Resumo: O grave problema do abuso de substâncias psicoativas pode exigir internação temporária de dependentes. Consequentemente, governos recorrem às comunidades terapêuticas, que, apesar de criticadas por alguns, acolhem milhares de indivíduos hipervulneráveis no Brasil, tornando-se setor propício para contribuição da bioética. Mesmo não integrando a rede pública de atenção à saúde mental, comunidades terapêuticas são regidas por resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC 29/2011), responsável por seu licenciamento, supervisão e requisitos de segurança sanitária. Porém, no desempenho de suas funções não são adotados parâmetros de avaliação indispensáveis a acolhimento ético compatível com a proteção da cidadania e de respeito aos direitos dos dependentes. Assim, analisa-se a presença das comunidades terapêuticas no contexto brasileiro e identificam-se as ações da vigilância sanitária nessas inspeções, propondo-se inserir os princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos para fortalecer e enriquecer esses procedimentos.
Palavras chave: BioéticaBioética,Comunidade terapêuticaComunidade terapêutica,Vigilância sanitáriaVigilância sanitária,Usuários de drogasUsuários de drogas,Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e CulturaOrganização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.
Abstract: The serious problem of psychoactive substance abuse may require the temporary admission of dependents. As a result, governments resort to therapeutic communities, which, although criticized by some, host thousands of extremely vulnerable individuals in Brazil, making this sector propitious to the contribution of bioethics. Although they are not part of the public mental health care network, these facilities are governed by RDC 29/2011 of the National Health Surveillance Agency, responsible for their licensing, supervision and health safety requirements. However, in the performance of their duties, parameters of evaluation essential for an ethical reception compatible with the protection of citizenship and respect for the rights of dependents were not employed. The presence of Therapeutic Communities is therefore analyzed in the Brazilian context and the responsibilities of Health Surveillance in these inspections are identified, with the proposal of applying the principles of the Universal Declaration of Bioethics and Human Rights to strengthen and enrich these procedures.
Keywords: Bioethics, Therapeutic community, Health surveillance, Drug users, United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.
Resumen: El grave problema del abuso de sustancias psicoactivas puede requerir la internación temporal de las personas dependientes. En consecuencia, los gobiernos recurren a las comunidades terapéuticas, las cuales, a pesar de criticadas por algunos, acogen a miles de individuos hipervulnerables en Brasil, haciendo de éste un sector propicio para la contribución de la Bioética. Aunque no integre la red pública de atención a la salud mental, las comunidades terapéuticas se rigen por resolución de la Agencia Nacional de Vigilancia Sanitaria (RDC 29/2011), responsable de su licenciamiento, supervisión y requisitos de seguridad sanitaria. Sin embargo, en el desempeño de sus funciones no se adoptan parámetros de evaluación indispensables para una admisión ética compatible con la protección de la ciudadanía y del respeto a los derechos de los dependientes. Así, se analiza la presencia de las comunidades terapéuticas en el contexto brasileño y se identifican las acciones de la vigilancia sanitaria en estas inspecciones, proponiendo introducir los principios de la Declaración Universal sobre Bioética y Derechos Humanos para fortalecer y enriquecer estos procedimientos.
Palabras clave: Bioética, Comunidad terapéutica, Vigilancia sanitaria, Consumidores de drogas, Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura.
Atualização
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos: referência para vigilância sanitária em comunidades terapêuticas
The Universal Declaration of Bioethics and Human Rights: a reference for Health Surveillance in Therapeutic Communities
Declaración Universal sobre Bioética y Derechos Humanos: referencia para la vigilancia sanitaria en comunidades terapéuticas
Recepção: 10 Março 2017
Revised document received: 31 Maio 2017
Aprovação: 3 Outubro 2017
Este artigo é o primeiro de duas publicações conjuntas submetidas à Revista Bioética e tem como eixo central o tema “bioética em comunidades terapêuticas”. Neste trabalho, identificaram-se essas instituições, estabelecendo suas relações com a vigilância sanitária e propondo a inclusão dos princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) 1 nas inspeções sanitárias das comunidades terapêuticas (CT). No segundo artigo serão discutidos alguns princípios e referenciais bioéticos como contribuição para acolhimento humanizado e ético dos dependentes.
As CT, como são conhecidas hoje, surgiram na década de 1950 para tratar neurose de guerra em soldados, por iniciativa do psiquiatra do exército inglês Maxwell Jones 2. Em sua obra original, “Social psychiatry in practice”, Jones destaca que esta proposta de CT chamou atenção e despertou considerável interesse na psiquiatria mundial 2, dado o sucesso alcançado na reabilitação dos ex-prisioneiros de guerra 3. Reconhecendo a importância dos fatores sociais na gênese e na terapêutica dos distúrbios mentais, Jones teve oportunidade de mudar a orientação psicossomática para o campo social, criando “comunidade de transição” que ajudou a recuperar muitos soldados ingleses 2.
