Resumo: O debate acerca do papel e da abrangência do Sistema Único de Saúde brasileiro tem gerado inúmeras posições e propostas de mudança, que vão desde a manutenção do atual modelo – universal – até a completa privatização. Este artigo visa defender o modelo universal e público de saúde, tendo como referência a obra do sanitarista italiano Giovanni Berlinguer. Esta proposta considera que a saúde é bem coletivo, público, e, portanto, deve ser gerida por esse mesmo coletivo, observadas as necessidades particulares. Baseada na releitura dos trabalhos de Berlinguer, referência para o modelo brasileiro, esta pesquisa avança na discussão sobre saúde pública e sua ligação com a estabilidade social. Considerar essa influência no contexto de bem-estar social significa, ao mesmo tempo, não segregar, não excluir e permitir que todas as pessoas tenham vida digna.
Palavras chave: PolíticaPolítica,Sistema Único de SaúdeSistema Único de Saúde,DoençaDoença.
Atualização
Ontologia política da doença: em defesa da saúde pública
Recepção: 9 Setembro 2018
Revised document received: 27 Novembro 2018
Aprovação: 10 Dezembro 2018
Desde 2017, a sociedade brasileira tem assistido a inúmeras contravenções dos direitos sociais conquistados. Não faltam exemplos de como paulatinamente as lutas e garantias coletivas vêm sendo substituídas por interesses subjetivos, oligárquicos, mercadológicos e financistas. Junte-se a isso o extremo desinteresse de parte da população em tratar ou mesmo defender seus interesses e direitos ou participar da vida política, a essência democrática.
Não raro é possível assistir à eclosão de movimento transformista que afasta o protagonismo das classes subalternas e usa a pauta comum para promover interesses meramente individuais. As consequências imediatas variam desde a penalização econômica da sociedade até o sucateamento proposital da máquina pública, que “justifica” a privatização 1. Sendo a saúde direito social garantido pelo Estado, é também uma das áreas afetadas por esse movimento de privatização.
Assiste-se, portanto, ao loteamento dos bens públicos e à terceirização das responsabilidades governamentais, fundadas na redução da participação política de parte da sociedade e na anuência remunerada de outra parte: a empresarial 2. A necessária proposição de ações que contraponham movimentos que parecem colocar em perigo a saúde para todos requer adequada fundamentação teórica que, por sua vez, possibilite – e justifique – práticas transformadoras.
Como forma de resgatar a história e apontar caminhos para reconstruir o presente, é preciso revisitar as ações ocorridas no Brasil nos idos de 1970, especialmente em relação à reforma sanitária brasileira, e as proposituras de seu patrono, o sanitarista italiano Giovanni Berlinguer. A ideia é demonstrar como a ontologia política da doença atinge toda a sociedade, justificando a manutenção de sistema de saúde público e de qualidade. A partir disso, a proposta será apontar situações e analisar contextos que comprovam que práticas mercantis no modelo de gestão do sistema de saúde no Brasil podem levar a consequências para todo o país.
A partir das bases teóricas de Berlinguer, este artigo pretende demonstrar que a saúde é bem público que deve ser gerido pela própria coletividade. Dessa forma, a melhor forma de o fazer seria por meio de modelo de saúde universal que reconheça os determinantes sociais da doença, evitando sua ontologia política e primando pela dignidade da vida. Evidentemente, este texto contraria a privatização e terceirização da saúde e, ao mesmo tempo, propõe resgatar a história brasileira e a de todas as pessoas envolvidas e comprometidas com o movimento sanitarista, conscientes de seu papel na construção de modelo de saúde universal, público e de qualidade. Busca, na verdade, a garantia da dignidade humana tão defendida por Berlinguer em sua obra.
Em seu livro “A doença”, Giovanni Berlinguer parte da ideia de que devemos admitir que cada elemento e cada fenômeno natural, como também cada condição de existência do homem, pode igualmente transformar-se em fonte de doenças3. Tal reflexão se embasa no pressuposto dos determinantes sociais da moléstia: o autor faz questão de frisar que existe desigualdade mesmo em relação à doença.
Não que Berlinguer evoque a necessidade de igualdade patológica, mas a partir dos componentes da enfermidade é possível determinar como será sua percepção, evolução e tratamento – isso por conta de questões sociopolíticas ou potencial socioeconômico. Essa observação é comprovada ao se defrontar o modo como uma doença avança em determinado país: as nações do Hemisfério Sul, de modo geral, não têm as mesmas condições de enfrentamento que a maioria das do Norte. Praticamente o que se tem são tipos diferentes de patologia nos países desenvolvidos e naqueles subdesenvolvidos ou mesmo em desenvolvimento.
