Resumo: A falta de rigor ético e metodológico no meio acadêmico evidencia a necessidade de mudanças na educação em saúde a fim de restabelecer boas práticas científicas. Esta pesquisa foi motivada pela carência de artigos brasileiros que relacionem a promoção da integridade científica à formação dos profissionais de saúde por meio da análise de diretrizes curriculares e códigos de ética profissional. Assim, foram analisadas as diretrizes curriculares e os códigos de ética de seis áreas de ciências da saúde: medicina, enfermagem, farmácia, nutrição, odontologia e biomedicina. Observou-se que, de modo geral, tanto as diretrizes quanto os códigos não contemplam termos relacionados à integridade científica, divulgação científica, estímulo à pesquisa, plágio e manipulação de dados.
Palavras chave: Educação em saúdeEducação em saúde,Códigos de éticaCódigos de ética,MétodosMétodos,Ética em pesquisaÉtica em pesquisa,Temas bioéticosTemas bioéticos,Experimentação humanaExperimentação humana,BioéticaBioética.
Resumen: La falta de rigor ético y metodológico en el medio académico evidencia la necesidad de cambios en la educación en salud con el fin de reestablecer las buenas prácticas científicas. Esta investigación estuvo motivada por la carencia de artículos brasileños que relacionen la promoción de la integridad científica con la formación de los profesionales de salud a través del análisis de las directrices curriculares y de los códigos de ética profesional. Así, se analizaron las directrices curriculares y los códigos de ética de seis áreas de ciencias de la salud: medicina, enfermería, farmacia, nutrición, odontología y biomedicina. Se observó que, de modo general, tanto las directrices como los códigos no contemplan los términos relacionados con la integridad científica, la divulgación científica, el estímulo a la investigación, el plagio y la manipulación de datos.
Palabras clave: Educación en salud, Códigos de ética, Métodos, Ética en investigación, Discusiones bioéticas, Experimentación humana, Bioética.
Abstract: The lack of ethical and methodological rigor in the academic environment demonstrates the need for changes in health education in order to reestablish good scientific practices. This research was motivated by the lack of Brazilian articles that relate the promotion of scientific integrity to the training of health professionals through the analysis of curricular guidelines and codes of professional ethics. Thus, the curricular guidelines and codes of ethics of six fields of health sciences were analyzed: medicine, nursing, pharmacy, nutrition, dentistry and biomedicine. For that, a documentary and descriptive research was carried out. From this, it was observed that in general, both the curricular guidelines and the codes do not include the descriptors selected in the DeCS regarding scientific integrity, scientific dissemination, research promotion, plagiarism and data manipulation.
Keywords: Health education, Codes of ethics, Methods, Ethics, research, Bioethical issues, Human experimentation, Bioethics.
PESQUISA
Integridade científica na educação de profissionais de saúde
La integridad científica en la educación de profesionales de la salud
Scientific integrity in the education of health professionals
Recepção: 23 Outubro 2017
Revised document received: 06 Abril 2018
Aprovação: 07 Abril 2018
A integridade científica é compreendida como o cumprimento dos princípios éticos e legais para elaboração, condução e publicação de pesquisas. Trata-se de aspectos como busca pela imparcialidade durante o desenvolvimento da pesquisa, legitimidade dos dados e resultados obtidos, estabelecimento correto de autoria e coautoria, bem como respeito às normas relativas a direitos autorais 1.
O conceito de educação em saúde deve ir além do domínio técnico e científico da área, incluindo interesses de relevância social, relacionados à saúde da população e à ética na prática laboral e no desenvolvimento de pesquisas. O Ministério da Saúde 2, por meio do Departamento de Gestão da Educação na Saúde, participa da proposição de projetos com repercussão no ensino e na gestão setorial de saúde, de modo que a educação dos profissionais inclua a formação acadêmico-científica, ética e humanista para o desempenho técnico-profissional 3.
A ética em pesquisa deve fazer parte desse contexto e contemplar a integridade científica. O caminho trilhado para o acesso ao conhecimento não deve se desvincular de tal integridade, pois o conjunto de deveres éticos que abrangem o cotidiano do pesquisador deve considerar os valores morais e éticos da sociedade, preservando os direitos dos sujeitos da pesquisa 1.
As recentes ferramentas tecnológicas facilitam práticas de fraude e falsificação, que têm sido tão frequentes a ponto de se aproximar da banalização da desonestidade acadêmica 4. Este fato é perceptível em casos de plágio, manipulação de dados, inclusão indevida de autoria e outros problemas que reduzem a confiabilidade das publicações 5. Além disso, em decorrência da grande quantidade de trabalhos que não contemplam a integridade científica, a ética em pesquisas tem sido tema relevante no cenário internacional de publicações acadêmicas.