Essa visão contribuiu muito para a psiquiatria social, que substituiu a tradicional autoridade do médico pela participação mais ativa do paciente em sua própria cura e na dos outros pacientes. O sistema era, e continua sendo, caracterizado pela igualdade entre equipe e pacientes, divisão do trabalho e valorização da convivência interpessoal 4. No Brasil, as CT começaram a surgir a partir da década de 1960 na recuperação de dependentes de álcool e outras drogas, tornando-se, atualmente, uma das modalidades de tratamento mais procuradas 5.
Segundo definição oficial do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas 6, as CT são instituições privadas sem fins lucrativos e financiadas, em parte, pelo poder público, e acolhem gratuitamente pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de drogas. São instituições abertas, de adesão exclusivamente voluntária, voltadas àqueles que desejam e necessitam de espaço protegido, em ambiente residencial, para se recuperar da dependência à droga. Geralmente, as CT se localizam em sítios ou fazendas na zona rural, e o tempo de acolhimento pode durar até 12 meses. Recentemente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizou amplo levantamento sobre o perfil das CT no Brasil 7-9.
Conforme a Lei 8.080/1990 10, cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a coordenação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Integrado por conjunto de ações capazes de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir em problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, esse sistema pode interferir em toda a cadeia de fatores determinantes do processo saúde-doença, como ocorre nas CT. Assim, cabe à Vigilância Sanitária (Visa), entre outras atribuições, o licenciamento e a autorização de funcionamento de estabelecimentos de saúde, a educação em saúde e a comunicação com a sociedade.
Além disso, especificamente em relação às CT, a Anvisa editou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 29/2011 11, que estabelece requisitos de segurança sanitária para o funcionamento de instituições que prestam serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas, em regime de residência. Dessa forma, este artigo objetiva discutir as relações institucionais e a necessidade de abordagem bioética no suporte às ações de inspeção da Visa nas CT, sugerindo-se, para tanto, o uso da DUBDH para adequada proteção aos dependentes acolhidos nessas instituições.
As CT, além de se apoiarem, em parte, nos preceitos dos Alcoólicos Anônimos, estimulam a autoconfiança do indivíduo, sendo a laborterapia um dos pilares do tratamento, assim como a disciplina e a espiritualidade 7-9. A atividade laboral faz parte do processo terapêutico, razão pela qual recebe a designação “laborterapia”. Consiste em dar aos acolhidos diferentes tarefas cotidianas, como o autocuidado, a manutenção da comunidade (alimentação, limpeza), atividades produtivas (horta, artesanato, reparos), educativas e de formação profissional 7. O processo terapêutico baseia-se em intervenções sociais, atribuindo funções, direitos e responsabilidades aos indivíduos em tratamento 12.
Essa diversidade de tratamento também é observada em outros países 13. Leon 3 enfatiza que a dimensão da ressocialização do dependente passa, entre outros aspectos, pelos valores de bem viver (honestidade, autoconfiança, atenção responsável, responsabilidade para com a comunidade e ética no trabalho). Pode ainda, em outras dimensões, prevalecer um modelo religioso-espiritual, médico, assistencialista, psicológico, ou, como é muito comum, uma mistura dessas abordagens 14,15. Em relação à ressocialização, destaca-se, entre os objetivos das CT, a missão de auxiliar o dependente a reintegrar-se à sociedade de modo a assumir suas funções como cidadão, membro de família, trabalhador ou estudante 16.
Ressalta-se ainda que o contato permanente com os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do território adstrito é essencial. Trata-se de caminho de mão dupla, tanto para o encaminhamento pelo Caps de internação na CT quanto para o tratamento posterior pelo Centro de Atenção 17, uma vez que a ênfase de ambos é reabilitar e reinserir os usuários na sociedade 16. Vale observar que a abstinência pode ser apenas um recurso para obter emprego ou melhorar o bem-estar pessoal, o que pode, por sua vez, contribuir para recuperar a participação do indivíduo em atividades comunitárias e sua inclusão social 18.
