Resumo: A vida da pessoa que se descobre infectada pelo vírus da imunodeficiência se transforma após o diagnóstico. E, dado o estigma da doença, o sigilo é forma de garantir a privacidade nesta condição. Por meio de revisão integrativa da literatura, este estudo visou identificar como tem sido abordada a confidencialidade no cuidado à pessoa com HIV/aids. Foram selecionadas 19 publicações científicas nacionais e internacionais, publicadas entre 2010 e 2015, em bases de dados de livre acesso. Os estudos apontaram que estigma, preconceito e discriminação permeiam a vida dos soropositivos, que vivem constantemente com medo de serem descobertos. Além disso, constatou-se que a discriminação está presente inclusive entre profissionais da saúde e que romper o sigilo normalmente leva o paciente a abandonar o tratamento. Portanto, preservar a privacidade e a confidencialidade da pessoa com HIV/aids é dever dos profissionais e representa desafio na era da informação.
Palavras chave: HIVHIV,Síndrome de imunodeficiência adquiridaSíndrome de imunodeficiência adquirida,ConfidencialidadeConfidencialidade,BioéticaBioética,Ética profissionalÉtica profissional.
Resumen: La vida de la persona que descubre que está infectada por el virus de la inmunodeficiencia se transforma luego del diagnóstico. Y, dado el estigma de la enfermedad, el secreto es una forma de garantizar la privacidad en esta condición. Por medio de una revisión integrativa de la literatura, este estudio procuró identificar cómo ha sido abordada la confidencialidad en la atención de la persona con VIH/SIDA. Se seleccionaron 19 publicaciones científicas nacionales e internacionales, publicadas entre 2010 y 2015, extraídas de bases de datos de libre acceso. Los estudios señalaron que estigma, prejuicio y discriminación marcan la vida de los seropositivos, quienes viven constantemente con miedo a ser descubiertos. Además, se constató que la discriminación está presente incluso entre los profesionales de la salud y que romper el secreto normalmente conduce a que el paciente abandone el tratamiento. Por lo tanto, preservar la privacidad y la confidencialidad de la persona con VIH/SIDA es un deber de los profesionales y representa un desafío en la era de la información.
Palabras clave: VIH, Síndrome de inmunodeficiencia adquirida, Confidencialidad, Bioética, Ética profesional.
Abstract: The life of the person who finds they are infected with the immunodeficiency virus is transformed after the diagnosis. And, given the stigma of the disease, confidentiality is the way to ensure privacy when facing this condition. Through an integrative review of the literature, this study aimed to identify how confidentiality has been addressed in the care of people with HIV/AIDS. Nineteen national and international scientific publications, published between 2010 and 2015, were selected in open access databases. Studies have pointed out that stigma, prejudice and discrimination permeate the lives of HIV-positive people, who are constantly living in fear of being discovered. In addition, it has been found that discrimination is present even among health professionals and that breaking confidentiality usually leads the patient to abandon treatment. Therefore, preserving the privacy and confidentiality of the person with HIV/AIDS is the duty of professionals and represents a challenge in the information age.
Keywords: HIV, Acquired immunodeficiency syndrome, Confidentiality, Bioethics, Ethics, professional.
PESQUISA
Confidencialidade médica no cuidado ao paciente com HIV/aids
Confidencialidad médica en la atención del paciente con VIH/SIDA
Medical confidentiality in the care of patients with HIV/AIDS
Recepção: 28 Fevereiro 2017
Revised document received: 06 Agosto 2017
Aprovação: 18 Setembro 2017
Em pleno século XXI, diante de tantos avanços tecnológicos que permitem interferir nas diversas particularidades do ser humano, em um mundo onde o impossível está em extinção e a interpretação das normas sociais torna-se mais flexível, distinguir o que é bom do que é mau e definir limites éticos nas ações das pessoas é cada vez mais complexo 1.
Na área da saúde, o desenvolvimento científico amplia o conjunto de informações que viabilizam o atendimento ao usuário dos serviços. Dentre essas informações, encontram-se as de caráter sigiloso que, embora sejam de propriedade exclusiva do paciente, devem ser fornecidas aos profissionais a fim de que o atendimento seja efetivo. Nesse contexto, as novas tecnologias aumentam ainda mais o risco do uso indevido dessas informações 2,3.
