Resumo: A traqueostomia é procedimento frequentemente realizado em doentes críticos com ventilação mecânica prolongada ou presumidamente prolongada, embora suas indicações, benefícios e riscos sejam controversos. O termo de consentimento livre e esclarecido é necessário para procedimentos cirúrgicos e tem sido amplamente instituído, devendo ser obtido antes da traqueostomia em pacientes críticos. Este artigo faz revisão narrativa das indicações do procedimento e, considerando-o no caso de doentes críticos, aborda a aplicação do termo de consentimento livre e esclarecido. Discutiram-se aspectos teóricos; o que deve constar nos documentos escritos; o que deve ser verbalizado para os doentes e seus familiares, além de outros aspectos práticos. Concluiu-se que os atuais termos de consentimento para traqueostomia em doente crítico não privilegiam a autonomia, pois evitam alocação de recursos para indicação do procedimento.
Palavras chave: TraqueostomiaTraqueostomia,Cuidados críticosCuidados críticos,Termos de consentimentoTermos de consentimento.
Abstract: Although tracheostomies are often performed in critical patients with prolonged or presumed prolonged mechanical ventilation, the recommendation, benefits and risks of the procedure remain controversial. Informed consent is widely established as a necessary process in surgical procedures and should be obtained prior to the performing of a tracheostomy. The present article provides a narrative review of the process of the medical recommendation of this procedure and, through the use of the tracheostomy in the critical patient, addresses the application of the informed consent term. Theoretical aspects are discussed, such as what should be included in written documents and what should be verbally explained to patients and their families, together with other practical aspects. It was found that the current terms of consent for tracheostomies in critical patients do not prioritize autonomy, as they avoid the allocation of the resources necessary for the recommendation of the procedure.
Keywords: Tracheostomy, Critical care, Informed consent.
Resumen: La traqueotomía es un procedimiento frecuentemente realizado en pacientes críticos con ventilación mecánica prolongada o presumiblemente prolongada, aunque sus indicaciones, beneficios y riesgos sean controvertidos. El documento de consentimiento libre e informado es necesario para la realización de procedimientos quirúrgicos y ha sido ampliamente instituido, debiendo ser obtenido antes de la traqueostomía en pacientes críticos. El presente artículo hace una revisión narrativa de las indicaciones de este procedimiento y, considerándolo en el caso de pacientes críticos, aborda la aplicación del documento de consentimiento libre e informado. Se discutieron aspectos teóricos; lo que debe constar en los documentos escritos; lo que debe ser verbalizado a los enfermos y a sus familiares, además de otros aspectos prácticos. Se concluye que los actuales documentos de consentimiento para traqueostomía en el paciente crítico no privilegian la autonomía, pues evitan la asignación de recursos para la indicación del procedimiento.
Palabras clave: Traqueostomia, Cuidados críticos, Término de consentimiento.
Atualização
Traqueostomia no doente crítico na era do consentimento livre e esclarecido
Tracheostomy in critically ill patients in the era of informed consent
Traqueostomía en el paciente crítico en la era del consentimiento libre e informado
Recepção: 7 Junho 2017
Revised document received: 18 Agosto 2017
Aprovação: 21 Agosto 2017
A traqueostomia no doente crítico é frequentemente indicada pelos intensivistas em casos de tempo prolongado ou presumidamente prolongado de ventilação mecânica. Nessas circunstâncias, o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) deve ser obtido para realizar o procedimento. Para tanto, é necessário que os profissionais de saúde compreendam melhor os aspectos bioéticos envolvidos, considerando indicações, potenciais benefícios, riscos e alternativas.
São considerados benefícios da traqueostomia em doentes críticos: redução de alterações anatômicas laríngeas e de carga inspiratória, e maior tolerância e facilidade do cuidado de enfermagem em relação a intubação orotraqueal 1. A maioria desses benefícios é de difícil quantificação, e a identificação de desfechos mais consistentes é necessária. Revisões sistemáticas e metanálises têm comparado o melhor momento (precoce versus tardia versus não realização de traqueostomia) e a melhor técnica (cirúrgica ou percutânea por dilatação).
