Editorial
Mistanásia × Qualidade de vida
Velamos nossos mortos, enterramos seus corpos e cultivamos lembranças das suas vidas e de nossa convivência. Herdamos a luta contra a morte de nossos ancestrais, caçadores e coletores ou agricultores do Neolítico, que fizeram do combate pela sobrevivência o meio de preservação da espécie. Hoje, a batalha é pelo não envelhecimento e contra a morte, regida pela vaidade, apego à vida e às coisas boas que ela pode proporcionar ou pelo simples medo do desconhecido, das incertezas do quando e como a morte ocorrerá.
Bilhões são gastos anualmente com pesquisas no campo da genética, para clonar criaturas extintas, tornar o ser humano mais resistente às doenças, menos sujeito ao estresse e a outros males que acarretam doenças e desgastam o organismo. A tecnologia é usada também para não deixar que o corpo envelheça; para usar animais modificados em nossos projetos de vida, tanto na paz quanto na guerra. A luta obstinada e sem limites contra a morte afeta toda a sociedade e as representações coletivas sobre o sentido da vida e o valor do corpo, mas atinge, sobremaneira, o cotidiano dos que cuidam de pacientes terminais.
Dúvidas assolam a mente desses profissionais e os fazem usar de todos os meios para manter o paciente vivo. É dever absoluto mantê-lo vivo? A morte resulta do fracasso da técnica e do conhecimento médicos? Há a possibilidade de responsabilização ética, civil e criminal pela morte? São questionamentos comuns, frequentemente apresentados nos artigos de atualização e pesquisa da Revista Bioética, que podem desencadear angústia e descontrole nas equipes de saúde. Tal sensação atinge principalmente os que trabalham no leito de morte com quadros irreversíveis.
Portanto, é necessário que haja compreensão e aceitação da morte, da dimensão da nossa natureza primordial, cujo conhecimento reifica a existência da dignidade humana diante dos limites da medicina, da ciência, de si próprio e de quem é cuidado. A sociedade precisa aceitar a finitude da vida como fato inelutável, sem o olhar blasé daqueles que acreditam que a morte tocará apenas o outro e sem o pânico atávico dos que tentam ignorar a morte para poder afastá-la.
Ambas as formas de reagir caracterizam o tabu que se erigiu em torno da questão. Da mesma maneira que o tema é interdito em nossa sociedade, não se aprende a lidar com o fim da vida na maioria das escolas médicas. Aprendemos desde a infância sobre medicalização: para cada dor, decepção ou medo haverá um pouco de água com umas gotinhas milagrosas, e isso cria expectativas irreais. Ouvimos dezenas de vezes: “Para tudo há remédio, menos para a morte”. Mas não existe solução para tudo e não aceitamos que não haja remédio para a morte.
Mesmo tendo aprendido durante a formação que “prevenir é melhor do que remediar”, ainda temos dificuldade em ajudar pacientes a aceitar a terapêutica voltada à promoção e proteção da saúde. Essa resistência implica “automaticamente” fazer o diagnóstico e tratar doenças para restaurar a saúde. Com isso, esquecemos às vezes que “cuidar é mais do que curar”. Não discutimos a morte e, por conseguinte, como poderemos conversar com o paciente e sua família sobre isso?
Assim, excedem-se os limites técnicos e éticos, e mantêm-se nas unidades de terapia intensiva (UTI) pacientes em extrema agonia, doentes sem qualquer possibilidade de cura. Ao prolongar a dor e o sofrimento, e estendê-los a familiares e amigos, o profissional exerce o poder ignóbil de manter o processo de morte de forma exagerada e sem sentido. Ao definir a vida como bem supremo, absoluto, acima de tudo, inclusive da liberdade e da dignidade, pode-se estar criando um mito, deixando de lado outros aspectos, como saúde e família.
Existe verdadeira parafernália tecnológica da qual nos beneficiamos, mas com a qual também causamos malefícios a nós mesmos. Processos distintos, mas com objetivo similar foram usados em outras épocas, na construção e ornamentação das pirâmides que abrigariam os corpos dos soberanos (identificados com os deuses), seus pertences e até serviçais e animais de estimação, na esperança de que pudessem voltar a usá-los em outra vida. Os templos eram repletos de ícones que “olhavam” para os mesmos lugares que o homenageado, reforçando a memória de sua presença no mundo dos vivos. Tudo para garantir que se a morte havia chegado e a vida do corpo se fora, isso seria apenas breve passagem no caminho da eternidade.
Atualmente, a parafernália tecnológica e as dúvidas em relação à morte têm gerado e legitimado abusos e a onipotência de alguns profissionais — a obstinação terapêutica em prolongar a vida a qualquer custo e vencer a morte. Segundo Pessini, a aceitação e a compreensão da morte seriam partes integrantes do objetivo principal da medicina: a busca da saúde1. Nesse sentido, acrescenta Potter: um dilema que deve ser encarado pela ética médica na atualidade é o de quando não aplicar toda a tecnologia disponível2.
A terminalidade da vida não é quadro reversível, não há possibilidade de “cura” com os conhecimentos atuais. A morte se dará inexoravelmente em pouco tempo. O código de ética do American College of Physicians lista cinco aspectos para classificar o paciente em fase terminal de vida: condição irreversível, tratado ou não; alta probabilidade de morrer em um período curto de tempo, entre três e seis meses; fracasso terapêutico de todos os recursos médicos existentes e já usados. Evoluirá inexoravelmente para a morte; não há atualmente qualquer recurso médico, cientificamente comprovado, capaz de evitar tal evolução3.
