Resumo: Violência doméstica é o tipo mais comum de violência contra a mulher e resulta em sequelas nas esferas física, emocional, familiar e econômica, constituindo problema de saúde pública. Porém, a questão é tratada de maneira negligente pelos profissionais de saúde, o que contribui para sua invisibilidade. Baseado em revisão da literatura, este estudo objetivou identificar as principais dificuldades, incluindo conflitos éticos, encontradas pelos médicos na abordagem de pacientes vítimas desse tipo de violência. Os obstáculos elementares foram agrupados em três grandes eixos: questões relacionadas ao profissional de saúde; estrutura do sistema de saúde; e aspectos das vítimas de violência. Concluiu-se que o maior entrave advém do próprio profissional de saúde e envolve fatores que variam desde formação inadequada até a ocorrência de conflitos morais e éticos que culminam na culpabilização e responsabilização das vítimas pela situação de violência em que se encontram.
Palavras chave: Violência contra a mulherViolência contra a mulher,Violência domésticaViolência doméstica,Pessoal de saúdePessoal de saúde,MédicosMédicos,Gênero e saúdeGênero e saúde,Saúde públicaSaúde pública.
Resumen: La violencia doméstica es el tipo de violencia más común contra la mujer y da lugar a secuelas en la esfera física, emocional, familiar y económica, constituyéndose en un problema de salud pública. Sin embargo, la cuestión es tratada de manera descuidada por parte de los profesionales de la salud, lo que contribuye a su invisibilidad. Basado en una revisión bibliográfica, este estudio tuvo como objetivo identificar las principales dificultades, incluyendo los conflictos éticos, encontradas por los médicos en el abordaje de pacientes víctimas de este tipo de violencia. Los obstáculos principales fueron agrupados en tres grandes ejes: cuestiones relacionadas con el profesional de la salud; estructura del sistema de salud; y aspectos de las víctimas de violencia. Se concluye que el mayor obstáculo adviene del propio profesional de salud e involucra factores que van desde la formación inadecuada hasta la presencia de conflictos morales y éticos que culminan en la culpabilización y la responsabilización de las víctimas por la situación de violencia en la que se encuentran.
Palabras clave: Violencia contra la mujer, Violencia doméstica, Personal de salud, Médicos, Género y salud, Salud Pública.
Abstract: Domestic violence is the most common type of violence against women, resulting in sequelae in the physical, emotional, family, and economic domains, constituting a public health problem. However, the issue is treated negligently by health professionals, which contributes to its invisibility. Based on a review of the literature, the objective of this study was to identify the main difficulties, including ethical conflicts, found by physicians in the approach to patients who are victims of this type of violence. The basic obstacles are grouped in 3 main axes: issues related to the health professional, to the structure of the health system and to the victims of violence. It is concluded that the greatest obstacle comes from the health professionals themselves, and involves factors ranging from inadequate training to the occurrence of moral and ethical conflicts that culminate in blaming and accountability of the victims for the situation of violence in which they were found.
Keywords: Violence against women, Domestic violence, Health personnel, Physicians, Gender and health, Public health.
Pesquisa
Conflitos éticos e limitações do atendimento médico à mulher vítima de violência de gênero
Conflictos éticos y limitaciones de la atención médica a las mujeres víctimas de violencia de género
Ethical conflicts and limitations of medical care for women victims of gender violence
Recepção: 24 Abril 2017
Revised document received: 4 Outubro 2017
Aprovação: 18 Novembro 2017
A desigualdade de gênero se perpetua ao longo da história e se reflete nos discursos hierárquicos masculinos sobre a mulher, que recaem particularmente sobre o corpo feminino 1. Sabe-se que uma das mais brutais exteriorizações dessa desigualdade é a violência contra a mulher (VCM), que gera grandes repercussões em sua vida e, principalmente, em sua saúde 2. Tendo em vista que a violência é ato de desrespeito à dignidade humana, trata-se de tema que deve ser refletido à luz dos princípios bioéticos 3.
De acordo com a Declaração sobre Eliminação da Violência contra a Mulher4, da Organização das Nações Unidas, define-se essa forma de violência como qualquer ato de violência baseada no gênero que resulte, ou possa resultar, em sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, incluindo ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade, seja na vida pública ou privada4.