A ética é fundamental não só para o bom convívio social, mas também para a atuação dos profissionais, em especial daqueles que lidam diretamente com o ser humano 4. Entre todas as condições com as quais os profissionais da área da saúde têm de lidar em sua prática cotidiana, a confidencialidade é uma das mais relevantes do ponto de vista ético, pois garante o sigilo de informações técnicas e de caráter pessoal. Manter segredo profissional é um dos preceitos morais no âmbito da saúde 5. A confidencialidade deve motivar os profissionais a desenvolver postura adequada, evitando constrangimentos aos usuários 6. O sigilo, portanto, seria uma forma de “proteção individual” 7.
O surgimento da síndrome de imunodeficiência adquirida (aids) e sua rápida disseminação abalou o mundo, testando nossa capacidade de lidar com uma doença até então incógnita 8. Diante do desconhecido e das taxas de mortalidade causadas pela enfermidade, o diagnóstico da contaminação pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) tornou-se marco na vida dos infectados 9, uma vez que implicava também discriminação social. Consequentemente, para se proteger da intolerância e de agressões, a pessoa vivendo com HIV/aids (PVHA) muitas vezes opta por não expor sua condição de saúde 10.
Por se tratar de doença transmissível, a aids leva a pessoa a sofrer algumas implicações de interesse público, com a possibilidade de quebra do sigilo de sua sorologia 11. Diante dessas situações conflituosas que envolvem a PVHA, como pode o médico manter condutas éticas? Sob que circunstâncias deve-se preservar o sigilo profissional, e o que pode ou não ser dito sem caracterizar violação de sigilo? Em que circunstâncias a confidencialidade deve ser violada? Quais os limites do dever da preservação da confidencialidade? Será que Rosenthal e Scheffer estão certos ao afirmar que não haverá ética enquanto persistir o preconceito? 12
Tendo em vista todas essas questões, este estudo objetiva identificar como a confidencialidade das informações da PVHA tem sido abordada em publicações científicas, analisando especificamente o modo como os autores enfocam questões relacionadas ao sigilo, às dificuldades em mantê-lo e aos conflitos envolvendo essas informações. Portanto, partimos da seguinte questão norteadora: “de que forma os autores têm abordado a confidencialidade da PVHA em publicações científicas nacionais e internacionais?”
Caracterizado como revisão integrativa 13, este estudo consultou publicações disponíveis nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Banco de Dados de Enfermagem (BDENF). Com base nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), foram definidos como termos fixos “HIV” e “síndrome de imunodeficiência adquirida”, cruzando-os com “confidencialidade”, “bioética” e “ética profissional”, nos idiomas português, inglês e espanhol.
Foram utilizados os seguintes operadores booleanos a fim de ampliar a qualidade dos resultados: “HIV and confidencialidade”, “HIV and bioética”, “HIV and ética profissional”, “síndrome de imunodeficiência adquirida and confidencialidade”, “síndrome de imunodeficiência adquirida and bioética”, “síndrome de imunodeficiência adquirida and ética profissional”, gerando o total de 40 associações.
A amostra incluiu estudos disponíveis na íntegra, online e gratuitos, publicados entre janeiro de 2010 e dezembro de 2015. A busca foi realizada em de janeiro de 2016, e inicialmente foram lidos títulos e resumos das publicações, e depois os textos na íntegra. Excluíram-se artigos duplicados, publicados fora do período estipulado e que não atenderam aos objetivos da pesquisa.
Foram obtidas 336 publicações: 5 no BDENF, 211 na Lilacs e 120 na SciELO. Desse total foram excluídas 276 publicações (4 do BDENF, 194 da Lilacs e 78 da SciELO), restando na amostra 60 artigos. Após nova leitura, foram selecionados 19 estudos, 9 da Lilacs e 10 da SciELO, que deram origem a duas categorias: 1) confidencialidade envolvendo a PVHA e 2) quebra do sigilo do diagnóstico: um dilema ético. As especificações das publicações que compuseram a amostra final estão descritas no Quadro 1.
