Sun e Schoelles 53 verificou que havia redução significativa do IMC, tanto com banda gástrica ajustável via laparoscópica (LAGB) ou gastroplastia com desvio intestinal em Y de Roux (RYGB). A cirurgia resolveu algumas condições médicas, como hipertensão arterial e diabetes, mas o relato detalhado desses resultados não foi satisfatório. Complicações mais frequentes para a LAGB foram deslizamento da banda e deficiência de micronutrientes, porém também ocorreram erosão da banda, hérnia de hiato e infecções da ferida. Complicações mais graves ocorreram com RYGB, como embolia pulmonar, choque, obstrução intestinal, sangramento no pós-operatório e desnutrição grave 53.
Poucos estudos avaliaram os efeitos psicossociais da cirurgia bariátrica, e resultados são baseados em séries pequenas e seguimento em curto prazo 54. Alguns estudos indicam taxas significativas de depressão e baixa autoaceitação em adolescentes pós-banda gástrica ajustável 55. Quando resultados pós-cirurgia bariátrica não são os esperados, as pessoas podem se sentir envergonhadas e culpadas 56. Isso indica que há necessidade de acompanhamento psicológico antes e depois da CB, além de suporte psicossocial para os subgrupos mais vulneráveis de adolescentes 54.
É pouco o conhecimento de alta qualidade sobre benefícios nessa faixa etária. Se avaliadas as séries não controladas de centros selecionados, parece haver benefício da cirurgia bariátrica, mas faltam evidências sobre a evolução em longo prazo 13,14,39,42. Para Han, Wu e Lean, os riscos da cirurgia bariátrica são consideráveis e sua segurança e eficácia em crianças permanece desconhecida. Assim, a cirurgia deve ser reservada para aqueles mais gravemente obesos (IMC > 50 kg/m2) ou IMC > 40 kg/m2com comorbidades significativas e ainda assim com extrema precaução57.
O respeito à autonomia do paciente é importante do ponto de vista legal e da ética médica. Para que o princípio da autonomia seja preservado, é necessário que o indivíduo tenha competência e receba informações adequadas 58. A decisão sobre a CB em crianças e adolescentes é desafiadora, dada a reduzida autonomia e maior vulnerabilidade desse grupo 59. A cirurgia sempre requer grande confiança entre paciente e médico, pois, inevitavelmente, o paciente perde a autonomia no momento da cirurgia.
Em pacientes pediátricos, a decisão recai sobre os responsáveis legais, que devem dar o consentimento para a cirurgia pois, supostamente, estão em melhor posição para saber o que é melhor para seus filhos. Para os pais, a decisão pela cirurgia pode ocorrer após meses vendo seus filhos tentarem perder peso de forma ineficaz ou após diagnóstico de comorbidade grave, como diabetes tipo II 38. Em todos os casos de indicação de CB é preciso avaliar o real conhecimento dos pais e do paciente sobre o procedimento. Tal avaliação criteriosa é de suma importância porque pode haver expectativa muito otimista sobre o procedimento, baseada em informações da mídia, publicações leigas ou internet. O desejo de ter corpo socialmente aceito e livre de comorbidades pode interferir no entendimento mais profundo dos riscos cirúrgicos.
Pacientes e seus responsáveis devem ter plena consciência da natureza irreversível de algumas técnicas, no caso da gastroplastia com desvio intestinal em Y de Roux, em relação às quais a avaliação e acompanhamento psicológicos são indispensáveis 38. Os pais podem ter diferentes concepções acerca da gravidade da obesidade, além de interesses divergentes quanto ao que deve ser feito. Há os que sequer sabem que o filho apresenta obesidade, e outros que, por suas próprias questões, imaginam que a situação é mais grave do que de fato é 60. Geralmente presume-se que os pais estão na melhor posição para saber o que é melhor para seus filhos, mas isso pode ser questionado no caso de algumas crianças obesas 61.