Andriolo e colaboradores 2 em recente metanálise revisaram a literatura comparando traqueostomia precoce (≤ 10 dias) e tardia (> 10 dias) no cuidado de doentes criticamente enfermos, na qual foram incluídos oito estudos e 1.977 participantes. O resultado indicou redução de mortalidade para doentes submetidos à traqueostomia precoce em períodos variáveis entre 28 dias e dois anos. Contudo, os autores sugeriram que esses dados devem ser interpretados com cautela, pois a informação sobre subgrupos foi insuficiente, assim como características individuais associadas a maior benefício da traqueostomia precoce. Os resultados relacionados ao tempo de ventilação mecânica não foram considerados definitivos, mas apontaram benefício do procedimento. Não houve diferença em relação à incidência de pneumonia.
Meng e colaboradores 3 compararam traqueostomia precoce (≤ 10 dias) e tardia (> 10 dias) considerando nove estudos randomizados e 2.040 participantes. Não foram encontradas diferenças em relação a mortalidade (hospitalar ou 30 dias), período de ventilação mecânica e internação na unidade de terapia intensiva (UTI). Doentes submetidos a traqueostomia precoce apresentaram menor tempo de sedação.
Huang e colaboradores 4, em metanálise anterior, compararam traqueostomia precoce (≤ 10 dias), traqueostomia tardia (> 10 dias) e não realização de traqueostomia, analisando os últimos dois grupos conjuntamente. Verificaram-se nove estudos randomizados com 2.072 participantes. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas em relação a mortalidade aos 90 dias, tempo de ventilação mecânica e internação na UTI, e incidência de pneumonia.
Interessante resultado foi alcançado por Siempos e colaboradores 5, que realizaram metanálise de 13 estudos com 2.434 pacientes, comparando separadamente três grupos: doentes submetidos a traqueostomia precoce (≤ 1 semana) ou tardia (> 1 semana) e doentes não traqueostomizados. Também não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas em relação à mortalidade na UTI ou após um ano em qualquer dos três grupos. No entanto, doentes submetidos à traqueostomia precoce apresentaram menor incidência de pneumonia associada a ventilação mecânica.
McCredie e colaboradores 6 publicaram recentemente metanálise incluindo dez estudos com 503 vítimas de injúria cerebral aguda (traumatismo cranioencefálico, hemorragia subaracnóidea aneurismática, acidente cérebro-vascular, pós-craniotomia, anóxia pós-parada cardiorrespiratória, estado epilético, meningite, encefalite e abscesso cerebral) comparando traqueostomia precoce (≤ 10 dias), tardia (> 10 dias) e não realização de traqueostomia. A precoce reduziu mortalidade em longo prazo (6 a 12 meses) e duração de ventilação mecânica, mas não mortalidade em curto prazo (intra-hospitalar ou em até 60 dias).
Cai e colaboradores 7 avaliaram por metanálise os desfechos de vítimas de traumatismo cranioencefálico submetidas a traqueostomia precoce e a traqueostomia tardia ou não traqueostomizados. Não foi especificado o limite de tempo para definir precoce ou tardia. Esses intervalos variaram de até 4 dias para traqueostomia precoce e mais de 28 dias para traqueostomia tardia. Foram incluídos 20 estudos com 7.751 participantes. Os doentes submetidos a traqueostomia precoce apresentaram menor mortalidade, redução de tempo de internação em UTI ou hospital, de ventilação mecânica, e menor risco de pneumonia.
Embora a prevenção de estenose infraglótica seja considerada potencial benefício da traqueostomia, complicações de vias aéreas também podem ocorrer após o procedimento 8. Uma das complicações é a estenose traqueal, geralmente na região do estoma, que pode exigir intervenção cirúrgica com taxa de mortalidade pós-operatória de até 5% 9.
Mais recentemente, a técnica dilatacional percutânea tem sido preconizada como forma de evitar complicações da traqueostomia cirúrgica 10. Pesquisa com 429 médicos de 59 países confirmou a disseminação da técnica com dilatação única, adotada em 42% dos casos, 74% destes realizados por médicos intensivistas. A traqueostomia cirúrgica correspondeu a 24% dos procedimentos.
O predomínio da técnica percutânea por dilatação única resulta da representação de países europeus no estudo, já que fora da Europa a técnica cirúrgica prevalece (36%) sobre as percutâneas analisadas separadamente. A maioria das traqueostomias cirúrgicas (84%) foi feita na própria UTI. As traqueostomias foram realizadas após 7 a 15 dias de admissão na UTI, geralmente indicadas por ventilação mecânica prolongada (54%) acompanhada por desmame difícil ou prolongado (24%) 11.