Foram analisados 15 estudos 14-28 em que os autores apresentam diferentes posicionamentos sobre a manutenção da confidencialidade do resultado sorológico. Em todos eles, a preocupação maior estava ligada aos limites entre manter o sigilo do diagnóstico e revelá-lo de modo a não causar constrangimento ao usuário. Foram temas dos estudos: mulheres com HIV atendidas na atenção básica (AB); mulheres com HIV e homens que fazem sexo com homens (HSH) – ambos de classe social alta – com medo de discriminação social e baixo percentual de realização de teste anti-HIV; crianças com HIV discriminadas pelos profissionais de saúde; confidencialidade envolvendo adolescentes; pessoas atendidas em Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) e em Centro Regional de Hemoterapia; estigma entre colegas de trabalho nos serviços de saúde; ampliação da cobertura do teste anti-HIV; discriminação social como barreira para a realização do teste Elisa; avanço das tecnologias de informação nos serviços de saúde e quebra da confidencialidade; e profissionais, serviços de saúde e Organização Não Governamental (ONG) que defendem a confidencialidade do diagnóstico perante a comunidade.
Junges e colaboradores 14 destacaram o dilema do sigilo e da privacidade de informações de mulheres atendidas nas equipes de AB. Para que haja responsabilização multiprofissional pelo cuidado, é preciso revelar o diagnóstico de HIV aos demais profissionais; porém, a desconfiança quanto à quebra de sigilo leva usuárias com HIV a não revelar seu diagnóstico aos profissionais da AB.
Foram observadas falhas no serviço especializado em HIV/aids, como falta de privacidade para realizar exames e retirar resultados e uso de veículos identificados com o programa DST/aids, sendo a noção de sigilo nos processos de trabalho muitas vezes limitada a não revelar o nome da PVHA.
Arrivillaga-Quintero 16 aponta ainda em sua pesquisa o fato de que mulheres de classe social alta, motivadas pelo medo do estigma e da violação da confidencialidade, realizam acompanhamento em serviços privados para não ter o nome registrado no Sistema de Saúde.
Quanto a crianças com HIV, García, Viñas e Rodríguez 16 ressaltam que revelar o diagnóstico causa constrangimentos aos próprios pais ou responsáveis, devido à discriminação dos profissionais de saúde. Nos casos em que a situação foi exposta, frequentar a escola e viver na comunidade não causou reação discriminatória, o que demonstra que o preconceito esteve presente somente no serviço de saúde.
O medo do estigma é o que leva cuidadores e profissionais da saúde a não revelar às crianças com HIV sua condição sorológica. No estudo de Herrera, Molina e Vásquez 17, 96,2% das crianças com HIV não tiveram acesso ao diagnóstico devido ao medo dos profissionais em relação a possíveis danos psicológicos que essas crianças enfrentariam caso divulgassem sua sorologia de forma acidental. Todavia, falhas na manutenção da confidencialidade ocorreram, fazendo com que o diagnóstico ultrapassasse os limites da equipe cuidadora e chegasse até o vigia do serviço. Os autores concluíram que o serviço contribuiu para a estigmatização da PVHA pela família e pela comunidade.
A preocupação com a confidencialidade do diagnóstico e com o preconceito também está presente no estudo de Kerr e colaboradores 18 sobre homens que fazem sexo com homens (HSH) e pertencem à classe social alta. O fato de serem homossexuais gerou medo do preconceito, o que levou ao baixo percentual de testagem em comparação aos HSH de classe social média e baixa. Os entrevistados temiam ser discriminados caso o resultado positivo do teste viesse à tona, especialmente se o exame fosse realizado em serviço de saúde.