Estima-se que, atualmente, existem cerca de 1.900 CT no país, a maior parte nas regiões Sudeste (41,77%) e Sul (25,57%), particularmente em Minas Gerais e Rio Grande do Sul 8. Na Europa, foram registradas 1.200 unidades como parte dos sistemas nacionais de tratamento da dependência, especialmente na Itália, Portugal, Espanha e Grécia 19. Porém, no Brasil, pela ausência de registro obrigatório, ocorrem dificuldades para acompanhar e qualificar os membros das CT e proporcionar acolhimento digno e respeitoso. Isso motivou o Ministério Público de Santa Catarina a adotar medidas extrajudiciais e judiciais para assegurar a fiscalização das CT 20.
Na mesma linha de abordagem, ressalta-se que as CT são entidades à procura de estatuto que defina seus contornos, funções e objetivos. Além disso, é também necessário estabelecer parâmetros para avaliar seu desempenho, tendo em vista que muitas CT recebem financiamento público 8,20. Outras estimativas sugerem que existam no Brasil entre 2.500 e 3.000 CT, as quais atenderiam, aproximadamente, 60 mil pessoas todos os anos, representando mais de 80% dos acolhimentos no país 5. Pesquisa do Ipea 7 assinala a existência de cerca de 83.600 vagas para tratamento em 1.963 CT.
Devemos lembrar que no Brasil, as CT, além de não terem fins lucrativos 21, em princípio não são formalmente consideradas como equipamentos de saúde ou de assistência social. Ou seja, não são devidamente institucionalizadas, razão pela qual não têm identidade legalmente reconhecida como unidade complementar na modalidade residencial temporária para dependentes de substâncias psicoativas 21,22. Apesar disso, paradoxalmente, muitas recebem apoio financeiro do governo federal e de vários estados brasileiros, como ocorre em Santa Catarina, onde o governo do estado criou o projeto “Reviver – inovação na atenção aos dependentes de substâncias psicoativas no estado de Santa Catarina”, aplicando alguns milhões de reais no apoio a dezenas de CT 23.
Por sua vez, em nível nacional há o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, cujos objetivos preveem a ampliação e fortalecimento das redes de atenção à saúde e de assistência social por meio de articulações das ações do Sistema Único de Saúde (SUS) com as do Sistema Único de Assistência Social. O Plano originou editais públicos de apoio financeiro para acolher em regime residencial usuários de crack e outras drogas 17. A justificativa apresentada se referia ao aumento crescente do uso do crack e seus efeitos na vida dos consumidores, levando a estado de dependência e transtorno mental que exigem período de tratamento para abstinência em unidades de internação de longa duração 17, serviços não disponíveis em número suficiente na rede pública 14.
Desde 2012, com o lançamento do programa “Crack: é possível vencer”, o governo federal passou a contratar vagas em CT pela Secretaria Nacional de Drogas, com recursos oriundos do Fundo Nacional Antidrogas. No entanto, antes mesmo do governo federal, estados e municípios já compravam vagas nas CT, em que pesem as críticas ao financiamento público 8. Esse tipo de suporte financeiro caracteriza a terceirização das atividades do programa, o que, além de ser um erro, refletiria fraqueza do poder público pelo não cumprimento do que prevê a política de saúde mental, pois a exígua quantidade de Caps Álcool e Drogas torna as CT saída fácil para os gestores públicos 24. Esse financiamento público às CT tem sido criticado pelos Conselhos Federais de Psicologia e de Serviço Social 7.
Damas 14, com base em sua formação psiquiátrica e atuação voluntária em CT, realizou análise descritiva das CT do ponto de vista histórico, sociológico e de saúde coletiva, a partir de uma leitura do problema atual das drogas, em especial do crack, e do papel das CT sob a perspectiva da saúde pública e coletiva. As CT foram analisadas sob a ótica fenomenológica e histórico-social, buscando situar sua presença atual no Brasil e seu correlacionamento com a política pública nacional sobre drogas.
Assim, entre suas conclusões, destacam-se: 1) as CT são a solução mais acessível para o tratamento da maioria dos brasileiros acometidos pelas drogas, considerando-se que acolhem indivíduos com padrão mais grave de dependência química relacionado a problemas de ordem social, como pobreza, menor grau de instrução, subemprego, desemprego, baixa qualificação profissional, problemas comunitários e familiares e problemas com a justiça; 2) encontram-se em franca expansão e são responsáveis pelo tratamento de mais da metade dos usuários no país; 3) negar a existência das CT como medida largamente utilizada em nosso meio para a atenção aos dependentes químicos seria ainda mais grave que apenas defendê-las ou aprová-las radicalmente; e 4) faltam ainda estudos acerca desse dispositivo no Brasil, e estudos internacionais são escassos e com diversas falhas metodológicas 14.