O tipo de VCM mais comum no mundo é a doméstica e familiar 5-7. Segundo a Lei Maria da Penha 8, trata-se de qualquer ação ou omissão baseada em gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial em âmbito familiar, doméstico (com ou sem vínculo familiar), ou quando perpetrada por parceiro íntimo. Segundo o estudo “WHO Multi-country study on women’s health and domestic violence against women” 9, realizado em dez países entre 2000 e 2003, de 15% a 71% das mulheres foram vítimas de algum tipo de violência física e/ou sexual cometida por parceiros íntimos em algum período da vida.
Nas últimas três décadas, a violência contra mulher tem sido gradativamente reconhecida como problema de saúde pública pela comunidade internacional 4,5,9-11. Segundo relatório emitido pela Organização Mundial da Saúde 12, a violência gera grande repercussão na saúde, não só por seu efeito direto sobre as vítimas, mas sobre os próprios serviços de saúde, exigindo do setor público e dos profissionais da área ações que visem minimizar suas consequências.
As sequelas da VCM atingem dimensões significativas tanto na esfera física quanto na emocional, familiar e econômica. Mulheres em situação de violência recorrem às unidades de saúde com diversas queixas acerca dos agravos decorrentes, como lesões resultantes de espancamento, dores crônicas, depressão e baixa autoestima.
Entretanto, os profissionais de saúde, na maioria das vezes, não percebem ou não documentam a ocorrência de tal episódio violento 9,13-16. O estudo de Schraiber e D’Oliveira 17, realizado em São Paulo, identificou que 57% das mulheres atendidas em unidade de atenção primária relataram algum caso de violência física na vida. No entanto, somente 10% dos eventos haviam sido registrados em prontuário.
Estudo aponta que a maioria das mulheres vítimas de violência doméstica recorre a serviços de saúde com sintomas físicos e oculta dos profissionais a ocorrência da violência 18. Dessa maneira, a mulher não relata a agressão, e da mesma forma os profissionais não a questionam, evidenciando a precária comunicação na relação médico-paciente, o que contribui para a invisibilidade da questão 2,19.
Além disso, identifica-se como um dos principais problemas sobre a dificuldade que os profissionais de saúde, particularmente médicos, têm em lidar com as vítimas de violência de gênero o fato de o tema não ser abordado de maneira adequada durante a formação profissional. Essas questões, quando discutidas na graduação, não costumam ser contextualizadas política e socialmente, sendo abordadas tradicionalmente no modelo fragmentado biologicista, em que não há correlação da saúde com a realidade social. Assim, os profissionais sentem-se paralisados diante de questões subjetivas como fragilidade emocional e desproteção, comuns em vítimas de violência doméstica 2,15,20.
Alguns estudos apontaram outros fatores que também contribuem para a ineficiência da atuação médica em relação à violência. Por exemplo, escassez de tempo, receio de insultar a vítima, visto que se trata de “assunto particular”, e sentimento de impotência diante de situação em que é impossível controlar as atitudes dos pacientes 21-24. Além disso, a brutal dissemelhança que normalmente existe entre a realidade do médico e a situação de risco das usuárias dificulta que o profissional entenda a violência como problema real de saúde 20,23.
Ademais, outros empecilhos bloqueiam a percepção e o direcionamento dos casos de VCM. São eles: desconhecimento dos médicos acerca dos locais adequados para encaminhamento das mulheres vítimas de violência 15,24, medo de afetar a segurança pessoal, recusa em se envolver com burocracia judicial e descrença de que violência doméstica conste no escopo das unidades de saúde 24.
Diante desse quadro, os objetivos desta pesquisa foram identificar as principais dificuldades e limitações encontradas pelos profissionais de saúde na abordagem de mulheres vítimas de violência doméstica, bem como detectar possíveis conflitos éticos associados ao atendimento dessas pacientes.
Trata-se de revisão narrativa descritiva cujo levantamento foi realizado entre março e julho de 2016 nas bases de dados de pesquisas Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), PubMed e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Todos os descritores utilizados na busca dos artigos foram pesquisados nos Descritores em Ciências da Saúde.
A estratégia de busca consistiu em combinar todos os descritores primários “profissionais de saúde”, “médicos”, “gênero e saúde”, “saúde da mulher” e “serviços de saúde da mulher”, utilizando o filtro “and”, com um dos descritores secundários “violência contra a mulher”, “violência doméstica”, “maus-tratos conjugais” e “mulheres maltratadas”. Dessa maneira, em cada base de dados realizaram-se quatro buscas.