A questão da confidencialidade e do sigilo em pesquisas com adolescentes foi abordada no estudo de Paula e colaboradores 19. Como o diagnóstico de HIV em adolescentes é muitas vezes limitado à família, é preciso que o pesquisador resguarde a confidencialidade e a relação de respeito com o adolescente, de modo a permitir a emergência de temas fundamentais ao seu estudo. É essencial compreender que o adolescente tem direito de decidir sobre revelar ou não seu diagnóstico e que as informações só podem ser compartilhadas em caso de consentimento ou risco. A confidencialidade, reconhecida como um dos elementos essenciais da relação terapêutica paciente-profissional, também é fundamental na relação pesquisador-PVHA
Ao investigar o motivo do não retorno de usuários a um Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) entre 2008 e 2009, Soares e Brandão 20 averiguaram que somente 1% dos usuários fizeram o teste de forma sigilosa. O estudo aponta como a necessidade de identificação daqueles que desejam realizar ou retirar exames representa uma falha do serviço em relação ao anonimato. Tal fator pode ser referido como causa do baixo retorno dos usuários ao serviço de testagem.
Ferreira e Passos 21 demonstram como a desconfiança na manutenção da confidencialidade leva doadores de sangue de um centro regional de hemoterapia a omitir fatos relevantes na entrevista de triagem, o que acaba por alterar os resultados sorológicos. Para os autores, tal fato ressalta a importância de a instituição transmitir aos doadores seu compromisso com o sigilo.
Mataboge e colaboradores 22 abordam o problema da quebra de sigilo e da estigmatização de colegas de trabalho em serviços de saúde quanto ao teste anti-HIV. O estudo demonstra que profissionais da saúde temem realizar o exame em seu local de trabalho, buscando tratamento, no caso de resultado positivo, em outros serviços. Da mesma forma, pelo receio de que a falta da confidencialidade impeça o suporte adequado, profissionais encaminham estudantes de enfermagem a outros serviços de referência ao diagnosticá-los com sorologia positiva para HIV.
Estudo de Cárdenas, Monteiro e Moreira 23 abordou a ampliação da cobertura do teste voluntário para diagnóstico de HIV, discutindo o cuidado necessário aos profissionais para não produzir vulnerabilidade programática (que reproduz ou aumenta a fragilidade dos usuários) 33. Os autores referem a preocupação internacional com o consentimento informado para realizar o teste na etapa de aconselhamento, garantindo ao usuário confidencialidade, explicação dos riscos (físicos, emocionais e sociais) e benefícios do teste e o direito de declinar do consentimento.
No caso da população jovem, a adesão ao teste está condicionada à garantia de não comunicação do resultado aos familiares. A aderência das mulheres às ações de redução da transmissão vertical do vírus é dependente do reconhecimento dos direitos femininos referentes à autonomia, integridade física, não discriminação e privacidade. Um último ponto destacado pelos autores 24 é a necessidade de consentimento da PVHA para comunicar o diagnóstico a seus parceiros sexuais.
Conforme Araya e colaboradores 24, ao ofertar e facilitar o acesso das pessoas ao teste Elisa, os centros de saúde devem divulgar que a testagem é privada e confidencial, pois esse sigilo é fundamental para a tomada de decisão dos pacientes. Quando acreditam que organizações e profissionais da saúde (que têm acesso aos seus nomes) não são confiáveis, os usuários tendem a se recusar a realizar o teste.
Sosa e Barrios 25 estudaram os conhecimentos de médicos, enfermeiros e de pacientes com sorologia positiva para HIV sobre a confidencialidade do diagnóstico. A pesquisa constatou que 67% dos médicos, 44% dos enfermeiros e 100% dos pacientes pensavam que não se deve informar à comunidade quem são as pessoas acometidas pelo vírus HIV, uma vez que o anonimato não representa perigo. No que diz respeito ao âmbito institucional, para Domínguez e colaboradores 26, a privacidade remete à responsabilidade do profissional em manter o caráter sigiloso de informações pessoais sobre a saúde dos usuários em clínicas, hospitais e unidades do sistema de saúde formal, garantindo também a segurança dos registros em prontuários (eletrônicos ou não).
Rovaletti 27 instiga a reflexão sobre como proteger dados, informações e a própria vida humana em um mundo sem fronteiras, especialmente nas questões que envolvem a pandemia de HIV/aids. A autora sugere o uso de redes fechadas de comunicação, com transmissão de dados criptografados e acesso restrito por meio de códigos, de modo a manter o anonimato da pessoa – sendo este o imperativo para o desenvolvimento de um sistema de comunicação ético e legal.