Por solicitação da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, recentemente o Ipea realizou ampla e inédita pesquisa científica sobre o perfil das CT 7-9. O método adotado incluiu abordagem quantitativa, que consistiu no exame de 500 CT, e qualitativa, de estudos etnográficos em dez unidades. Resultados parciais abordam questionamentos e críticas feitos ao modelo das CT, como vínculo com igrejas e organizações religiosas, métodos e práticas terapêuticas adotados e medidas disciplinares impostas aos internos. Em relação a esses três aspectos, constatou-se que prevalecem CT vinculadas a organizações religiosas, que é significativo o uso de métodos e técnicas científicas (uso de medicamentos, psicoterapias individuais ou em grupo) e que há expressiva convergência de métodos e atividades rotineiras entre as CT.
Isso sugere certo grau de padronização do modelo, que a laborterapia é pouco direcionada à preparação dos acolhidos para o mercado de trabalho e, finalmente, que a crítica às CT como “unidades de privação de liberdade” talvez seja levemente exagerada, embora ocorram restrições importantes que ferem alguns dos direitos civis e humanos 10,21. Esta pesquisa vem se somar às pouquíssimas iniciativas semelhantes, além de penetrar em campo de políticas públicas marcado por preconceito e desinformação 7,9.
Historicamente, a Visa é uma das mais antigas práticas de saúde pública do mundo moderno e, mais recentemente, tem tido suas funções, responsabilidades e atribuições enormemente ampliadas. Suas ações são essencialmente preventivas e, em decorrência, abarcam todas as práticas médico-sanitárias, como promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde 25, características essenciais para a segurança e bem-estar dos dependentes acolhidos nas CT.
O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária brasileiro é integrado pelas respectivas agências estaduais e municipais, que atuam de forma descentralizada, com ênfase na política de municipalização das ações de saúde 26. Assim, seu desafio é ser de fato prática voltada para a qualidade de vida e saúde da população e ser assumida como importante atividade do planejamento e programação de saúde no município.
Se ao atuar no cumprimento de suas funções a Visa pode ferir interesses econômicos, sua não intervenção, inclusive por seu poder policial, quando necessário, pode trazer prejuízos aos interesses de saúde da coletividade 27, o que evidencia sua importância primária de defesa e cuidado da população, como identificados na RDC 29/2011 11. Nesse sentido, com sua municipalização, a Visa deve ser componente da atenção integral à saúde, e por esse motivo é necessário incluí-la no planejamento de todas as ações programáticas de saúde pelas políticas públicas pertinentes 28.
Oliveira e Dallari 28 afirmam que a participação da sociedade na elaboração das políticas de proteção e promoção da saúde precisa ser um dos pilares da construção da cidadania, e que a Visa, principalmente na esfera local, precisa se aproximar dos conselhos de saúde como espaços públicos capazes de legitimar e dar transparência às suas ações. Dessa forma, será possível construir a cidadania ao mesmo tempo que se assegura o direito à proteção da saúde. Claramente, é neste nível que se espera relação mais produtiva e ética da Visa com as CT, uma vez que ambas estão situadas nos municípios.
Por sua vez, segundo o Ipea 7, 44% das CT têm dirigentes que integram Conselhos de Políticas de Drogas (ou análogos) em seus municípios e 40,6% delas fazem parte de Conselhos Municipais de Assistência Social, representando expressiva integração das CT nos fóruns de decisão das políticas públicas municipais. Espera-se, assim, que a participação das representações sociais nos conselhos possa fomentar processo de real avanço nas práticas da Visa, aí incluídas questões éticas pertinentes, de enorme importância para a saúde e a qualidade de vida da população 24. Para tanto, é recomendado que os membros dos conselhos de saúde, nos seus diferentes níveis, tenham formação básica em bioética 29, visando o amadurecimento da consciência pública para levar as pessoas envolvidas a adotar orientações éticas adequadas 30.
Por esta razão, Costa 31 refere que as CT, anteriormente vinculadas para fins de convênio e parcerias com a assistência social, migraram para a área da saúde, pois a dependência química é vista hoje como questão de saúde pública. Porém, questiona se a saúde está preparada para recebê-las, se relacionar com elas, capacitá-las e assessorá-las. O manual da Visa de São Paulo 32, elaborado pelo Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas, admite que muitas CT desconhecem os padrões sanitários estabelecidos. Nesse sentido, complementa-se aduzindo que a Visa deveria dar oportunidades educativas aos dirigentes e técnicos das CT para compreenderem os requisitos legais, em especial sobre as ações de melhoria da qualidade do cuidado e da segurança dos acolhidos. Recorda-se que o papel educativo da Visa faz parte de suas responsabilidades como ente do Estado 27.
