Resumo: No Brasil, a difusão de informações acerca da promessa de cura do câncer com fosfoetanolamina, observada em alguns estudos em modelos experimentais, contribuiu para que indivíduos enfermos procurassem tratamento com essa droga, mesmo sem a realização de ensaios clínicos em humanos. Este trabalho tem por objetivo analisar, a partir de revisão sistemática da literatura e segundo os parâmetros da teoria principialista e a concepção de vulnerabilidade social, o uso da fosfoetanolamina como abordagem terapêutica para o tratamento do câncer na população brasileira.
Palavras chave: Ética baseada em princípiosÉtica baseada em princípios,Vulnerabilidade socialVulnerabilidade social,NeoplasiasNeoplasias,FosfoetanolaminaFosfoetanolamina,BioéticaBioética.
Resumen: En Brasil, la difusión de informaciones acerca de la promesa de cura del cáncer con fosfoetanolamina, observada en algunos estudios en modelos experimentales, contribuyó a que los individuos enfermos buscaran tratamiento con esta droga, incluso sin la realización de ensayos clínicos en humanos. Este trabajo tiene por objetivo analizar, a partir de una revisión sistemática de la literatura y según los parámetros de la teoría principialista y la concepción de vulnerabilidad social, el uso de la fosfoetanolamina como abordaje terapéutico para el tratamiento del cáncer en la población brasileña.
Palabras clave: Ética basada en principios, Vulnerabilidad social, Neoplasias, Fosfoetanolamina, Bioética.
Abstract: In Brazil, the dissemination of information regarding the promise of a cancer cure using phosphoethanolamine, observed in some in experimental model studies, has contributed to ill individuals seeking treatment with this drug, even without human clinical trials. This work aims to analyze the use of phosphoethanolamine as a therapeutic approach for the treatment of cancer in the Brazilian population, based on a systematic review of the literature and according to the parameters of the principlist theory and the concept of social vulnerability.
Keywords: Principle-based ethics, Social vulnerability, Neoplasms, Phosphoethanolamine, Bioethics.
PESQUISA
Vulnerabilidade social diante da fosfoetanolamina a partir da teoria principialista
Vulnerabilidad social frente a la fosfoetanolamina a partir de la teoría principialista
Social vulnerability to phosphoethanolamine based on the principlist theory
Recepção: 11 Setembro 2017
Revised document received: 14 Setembro 2018
Aprovação: 27 Setembro 2018
O conceito de vulnerabilidade social remete ao contexto de fragilidade, desfavorecimento, desamparo ou abandono, e engloba diversas formas de exclusão social ou isolamento de grupos populacionais em relação a avanços, descobertas ou benefícios proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico 1. No contexto da ética em pesquisa, vulnerabilidade social é entendida como circunstâncias da vida capazes de afetar indivíduos ou grupos quanto à inclusão, exclusão e/ou pela escolha de participar dos protocolos. Além disso, a falta de acesso a tratamento médico pode ser considerada vulnerabilidade social, visto que sistemas públicos de saúde têm dificuldades em distribuir medicamentos a toda a população em razão dos altos preços cobrados pelas empresas farmacêuticas 2.
A exclusão social de países em desenvolvimento torna-os extremamente vulneráveis. É o caso do Brasil, país de grandes desigualdades sociais onde um terço da população vive em condições de extrema pobreza 3. Nesse contexto, a exclusão social é fator limitante do direito à autonomia 4, que pode ser considerado mais como conceito do âmbito ético e individual. Por sua vez, a vulnerabilidade social remete à desigualdade objetiva entre indivíduos ou grupos, e reconhecê-la é essencial para nortear diretrizes que protejam e respeitem a autonomia dos indivíduos, principalmente quando se trata de pesquisa em saúde 5.
O principialismo tem sido amplamente difundido na área da saúde por sua objetividade ao lidar com conflitos morais e por facilitar a compreensão de princípios que podem orientar os profissionais de saúde 6. Beauchamp e Childress foram os responsáveis por reformular os princípios éticos descritos no Relatório de Belmont (1978) – autonomia, beneficência e justiça – e definiram quatro princípios básicos: respeito pela autonomia, não maleficência, beneficência e justiça 7.
