Resumo: Para documentar dois mandatos à frente da Sociedade Brasileira de Bioética, os autores fazem retrospectiva da disciplina no país, com a criação da entidade associativa, de revistas científicas, eventos nacionais e internacionais, bem como programas acadêmicos para formação em campos multidisciplinares e divulgar a bioética para a sociedade brasileira, latino-americana e lusófona. Ressalta que desde o início dos debates a bioética brasileira teve sua atuação relacionada estreitamente com a defesa dos direitos humanos. No período de gestão os desafios se relacionavam ao envelhecimento populacional, ao impacto de doenças emergentes/reemergentes, ao aumento da urbanização, ao crescimento da tecnologia, às pressões para diminuir os requisitos éticos para pesquisas envolvendo seres humanos, globalização da economia e da comunicação; somados à grave crise econômica e política internacional, que no Brasil culminou com o impeachment da presidente eleita e reformas privatistas que subtraem direitos dos trabalhadores. Isto tudo determina a pauta para o novo mandato.
Palavras chave: Bioética-Brasil-Direitos humanosBioética-Brasil-Direitos humanos,Decisões-Consciência-InformaçãoDecisões-Consciência-Informação,Responsabilidade Social-Educação-Participação cidadãResponsabilidade Social-Educação-Participação cidadã.
Atualização
Sociedade Brasileira de Bioética: uma bioética de compromissos
Recepção: 8 Abril 2017
Revised document received: 5 Junho 2017
Aprovação: 8 Junho 2017
Embora seja área relativamente nova no Brasil, a bioética no país logo começou a ter relevância em nível nacional e internacional com a criação de revistas, entidades representativas, programas de especialização e de pós-graduação, e a realização de eventos 1. Nas décadas de 1990 e 2000, foi efervescente a divulgação da bioética brasileira, seja nos debates ou na fundamentação epistemológica com novos enfoques em valores éticos e morais de uma sociedade que ficou mais de duas décadas sob ditadura militar 2. Além disso, eram tempos também de construção de um sistema universal de saúde recém-aprovado na nova Constituição 3.
Desde o início, um dos principais pontos de debate da bioética brasileira foi a discussão sobre princípios e valores que não deveriam se restringir à esfera dos conflitos e dilemas da prática clínica e da pesquisa médica, como vinha sendo proposto especialmente nos Estados Unidos 4. A análise era de que a bioética, conforme concebida por Potter 5 em “Bioética: uma ponte para o futuro”, deveria ter preocupação e alcance globais, participando ativamente na luta por condições dignas para todos os seres do planeta.
O Brasil, embora na condição de país “em desenvolvimento”, ainda estava entre aqueles com muitas desigualdades socioeconômicas e precários indicadores na área da saúde. Isso impulsionou muitos debates sobre as condições de vida e saúde da população, com a formulação de novas perspectivas teóricas em relação a princípios e valores morais que deveriam prevalecer nas políticas e programas, sobretudo em relação à saúde, educação, igualdade entre gêneros, questão de cor da pele, sexualidade, entre outros.
Os princípios de eleição, assim como a aplicação desses valores passariam a determinar modos específicos de prover condições dignas de vida para os indivíduos, como a bioética de proteção, que defende uma ética mínima para garantir condições de vida adequadas aos vulneráveis e fragilizados em seus projetos de vida 6. Em outra esfera, a bioética de intervenção aponta a necessidade global e plural de abordar questões bioéticas e morais persistentes ou emergentes na realidade concreta da vida das pessoas, coletividades e países. Seu objetivo é buscar soluções para conflitos sob a ótica da equidade, da justiça e dos direitos humanos universais 7.
Some-se a isso a necessidade de emancipação das pessoas, como preconiza Freire. Portanto, em vez de “empoderamento”, pode-se buscar também uma bioética da emancipação, no sentido atribuído por Paulo Freire, que empregou a palavra com sentido amplo, de libertação e autonomia, exatamente como deve ser usada quando se luta por cidadania, direitos e contra disparidades 8.