Nesse quesito inclui-se a responsabilidade do Estado na execução dos mecanismos sanitários correspondentes para a segurança dos dependentes. Isso porque não basta criar normas que regulamentem as condições higiênico-sanitárias, mas é preciso dar a elas praticidade e controle, embasados não só em critérios técnicos e administrativos, mas também em critérios éticos e de resolutividade dos serviços oferecidos nas CT, uma vez que cabe ao Estado monitorar, fiscalizar e avaliar essas entidades 20. Cavalcante, Bombardelli e Almeida 33 ratificam a necessidade de monitorar constantemente as normas sanitárias, dado que o alvará sanitário concedido, por si só, não é garantia de boas condições para o bem-estar e a saúde de seus residentes, e concluem que há muito a ser desenvolvido para se aprimorar questões sanitárias nas CT.
Finalmente, admite-se que é preciso estabelecer agenda de pesquisa em Visa integrada à pesquisa em saúde, objetivando responder ao desafio de contribuir mais para o fortalecimento da cidadania e da integralidade na política pública de saúde. Além disso, é necessário produzir conhecimento e refletir sobre seus objetos de intervenção 27. Demonstra-se que existe crescimento significativo da produção científica em gestão da Visa no período entre 2000 e 2010, mas essa produção é ainda incipiente, dada a importância do setor na economia e na saúde da população 34,35.
Dessa forma, sugere-se que a bioética seja valioso instrumento de pesquisa como apoio à reflexão para as atividades da Visa. Assim, conclui-se que é necessário que a Visa, componente do sistema de saúde de maior interseção com o Direito 36, fomente estudos e pesquisas que avaliem sua adequabilidade aos princípios e diretrizes do SUS 37. Para esta tarefa, recomenda-se que a Visa estimule a inclusão de parâmetros bioéticos nas avaliações das CT para contemplar visão mais coerente com seu papel social de entidade responsável do Estado e, ao mesmo tempo, incentivar a cultura avaliativa rotineira nas CT 18,38.
A bioética pode ser definida segundo seu objeto de estudo ou seu método e finalidade, razão de não existir conceito único. Esse campo do conhecimento pode ser identificado como ética aplicada. Conceito que pode ser relacionado aos problemas éticos das CT refere ser a bioética uma nova sensibilidade humana que leva a cuidar, zelar, promover dignidade humana, qualidade de vida 39. Reconhecida em seu primórdio estadunidense como bioética individualista, voltada para as relações médico-paciente, precisou se transformar para ser mais adequada às realidades sociais de outras regiões do mundo, mudando o escopo de bioética clínica para enfatizar a bioética social.
Assim, há que se reportar à bioética voltada para a América Latina por ser relacionada às enormes desigualdades sociais e econômicas, especialmente na área da saúde. Junges 40 destaca que a bioética tem encontro marcado com a pobreza e a exclusão, pois aí reside a causa principal dos problemas de saúde de nossa população, e que forte “sabor social” qualifica este campo em nosso continente. Portanto, entre nós, prosperou na bioética a necessidade de serem criadas condutas de proteção e de intervenção social na perspectiva de amparo aos mais desvalidos, enfatizando outros princípios e referenciais mais apropriados às nossas condições de vida.
Corroborando este pensamento, Pessini 41 admite que a realidade latino-americana exige perspectiva de ética social preocupada com o bem comum, a justiça e a equidade, antes que com os direitos individuais, pois a necessidade maior nesses países pobres é de equidade na alocação de recursos e distribuição de serviços de saúde. Para Garrafa 42, a ética deve deixar de ser vista como uma abstrata questão filosófica e passar a constar da lista de nossas mais caras exigências públicas. Porém, relacionar bioética com o tema da vigilância sanitária não é tarefa fácil; ao contrário, é relação difícil pela complexidade e amplitude da ação sanitária 43.
Fortes enfatiza que é essencial a vinculação da ética às práticas de saúde pública, especificamente à Vigilância Sanitária, pois esta não pode ser observada apenas dos pontos de vista técnico, legal ou administrativo. Seu caráter ético é inerente, devido a que decisões tomadas e ações realizadas em seu âmbito causam interferência direta ou indireta nas pessoas, e no bem-estar da vida em sociedade44. A Visa deve ter como princípio ético orientador o respeito à autonomia dos indivíduos e da coletividade e deve informar seus achados para que os cidadãos possam tomar decisões autônomas, protegendo sua saúde, evitando ou minimizando prejuízos que possam sofrer decorrentes de bens e serviços de interesse da saúde 45.