Ao refletir sobre a doença, Berlinguer 4 atesta que, independentemente da questão econômica ou social, ela é composta por três aspectos: 1) alterações corpóreas; 2) maior ou menor conhecimento da sociedade; e 3) certa interpretação da sociedade sobre a condição. Junte-se a isso o fato de que a enfermidade sempre será definida e, consequentemente, acarretará forma de ação/reação/combate construída a partir da realidade cultural e temporal.
Em cada tradição e época a doença assume determinado papel, definição e modo de tratamento. Entretanto, cabe ressalvar que apesar de ser, preliminarmente, perigosa ao ser humano, a patologia precisa ser compreendida e considerada fenômeno vital; um processo, um movimento de ação-reação entre agressão-defesa; que se combate com estímulo à saúde substancial, onde o foco é o bem-estar, o sentir-se bem5. É, portanto, processo presente na lógica do desenvolvimento humano e social que não pode e não deve ser evitado ou negligenciado.
Berlinguer sustenta que a saúde é bem coletivo. Entretanto, mesmo o sendo, apresenta características individuais, visto que cada pessoa se relaciona com ela de forma diferente. No entanto, apesar de seus aspectos subjetivos, a doença diz respeito a toda a sociedade, principalmente considerando as consequências de se negligenciar determinada condição. De maneira direta, toda a sociedade é afetada pela afecção, surgindo daí a necessidade de que toda a comunidade se solidarize com o doente, cujo sofrimento, além de pessoal, é coletivo 4.
A imposição do modelo neoliberal vem tomando conta das políticas públicas e dilapidando conquistas sociais. Essa realidade não exclui as políticas de saúde e, consequentemente, o projeto de reforma sanitária brasileiro, originário do Sistema Único de Saúde (SUS). Pelo contrário, a partir do novo modelo de regime fiscal – adotado pela Emenda Constitucional 95 –, o congelamento de gastos específicos para a saúde corresponde à desvinculação das despesas com ações e serviços públicos de saúde, (…) redução do gasto público per capita com saúde (…) [e] aumento das iniquidades no acesso a bens e serviços de saúde6. Cumpre observar que essa mesma emenda elencou as despesas com saúde, ao lado das previdenciárias, como a causa do desequilíbrio fiscal do Brasil, o que levou à formação de grupo ministerial, com participação de empresas de planos de saúde, para a criação de planos populares 7.
Paralelamente à situação de desmonte do Estado e, consequentemente, do SUS, surge no ideário político e econômico outro ponto nevrálgico: a área social. A ação do Estado volta-se para esse setor como parte de suas atribuições, pois é uma das questões mais sensíveis às condições e imposições do mercado. A obrigatoriedade – não que exista realmente no propósito do Estado de bem-estar social – de satisfazer os interesses financistas, principalmente motivados pela proposta de ajuste econômico ou reforma, tem levado a novos problemas e à manutenção de velhas situações na saúde pública. Esse cenário acaba por aprofundar desigualdades.
Não há mais integração: As políticas sociais e de saúde perderam sua dimensão integradora, tanto no âmbito nacional como no âmbito regional/estadual, caindo numa visão localista onde o local é privilegiado como o único espaço capaz de dar respostas supostamente mais “eficientes” e acordes às necessidades da população (não por acaso reduzida hoje a “comunidade”)8.
O movimento localista, fortalecido pelo desmonte do SUS, responsabiliza famílias e pessoas por sua saúde e bem-estar. Essa terceirização do dever do Estado, revestida da falsa ideia de empoderamento, leva a situações específicas de promoção da doença, uma vez que, na maioria dos casos, a população não dispõe de educação sanitária para lidar com patologias. Essa realidade se agrava quando se considera a parcela da população empobrecida, que depende única e exclusivamente da assistência pública. Além do mais, o Estado acaba por se isentar do papel fundamental, constitucional, de salvaguardar a saúde e a vida dos cidadãos brasileiros 9.
Nos governos democráticos, nos quais (em teoria) o povo se interessa e participa como centro da estruturação social e onde vigora a res publica, o Estado será apenas instituição social encarregada da organização popular. Não há, portanto, ação estatal que seja contrária ao processo democrático. Da mesma forma, toda alteração no Estado, e mesmo nas políticas dele derivadas, carece da aprovação dos cidadãos que o compõem.