Os critérios de inclusão consideraram publicações em português, inglês e espanhol; artigos originais ou de revisão, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Foram excluídos os artigos que não discutiam a atuação dos profissionais de saúde em relação à violência contra mulher e aqueles que abordavam apenas os demais tipos de violência intrafamiliar. Após aplicação de tais critérios, obteve-se total de 16 artigos, que foram lidos e agrupados de acordo com a temática envolvida. Durante a análise desses artigos, também se verificou quais princípios bioéticos poderiam não ser respeitados durante os atendimentos.
Os artigos foram selecionados mediante leitura exploratória, e para organização e registro do material elaborou-se quadro contendo as principais dificuldades encontradas pelos profissionais de saúde no atendimento a mulheres vítimas de violência. As publicações foram sistematizadas no Quadro 1 (anexo), incluindo título e método empregado.
A amostra desta pesquisa abarca 16 artigos. O ano de publicação dos textos analisados compreendeu o período entre 1997 e 2014, sendo a maioria publicada nos últimos cinco anos, o que denota a crescente preocupação em relação ao tema. No que se refere ao tipo de estudo, há uma dissertação, uma tese, e todos os outros são artigos originais.
Com relação ao método escolhido, onze artigos eram de cunho qualitativo, dois qualiquantitativos, um descritivo, um analítico e outro quantitativo e descritivo. Percebeu-se preferência pela análise qualitativa, que pode ser explicada pelo fato de se tratar de tema interdisciplinar, que perpassa, por exemplo, esferas sociais, científicas e bioéticas, bem como pelo fato de descrever aspectos subjetivos, como emoções e sentimentos.
A análise dos artigos permitiu definir três eixos principais com relação aos obstáculos encontrados pelos profissionais no atendimento de mulheres em situação de violência. O primeiro deles versa sobre profissionais de saúde: percepções pessoais, atitudes, formação e capacitação, barreiras pessoais e sentimentos gerados pela violência. O segundo aborda a situação do sistema de saúde e sua articulação com demais serviços disponíveis para tratar e acolher as mulheres em situação de violência. Por fim, o terceiro eixo contém aspectos relacionados às usuárias do sistema de saúde vítimas de violência. Os elementos apontados em cada eixo serão discutidos detalhadamente a seguir.
Notou-se que 14 artigos elencaram aspectos enquadrados neste eixo, sugerindo que grande parte da dificuldade encontrada ao lidar com casos de VCM está centralizada no próprio profissional de saúde.
Um dos principais obstáculos para lidar com a VCM é o despreparo e a formação inadequada desses profissionais, como evidenciado em oito artigos, incluindo neste aspecto tanto formação acadêmica quanto capacitação profissional. Identificou-se que o padrão de formação dos profissionais é predominantemente baseado no modelo biologicista fragmentado, incompatível com assistência adequada em casos de VCM. Além disso, notou-se precário conhecimento dos profissionais sobre serviços disponíveis para encaminhamento das vítimas, o que denota a falta de cuidado dos serviços de saúde em habilitar profissionais para lidar com a questão 21,25-31.
É também evidente a invisibilidade, verdadeira ou aparente, da VCM para os profissionais de saúde. Em geral, as mulheres não se queixam da violência e buscam atendimento, na maioria das vezes, devido a lesões físicas. Assim, os profissionais costumam tratar as lesões clínicas sem identificar a mulher como vítima de violência de gênero 30,31. Quando a violência é percebida pelos profissionais, pela aparência, local ou tipo da lesão, é comum que ignorem o fato, não abordando a questão durante a consulta.
Isso pode ser interpretado como violência institucional, visto que os profissionais não trabalham no sentido de romper o ciclo de violência ao qual a paciente está sujeita. Ao se colocarem alheios à situação, contribuem ainda mais para a continuidade da opressão feminina 20,23,26,29. Ademais, a omissão do profissional de saúde quanto à problemática demonstra o descumprimento de seu dever moral de agir em benefício da vítima, descrito pelo princípio da beneficência.
Alguns estudos chamaram atenção para o julgamento de valor que os profissionais fazem em relação às vítimas, justificando e naturalizando a violência pela estratégia de culpabilizar as pacientes 28,29,32-35. Da mesma forma, outros autores observaram a imposição de valores dos profissionais de saúde a seus pacientes 21. Outras questões morais e éticas também foram apontadas em estudo que discutia aborto em vítimas de estupro, no qual se observou grande dificuldade de aceitar a interrupção da gravidez pelos profissionais de saúde, que responsabilizam as vítimas pela violência sofrida 33. Nesse sentido, nota-se desrespeito dos profissionais à autonomia das pacientes, tendo em vista que esse princípio preconiza a priorização dos valores e preferências do indivíduo na tomada de decisões diagnósticas e terapêuticas.