A preocupação com a integridade dos dados científicos tem aumentado desde a década de 1980, especialmente nos Estados Unidos, onde casos de estudos forjados e pesquisas com dados falsificados afetaram negativamente a comunidade científica. Estas ocorrências estimularam o governo norte-americano a investir no controle da qualidade das pesquisas científicas no país, por meio do Office of Research Integrity, departamento responsável por fiscalizar e supervisionar pesquisas científicas financiadas pelo governo e investigar suspeitas e denúncias de fraude 6.
Mesmo com a fiscalização constante do governo, ainda há casos que negligenciam a integridade científica nos Estados Unidos. São conhecidos os casos de registro de medicamentos com base em dados manipulados que contribuem para minar a credibilidade da comunidade científica de modo geral, e mais especificamente a confiabilidade de pesquisadores envolvidos em conflitos de interesse com indústrias farmacêuticas. Um exemplo é a situação em que o pesquisador tem acesso aos dados de sua pesquisa, mas não os detém legalmente porque, por razões contratuais, a informação pertence à indústria farmacêutica transnacional que dispõe do direito de dar a finalidade que desejar a tais dados 7.
A partir dos anos 2000 essa preocupação aumentou em outros países, como a China, onde diversos pesquisadores cometeram deslizes éticos no meio acadêmico 8. Durante os anos 1980, houve crescimento significativo do investimento em pesquisas científicas e tecnológicas na China, mas ao final da década de 1990 casos de artigos científicos copiados integralmente incentivaram a preocupação crescente com a ética entre estudantes e cientistas. Isso motivou o governo a investigar pesquisas que financiava, constatando má conduta em pelo menos 60% delas 8.
Alguns países demoraram um pouco mais para se envolver nessa discussão que marcou o cenário internacional da publicação científica. No Brasil, a ética em pesquisa foi tema de conferências recentes em 2011, 2012 e 2014, no 1º, 2º e 3º Brazilian Meeting on Research Integrity, Science and Publication Ethics (Brispe) 9, que deram oportunidade de ampliar o conhecimento sobre o assunto. O 4º Brispe, realizado em Goiás em 2016, teve como foco o incentivo à conduta ética na pesquisa, ressaltando a necessidade de coibir a má postura dos pesquisadores e estudantes desde o início da formação escolar 10.
Em 2013, em Fortaleza, foi realizada a 64ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial (WMA) 11, onde foram discutidos princípios éticos para pesquisa médica envolvendo seres humanos, e em 2015 o país sediou a 4ª Conferência Mundial sobre Integridade Científica. Todos esses eventos abriram espaço para novo ciclo de discussão sobre o assunto no cenário científico brasileiro.
A preocupação com a formação ética do profissional de saúde tem crescido em algumas instituições brasileiras, apesar de ainda serem poucas as organizações que investem em controle e incentivo do rigor científico na pesquisa. Devido ao investimento em investigações acadêmicas, algumas agências de fomento ligadas ao governo, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) 12, já fiscalizam pesquisas vinculadas às bolsas que financiam. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) 13 é outra instituição que se preocupa com o compromisso do profissional no exercício de suas atividades.
Muitas vezes, pesquisadores em formação carecem de orientações sobre rigor metodológico e ético, e a exigência constante de publicações pode fazer com que priorizem a quantidade em detrimento da qualidade da produção científica 14.
Verificar a formação em integridade científica dos profissionais de saúde de medicina, enfermagem, farmácia, nutrição, odontologia e biomedicina, considerando de que forma o código de ética e as diretrizes curriculares de cada área subsidiam a educação permanente.
Trata-se de pesquisa retrospectiva e descritiva, realizada mediante análise de conteúdo categórico documental. Foram selecionadas as seis especialidades da área de saúde com mais publicações no CNPq, e pesquisados os códigos de ética profissional de cada uma delas, elaborados por seus respectivos conselhos federais:
Código de Ética Médica. Resolução CFM 1.931, de 17 de setembro de 2009 15.
Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Resolução Cofen 564, de 6 de novembro de 2017 16.
Código de Ética Odontológica. Resolução CFO 118, de 11 de maio de 2012 17.
Código de Ética do Nutricionista. Resolução CFN 599, de 25 de fevereiro de 2018 18.