Embora sejam relatadas menores taxas de perda sanguínea e de complicações infecciosas com traqueostomia percutânea, não parece haver menor taxa de estenose traqueal 12. Complicações relacionadas ao procedimento cirúrgico são relativamente frequentes, embora evitáveis, geralmente associadas a material indisponível, treinamento inadequado de pessoal e falhas de comunicação 13. Em relação à técnica percutânea, óbitos também têm sido relatados com incidência de 0,17% 14.
Argumento favorável à indicação de traqueostomia em doentes críticos é a possibilidade de transferir seu cuidado para unidades semi-intensivas ou mesmo abertas, disponibilizando leitos críticos para outros doentes 15. Alguns doentes recebem alta da UTI com equipamentos de ventilação não invasiva usados invasivamente por traqueostomias. No entanto, a presença de cânulas de traqueostomia em unidades de internação é fator associado a maior mortalidade hospitalar 16, e o cuidado multidisciplinar parece reduzir complicações nesses casos 17.
A necessidade de traqueostomia consta em definições de doentes críticos crônicos, subgrupo com elevada mortalidade intra-hospitalar, internações prolongadas, sequelas neurocognitivas e musculares e, principalmente, dependência de ventilação mecânica por períodos mais longos 18.
De maneira geral parece haver benefício de traqueostomia precoce em doentes com injúrias neurológicas agudas em relação a traqueostomia tardia ou não realização do procedimento. Embora a traqueostomia precoce seja um pouco melhor que a tardia para o restante da população de doentes críticos, nenhum dos dois grupos em estudo parece ser definitivamente superior a não realização de traqueostomia e manutenção prolongada de intubação traqueal.
As potenciais complicações do procedimento, precoce ou tardio, também não devem diminuir ou ser decisivamente influenciadas pela adoção de técnica cirúrgica ou percutânea. É fundamental ainda reconhecer os riscos de transferir doentes para unidades abertas.
A importância do consentimento informado foi evidenciada pela primeira vez em 1767 na Inglaterra, em julgamento a respeito de cirurgia realizada contra a vontade de um doente (caso Slater versus Baker & Stapleton) 19. Desde então se tornou tácita ou explicitamente estabelecido solicitar autorização expressa, do doente ou de seus representantes legais, para procedimentos invasivos 20. O objetivo do consentimento informado é garantir o exercício da autonomia a partir do conhecimento das indicações, benefícios, riscos e alternativas terapêuticas 21.
O consentimento deve resultar, mais do que de adequada informação unilateral, da comunicação efetiva entre os dois agentes: o médico que fornece as informações e o doente ou seu representante legal. Esses últimos são os legítimos sujeitos da ação ao consentir ou não com o procedimento. Por outro lado, transmitir unilateralmente a informação pode manter a atitude paternalista do profissional de saúde.
A assimetria entre emissor e receptor da informação deve-se a um problema de tradução do termo inglês informed consent para “consentimento informado” ou mesmo da versão francesa para “consentimento livre e esclarecido” (utilizada em nosso meio). Com a tradução, o sentido de comunicação e interação entre os indivíduos parece ter se perdido 22, o que pode limitar a autonomia de quem consente com a prática da traqueostomia, especialmente ao se considerar o exíguo benefício e os riscos envolvidos.
A comunicação inadequada também pode gerar falsas expectativas frequentemente relatadas por doentes e familiares, os quais podem deduzir que a traqueostomia seja passo positivo para a evolução do quadro clínico 23. Além disso, a indicação do procedimento como forma de transição do cuidado baseada no princípio da justiça, visando melhor alocação de leitos críticos, muitas vezes não é verbalizada pelos intensivistas, embora também faça parte do arcabouço teórico do TCLE 24. Assim, a beneficência torna-se secundária e a autonomia, limitada.
O referencial bioético de princípios básicos (beneficência, não maleficência, autonomia e justiça) foi estruturado com base na teoria de princípios prima facie, desenvolvida por David Ross. A expressão latina indica uma obrigação que deve ser cumprida a menos que entre em conflito com uma obrigação de importância equivalente ou maior25. Os princípios clássicos derivam de três raízes filosóficas, sem hierarquia clara entre elas 26.