Outra questão que compõe este eixo é o medo e a insegurança que assolam os profissionais de saúde, sendo barreira pessoal para enfrentar a VCM. Nos estudos levantados, os respondentes referiram, principalmente, receio de sofrer represálias dos agressores 23,27. Muitos dos profissionais que participaram dos estudos revelaram se sentir impotentes e frustrados diante de tais situações, visto que o tratamento clínico das lesões não é capaz de solucionar esse problema multifatorial 20,23,25,27,33. Ademais, afirmaram que uma das maiores dificuldades é lidar com fatores associados, que em muitos casos são os desencadeadores da violência, como o uso de drogas e narcotráfico 35.
Quanto à classe profissional (médicos e enfermeiros), constataram-se diferenças significativas quanto às representações sobre a violência e atuações entre os dois grupos 23,30,34,36. Identificou-se também que a maioria dos profissionais desconhece os aspectos epidemiológicos da VCM, o que contribui para a invisibilidade da questão; no entanto, enfermeiros tinham maior capacitação para lidar com os casos 31.
Com relação à identificação da VCM apenas como problema de segurança pública, a maioria dos médicos participantes entendia que essa questão não deve ser abordada pelos serviços de saúde e declararou-se capaz de identificar esses casos a partir de sinais e sintomas clínicos, associados a questões familiares e comprometimento mental das pacientes 23,34. Já os enfermeiros participantes do mesmo estudo entendiam essa violência como problema “particular”, acreditando assim que não deviam intervir diretamente para resolver a questão.
Resultado semelhante foi constatado com enfermeiros participantes de outro estudo, os quais declararam que a VCM não deve ser abordada de maneira direta 36. Para outro autor, parte dos médicos referiu não conhecer os recursos disponíveis para as vítimas de violência, e afirmou confiar a tarefa à enfermagem 27.
Por outro lado, o poder e a eficiência da Estratégia Saúde de Família (ESF) foram destacados na identificação e no manejo de casos de violência doméstica 35,37. Em ambos os estudos o papel dos agentes comunitários de saúde (ACS) foi apontado como fundamental para o sucesso na conduta dos casos, o que pode ser atribuído à oportunidade que os ACS têm de detectar indícios de violência, visto que entram em contato direto com o ambiente em que pacientes vivem.
No entanto, o primeiro estudo destacou também a atuação de assistentes sociais e psicólogos e identificou menor relevância participativa de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem na abordagem e resolução dos casos 35. Já no segundo estudo, enfermeiros protagonizaram identificação, conduta e atividades preventivas na questão da VCM 37.
Fonseca e colaboradores 33 encontraram resultados que contrapõem os citados anteriormente, assinalando a naturalização da violência pelos ACS e também sua fragilidade. Isso porque esses profissionais fazem parte da mesma comunidade das vítimas e dos agressores e não são amparados por órgãos que os resguardem para que interfiram ativamente nas situações de VCM.
Um dos estudos identificou maior entendimento de médicos e enfermeiros da ESF sobre a dinâmica social da violência, associando sua etiologia a fatores externos, como uso de drogas e álcool, e sua respectiva consequência ao status social e à saúde da mulher, que tende a se tornar submissa, dependente e com baixa autoestima 34. Resultado análogo foi observado por outro autor 36.
Neste eixo, observou-se notória convergência da maioria dos artigos, os quais apontam para a precariedade do sistema de saúde, que dificulta ainda mais a resolução dos casos de VCM. Quatro estudos apontaram que o modelo de atendimento médico vertical e fragmentado é inadequado ao atendimento das mulheres em situação de violência 20,30,31,34. Realizado sem contextualização biopsicossocial da paciente, o atendimento torna-se empecilho ao cuidado humanizado e acolhedor.
Além disso, vários trabalhos destacaram outras lacunas no funcionamento do sistema de saúde, como ausência da contrarreferência dos casos, o que causa falsa sensação de resolutividade após os encaminhamentos 20,23,28,29,31,34,37. Da mesma forma, a inoperância do princípio de integralidade do atendimento e a ausência de protocolos específicos padronizados para auxiliar os profissionais a conduzir os casos também são fatores associados ao mau funcionamento do sistema em relação à VCM.