Diante das pressões sociais sobre pessoas com obesidade e o desejo de superar essa condição, uma questão fundamental a ser ponderada é: a família e o adolescente realmente entendem e retêm as informações escritas e explicadas no informe consentido? Estudo que avaliou adultos submetidos a RYGB em várias etapas após a cirurgia evidenciou que apenas a terça parte respondeu corretamente a questões relativas ao procedimento e suas complicações após um ano de sua realização 62.
Profissionais de saúde tendem a ser pessimistas em relação às habilidades de pessoas obesas em lidar com a situação 63 e frequentemente relutam em recomendar cirurgia bariátrica para crianças 64. Razão para isso pode ser a falta de evidências da efetividade do procedimento e seus resultados em crianças, assim como o receio de complicações 63. Alguns estudos indicam que crenças e valores sobre as causas da obesidade influenciam a visão dos médicos e dos pacientes sobre o tratamento adequado para essa condição, assim como a questão do consentimento livre e esclarecido 13,65.
Para obter consentimento informado, todo o processo deve ser gradual. Isso pode demandar meses e durante esse período pacientes e pais devem se engajar em programas de redução de peso e de modificação comportamental. O engajamento progressivo do paciente e de sua família engloba também consultas simultâneas com o cirurgião para que sejam conhecidas opções cirúrgicas, riscos, complicações e a chance de os objetivos de perda de peso e controle de comorbidades não serem alcançados com a CB. É preciso perceber o grau de desenvolvimento e entendimento do adolescente, seus valores, objetivos e sua capacidade de comprometimento para ponderar sobre seu envolvimento com as demais práticas que devem estar associadas ao procedimento cirúrgico.
O trabalho do assistente social é indispensável para avaliar o contexto familiar, a capacidade da família de dar os suplementos vitamínicos no pós-operatório, disponibilidade para acompanhar o paciente em suas visitas ao grupo médico e a capacidade de supervisão do menor. O adolescente tem que ser capaz de compreender que a mudança de sua alimentação faz parte do processo após a CB, para que os resultados obtidos sejam mantidos, e que possíveis efeitos colaterais podem ser permanentes 39. A hierarquia da intervenção frequentemente demanda primeiro mudança no estilo de vida e tratamento medicamentoso antes da cirurgia 66.
Para Raper e Sarwer 67, são elementos mínimos que devem constar no consentimento informado e ser expostos e discutidos com pais e adolescentes:
Exposição do diagnóstico, incluindo grau da obesidade e extensão das comorbidades em linguagem clara, assim como fisiopatologia da obesidade e suas complicações;
Natureza da cirurgia bariátrica – vídeos podem auxiliar;
Riscos e benefícios da intervenção, incluindo discussão sobre cada complicação e o que isso pode significar do ponto de vista prático (por exemplo, se houver deiscência da anastomose há risco de morte e urgência de reoperação);
O comportamento do paciente deve continuar após o procedimento para que se alcance os objetivos de perda de peso e sua manutenção, assim como a reversão das comorbidades;
Cuidados médicos e cirúrgicos e outras questões no pós-operatório;
Alternativas à intervenção cirúrgica, com seus riscos e benefícios;
Riscos/benefícios de não receber o tratamento cirúrgico/médico;
Custo financeiro tanto da cirurgia quanto das possíveis complicações;
Saber os resultados da equipe que vai realizar o procedimento e compará-los com outros serviços;
Se o paciente será incluído em alguma pesquisa clínica.
O paciente deve ser capaz de compreender os riscos do procedimento e as consequências em longo prazo. É preciso que entenda que a CB não salva a vida do indivíduo imediatamente e que é irreversível (exceto a banda gástrica ajustável), bem como que o sucesso depende da alteração e manutenção dos hábitos alimentares e estilo de vida 68. O consentimento livre e esclarecido deve também conter a informação da irreversibilidade da gastroplastia com desvio intestinal em Y de Roux e que são desconhecidas as consequências do procedimento após vários anos.