Código de Ética da Profissão Farmacêutica. Resolução CFF 596, de 21 de fevereiro de 2014 19.
Código de Ética do Profissional Biomédico. Resolução CFBM 198, de 21 de fevereiro de 2011 20.
Como método de pesquisa foram estabelecidos os descritores “ética na publicação científica”, “plágio” e “confiabilidade dos dados” (com base nos Descritores em Ciências da Saúde) e “integridade científica” e “autoplágio”. Buscaram-se ocorrências desses descritores nos códigos de ética profissional e nas diretrizes curriculares das áreas de saúde analisadas:
“Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina”, instituídas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2014 21.
“Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em odontologia”, instituídas pelo CNE em 2002 22.
“Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em nutrição”, instituídas pelo CNE em 2001 23.
“Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em farmácia”, instituídas pelo CNE em 2002 24.
“Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em enfermagem”, instituídas pelo CNE em 2001 25.
“Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em biomedicina”, instituídas pelo CNE em 2011 26.
Os dados foram inseridos em duas planilhas: a primeira com as ocorrências dos descritores nas diretrizes curriculares dos cursos selecionados (Tabela 1), e a segunda com a mesma ocorrência nos códigos de ética (Tabela 2).
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde da Secretaria de Saúde do Distrito Federal e dispensado de análise ética por não envolver seres humanos.
As diretrizes curriculares estabelecem normas e padrões para a formação dos profissionais de cada área, direcionando temas de estudo, estipulando padrões acadêmicos e estimulando práticas para o exercício da profissão.
As diretrizes do curso de medicina instituem que a base para obter bons resultados na pesquisa científica é a análise adequada das fontes, com avaliação cuidadosa das evidências 21. As diretrizes de enfermagem, por sua vez, estabelecem que a formação do profissional qualificado deve se embasar no rigor científico e intelectual construído sobre os pilares da ética 25. Já as de farmácia e de odontologia ressaltam o valor de educação acadêmica que estimule a formação de profissionais intelectualmente independentes 24, com atuação pautada em princípios éticos.
Mesmo diante desses preceitos, ainda é raro encontrar políticas que detectem e coajam más condutas científicas nas universidades 27. A inclusão de disciplinas voltadas ao tema nas graduações e a prática científica frequente, pautada em condutas acadêmicas corretas, podem ajudar a minimizar as infrações éticas na pesquisa científica, tendo em vista que a educação é o meio mais transformador quando se aspira a boas práticas 8.
Para além do currículo acadêmico, a educação em saúde deve ocorrer a partir da corresponsabilização do estudante por sua formação continuada, priorizando a autonomia intelectual e a responsabilidade social 15. Ao iniciar a pesquisa é ideal que o profissional da saúde conheça os aspectos legais que envolvem o tema para agir conforme as normas de autoria e evitar infrações éticas na pesquisa 28.
A análise dos códigos de ética demonstrou que a fidelidade científica foi pouco citada. Apenas os códigos de ética dos profissionais de medicina, enfermagem, farmacêutica e biomedicina tratam do tema. Em todos constam os descritores “ética na publicação científica” e “plágio”.
Apesar de a maioria dos códigos referenciar temas pertinentes ao rigor científico, a abordagem é voltada ao plágio e à confiabilidade dos dados, sem que haja análise profunda do comportamento ético preconizado no âmbito acadêmico. O artigo 3º das “Diretrizes curriculares de biomedicina” cita a importância da formação adequada do profissional, especificando a formação crítica, pautada na integridade científica e intelectual e embasada em princípios éticos 26.
A confiabilidade dos dados foi mencionada por cinco dos seis códigos analisados (apenas o código farmacêutico não cita o tema). Em seu capítulo XVII, artigo 50, inciso VIII 17, o Código de Ética Odontológica censura a manipulação de dados; o dos profissionais de enfermagem faz o mesmo, referindo-se à manipulação ou falsificação de dados em seu capítulo III, artigo 97 16. O Código de Ética do Nutricionista veda a alteração de dados de pesquisa, quer em benefício próprio ou de terceiros em seu capítulo I, artigo 26 18. Somente o Código de Ética da Profissão Farmacêutica se refere à importância da veracidade das informações, em seu capítulo V, artigo 16, inciso I 19 (Tabela 2).
No Código de Ética da Profissão Farmacêutica, o estímulo à integridade na pesquisa científica está presente no capítulo III, artigo 12, inciso XVI, que destaca o respeito às normas éticas e a proteção dos sujeitos da pesquisa. Por sua vez, o artigo 13 das “Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em farmácia” destaca que o estudante deve ter comprometimento com a jornada em busca de novos resultados na pesquisa científica, resguardando sempre os direitos humanos 24.