Assim, quando há necessidade de reforma, seja em que âmbito for, a participação popular é fundamental e obrigatória. Entretanto, o que se tem visto nos últimos anos é o afastamento dos interesses públicos para a satisfação de subjetividades mercadológicas. Justifica-se a reforma com presumida crise do Estado, fundamentando-se em suposta ingovernabilidade caso determinadas mudanças não sejam realizadas. Inverte-se, assim, a lógica da crise: não é a falência do Estado, por conta do atendimento de demandas particulares, que causa a crise; é a crise da saúde, falência do atendimento público, que gera a crise do Estado. É o gasto da previdência, e não as concessões aos devedores, que obriga a reforma.
Essas teses são semelhantes às que vigoraram em 1970 nos países desenvolvidos 9. Dessa forma, a saída justificada pelo governo, que solapa o povo, passa obrigatoriamente pelo ajustamento fiscal (note-se que não se trata de uma reforma fiscal no sentido mais amplo, a qual, por sinal, está “adiada” sine die); reformas econômicas “orientadas para o mercado” que, supostamente, garantiriam a “concorrência interna” e condições para o “enfrentamento da competição internacional” (!); reforma da previdência social, a qual tem como propósito fundamental “retirar privilégios” cortando, na prática, benefícios e gastos; reforma do aparelho de Estado com vistas a aumentar a “governança”10.
A saída final encontrada pelo sistema é a entrega quase completa de todo gerenciamento público para a iniciativa privada. Esse é o golpe derradeiro, camuflado sob a égide de “liberdade econômica”, “controle do mercado” – dinâmicas aclamadas como privatização e descentralização para supostamente otimizar o Estado. Todo esse movimento acaba transferindo o controle de bens sociais para empresas e organizações privadas, que dificilmente levarão em conta a promoção da saúde; ao contrário, considerarão, evidentemente, o lucro antes de qualquer outro resultado.
Ao se juntar privatização com menos investimentos de recursos públicos em saúde, especialmente após a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, temos o retorno aos índices de aplicação de capital em saúde de 2003, segundo dados do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde 11. A consequência imediata de tamanha aberração é o sucateamento do SUS, que afeta diretamente famílias carentes e empobrecidas, promovendo doenças e agravando situações muito complexas.
O desmonte do SUS promove ações que, na verdade, deveriam ser combatidas; é aqui que as ideias de Berlinguer surgem como defesa da saúde pública. Para o professor italiano, a doença possui cinco processos que devem ser enfrentados e, ao mesmo tempo, tomados como referência de ação: 1) sofrimento; 2) diversidade; 3) perigo; 4) sinal; e 5) estímulo.
O sofrimento pode, muitas vezes, vir de causas aliadas à enfermidade – pode derivar dos sintomas ou ser motivado pela perda de poder físico, motricidade, independência e dignidade. Tais condições ficam ainda mais evidentes quando se considera o fato de que são, na maioria, os saudáveis (prepotentes) que acabam por definir o futuro do doente 12 (impotente e desempoderado).
Visando minimizar o sofrimento causado pela doença, Berlinguer insiste na necessidade de que todo tratamento seja sempre contra a enfermidade, nunca contra o doente. Ressalta ainda que estar doente não significa perder direitos. O enfermo, pelo contrário, deve receber atenção da comunidade, pois seu tratamento é benefício social. Mas o cuidado não pode ser oferecido de qualquer maneira – deve ser também acompanhado rigorosamente por toda a sociedade, resguardando o paciente de abusos durante o tratamento, o que causaria ainda mais sofrimento. O importante é que exista solidariedade por parte de toda a sociedade, não como compaixão ou misericórdia, mas sim como comprometimento e responsabilidade comum: a solidariedade do cuidado.
O segundo processo pode parecer estranho, como o próprio Berlinguer faz questão de ressaltar, mas a ideia de doença como diversidade visa traduzir as diversas situações de normalidade e anormalidade que definem a condição de vida das pessoas. Essas condições podem provocar exclusão social, principalmente no caso de determinadas enfermidades, como hanseníase (lepra), tuberculose e doenças mentais. No passado, havia ainda episódios em que questionar a normalidade (ou a anormalidade) significava ser portador de moléstias, o que suscitava isolamento. Muitas vezes, essa diversidade é julgada pelo viés de valores culturais e morais, sendo seu resultado incerto. Fato é que dificilmente, nesses casos, a doença seria a causa da exclusão, mas claramente passa a ser instrumento nas relações de poder da sociedade 12.