Essa emancipação não se dará por si só, nem por concessão, mas será conquistada pela práxis humana, o que demanda luta ininterrupta. Ainda de acordo com Freire, a libertação, por isto, é um parto (…) O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos9.
Esses debates tiveram grande repercussão, uma vez que os conflitos das questões persistentes acumulavam-se aos problemas emergentes, maximizados pela globalização da economia, com a expansão das áreas de comunicação e transporte, a partir da segunda metade do século XX 10. Além disso, surgiram na área da saúde grandes desafios relacionados a doenças de rápida propagação e dilemas relativos ao desenvolvimento de biotecnologias e ao envelhecimento populacional 11,12.
Do ponto de vista ético, o neoliberalismo, especialmente no final daquele século, trouxe novos desafios morais quanto à globalização, criando um mundo complexo, plural e diverso, acentuado por sua proposta de desregulamentação, diminuição da presença do Estado, aumento da concentração da riqueza e aprofundamento das desigualdades no mundo 13.
O 6º Congresso Mundial de Bioética 14, realizado em Brasília em 2002, contemplou a maioria desses debates ao tratar das questões de poder e (in)justiça. Esses debates, por sua vez, foram importantes precursores na fundamentação ocorrida quando da elaboração da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos15, aprovada pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura (Unesco) em 2005.
A bioética brasileira nesse período não só se consolidou como se difundiu ainda mais em espaços de regulação, nas diferentes áreas da vida acadêmica e de serviços, nos setores administrativos e jurídicos do país. Autores e professores de diferentes disciplinas, bem como jornalistas, juristas, religiosos e profissionais de diversas áreas passaram a discutir e publicar análises de casos clínicos, dilemas morais e questões sociais, fundamentando na bioética os debates sobre conflitos e dilemas da vida em sociedade.
Ao tomar posse em 2013, quase vinte anos depois da fundação da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) em 1995, a atual diretoria percebeu que sua missão, além de ter se ampliado, tornara-se mais complexa. Ao considerar as contribuições das últimas duas décadas, era preciso ter em conta o cenário contemporâneo, um mundo conturbado por vários conflitos armados, grandes migrações intercontinentais causadas por guerras e desastres naturais, aumento da pobreza, entre outras questões. Tudo isso acabou por acentuar a disparidade, a desigualdade entre gêneros e o reaparecimento e o surgimento de epidemias 12.
Por outro lado, novos desafios éticos e morais ressurgiram com o neoliberalismo, particularmente o evidente individualismo na forma de ver e pensar a vida em sociedade. Fato observado inclusive durante a crise econômica desencadeada pelos bancos na América do Norte e Europa a partir de 2008. A resposta formulada pelos setores financeiros para enfrentar a crise foi enfatizar a desregulamentação e diminuir a participação do Estado no financiamento de áreas sociais como saúde, saneamento e educação.
É nesse mundo conturbado que encontramos a extensa, diversificada e hipertrofiada rede de comunicação viabilizada pela internet, que, se por um lado, revolucionou o acesso à informação e à troca de ideias, por outro, criou novos dilemas relacionados à confidencialidade e privacidade. Vale citar, como exemplo, os fatos recentes envolvendo o óbito de Marisa Letícia Lula da Silva, ex-primeira dama do país, que se transformou em triste episódio de quebra do direito à privacidade e desrespeito ao paciente 16. De modo geral, o projeto neoliberal provocou mudanças comportamentais significativas, aumentando o individualismo e o conservadorismo, apesar de também ter propiciado maior exposição dos diferentes interesses da sociedade 17.
No Brasil, tanto a bioética como a SBB expandiram-se nesse período, tendo papel estratégico para regulamentar e disseminar comitês de ética em pesquisa com seres humanos, o que ampliou os debates na área de bioética clínica e criou condições estruturantes para formação de pessoal capacitado e programas acadêmicos multidisciplinares. Também houve expressiva participação brasileira no exterior, inclusive com entidades multilaterais e parcerias intercontinentais, o que ajudou a difundir a bioética nos países de língua portuguesa e na América Latina 18,19.