Em seus princípios fundamentais 16, o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem orienta o exercício da profissão embasado em preceitos éticos, legais, técnico-científicos e teórico-filosóficos, com a competência e a qualificação para assistir, ensinar, educar e pesquisar. De forma semelhante, também o Código de Ética da Profissão Farmacêutica orienta quanto à importância da atuação pautada no rigor científico e intelectual em seu Capítulo I, artigo 7º 19.
Com profissionais orientados a realizar pesquisas científicas de acordo com os princípios éticos – sem plágio, sem fraude de dados, com as devidas citações, interpretação correta das estatísticas e resultados obtidos com pesquisas científicas – a incidência de retratações reduziria, e os resultados dos estudos teriam mais credibilidade 8.
Os códigos de ética devem motivar esses profissionais a seguir boas práticas na pesquisa, guiados por princípios de moralidade e ética 29. Vale ressaltar que, dos seis códigos analisados, apenas quatro mencionam claramente temas referentes à ética na pesquisa. O Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, no capítulo II, artigo 58, afirma a importância de respeitar os princípios éticos na pesquisa 16; o Código de Ética da Profissão Farmacêutica, no capítulo I, artigo 7º, ressalta o valor de acatar o rigor científico e intelectual 19; o Código de Ética do Nutricionista, no capítulo VII, artigo 81, afirma ser dever do profissional declarar a existência de conflito de interesse, assegurar a imparcialidade metodológica, tratamento de dados e divulgar fontes de financiamento, e o capítulo XI, artigo 30, inciso VII do Código de Ética do Profissional Biomédico menciona ser dever ético do profissional não cometer fraudes na profissão e na produção do conhecimento biomédico 20.
Observa-se a preocupação explícita quanto à citação das fontes em quatro códigos de ética: de medicina, nutrição, enfermagem e biomedicina. Os códigos de ética médica e do nutricionista fazem considerações sobre plágio, com especificações sobre como utilizar informações de documentos ainda não publicadas pelo autor 15,18. O Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem trata o tema citando o respeito aos direitos autorais – capítulo II, artigo 58 16 – e à referência aos autores envolvidos – capítulo III, artigo 100 16.
A análise das diretrizes curriculares demonstrou a necessidade de implementar orientações já estabelecidas para coibir a fraude científica, pois as normas formais devem tornar-se realidade no âmbito profissional e acadêmico. A integridade científica deve ser estimulada durante toda a formação acadêmica por meio da busca do estudante por autonomia intelectual e responsabilidade social.
Dessa forma, as diretrizes curriculares devem orientar a formação continuada do profissional de saúde, estimulando boas práticas científicas em qualquer estágio de educação e estabelecendo punições acadêmicas para condutas antiéticas. Elas devem principalmente aproximar o estudante do tema da ética na pesquisa, fazendo-o ganhar intimidade com questões relacionadas ao rigor científico.
Os códigos de ética profissionais devem instituir normas rigorosas que desencorajem definitivamente as más condutas. A fiscalização meticulosa das publicações por parte das instituições de fomento à educação e pesquisa, bem como o estabelecimento de sanções éticas e legais aos profissionais com más condutas científicas, também devem ser incentivados para eliminar fraudes. No atual estágio de relativa banalização de maus procedimentos, ações educativas de orientação e formação dos profissionais são relevantes, mas insuficientes, visto que para atingir o patamar ético adequado é essencial conter o quanto antes as condutas deletérias.
É preciso conscientizar profissionais e pesquisadores da área de saúde para que produzam trabalhos científicos válidos e relevantes para a comunidade. Esse trabalho de formação e capacitação contínua deveria começar em instituições de educação e persistir na regulamentação profissional por meio dos códigos de ética.
As autoras participaram igualmente de todas as fases da produção do artigo.
Correspondência. Maria Rita Carvalho Garbi Novaes – Escola Superior de Ciências da Saúde. SMHN conjunto A, bloco 1, Edifício Fepecs CEP 70710-907. Brasília/DF, Brasil.. Quésia Ferreira Barbosa – Especialista – quesia.quesia@gmail.com. 0000-0002-9022-1901. Camila Serra Rodrigues – Graduanda – camilaserrarodrigues@gmail.com. 0000-0002-3390-2655. Maria Rita Carvalho Garbi Novaes – PhD – ritanovaes2@gmail.com. 0000-0002-9366-6017