Ainda segundo a autora 27, no contexto da ética das informações, a veiculação em formato eletrônico facilita a manipulação de múltiplos dados pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC), o que favorece o controle e a visão abrangente dos sujeitos, ao mesmo tempo que cria a ilusão de que essas informações permanecem em constante anonimato. Eventualmente esses dados são disseminados entre familiares e amigos, gerando estigma e tornando evidente o pouco cuidado de alguns profissionais e funcionários da saúde quanto ao sigilo do paciente.
Por fim, Berenguera e colaboradores 28 chamam atenção para o bom resultado da manutenção da confidencialidade presente em ações de ONG que atendem pessoas com aids, HSH, usuários de drogas injetáveis, profissionais do sexo, pessoas privadas de liberdade e imigrantes ilegais que não têm acesso a serviços de saúde. Os profissionais da saúde que atuam nessas organizações instituem relações horizontais e vínculos com as pessoas como estratégia para facilitar o acesso à ONG e diminuir o preconceito.
Os estudos desta categoria abordam a quebra do sigilo profissional quando a condição sorológica coloca a saúde de terceiros em risco, quando há exigência de notificar o diagnóstico às autoridades sanitárias ou às seguradoras, ou para registro na declaração de óbito.
Feldmann e colaboradores 29 discutem se médicos e outros profissionais da saúde devem romper o sigilo em casos de usuários que omitem sua condição sorológica ao parceiro sexual, colocando-o em risco. Os autores destacam que a PVHA tem garantia de sigilo e poder sobre sua privacidade e intimidade, cabendo somente a ela a decisão de informar (ou não) as pessoas quanto à sua saúde. Contudo, todo e qualquer profissional da saúde tem obrigação de romper o sigilo sempre que a saúde de outrem é colocada em risco, sob a possibilidade de sanção penal por transmissão irracional do HIV. Justifica-se assim a quebra do sigilo, pois a manutenção do segredo é justificada para proteger a PVHA da discriminação social, mas não para contribuir com a disseminação do vírus.
Entretanto, permanece o dilema para os profissionais da saúde que atuam em CTA, devendo ao mesmo tempo garantir a confidencialidade da pessoa que busca o teste anti-HIV e direcionar o cuidado à saúde de seus comunicantes. Afinal, não se pode beneficiar uma pessoa em detrimento de outra 30.
Segundo Luz e Miranda 30, a PVHA tem o dever de proteger seus parceiros sexuais, comunicando sua condição. Não havendo colaboração, o profissional pode intervir convocando estes parceiros, em um tipo de atuação que exige extrema delicadeza e desenvoltura. Para isso, o profissional pode elaborar um protocolo que permita o acompanhamento dos casos.
Sob outra perspectiva, Domínguez e colaboradores 26 apontam o consentimento informado como ferramenta para garantir a confidencialidade. Para os autores, o teste anti-HIV deve ser realizado somente com o consentimento do paciente, a não ser em situações de limitação de consciência. O estudo reforça que a violação à confidencialidade pode desencorajar muitas pessoas a cooperar nos programas de testagem devido ao medo da discriminação.
Ainda segundo Domínguez e colaboradores 26, o surgimento da aids deu destaque ao dilema da confidencialidade, uma vez que o risco à vida de outras pessoas estabelece a obrigação moral e legal de informar a situação ao cônjuge ou companheiro, assim como é obrigatória a notificação às autoridades de saúde. Portanto, embora a confidencialidade seja direito do usuário, há limitações à autonomia quando esta entra em conflito com a integridade de outras pessoas, como no exemplo em que a PVHA se recusa a revelar sua condição sorológica ao parceiro.
Bernal, Álvarez e Santos 31 partem do princípio de que o sigilo profissional não é um valor absoluto para a Associação Médica Americana (AMA). Sendo o médico responsável por prevenir a disseminação de doenças contagiosas, a associação postula a relativa confidencialidade desde que se mantenha a obrigação ética de reconhecer o direito à discrição e à privacidade das PVHA.