A não maleficência é o princípio fundamental da tradição hipocrática e preconiza que o médico, em primeiro lugar, deve se abster de causar dano, sendo esta exigência moral da profissão. A beneficência, por sua vez, tem sido associada à excelência profissional desde os tempos da medicina grega e está expressa tanto no juramento de Hipócrates quanto na teoria utilitarista de John Stuart Mill 25. Trata-se da aplicação de todos os conhecimentos e habilidades profissionais a serviço do paciente para minimizar riscos e maximizar os benefícios do procedimento a ser executado.
Já a autonomia é a capacidade de decidir fazer ou buscar aquilo que se julga ser o melhor para si. Para que se possa exercer essa autodeterminação, são necessárias duas condições fundamentais: capacidade de agir intencionalmente, o que pressupõe compreensão, razão e deliberação para decidir coerentemente entre as alternativas apresentadas; e liberdade, no sentido de estar livre de quaisquer influências na tomada de decisão 25. A autonomia está eticamente fundamentada na dignidade humana.
Beauchamp e Childress basearam-se em Immanuel Kant e John Stuart Mill para justificar o respeito à autodeterminação. Kant, em sua ética deontológica, explicita que a dignidade provém de condição moralmente autônoma e que, por isso, merece respeito e deve ser tratada como fim em si mesma, e nunca como meio. Mill, um dos expoentes do utilitarismo anglo-saxão do século XIX, posicionou-se de maneira semelhante ao sugerir que os cidadãos deveriam se desenvolver de acordo com as próprias convicções, desde que não interferissem na liberdade dos outros 25.
O TCLE, portanto, é decisão autônoma e capaz, verbal ou escrita, em relação a um tratamento específico, depois que o paciente recebeu informações sobre indicações, benefícios, riscos e possíveis alternativas 25,26.
A ética biomédica tem dado ênfase à relação interpessoal de profissionais de saúde e pacientes, na qual beneficência, não maleficência e autonomia exercem papel de destaque, ofuscando, de certo modo, o princípio da justiça. Esta se associa em geral a relações entre grupos sociais, lidando com a equidade na distribuição de bens e recursos considerados comuns, na tentativa de igualar oportunidades de acesso a esses bens 27. O conceito de justiça como equidade é permeado pelas ideias de John Rawls. Para o autor, equidade deve ser entendida como normas de cooperação reconhecidas por pessoas livres e iguais em direitos que sejam válidas para todos os seres humanos, sem nenhum tipo de distinção 28.
Os princípios delineados por Beauchamp e Childress 25 não são hierarquizados, porém ao longo dos anos a autonomia vem se sobressaindo em relação aos demais, talvez por influência de Engelhardt 29. Na visão do autor, o princípio da autonomia, frequentemente rebatizado de princípio da permissão, torna-se a base do consenso entre diferentes morais e determina se uma ação é boa ou não, a despeito de outros critérios. Na prática clínica, essa perspectiva é potencialmente perigosa, pois pode permitir tratamentos discutíveis ou que não considerem as necessidades de terceiros, contemplados no arcabouço de Beauchamp e Childress 30.
Uma visão ainda mais exacerbada de autonomia tem sido sugerida com a mudança de consentimento para solicitar tratamento (request for treatment), embora a proposta tenha o mérito de buscar reduzir a assimetria na relação entre médicos e doentes/familiares. Nesse caso, o usuário preencheria a requisição de procedimento, ou seja, um documento com indicações, benefícios, riscos, complicações e alternativas. Posteriormente, o médico esclareceria eventuais dúvidas e equívocos e, finalmente, em comum acordo, ambos definiriam o tratamento 19.
Pouco se sabe do impacto de diferenças socioculturais na obtenção do TCLE. O predomínio do individualismo anglo-saxão tem sido identificado como potencial fonte de conflito em sociedades em que a família é culturalmente preponderante, como na China 31. Um ato pode atender às três principais condições para configurar-se como autônomo – ser intencional, realizado com compreensão adequada e sem controle externo – e mesmo assim não o ser verdadeiramente por falta de autenticidade. Além disso, é considerado autêntico quando coerente com o sistema de valores e atitudes gerais assumidos reflexiva e conscientemente, o que pode ser obstáculo quando se considera diferenças socioculturais 32.
Outra questão controversa é a defesa de que para qualquer consentimento para procedimento cirúrgico haja dados sobre o desempenho individual dos profissionais. As medidas de desempenho foram usadas inicialmente para melhorar a qualidade nas instituições. A pressão para tornar públicas essas informações surgiu em razão das cirurgias de revascularização miocárdica. Em tese, a partir das informações de desempenho, os pacientes poderiam fazer melhores escolhas, justificando, portanto, sua presença nos termos de consentimento 33,34.