Vindo ao encontro dessas ponderações, para serem comprometidas com a saúde e melhoria da qualidade de vida da população, as ações da Visa devem ser fundamentadas não só técnica, mas eticamente e com responsabilidade social 46-48. Fortes 45 lembra, ainda, que a responsabilidade ética das ações da Visa não se esgota no agora, pois suas ações ou omissões no presente podem comprometer futuras gerações. Isto reforça a importância de a avaliação sanitária das CT ser feita de acordo com parâmetros éticos rigorosos para que o ambiente oferecido proporcione plenas condições de acolher os dependentes, nos tempos presente e futuro.
Complementando, Garrafa 29 entende que os direitos configurados na legislação precisam ser transformados para serem efetivamente materializáveis e alcançarem a verdadeira cidadania. Para tanto, entre outros, o princípio da equidade, enfatizado no SUS e na DUBDH, precisa ser efetivamente incorporado às políticas públicas na diminuição das desigualdades sociais atualmente existentes 29. Entre os valores da Anvisa são citadas ética e responsabildade como agente público, e a RDC 29/2011 11 dita, entre suas exigências, os seguintes parâmetros éticos para o processo de admissão do residente: 1) respeito à pessoa; 2) sigilo segundo normas éticas e legais, incluindo anonimato; e 3) observância do direito à cidadania do residente.
Porém, manuais de fiscalização do estado de São Paulo 32 e inspeções realizadas no Sul 49 e Centro-Oeste do país 33 em 135 e 29 CT, respectivamente, limitaram-se à verificação formal de seus aspectos organizacionais, projeto arquitetônico, infraestrutura física, equipamentos, materiais e recursos humanos, sem especificar questões éticas relacionadas à oferta dos cuidados e dos serviços. Parece, assim, que em relação às inspeções nas CT, passar de enunciados teóricos às práticas correntes é salto que exige muito mais que intenção e desejo, pois é necessário que a Visa tenha instrumentos regulatórios e manuais que contemplem princípios bioéticos em lógica da ação coletiva para inspeção eticamente adequada.
Portanto, para executar tais ações, a Visa deve levar em consideração o uso de referenciais éticos que proporcionem a devida sustentação 50. Para tanto, recomenda-se que os gestores e técnicos, nos seus diferentes níveis, tenham formação básica em bioética 29,51, atividade fundamental para sensibilizar e capacitar as equipes a adotar visão ética das inspeções nas CT. Em outras palavras, é preciso proporcionar o amadurecimento de consciência pública para levar as pessoas envolvidas em decisões a adquirir orientações éticas corretas 30. Resgata-se aqui a proposta de criação de Comitês Intermunicipais de Bioética 52, que, se efetivada, poderia ser o centro de capacitação básica em bioética para integrantes dos conselhos municipais e técnicos das agências locais da Visa e da rede de atenção básica à saúde, cuja ação conjunta poderá fortalecer o controle social do sistema sanitário 48.
A responsabilidade social das organizações públicas e privadas tornou-se relevante graças à abordagem ética que lhes tem sido atribuída, sobretudo quando incorporada no âmbito de sua ação, de forma a atender às demandas da sociedade 53. Instituições são bioeticamente responsáveis quando baseiam sua atuação no respeito a valores, dignidade e integridade tanto do ser humano como da vida, da saúde e do meio ambiente. Para terem impacto, essas atitudes institucionais necessitam, sobretudo, atuar sobre a proteção da saúde, dos direitos e da dignidade humana e estar inseridas na orientação, formulação e implementação de políticas públicas 53.
A bioética sanitária defende como moralmente justificável, entre outras posições éticas, a priorização de políticas públicas que privilegiem o maior número de pessoas, pelo maior tempo e nas melhores consequências. Além disso, em perspectiva privada e individual há necessidade de reanálise de diferentes dilemas, como autonomia × justiça/equidade; benefícios individuais × benefícios coletivos; individualismo × solidariedade; omissão × participação; e mudanças superficiais × transformações concretas e permanentes 54.
Garrafa 55 enfatiza que a agenda bioética do século XXI foi definitivamente ampliada com a edição da DUBDH 1, visto que proporcionou diversas possibilidades de atuação pela incorporação dos campos sanitário, social e ambiental. Do ponto de vista político, a Declaração, que tem valor jurídico interno concreto, fornece ferramentas suficientes para aqueles que aspiram a bioética mais próxima dos problemas e dos dilemas da vida cotidiana das grandes massas da população mundial 56. Essas questões são exemplificadas por aquelas vivenciadas nas CT por gestores e acolhidos, o que exprime a razoabilidade de aproximação ética com os princípios da DUBDH.