Para a AMA, o médico é responsável por persuadir a pessoa infectada a interromper a exposição de terceiros à doença. Se o profissional não obtiver resultados, deve informar a situação às autoridades, e se estas não tomarem as medidas cabíveis, o próprio médico deve informar e aconselhar o terceiro envolvido. Esta tese, que vem se tornando popular, deriva do princípio da justiça, pois o que se pretende é evitar danos injustos a terceiros inconscientes do risco. Os médicos partem da perspectiva de que as PVHA têm a mesma responsabilidade que a sociedade e o Estado 31.
Outro aspecto destacado pelos autores 31 remete à discussão que ocorre nos Estados Unidos sobre a necessidade de leis estaduais para proteger PVHA. O governo parece inclinado a notificar o nome das pessoas às autoridades nacionais de saúde pública, com intuito de protegê-las. Entretanto, não é adequado propor esta medida simplesmente por tratar-se de tradição da saúde pública no país, já que as pessoas poderiam evitar fazer o teste por medo de serem identificadas pela notificação.
Há ainda o risco de quebra de privacidade e confidencialidade a respeito do diagnóstico positivo para HIV quando o usuário contrata seguro de vida e consente à seguradora, por escrito, o acesso a todas as informações necessárias ao estabelecimento do contrato, especialmente no momento da morte. Burguer e colaboradores 32 relatam também a dificuldade de muitos médicos em registrar na declaração de óbito a infecção pelo HIV como causa básica, dada a necessidade de notificar às autoridades sanitárias a condição sorológica. De acordo com os autores, esse fluxo de informações pode comprometer a confidencialidade do usuário. Por outro lado, a subnotificação desses dados compromete decisões políticas necessárias ao adequado manejo da doença, o que afeta não só os diretamente envolvidos, mas toda a sociedade.
Com base na análise dos estudos aqui apresentados, pode-se enumerar as seguintes questões-chave: PVHA que temem o estigma e a discriminação devido ao medo da quebra de sigilo; profissionais da saúde que divulgam informação confidencial de forma indevida; quebra da confidencialidade diante do risco à saúde de terceiros; garantia de privacidade das informações da PVHA em prontuários (eletrônicos ou não); profissionais da saúde que defendem o anonimato da PVHA perante a comunidade; e manutenção da confidencialidade como forma de construir vínculos entre profissional e paciente.
Ao discutir questões relacionadas ao HIV e à aids, é necessário distinguir os termos “estigma”, “preconceito” e “discriminação”. O estigma é definido como aquilo que é considerado vergonhoso ou desonroso; uma marca infamante34 que pode estimular formas de segregação. O preconceito é entendido como conceito ou opinião formados antes de ter os conhecimentos necessários sobre determinado assunto35 ou pessoa. A discriminação, por sua vez, é o ato contrário ao princípio de igualdade36, que segrega, exclui, restringe o acesso ou maltrata a pessoa vítima do preconceito.
Desse modo, tudo aquilo que é desconhecido ou “estranho” para os padrões da sociedade incita o pré-julgamento e pode levar ao ato discriminatório. Esse processo, que muitas vezes ocorre de forma inconsciente, gera fragilidade emocional, prejuízos à saúde e exclusão social. No caso aqui estudado, o medo do estigma, do preconceito e da discriminação faz com que muitas PVHA não busquem os serviços de saúde.
Conforme o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Unaids) 37, o estigma, o preconceito e a discriminação estão entre os principais entraves para a prevenção e o tratamento do HIV e o cuidado da PVHA. Essas condições adversas confrontam diretamente o combate à epidemia ao gerar nas pessoas o medo de levantar suspeitas acerca de sua condição sorológica, impedindo o acesso a informações que permitiriam inclusive práticas sexuais mais seguras.
Da mesma forma, o medo do estigma e da discriminação faz as pessoas deixarem de buscar os serviços de saúde e realizar o teste anti-HIV, temendo o rompimento do sigilo por parte dos profissionais, conforme referido nos estudos de Arrivillaga-Quintero 15, Herrera, Molina e Vásquez 17 e Kerr e colaboradores 18. Também o medo da violência muitas vezes desencoraja a revelação do diagnóstico a familiares e parceiros sexuais, e prejudica a adesão ao tratamento.