A adesão a padrões de termo de consentimento adequadamente documentados, além da verbalização da natureza do procedimento, de riscos e alternativas, pode ser problemática. De fato, pesquisas têm demonstrado adesão reduzida de cirurgiões a padrões mínimos de TCLE 35,36. Estudo no Brasil mostrou que embora profissionais considerem o TCLE importante, não o utilizam rotineiramente. Além disso, quando é utilizado, entendem como desnecessário transmitir todas as informações. Além disso, omitem algumas delas não somente por considerá-las dispensáveis, mas para facilitar a prática médica.
Muitas vezes busca-se evitar que o enfermo perceba os riscos, o que poderia levá-lo a recusar o tratamento proposto. Nesse estudo qualitativo, a necessidade de informação foi definida como “fundamental” apenas uma vez pelos entrevistados, demonstrando a despreocupação com esse dever 37.
Contradições entre diretrizes clínicas e prática assistencial são comuns. Os pacientes sabem bem menos do que os profissionais acreditam e do que deveriam saber a respeito dos procedimentos neles realizados. A prática do consentimento, por consequência, geralmente responde apenas a objetivos administrativos ou legais 38. Estudo realizado na Espanha sobre a percepção de pacientes acerca do TCLE demonstrou que reconheciam o documento mais como formalidade do que como obrigação ética, alguns se sentindo, inclusive, coagidos a assiná-lo 39.
O parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM), parecer consulta CFM 8.334/2000, julga necessário o TCLE, porém considera que informações repassadas aos pacientes sobre o procedimento não precisam constar no termo 40.
O consentimento informado é particularmente importante para doentes críticos por estarem entre os mais vulneráveis no ambiente hospitalar 41. O cuidado com esses pacientes e a alocação de recursos complexos geram grandes desafios em relação ao exercício dos denominados princípios bioéticos centrais na prática clínica: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.
Exercer autonomia depende de capacidade decisória, informação adequada, compreensão, escolha voluntária e autorização formal para receber determinada intervenção 24. Um problema no caso de doentes críticos é a incapacidade de decidir, o que implica julgamento médico e pode enviesar o exercício da autonomia. O profissional precisa determinar se o doente compreendeu e reteve a informação relevante para a decisão, e a usou no processo decisório, ciente das consequências de tomar decisão contrária à proposta ou de não decidir. Ademais, deve ponderar sobre a capacidade do paciente de comunicar sua decisão 25.
Evidências mostram que doenças agudas podem interferir na compreensão da própria situação e na capacidade de avaliar riscos e benefícios 42. Alterações neurocognitivas, depressão e ansiedade também podem prejudicar a capacidade decisória. Nos casos em que o doente não pode fazer escolhas, obter o TCLE por intermédio de substituto é uma alternativa 24. Estudo mostrou que a evasiva de profissional em responder questões formuladas diretamente também é fator estressor a ser considerado 43.
Termos de consentimento para pacientes críticos são obtidos para procedimentos invasivos não urgentes realizados à beira do leito, assegurando que o doente ou seu representante consentiria. O modelo não inclui a traqueostomia realizada em bloco cirúrgico, para a qual consentimento específico é requerido 44.
Termos de consentimento podem ser feitos para procedimento específico ou ter caráter universal. O uso de termos de consentimento universais é controverso, pois um dos requisitos para a validade de ato jurídico é que seu objeto seja determinado ou determinável 45. Estudo identificou elevação na adesão à prática de autorização prévia com termos universais 45, porém outro trabalho demonstrou o oposto 46. Stuke e colaboradores 48 apontaram em estudo nos Estados Unidos (EUA) menor obtenção de consentimento informado em UTI cirúrgicas e para procedimentos como intubação não emergencial e introdução de cateteres intra-arteriais, além de prevalência de apenas 14% de termos de consentimento universais para pacientes críticos.
Uma das dificuldades levantadas pelos médicos intensivistas para obter o consentimento é o gasto de tempo para sua aplicação, que pode atrasar a assistência ao doente. No entanto, Marsillio e Morris demonstraram que o tempo necessário para obter o documento foi de apenas cinco minutos, embora questões logísticas referentes à presença dos familiares não tenham sido levadas em conta 49.