A autonomia, literalmente o direito de reger-se de acordo com suas próprias leis, refere-se à autodeterminação da pessoa de tomar decisões que afetem sua vida, sua integridade física e psíquica e suas relações sociais, ou seja, é a capacidade de decidir e agir livre e independentemente de cada indivíduo. Portanto, o respeito à autonomia é dever moral e reconhece valores e pontos de vista pessoais para que seja efetiva a autonomia individual 7,8.
A não maleficência centra-se na ideia de que se deve evitar danos aos indivíduos, segundo o dever ético básico da prática médica. O dano, nesse caso, pode ser físico (morte, dor e incapacidade) ou mental, isto é, aquele que impede a realização dos interesses dos pacientes 7,8.
A beneficência é a obrigação de fazer o bem ao próximo, que pode ser físico, emocional ou mental. Na área da saúde, refere-se à ética na conduta médica e busca o procedimento ideal ao paciente, visando seu bem-estar ao minimizar riscos e maximizar benefícios 7,8.
O princípio da justiça, por fim, refere-se à igualdade de acesso aos serviços de saúde e distribuição de benefícios e recursos. Assim, indivíduos submetidos a experimentos médicos devem ser tratados de modo igual e imparcial por parte do pesquisador. Beauchamp e Childress definem esse princípio como expressão da justiça distributiva, ou seja, distribuição justa, equitativa e apropriada na sociedade 7,8.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o câncer é responsável pelo falecimento de 8,2 milhões de pessoas a cada ano (cerca de 13% das mortes no mundo) 9. Trata-se de doença caracterizada pelo crescimento descontrolado de células, que podem invadir tecidos e se espalhar por locais distintos do corpo. No Brasil, para o ano de 2016 estimou-se 596 mil novos casos 10.
Estudos experimentais recentes têm investigado o uso da fosfoetanolamina para tratar o câncer 11-14, mas, de acordo com o órgão regulador brasileiro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) 15, ainda não existem ensaios clínicos suficientes para a livre comercialização da substância. Mesmo assim, o governo aprovou a Lei 13.269, de 13 de abril de 2016, que autorizava o uso e a fabricação da substância sintética da fosfoetanolamina, permitindo o uso para pacientes diagnosticados com neoplasias 16.
A fosfoetanolamina, substância constituinte de tecidos orgânicos de tumores malignos de bovinos, foi isolada pela primeira vez em 1936 por Edgar Laurence Outhouse, comprovando sua existência em estado livre na natureza 17. Posteriormente, outros pesquisadores encontraram-na nos intestinos de ratos e em tecidos cerebrais de bovinos 18,19.
Essa substância, presente em todos os tecidos e órgãos animais, é precursora da fosfatidiletanolamina, um dos principais componentes de membranas e o segundo lipídio mais abundante em mamíferos, com diversas funções importantes na fisiologia celular 20.
Este trabalho teve como objetivo analisar, segundo os parâmetros da teoria principialista e a concepção de vulnerabilidade social, o uso da fosfoetanolamina como abordagem terapêutica para o tratamento do câncer, em população em situação de vulnerabilidade social, aqui entendida como dificuldade de acesso à saúde em tempo hábil, baixa escolaridade, além da vulnerabilidade individual, caso de portadores de doença grave e avançada sem resposta a terapias convencionais.
Trata-se de revisão sistemática da literatura com busca de dados em fontes secundárias (PubMed, Periódicos Capes e SciELO). Os descritores utilizados para a pesquisa de artigos foram “ética baseada em princípios”, “vulnerabilidade social”, “neoplasias”, “fosfoetanolamina”, “principialismo”, “bioética” e suas respectivas traduções na língua inglesa.
O levantamento, sistematização, análise e produção do trabalho aconteceram entre março de 2016 e março de 2017, e os artigos pesquisados foram publicados entre 2000 e 2016, em português e inglês. Foram ainda incluídos para análise minuciosa artigos originais, teses, revisões de literatura, revisões sistemáticas, ensaios clínicos e estudos experimentais in vitro e in vivo.
Os artigos selecionados foram considerados válidos de acordo com o grau de relevância do assunto estudado, considerando-se os que apresentavam no título ou resumo algum dos descritores utilizados na busca.