Por sua vez, gestores públicos têm obrigação ética de fundamentar suas decisões em cuidadosa deliberação que inclua trabalhadores, produtores e usuários. Nesse sentido, a comunidade, por meio da participação social, constitui importante agente auxiliador para que a Visa defina seus mecanismos de construção da cidadania 45,48. Reforçando essa aproximação, buscam-se os pilares da construção do SUS, em que o direito a saúde, a integralidade, a universalidade e a equidade são enunciados que vêm ao encontro da DUBDH. Em consonância, a Declaração, além de pleitear a igualdade entre seres humanos, propõe a equidade como elemento essencial à vida e à saúde das pessoas, estimulando esforços e estudos que tenham esses patamares como horizonte de sua atuação 57.
Em que pese a existência de controvérsias em relação à inserção dos direitos humanos na DUBDH, os direitos sociais e ambientais que apregoa tiveram ampla receptividade 58. Registre-se, porém, que em determinadas situações, como na construção da Resolução CNS 466/2012, que regulamenta a ética em pesquisa no Brasil, a DUBDH não serviu de fonte inspiradora 59. Enquanto isso, para Bergel 56, a Declaração possui pouco valor em relação a outros documentos internacionais. Apesar dessas afirmações, a DUBDH representa importante consenso internacional dos princípios fundamentais da bioética, mesmo tendo ainda muitos desafios para garantir sua implementação efetiva 60.
De acordo com Ten Have 61, a DUBDH é fruto de esforço global, razão pela qual as definições de termos cruciais não foram incluídas por serem específicas para cada país. Isso vem ao encontro de outras observações que reconhecem suas limitações, mas reforçam seu valor para a prática da bioética, sobretudo em países sem estrutura ética adequada 62, por respeitar diferentes culturas 63,64. Neves 65 insere a DUBDH na “quarta geração” dos direitos humanos e destaca que contém princípios que se concentram no plano social, reforçados pela globalização da bioética.
No Brasil, verificou-se que os referenciais éticos da Declaração se coadunam com os princípios do SUS 66 e que os referenciais sociais e ambientais se relacionam em muitos aspectos com a ética universal de Paulo Freire. Isso abre a perspectiva de sua análise conjunta na discussão ética e política dos países em desenvolvimento 67, constatando-se que no continente latino-americano a DUBDH vem tendo aceitação crescente 57. Não bastassem essas considerações sobre a aplicabilidade da DUBDH, só o fato de que vários pesquisadores latino-americanos, sobretudo do Brasil, desempenharam importante papel na sua aprovação deveria ser fator motivacional para sua absorção pelos poderes e órgãos da esfera pública nacional 68.
A inclusão dos determinantes sociais e econômicos da saúde e da vida na DUBDH pode ser descrita como abertura da bioética à política. Ao tratar do tema “Responsabilidade social e saúde”, o artigo 14 da DUBDH é peça indispensável para responder aos conflitos éticos na saúde pública 69. No mesmo sentido, Hossne, Pessini e Barchifontaine 51 referem que a bioética pode e deve se articular com a política, mas não com a política partidária, de grupos, dogmas e amarras, e cunham o termo “bioeticalizar” a política, ou seja, a política no sentido filosófico deve se fundamentar na ética e na bioética. Sobre este assunto, de forma enfática, Ten Have 61 afirma que bioéticas e biopolíticas não podem ser separadas, e Bolonheis-Ramos e Boarini 70 propõem que questões de cunho político-econômico devem considerar a problemática do uso de substâncias psicoativas.
Garrafa e colaboradores 50 concluem que organismos e técnicos que trabalham com atividades de regulação, como é o caso da Visa, podem aproveitar, em seu exercício profissional, os princípios e referenciais bioéticos, em especial da DUBDH, ampliando suas abordagens para o campo sanitário e social. Assim, com a adoção dos princípios bioéticos da DUBDH pelo governo brasileiro, passou-se a incluir novos temas nas condutas dos gestores e interessados, como privacidade e confidencialidade, igualdade, justiça e equidade, não discriminação e não estigmatização, respeito pela diversidade cultural e pelo pluralismo, solidariedade e cooperação, responsabilidade social e saúde e proteção das gerações futuras 50, compreendendo todas as dimensões abrangidas pela bioética 65.
Esses princípios podem servir de orientação ética na abordagem das ações regulatórias de caráter preventivo e interventivo, como ocorre com a Visa na condição de setor público responsável pelo controle sanitário dos serviços de saúde 50. É possível também estendê-los às inspeções sanitárias nas CT, por serem ações de vigilância em saúde pública 71.