Cabe ressaltar que estudo realizado na Austrália sobre a expectativa dos doentes e seus familiares em relação ao consentimento demonstrou que apenas 27% dos usuários gostariam de solicitar consentimento prévio a cada procedimento eletivo, enquanto 59% achariam suficiente o consentimento não escrito 50. Estudo que avaliou a satisfação de familiares com a introdução do consentimento universal para diferentes procedimentos mostrou resultados favoráveis a essa prática, porém a traqueostomia lato sensu não estava incluída no documento 51.
Aderir à obtenção do TCLE para realização de traqueostomia em doente crítico é um dos seis indicadores de qualidade da Spanish Society of Intensive and Critical Care Medicine and Coronary Units. Questionário respondido por 68 UTI na Espanha mostrou adesão de 92% a esse quesito 52.
Vargas e colaboradores 11 em questionário com 429 médicos de 59 países mostraram que somente em 61% das ocasiões o consentimento informado era previamente obtido para a traqueostomia, geralmente em países não europeus que participaram do estudo (88% das ocasiões).
Em estudo anterior, realizado na Itália, a obtenção do consentimento para a traqueostomia diferiu entre doentes conscientes (82% das ocasiões) e inconscientes (62% das ocasiões). Informações sobre os benefícios e riscos constavam em consentimentos informados em apenas 61% das UTI participantes. Esses dados não foram condizentes com a legislação italiana, que exige o TCLE para procedimentos cirúrgicos eletivos 53. No estudo realizado por Stuke e colaboradores 48 a taxa de obtenção do documento para traqueostomia atingiu 97%.
Embora não tenhamos dados do nível de adequação dos termos para traqueostomias nem da forma como ocorre a comunicação de intensivistas ou cirurgiões a doentes e familiares, é possível supor que a documentação seja adequada e ocorra incompleta verbalização dos aspectos relacionados ao procedimento em nosso país. Consentimentos específicos atualizados com a melhor evidência disponível, além de estímulos a comunicação efetiva, têm melhorado a adesão a boas práticas em outros contextos 54. De fato, em nosso meio também é destacada a necessidade de TCLE com a maior especificidade possível 55. A inclusão de traqueostomia em termos de consentimento universais, mesmo para minitraqueostomias ou procedimentos percutâneos, não parece adequada.
Aspecto a ser considerado é a frustração de doentes e familiares com a evolução da doença crítica crônica e a falsa expectativa relacionada à realização da traqueostomia. É possível inferir que muitos doentes ou familiares não teriam concordado com o tratamento retrospectivamente. De fato, estudo constatou que a taxa de consentimento seria influenciada retrospectivamente em uma unidade neurointensiva em razão de pior prognóstico neurológico 56.
Lidar com a incerteza prognóstica é tarefa difícil para muitos médicos intensivistas 57. Incertezas científicas podem derivar da incapacidade de determinar o risco de evento futuro, quanto a força ou a qualidade de evidências para estimar o risco, ou podem advir de achados conflitantes em diferentes estudos. A dificuldade do profissional em expor incertezas, na forma de probabilidades, reduz a capacidade de tomar decisões compartilhadas com pacientes e familiares 58.
A incapacidade de lidar com a incerteza pode passar a impressão de que a decisão é exclusivamente técnica e não um complexo julgamento de valores 59. Diante da incerteza explicitada, fica claro que a resolução depende dos valores do doente ou de seus decisores substitutos a respeito dos benefícios e riscos envolvidos 60. Essa incapacidade, predominantemente estudada em relação ao prognóstico de doentes críticos, também pode ser determinante quando a traqueostomia é solicitada, já que os benefícios desse procedimento podem não ser tão marcados, especialmente em doentes sem injúrias neurológicas agudas.
Somente compreendendo indicações, benefícios esperados, riscos envolvidos e a alternativa de não realizar o procedimento, mantendo o doente intubado prolongadamente, é que uma decisão autônoma legítima pode ser tomada. Educação formal pode ajudar profissionais de saúde a se sentirem mais confortáveis com a necessidade de comunicar incertezas em forma de risco e probabilidades 58. A capacidade do profissional de transmitir com veracidade o quadro clínico, riscos e benefícios do procedimento proposto pode influenciar a compreensão do doente e de seus familiares.
A possibilidade de que doentes e familiares recusem a traqueostomia é real, se seu benefício não for embasado, assim como seus riscos, além da possibilidade de não aceitarem o princípio da justiça relativo à alocação de leitos para outros enfermos.