Em 2006, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM 1.805/2006: Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral4. Essa resolução é o primeiro enfrentamento ético da conduta médica diante da terminalidade da vida, assegura José Henrique Rodrigues Torre 5. O Ministério Público Federal (MPF) pediu à Justiça a revogação da resolução sob alegação de que se tratava de eutanásia, proibida no Brasil, e que a ortotanásia deveria ser regulamentada pelo Congresso Nacional com edição de lei específica 6. Durante o processo, o MPF reconheceu a pertinência da resolução e pediu a extinção da ação. O juiz decidiu pela validade da resolução, que nunca mais foi contestada 7.
O Código de Ética Médica (CEM) 8, vigente a partir de 2009, mantém o teor da Resolução CFM 1.805/2006 4, proibindo a eutanásia e o suicídio assistido e repudiando a prática da distanásia, ao mesmo tempo que aprova a ortotanásia. Veda ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal e orienta que, nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal8. Em vigor desde abril de 2019, o novo CEM mantém esses ditames 9.
A Resolução CFM 1.995/2012 sobre as diretivas antecipadas de vontade e testamento vital 10 (living will) também não deixou de ser contestada, mas a decisão judicial encerrou a questão afirmando que o documento é legal e constitucional; o CFM está cumprindo seu papel; a Resolução respeita o princípio da dignidade humana; a decisão do paciente é livre; há um vazio legal e a Resolução apenas regulamenta a conduta médica; não há extrapolação de poder; é compatível com os princípios da autonomia e dignidade humana; a decisão do paciente é livre, mas a família está convidada a participar do processo11.
É essencial que os profissionais de saúde que cuidam desses doentes e de suas famílias tenham conhecimentos mínimos sobre o tema, ao menos os contidos nas seguintes publicações e conceitos: Constituição Federal 12; Código de Ética Médica 2019 8; Resolução CFM 1.805/2006 4; Resolução CFM 1.995/2012 10; dos princípios, valores e conceitos bioéticos; conceitos de eutanásia, mistanásia, distanásia, suicídio assistido e cuidados paliativos, para que possam dialogar entre si, no dia a dia da equipe de saúde, aprimorando sua habilidade de comunicação com o paciente ou representante legal, além de parentes eventualmente presentes. O que vale para qualquer paciente é imperativo para aquele em fase terminal: o direito de saber, de decidir, de não ser abandonado, de ter tratamento paliativo e não ser tratado como “objeto”.
Por fim, Pessini 13 lembra que Márcio Fabri dos Anjos cunhou em 1989 o neologismo “mistanásia”, que se referia a crime ainda não tipificado especificamente no Código Penal 14, mas claramente proibido pela Constituição 12. O termo provém do grego (mys = infeliz; thanathos = morte; “morte infeliz”), ou seja, morte miserável, precoce e evitável. A esse respeito, Ferreira destaca que é a morte impingida pelos três níveis de governo por meio da manutenção da pobreza, da violência, das drogas, da falta de infraestrutura e de condições mínimas para a vida digna15.
A diminuição sistemática do financiamento da saúde, o mau uso do dinheiro disponível no orçamento, o fechamento de leitos, serviços e unidades de saúde, a abertura indiscriminada de escolas médicas, o desprezo e desvalorização dos gestores pelo médico e demais profissionais da área, a falta de compromisso dos três poderes com a vida da população, corroídos pela corrupção, incompetência e desumanidade, são facetas da mistanásia que condicionam a vida e a morte, aumentando a vulnerabilidade dos mais necessitados 15.
O conceito de mistanásia pode ser aplicado também ao orçamento da educação, área que se interconecta diretamente com a saúde, pois ambas estão ligadas ao processo contínuo de fomentar a cidadania. Educação é a chave para o crescimento social e econômico, para a supressão da iniquidade, a conquista definitiva e palpável dos direitos fundamentais da pessoa. Tanto que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entrelaça três dimensões básicas: renda, educação e saúde16.
Não há na história contemporânea nação que tenha saído da pobreza e do subdesenvolvimento sem promover a educação, em processo político que decorre da vontade genuína de emancipar a população. Ilustram o papel fundamental da educação para o desenvolvimento social e econômico os casos da Coreia do Sul 17 e da Finlândia 18 que, a partir do planejamento das políticas de Estado, investiram sistematicamente nessas áreas durante algumas décadas, suplantando condições históricas e sociais que restringiam seu desenvolvimento e o bem-estar de suas populações.
Neste momento em que a saúde e a educação no Brasil parecem gravemente ameaçadas por cortes orçamentários decorrentes da diminuição das expectativas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), os editores da Revista Bioética sentem-se instados a juntarem-se aos educadores, pesquisadores, estudantes, sanitaristas, médicos, enfermeiros e os demais grupos profissionais que clamam por mais ponderação sobre a dotação dos recursos da União. Saúde e educação precisam ser prioridade sempre. A manutenção e principalmente o aperfeiçoamento constante da qualidade das políticas públicas que garantam o acesso universal nestas áreas são essenciais para a construção da equidade e cidadania para todos.
Os editoresSidnei Ferreira – Doutor – sidneifer47@gmail.com Dora Porto – Doutora – doraporto@gmail.com