Esse princípio admite que todas as pessoas que necessitam da CB devem ter acesso ao procedimento. Entretanto, a cirurgia bariátrica é procedimento de alto custo e pode drenar recursos de outras áreas da saúde. Por outro lado, pode evitar custos futuros em internação, tratamento e medicação de pacientes cuja condição de obesidade poderia ter sido tratada por meio cirúrgico. Intervenções em saúde ligadas a obesidade podem ser prescritas no melhor interesse do bem comum pelo fato de em crianças e adolescentes ser preditiva de problemas significativos de saúde. No entanto, essas intervenções podem se tornar paternalistas e infringirem a autonomia da pessoa. Há muitos outros valores além da saúde e há limites para a invasão ou intrusão com base no bem comum, mesmo na área de saúde 58.
A obesidade é socialmente segmentada. Estudos nos EUA revelam que crianças e adolescentes com menor nível socioeconômico e pertencentes a minorias são mais afetados tanto pelo sobrepeso quanto pela obesidade 3,69. Essas pesquisas indicam que a cirurgia é realizada em menor proporção em pacientes afro-americanos, hispânicos ou com baixo nível socioeconômico com obesidade mórbida. Na população pediátrica, nos EUA, a obesidade ocorre em uma em cada três crianças pertencentes a grupos sociais menos favorecidos, com taxas particularmente altas entre afro-americanos, meninas, hispânicos e indígenas de ambos os sexos 70. Assim, por afetar grupos menos favorecidos, é provável que o acesso a cirurgia por parte de crianças e adolescentes seja desigual, da mesma maneira que ocorre com adultos 70.
Será o Sistema Único de Saúde capaz de arcar com os custos do procedimento cirúrgico para todos que dele necessitem? É possível no Brasil que todos tenham acesso ao procedimento? E ainda: seremos capazes de proceder de forma igualitária no que se refere a tudo que deve preceder a intervenção cirúrgica: aconselhamento, suporte psiquiátrico e psicológico, programa de educação física para perda de peso? São questões amplas e que merecem muita reflexão.
Não há dúvidas entre especialistas no tratamento de obesidade e cirurgiões que adolescentes com comorbidades que não conseguem alcançar peso sadio usando estratégias convencionais devam ser considerados candidatos a CB. Essa decisão deve ser tomada em base individual, com ampla discussão com a família e com a concordância do médico do paciente. Como bem referem Godoy e colaboradores:
A conscientização de pacientes e familiares quanto a todas as etapas do processo e suas implicações de curto e longo prazo é de grande relevância para o êxito do procedimento. Estabelecer relação de corresponsabilidade entre a equipe, o paciente e seus familiares enfatiza o compromisso com a mudança de atitude quanto às escolhas alimentares e hábitos de vida, promovendo as mudanças indispensáveis para alcançar os resultados pretendidos. (…)
A dignidade da pessoa é um dos fundamentos maiores da sociedade e consiste, acima de tudo, em ver o ser humano em sua especificidade para responder adequadamente a suas necessidades. Para alcançar esse objetivo o respeito é o subsídio maior e na prática clínica permite que o paciente possa submeter-se às indicações, sabendo de seus riscos e benefícios e direcionando sua escolha para a opção que melhor lhe convier, considerando conscientemente os princípios cientificamente comprovados e eticamente aceitáveis da medicina 71.
As contraindicações à CB precisam ser conhecidas e consideradas. Tentativas documentadas de perda de peso e suporte familiar adequado são pré-requisitos essenciais. Crianças e adolescentes referenciados para a CB devem ser atendidos em centro especializado com equipe multidisciplinar com experiência em avaliar e manejar comorbidades médicas associadas a obesidade e capacidade de fazer o acompanhamento em longo prazo. Crianças, adolescentes e pais precisam entender a natureza do tratamento cirúrgico e o papel que terão no seu sucesso ou falha e demonstrar que irão aderir às mudanças no estilo de vida que devem ser mantidas. Acima de tudo, família e paciente têm que compreender que CB não é procedimento eficaz em todos os casos e que não é cura para obesidade, mas instrumento disponível em casos selecionados. O controle e a mudança no estilo de vida, porém, persistirão como elementos-chave para a manutenção do peso por toda a vida.
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