Segundo as diretrizes éticas internacionais de pesquisa, revisadas pelo Conselho para Organizações Internacionais de Ciências Médicas (Cioms), a vulnerabilidade está ligada à incapacidade relativa ou substancial de proteger os próprios interesses, quando indivíduos ou populações reduzem ou perdem, por algum motivo, a autonomia, podendo decorrer de déficits em educação, saúde, finanças, déficits psicológicos, entre outros 21-24.
A vulnerabilidade social pode estar relacionada à baixa renda, mas não necessariamente afeta somente a população de países subdesenvolvidos e emergentes 4, pois existem diversas formas de exclusão social que podem envolver renda familiar, acesso à informação, recursos e assistência à saúde, situação socioeconômica 1,2.
A indústria farmacêutica brasileira movimentou em 2016 cerca de 85 bilhões de reais, segundo levantamento realizado pela Interfarma 25. Esse dado revela o grande poder comercial do mercado farmacêutico e, portanto, sua importância para a pesquisa científica, já que essa indústria patrocina diversos estudos acadêmicos e tem grande influência sobre pesquisadores e médicos, formadores de opinião e prescritores. Sendo assim, tudo que é propagandeado por essa indústria rapidamente passa a ser reivindicado pelos pacientes em consultórios e hospitais, o que leva inclusive à judicialização da saúde.
Estudo recente utilizou a fosfoetanolamina sintética em camundongos com melanoma, em busca de novas estratégias terapêuticas, devido à baixa resposta aos tratamentos tradicionais. Essa pesquisa contribuiu para entender melhor a substância e sua atividade antitumoral, encontrando evidências de que ela inibe o crescimento e/ou a proliferação tumoral 20. Esses resultados levaram pacientes oncológicos com a doença em estágio avançado e sem perspectivas terapêuticas a acreditar que a fosfoetanolamina poderia aumentar seu tempo e qualidade de vida, já que a substância foi associada à promessa de cura 2,25.
Outros estudos com modelos experimentais apoiam a hipótese de que a fosfoetanolamina tem ação antiproliferativa, estimulando a apoptose de células cancerosas e, dessa forma, seria alternativa para o tratar do câncer 11-14. Mas a correlação de dados obtidos em estudos com outras espécies para a aplicação em humanos não apresentou resultados seguros. Isso tende a ocorrer principalmente na área da oncogênese, cujos estudos frequentemente revelam discrepâncias em respostas obtidas nas fases clínicas 26-32.
A fosfoetanolamina foi testada de forma controlada, pela primeira vez, em centros de pesquisas de três estados brasileiros: Centro de Investigação Translacional em Oncologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará (NPDM-UFC), e Instituto Nacional de Câncer (Inca), do Rio de Janeiro. Foram realizados estudos clínicos em humanos para testar supostos efeitos benéficos da substância em grupos de voluntários sadios (sem câncer) para testar sua toxicidade e em grupos de pacientes com 10 tipos diferentes de câncer, para confirmar sua aparente não toxicidade: cabeça e pescoço, mama, próstata, colo do útero, cólon e reto, estômago, fígado, pulmão, pâncreas e melanoma. A primeira fase da pesquisa clínica, que durou dois meses, avaliou a segurança da droga em 10 pacientes e não apresentou toxicidade significativa, viabilizando a continuação dos estudos 33-36.
No entanto, após esse período, o Icesp suspendeu testes com novos pacientes devido à ausência de benefício clínico significativo nas pesquisas realizadas em indivíduos que fizeram uso da substância na dosagem utilizada no estudo. Isto é, pacientes que tinham abandonado o tratamento convencional para utilizar a fosfoetanolamina estariam fazendo uso de substância ineficaz e talvez prejudicial. Foram tratados até o momento 72 pacientes de 10 diferentes grupos de tumor, porém somente um com melanoma teve resposta significativa ao tratamento, com redução de 30% das lesões tumorais 37.
Além disso, a fosfoetanolamina seria comercializada como suplemento alimentar, porém a Anvisa suspendeu a propaganda, visto que suplementos não podem assumir propriedades terapêuticas, e declarou não ter recebido pedido de registro da droga para que fosse vendida ou fabricada no Brasil 38,39. Embora a fosfoetanolamina tenha causado impacto como “pílula do câncer”, são necessários mais estudos em humanos a fim de comprovar sua eficácia, e somente será distribuída depois de passar pelos procedimentos descritos na Lei 6.360/1976, que incluem avaliação de sua eficácia, segurança e qualidade pela Anvisa 40.