Na década de 2000, o Brasil também passou por período de crescimento econômico com melhor distribuição de renda, destacando-se como um dos poucos países emergentes que conseguiu reduzir a miséria e melhorar os indicadores em relação à fome e à saúde, inclusive com políticas públicas inclusivas de gênero, cor, entre outras 20. No entanto, em 2013 já se notavam sinais importantes da crise econômica que vinha se alastrando a partir dos países ricos desde 2008, desencadeando debates acirrados sobre modelos econômicos e políticas de governo que envolviam toda a sociedade 21.
A SBB, por sua vez, tinha alguns desafios emergenciais não só para manter como ampliar suas atividades perante essa conjuntura complexa. Assim, em 2013, no X Congresso Brasileiro de Bioética, em Florianópolis (SC), tinha tarefas imediatas como a reestruturação da entidade e a manutenção das normas éticas para pesquisas com seres humanos. Exemplificam esses embates pontos controversos relativos à revogação da Resolução CNS 196/1996 que até então normatizava a apresentação e acompanhamento de projetos de pesquisa no país e foi substituída pela nova Resolução CNS 466/12 22,23. Outro ponto importante que ainda permanece em pauta na SBB é a criação da Comissão Nacional de Bioética, ligada diretamente à Presidência da República. O projeto de lei 3.497/2004 ainda está em tramitação na Câmara dos Deputados e continua em regime de urgência aguardando votação no plenário 24.
Nos anos seguintes, outras questões foram incluídas no debate bioético. Entre tantas cumpre ressaltar que o tema sobre a regulamentação das pesquisas clínicas no país ganhou novas dimensões com projeto de lei no Senado (PLS 200/2015), que propõe eliminar ou diminuir várias das conquistas alcançadas com o sistema de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) em 1996. Entre essas propostas está a extinção da Conep e o consequente fim do controle social exercido pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), a autorização para empregar placebo mesmo quando existe comparador eficaz e a significativa diminuição do acesso pós-estudo de medicamentos que sejam mais eficazes nas pesquisas 25.
Essa tem sido luta bastante árdua. De um lado há diferentes entidades que defendem a segurança e os direitos dos participantes de pesquisa e, de outro, alguns pesquisadores, associados a setores da indústria farmacêutica, que propõem a desregulamentação daquilo que eles denominam “burocracia”. Muitos entendem que isso levaria pesquisas com seres humanos aos patamares da década de 1980, época em que houve diversas denúncias sobre questões técnicas e éticas relativas a pesquisas realizadas no Brasil.
Apesar do retrocesso que representa em termos de garantias para o participante em estudos clínicos, esse projeto de lei foi aprovado no Senado, com pequenas e insuficientes modificações sobre o uso do placebo e concessão de tratamento pós-estudo. Além disso, permanece a supressão do sistema CEP/Conep, e a transferência de responsabilidade do sistema para uma das secretarias do Ministério da Saúde. Depois de excluir direitos importantes, o projeto segue tramitando em 2017 na Câmara dos Deputados sob a denominação PL 7.082/2017 26. Certamente, esse ponto exigirá muita luta nos próximos anos, para que se possa enfrentar os interesses do grande capital, particularmente os da indústria farmacêutica, um dos setores mais lucrativos do mundo 13.
Enquanto isso, outros assuntos foram incluídos na pauta bioética, como a questão das viroses emergentes e reemergentes, já que o número de casos de dengue, zika, chikungunya e febre amarela aumentou. Em relação ao vírus da zika, debate-se sobre o direito de a mulher interromper a gravidez devido à má-formação fetal; o tema também quase causou crise diplomática quando um grupo de pesquisadores internacionais propôs que o país adiasse os Jogos Olímpicos Rio 2016. A SBB se pronunciou de maneira incisiva e baseada em evidências contra esta proposta 27.
Outros temas bioéticos prementes são o envelhecimento da população e o processo de urbanização da sociedade, os avanços da biotecnologia com repercussão no prolongamento da vida, os transplantes de órgãos, o projeto genoma, o uso de transgênicos, os melhoramentos humanos e os debates sobre autonomia, especialmente aqueles relacionados às diretivas antecipadas de vontade 28.