Aspecto pouco enfatizado diz respeito a que riscos devem constar no termo de consentimento e quais devem ser verbalizados. Não existem diretrizes explícitas quanto a isso, mas de maneira geral todos os riscos graves e os mais frequentes, mesmo quando menos graves, devem ser informados no termo de consentimento 61.
Na Inglaterra, por exemplo, o National Health Service recomenda que constem complicações com percentuais acima de 1 e 2%, além de quaisquer complicações graves, mesmo que mais raras. Rajab e colaboradores 62 sugerem que complicações tardias como o surgimento de aderências (bridas) após intervenções abdômino-pélvicas sejam citadas ao se solicitar TCLE para procedimentos cirúrgicos abdominais. De forma análoga, entendemos que a estenose traqueal deve ser lembrada como complicação tardia quando da solicitação do consentimento. A possibilidade de não realizar o tratamento deve ser considerada 61, o que também é importante no que se refere à traqueostomia em paciente crítico.
Como amplamente recomendado, a linguagem deve ser acessível ao doente ou seus familiares 61. O termo pode ser retirado a qualquer momento, e data e horário devem ser registrados. A priori, de maneira geral, considera-se que mesmo um indivíduo mentalmente doente pode negar tratamento 61.
Paradoxo relevante surge da possível transferência excessiva de responsabilidade para o enfermo e seus familiares. Nenhuma regra é aplicável a todos os indivíduos. Schwartz considera que a transferência de responsabilidade possa ter ido longe demais 63. Muitas vezes, os doentes não desejam essa liberdade. Embora satisfeitos por ter sua autonomia respeitada, podem exercitá-la optando por abandoná-la 63.
É fundamental não reduzir o termo a pura formalidade, mediante diálogo entre médico e paciente. A transparência e a redução da assimetria entre os dois agentes asseguram o respeito à autonomia do paciente. Dessa forma, uma decisão suficientemente autônoma pode ser tomada, sem que todas as informações precisem estar necessariamente escritas no documento, desde que verbalizadas.
A autonomia deve estar em equilíbrio com os demais princípios básicos. O predomínio exacerbado da autonomia pode criar distorções potencialmente perigosas em relação à alocação de recursos, comprometendo o princípio da justiça. Por outro lado, médicos intensivistas têm dificuldade em reconhecer, diante de doentes e familiares, a alocação de recursos (leitos críticos), garantida pelo princípio da justiça, como indicação para a traqueostomia. Isso pode levar à superestimação de benefícios e minimização de riscos do procedimento, gerando desconforto nos profissionais, mesmo que essa sensação não seja acompanhada de reflexão. Essa dissonância cognitiva pode ser caracterizada como ficção moral 64, pois os profissionais se sentem desconfortáveis em colocar a justiça, que atende a critérios coletivos, acima dos demais princípios clássicos (autonomia, beneficência e não maleficência), voltados sobretudo à dimensão individual.
O levantamento das metanálises sobre realização da traqueostomia e obtenção do TCLE para o procedimento mostrou que pode ser necessário revisar os termos e a forma de comunicação entre médicos e doentes ou seus decisores substitutos. Esses documentos devem conter indicações, benefícios, riscos precoces e tardios, além de alternativas ao procedimento proposto. Além disso, esses aspectos devem ser verbalizados no momento em que se solicita a anuência.
Também pode ser fundamental reconhecer a justiça como um dos princípios envolvidos na indicação da traqueostomia, para que a decisão tomada seja realmente livre e esclarecida. A justiça na alocação de recursos como indicação da traqueostomia fatalmente entrará em conflito com a autonomia do doente e seus representantes, porém a solução desse conflito passa por uma relação transparente entre os agentes envolvidos.
Conclui-se que a traqueostomia, independente da técnica do procedimento, não pode ser contemplada pelos termos de consentimento universais atualmente utilizados para doentes críticos. A traqueostomia não é considerada pela maioria dos atuais TCLE, pois estes, em geral, não esclarecem os benefícios, não informam todos os riscos, e não abrangem a não realização da traqueostomia como alternativa viável. Além disso, não integram a justiça como princípio motivador da indicação do procedimento.
Edison Moraes Rodrigues Filho e José Roque Junges escreveram e revisaram o artigo conjuntamente.
Correspondência. Edison Moraes Rodrigues Filho – Rua Gávea, 64, casa 3, Ipanema CEP 91760-040. Porto Alegre/RS, Brasil.