Sem esses ensaios, a agência não pode considerar a substância um medicamento e liberar seu uso para tratamento da doença 15,40. No caso da fosfoetanolamina, a eficácia, efeitos colaterais, aplicabilidade e ação efetiva contra a doença ainda não haviam sido comprovados cientificamente em humanos, o que tornar seu uso comercial no mínimo imprudente.
No entanto, o governo federal sancionou a Lei 13.269/2016 autorizando o uso e a fabricação da fosfoetanolamina em casos de pacientes com neoplasias malignas 16. Essa decisão, que ignorou as medidas de segurança essenciais para a boa prática de fabricação e utilização de medicamentos, pode trazer agravos à saúde da população brasileira. Ademais, deve-se levar em conta o impacto para a saúde pública de o próprio governo legislar de forma contrária ao que determina a agência reguladora oficial, ou seja, desrespeitando o direito da população à promoção e proteção de sua saúde.
Pode-se considerar que a decisão tomada pelo governo seria benéfica, tendo em vista os estudos com fosfoetanolamina para o tratamento do câncer, atendendo, assim, ao princípio ético de beneficência. Mesmo que sua administração fosse inócua, poder-se-ia invocar o “efeito placebo”, que traria a sensação de bem-estar ao paciente, mesmo que induzida por sua psiquê. Porém, há a questão quanto à exposição em longo prazo do paciente a essa molécula de ação desconhecida, o que pode trazer efeitos adversos, contrariando o princípio ético de não maleficência 7,41.
Por falta de conhecimento ou de esperanças em relação à cura da doença em estágio avançado, os pacientes com câncer e seus familiares optam por medicamentos apresentados pelos meios de comunicação como “milagrosos”. No entanto, essa divulgação sem bases comprovadas pode fazê-los trocar o tratamento convencional por algo ineficaz ou até prejudicial, levando-os a tomar decisões precipitadas. Esse impasse leva à principal ponderação ética sobre o caso: pacientes que ainda poderiam desfrutar de sobrevida com qualidade seguindo o tratamento convencional podem adotar a fosfoetanolamina e correr riscos.
Embora não se possa negar que os pacientes exerceram sua autonomia ao utilizar a substância, deve-se ponderar em que medida o princípio ético do respeito a essa questão foi realmente acatado ao se assegurar essa opção terapêutica por decisão legislativa sem qualquer base científica. A Lei 13.269/2016 não considera as normas para aprovação de medicamentos nem os princípios para boas práticas em pesquisa, que orientam a ação da Anvisa. Portanto, mesmo que estivesse consagrando o direito à autonomia como política de Estado, a lei poderia ser considerada inconstitucional por ter faltado com o princípio de proteger e promover a saúde da população, consagrado no artigo 196 da Constituição 42.
Por fim, considerando o princípio da justiça como equidade, tal como definem Beauchamp e Childress 7, a decisão legislativa de produzir e distribuir substância inócua pode ser considerada contrária ao melhor uso dos recursos destinados à saúde, contrapondo-se, portanto, à ideia elementar de geri-los com sabedoria para maximizar o acesso de toda população.
Apesar de a fosfoetanolamina ter se mostrado eficaz no tratamento do câncer em ratos, os testes realizados em humanos ainda não apresentaram resultados significativos, capazes de comprovar a eficácia e a segurança da substância. Sendo assim, ainda não foi constatado se ela pode gerar efeitos adversos na população. Entretanto, o governo federal, ao autorizar seu uso, fabricação e distribuição, buscou atender às necessidades dos cidadãos, baseando-se em apenas três dos princípios éticos (respeito à autonomia, beneficência e justiça). No entanto, a não maleficência foi ignorada, uma vez que não houve ensaios clínicos necessários para aprovação da substância.
Edilaine Farias Alves e Marcello Henrique Araujo da Silva redigiram o manuscrito. Fabiana Araújo de Oliveira colaborou no levantamento bibliográfico. Tatiana Tavares da Silva contribuiu com a revisão final do texto.
Correspondência. Marcello H. A. da Silva – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Unidade de Pesquisa Urogenital. Av. 28 de Setembro, 87, Fundos, Vila Isabel CEP 20551-030. Rio de Janeiro/RJ, Brasil.