Existe também a necessidade de manter equipes multidisciplinares disponíveis para atender essas mulheres e de criar rede intersetorial que articule serviços de segurança pública, de saúde da mulher e de atenção psicológica, possibilitando assim a descentralização e a resposta efetiva ao problema.
Com relação à estrutura física dos serviços de saúde que recebem as mulheres vítimas de violência, entre outros casos, diversos estudos constataram que as unidades de saúde são fisicamente inadequadas para a dinâmica de atendimento 20,25,28,29,31. Salas pequenas, ausência de privacidade, além da falta de espaço reservado para tratar das questões dessas pacientes, visto que muitas mulheres se sentem envergonhadas em compartilhar a situação, dificultam a conversa franca. Ademais, esses autores pontuaram a falta de tempo dos profissionais como fator limitador do atendimento adequado e mais humanizado a essas pacientes.
Em geral, observa-se que esses achados transgridem o conceito de Justiça, uma vez que os estudos levantados apontaram para escassa procura em atender as necessidades das vítimas de modo a respeitar suas peculiaridades, liberdade de expressão e interesses.
Nos estudos que discutiram percepção das mulheres sobre representações de gênero e a questão da violência, identificou-se o fenômeno da naturalização e banalização da violência pelas pacientes 31,34,37. É importante notar que esse fato foi também identificado na percepção de alguns profissionais. Pode-se supor que essa percepção partilhada pelos dois grupos decorra da banalização da violência contra as mulheres na sociedade brasileira, tal como retratam de modo abundante os meios de comunicação.
No que concerne à procura de ajuda pelas pacientes em situação de violência, percebeu-se que a maioria das mulheres não vê as unidades de saúde como locais aos quais podem recorrer 28, e quando os procuras, devido a lesões físicas, ocultam a ocorrência da violência 26,31. Já outro estudo identificou que a maioria das mulheres acredita que a violência doméstica é problema grave de saúde e que caberia aos médicos o rastreio ativo durante o atendimento 37.
Cerca de 70% das mulheres que participaram desse estudo declararam que contariam ao médico sobre a ocorrência da violência caso ele perguntasse. No entanto, apenas 12% do total de 406 mulheres já foram questionadas por médicos ou enfermeiros sobre a ocorrência de agressão. Com relação à prevalência de violência entre diferentes níveis sociais e etnias, esse mesmo estudo não encontrou diferenças significativas 37.
Esta revisão da literatura permitiu sistematizar as dificuldades encontradas pelos profissionais de saúde no atendimento a mulheres vítimas de violência de gênero, as quais contribuem para a invisibilidade da problemática. Nesse sentido, pode-se definir que o maior entrave está no próprio profissional de saúde e envolve questões que variam desde a formação inadequada até a ocorrência de conflitos morais e éticos que culminam em culpabilização das vítimas pela situação de violência sofrida. Esse foi o maior conflito levantado, visto que a violência perturba o estado de saúde de quem a sofre, afetando indiretamente os profissionais de saúde, que devem garantir o estado de bem-estar dos pacientes, de acordo com o princípio bioético da beneficência 38.
Pôde-se notar também a violação dos princípios de justiça e autonomia, visto que as vítimas são privadas de atendimento condizente com suas particularidades e, em muitos casos, têm suas preferências e valores morais julgados e, sobretudo, colocados em segundo plano pelos profissionais que as assistem. Ademais, delinearam a precária estruturação do sistema de saúde e as representações sociais de violência por parte das vítimas como outros aspectos que dificultam a abordagem.
Tendo em vista a relevância da problemática, conclui-se que há na literatura poucos estudos que relacionem a questão da saúde com a violência, limitando assim reflexões mais aprofundadas sobre o assunto. Nesse sentido, ressalta-se a importância de mais estudos sobre o tema e espera-se que este trabalho contribua para o conhecimento a partir dos achados pontuados.

Angela Alves Correia de Souza foi responsável pelo levantamento da amostra, pela análise crítica das publicações e redação final do artigo. Raquel Barbosa Cintra orientou o projeto e colaborou com sugestões e correção do artigo.
Correspondência. Angela Alves Correia de Souza – Rua Monte Negro, 73, Jardim Santo Antônio CEP 06126-030. Osasco/SP, Brasil.