O preconceito e a discriminação contra a PVHA também ocorrem por parte dos profissionais de saúde, conforme relatos apresentados por Mataboge e colaboradores 22. No mesmo sentido, Sadala e Marques 38 constataram que ainda persiste o preconceito e a intolerância ao “grupo de risco”. Embora tenham ciência de que esta definição não é mais utilizada, os autores a utilizam para enfatizar que, apesar dos esforços em contrário, permanecem os estigmas sobre as PVHA, dificultando a relação profissional-usuário.
Segundo esses autores, nos atendimentos especializados estes impasses foram superados, mas nos serviços e hospitais gerais a PVHA ainda é estigmatizada. O preconceito existe também em escolas médicas, quando se manifesta com a não realização de alguns procedimentos por diferentes profissionais da equipe. Por fim, Sadala e Marques 38 refletem sobre os limites médicos em relação à igualdade no trato da PVHA, pois conceder a ela privilégios a tornaria diferente das demais. Fica também a questão: dar assistência em local separado para evitar a discriminação, como nos serviços de referência, seria outra forma de discriminá-la?
O preconceito e a discriminação de profissionais da saúde podem ainda ocorrer na testagem para o HIV. O Ministério da Saúde (MS) brasileiro pontua que é direito do profissional manter sigilo absoluto dos resultados de exames, bem como de qualquer assunto discutido durante o aconselhamento 39. Quando viola esse aspecto, o profissional pode ser estigmatizado tanto por colegas de trabalho quanto pelos próprios usuários do serviço.
Quanto à manutenção da confidencialidade, ao criar os CTA o MS preconizava o anonimato do diagnóstico sorológico 40. Atualmente, a confidencialidade é mantida, mas o anonimato é facultativo 41. Já nos serviços de hemoterapia, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) dispõe na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 343/2012 que o sigilo das informações prestadas pelo doador antes, durante e depois do processo de doação de sangue deve ser absolutamente preservado, inclusive na triagem sorológica 42. Quando o resultado para HIV for positivo, o serviço de hemoterapia deve encaminhar a pessoa ao serviço de referência, não lhe cabendo definir o diagnóstico, mas somente descartar a bolsa de sangue 43.
Tratando-se da autonomia sanitária dos adolescentes, cabe destacar especificamente que, em razão do estigma que podem sofrer, inclusive no âmbito familiar, é previsto pelo MS que pessoas entre 12 e 18 anos mentalmente capazes tenham direito à testagem anti-HIV sem consentimento dos responsáveis legais 41. Ou seja, os adolescentes possuem direito à privacidade e à confidencialidade do seu diagnóstico. Contudo, devido à situação jurídica específica dessa população 44, o cuidado prestado ainda traz contradições éticas, legais e sociais relativas a esse direito 45.
A aids trouxe à tona importantes questionamentos à bioética. Temas até então incontestáveis, como sigilo médico, passaram a ser repensados: de um lado, a preservação do paciente; de outro, a responsabilidade com a saúde da coletividade 39. A Resolução CFM 1.665/2003 prevê, no artigo 10, que o sigilo profissional deve ser rigorosamente respeitado em relação aos pacientes portadores do vírus da sida (aids), salvo nos casos determinados por lei, por justa causa ou por autorização expressa do paciente45.
No caso de dever legal, a quebra de confidencialidade se dá pela notificação do diagnóstico às autoridades sanitárias e do preenchimento de atestado de óbito, e por justa causa nos casos de proteção à vida de terceiros. Contrariamente, Scheffer e Rosenthal 12 alegam que o profissional deve cumprir o dever do sigilo, apontando que, embora o parceiro sexual da PVHA tenha o direito de saber que pode ser contaminado, tal direito não justifica o rompimento do sigilo da relação profissional-usuário; o parceiro deve ser informado por meio de exames.
Quanto a isso, a AMA 46 orienta os médicos a cumprir todas as leis de notificação de doenças, salvaguardando a confidencialidade da condição do paciente, mas ao mesmo tempo devendo impedir, dentro dos limites da lei, que a PVHA infecte outras pessoas. Assim, se a PVHA representa ameaça a outro indivíduo identificável, o dever do médico vai desde notificar as autoridades de saúde pública até comunicar o risco a terceiros sem revelar a identidade da pessoa de origem.