Além disso, temos os efeitos do neoliberalismo sobre problemas crescentes relacionados à confidencialidade e ao uso da internet. E, como pano de fundo, o aprofundamento da crise econômica e aumento da concentração da riqueza e da desigualdade no mundo, o que tem gerado mais conflitos e retrocessos relativos às políticas equitativas e de direitos humanos 12,13.
Foi nesse cenário de crise e acirramento de debates éticos e morais sobre projetos para a sociedade que a maior parte da diretoria da SBB foi reconduzida para o mandato 2015-2017. Nesse período as condições estruturais da SBB melhoraram, mas sua pauta continuou praticamente subordinada à crise econômica e ao caos político e institucional que assola o país.
Essa situação se agravou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o que radicalizou e dividiu politicamente os principais debates no país, dificultando a isenção e a imparcialidade necessárias para a busca de informações fidedignas e de soluções justas e equitativas 29. Embora parte da mídia tire o foco dos grandes problemas nacionais concentrando-se apenas na corrupção, aos poucos outras pautas importantes surgem mesmo que de forma tímida, como, por exemplo, os riscos do projeto neoliberal privatista adotado pelo vice-presidente Michel Temer 30.
Inicialmente, a sociedade brasileira ficou paralisada pelo discurso da crise econômica e da necessidade de medidas de austeridade financeira. Mas aos poucos começa a reagir contra as propostas que preconizam cortes orçamentários nas áreas da saúde, educação e saneamento, além da perda de direitos trabalhistas com a reforma previdenciária.
Diante disso, parte da população começou a perceber que os valores centrais da nova proposta estavam relacionados com o aprofundamento do projeto neoliberal, com o incremento de medidas de desregulamentação, privatizações das instituições e terceirizações na área dos recursos humanos. O ajuste fiscal, que afetará principalmente a população mais vulnerável, nem ao menos mencionou a necessidade urgente de renegociar a dívida pública brasileira, pagamento que beneficia apenas bancos e rentistas e consome as verbas destinadas às áreas sociais 31,32.
Em todo o mandato, a diretoria da SBB esforçou-se para não se envolver em políticas partidárias e concentrou-se nas análises éticas e/ou bioéticas das políticas governamentais que foram se interpondo no cenário brasileiro. Assim, além das já citadas propostas que afetam direitos trabalhistas e fragilizam as condições de vida, outras situações, envolvendo condições clínicas, sanitárias e exercício profissional, entremearam esse cenário de preconceito e partidarização.
Entre os grandes problemas de saúde pública que se acentuaram neste período – e que tendem a piorar com o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e com a proposta aprovada para o teto dos gastos que afetarão essas áreas 33 — cumpre lembrar as epidemias transmitidas pelo Aedes aegypti, que podem incluir casos extremamente graves e complexos como a síndrome de Guillain-Barré ou a microcefalia.
A SBB tem papel fundamental na proteção dos direitos humanos e da dignidade das pessoas. Essa tarefa a mantém em constante debate, posicionando-se e difundindo seu ponto de vista em defesa da cidadania. Além disso, deverá cada vez mais atuar com os movimentos sociais, conselhos representativos de saúde, educação e conselhos de classe para modificar a situação de inequidade, discriminação e violência de gênero, raça, orientação sexual, entre outras questões. É imprescindível que também enfrente problemas advindos do envelhecimento populacional e da transição epidemiológica que se acentuará nos próximos anos.
É essencial manter uma posição firme e clara para estabelecer os direitos sexuais e reprodutivos, ou seja, manter discussão transparente sobre sexualidade, diversidade e contra a violência nos diversos níveis de ensino. A SBB, junto com o Conselho Nacional de Saúde, a sociedade civil e outras entidades, continuará a se posicionar a favor da manutenção do sistema CEP/Conep e contra as modificações propostas na regulamentação de pesquisa clínica no Brasil que diminuam os direitos dos participantes.
Os autores declaram ter contribuído igualmente para a elaboração do artigo.
Correspondência. Regina Ribeiro Parizi Carvalho – Rua Dr. Diogo de Faria, 1.311, apt. 51, Vila Clementino CEP 04037-005. São Paulo/SP, Brasil.