Por essas razões, a DUBDH foi priorizada nesta abordagem sobre políticas públicas sanitárias e CT, pois a maioria de seus artigos pode ser relacionada a funções da Visa. Por exemplo, a DUBDH se apresenta como marco para a bioética por incluir aspectos da vulnerabilidade e da responsabilidade social, orientados por princípios éticos que respeitam a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais 72. Essa condição é marcadamente presente entre os acolhidos nas CT, haja vista que a maioria deles é, historicamente, constituída por pessoas oriundas de segmentos vulnerabilizados pela pobreza 14,31.
Cabe também à Visa estabelecer parâmetros para adoção de equipamentos e tecnologias para o sistema de saúde e criar mecanismos para monitoramento dos efeitos adversos dos recursos tecnológicos, além de avaliação e gerenciamento adequado de risco, preocupações estas inseridas nos artigos 4º e 20 da DUBDH, respectivamente 73. A análise do primeiro deles remete à visão da ética utilitarista, já que se trata de maximizar benefícios e minimizar danos, enquanto o último possibilita a visão de que a ética possui recursos intelectuais suficientes para abordar o tema com racionalidade na busca de soluções justas 74.
Outros pontos da DUBDH também são significativos, ressaltando-se o artigo 10, que pode ser considerado estímulo ético às ações da Visa nas CT, pois reforça que a igualdade fundamental de todos os seres humanos em dignidade e em direitos deve ser respeitada para que eles sejam tratados de forma justa e equitativa1. Como ensina Berlinguer 75, o direito à saúde não pode ser entendido em termos de igualdade, mas de equidade, a qual consiste em criar ou favorecer, para cada indivíduo, a possibilidade de perseguir e de atingir o nível necessário de saúde que lhe é próprio. É na ótica dessas definições bioéticas que a Visa deve utilizar a DUBDH na supervisão das CT, de modo a promover ações de maior eficácia, justas e equitativas em relação aos acolhidos.
Tendo em vista que um dos objetivos da Visa trata de suas relações internacionais na proteção e segurança da população, identifica-se na DUBDH a acolhida a esta atitude de cooperação internacional. Isso porque, em seu artigo 24, a Declaração preconiza que os Estados devem apoiar a difusão internacional da informação científica e encorajar a livre circulação e a partilha de conhecimentos científicos e tecnológicos1. É factível inserir nesse contexto a pesquisa de suporte ético às ações da Visa em relação a organismos internacionais ligados às CT em várias partes do planeta, onde funcionam em estreita articulação com os poderes executivos. São exemplo disso a World Federation of Therapeutic Communities, a European Federation of Therapeutic Communities e suas congêneres da vigilância sanitária no mundo.
Talvez o único artigo da DUBDH que não se correlacione, no Brasil, com qualquer campo das políticas públicas em saúde seja o 19, que recomenda a criação de comitês de bioética e a educação, sensibilização e mobilização do público nessa matéria. Isso porque, lamentavelmente, o Brasil ainda não possui Comitê Nacional de Bioética, apesar de propostas terem sido apresentadas há muitos anos 76,77. Caetano e Garrafa 78 chamam atenção para a necessidade de divulgação da DUBDH, como contido em seu artigo 22, e concluem que a declaração não chega ao público e às esferas dos diferentes poderes para que seus parâmetros éticos sejam colocados em prática pelos indivíduos, comunidades e países.
Se tal desiderato for atingido, será possível proporcionar construção de políticas públicas para o país embasadas nas recomendações bioéticas da DUBDH 78, inclusive aquelas relacionadas às ações da Visa em relação às CT. Por este motivo, volta-se a lamentar a ausência no Brasil de Comitê Nacional de Bioética, por ser ele importante mecanismo de difusão da DUBDH na conscientização dos parâmetros éticos para as instituições e a população 79-81. Ainda, é enfatizada a importância da educação em matéria de ética em saúde pública 82, como destacado de forma enfática por Kanekar e Bitto: na era atual dos desafios de saúde pública enfrentados nacional e internacionalmente, ter profissionais de saúde pública não treinados eticamente é, possivelmente, imoral e antiético, e põe em risco a saúde da população83.
Em conclusão, propõe-se que a Visa adote ações de saúde na ótica de seu papel preventivo de proteção aos dependentes de substâncias psicoativas nas CT, incorporando os princípios da bioética social da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos1 por ser este instrumento capaz de enriquecer as avaliações sanitárias.
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