Os dilemas éticos relativos às TIC referem-se à informática como recurso que, embora facilite as atividades no serviço de saúde, pode viabilizar o acesso a informações privadas. O mau uso desses sistemas pode favorecer a quebra do sigilo e a violação da privacidade do paciente. Portanto, depreende-se que as redes de computadores permitem também o acesso indevido e alteração de informações, ameaçando o bem-estar e até mesmo a vida do usuário 47.
Mesmo após o falecimento do paciente, no caso de notificação das testagens sorológicas para atestados de óbito, o sigilo profissional deve ser rigorosamente respeitado (salvo nos casos de notificação compulsória, situações envolvendo risco para outrem e maus-tratos contra menores) 5, pois o paciente tem direito à dignidade e respeito, mesmo após a morte48. A confidencialidade é fundamental para que o usuário confie no profissional da saúde e essa relação, por sua vez, é peça-chave para a criação de vínculos.
Cabe destacar um ponto que esteve presente na maioria dos estudos analisados: a desconfiança dos pacientes quanto à confidencialidade. Os usuários dos serviços têm a impressão de que seus dados serão comunicados de alguma forma, seja por notificação compulsória, pelo atendimento em equipe, pela facilidade de acesso às informações ou por falhas nos processos de trabalho.
Esta revisão demonstrou claramente que essas questões fazem o usuário se afastar dos serviços, deixando de se submeter às testagens ou de buscar os resultados. Logo, uma solução para o problema seria a educação permanente no trabalho, a fim de conscientizar e educar profissionais de saúde acerca da importância da confidencialidade no cuidado à PVHA, enfatizando situações em que se deve ou não revelar o diagnóstico, e a quem e quando revelar.
Por fim, Sadala e Marques 38 afirmam que os profissionais de saúde devem utilizar os melhores conhecimentos científicos no cuidado à PVHA, sem perder a perspectiva de que estão tratando de seres humanos que estão sofrendo em razão de sua condição de saúde e requerem cuidado singular – e, por que não, afetuoso?
A análise dos dados confirmou que o medo do estigma, do preconceito e da discriminação acaba por determinar o processo saúde-doença, pois diante deste sentimento as pessoas deixam de procurar serviços de saúde, de realizar testes anti-HIV e de aderir ao tratamento. Nesse contexto, o rompimento do sigilo não só viola o dever de manter segredo sobre informações obtidas durante o exercício profissional, mas reforça o medo do paciente de ser excluído socialmente.
Os estudos apresentaram diferentes conflitos quanto ao sigilo, de acordo com características da população e serviços envolvidos. Todos reforçaram que a confidencialidade gera confiança, facilita o acesso das pessoas aos serviços de saúde e aproxima usuários e equipe. Ao contrário, rompê-la faz usuários perderem a confiança no profissional e no serviço, agravando os danos decorrentes de sua condição. Desse modo, preservar a privacidade e a confidencialidade – e não só das PVHA – é dever dos profissionais da saúde, não somente por respeito ao Código de Ética ou ao juramento de Hipócrates, mas porque, ao escolherem a profissão, optaram por cuidar de seres humanos, e não de vírus.
Realizar estudo como este gera a expectativa de encontrar respostas objetivas aos dilemas práticos. A legislação existente e as normativas dos conselhos profissionais norteiam a atuação dos profissionais na assistência às PVHA, mas cada pessoa se encontra em situação única e ímpar, o que torna o cuidado complexo, exigindo análises singulares e busca contínua dos profissionais da saúde por aperfeiçoar a prática. À vista disso, a preservação do sigilo e da confidencialidade de um indivíduo é fundamental, sendo aceitável o seu rompimento somente em caso de risco à saúde do coletivo. Afinal, quais são os limites do sigilo e da confidencialidade?
As autoras participaram igualmente na construção do artigo.
Correspondência. Morgana Salvadori – Rua Doutor Roberto Fleischutt, 701, São Cristóvão CEP 95913-050. Lajeado/RS, Brasil.