O entendimento da saúde como diversidade ajuda também a explicar algumas barreiras seletivas que se apresentam em programas de saúde pública, cuja limitação não raro é justificada pelo Estado com embasamento “científico”. No caso brasileiro, o desmonte pelo qual o Estado vem passando mostra como a saúde pode ser afetada: para se obter tratamento, a normalidade diz que as pessoas devem pagar planos de saúde ou acionar o judiciário para fazer valer seus direitos.
O problema é que esse tipo de atuação não contribui para reduzir condições patogênicas, especialmente porque não se investe em prevenção ou atenção primária. Não se observa que as doenças favorecem a marginalização das pessoas e o desemprego. Não se compreendeu ainda – aqui direcionado ao papel e ao interesse da sociedade em detrimento da vontade do setor privado – que o investimento em saúde significa potencializar todas as áreas da sociedade.
A doença nunca é fato isolado, sem consequências para o coletivo. Ela envolve toda a sociedade e traz mais danos se não é controlada. O perigo fica mais evidente quando não se tomam ações contra a enfermidade, mas sobre o doente. Esse fenômeno não é raro: em muitos casos, o doente é tomado como “indivíduo-alvo” (bode expiatório, na linguagem vulgar), excluído da sociedade e considerado como problema isolado. Entende-se que assim os efeitos da doença serão minimizados.
Entretanto, negligenciam-se as dificuldades específicas – angústias e dificuldades que essa mesma moléstia causa no âmbito familiar e social do enfermo. A doença, apesar de assim entendida, não pode ser tratada como responsabilidade específica de uma ou outra pessoa, ou mesmo só de uma instituição, como o hospital. Esse entendimento modifica a realidade da condição: de apenas um doente perigoso, passa-se ao perigo do enfermo.
O que se tem, a partir dessa situação, é a necessidade de medicina punitiva, para a qual estar doente é se colocar como peso ou problema para a sociedade, resolvido pelas práticas médicas. Abre-se mão do diagnóstico e passa-se ao julgamento político da doença e do doente 12. Saber interpretar a enfermidade como sinal e providenciar sua solução é requisito elementar de subsistência. Isso porque há relação elementar entre indivíduo, doença e sociedade: o indivíduo está para a doença assim como ela está para a sociedade. A afecção é, dessa forma, sinal coletivo, cujo caminho para a mudança passa por epidemiologia, prevenção e participação de todos no processo de saúde 12. Somente assim é possível falar em transformação da realidade.
Por fim, a enfermidade precisa estimular solidariedade entre indivíduos, de modo que combatam o isolamento, inclusive o proposital. É preciso agregar – nunca desagregar – os indivíduos em sociedade. O combate à doença deve incitar igualdade, pela equidade, evitando toda e qualquer diferenciação. Cabe ressaltar que a diferença em questão é a negativa, que deve instigar o debate sobre direitos do doente, em contraposição ao paternalismo vigente em muitos tratamentos. A doença deve estimular a atenção global à saúde, na qual a participação ativa do doente é requisito fundamental para transformar a vida.
É preciso, assim, partir do patológico para transformar a realidade 12. O desmantelamento do SUS provoca toda essa situação ao invés de minimizá-la, de modo que se torna urgente defender a saúde pública, mais do que como direito, como necessidade incontestável. Negligenciar a saúde afetará não apenas determinada classe social ou determinado país, mas toda a humanidade.
Giovanni Berlinguer sempre foi um cientista preocupado com questões sociais e empenhado em construir e defender a saúde como direito universal. Para ele, essas questões não deveriam ser relegadas ao domínio de apenas alguns indivíduos: a saúde e, consequentemente, a doença são e devem ser preocupações coletivas.
Com esse entendimento e apresentando suas consequências para toda a sociedade, Berlinguer apontou a necessidade de tratar determinantes específicos que podem prevenir outros complicadores ou impedir que os existentes se agravem. Esse processo passa por questões fundamentais para a manutenção da vida, pois, como afirma Henry Sigerist, citado por Berlinguer, em qualquer sociedade, a incidência da doença é amplamente determinada por fatores econômicos. (…) Baixa qualidade de vida, falta de comida, roupas e combustível, condições precárias de moradia e outros sintomas de pobreza sempre foram as principais causas de doenças13.
Essa observação se coaduna com a disposição apresentada pelo Fórum Mundial de Saúde em 1995 que, como apontam Garrafa, Oselka e Diniz, indicava que o principal fator de mortalidade e a primeira causa de morbidade e de sofrimento em todo o planeta aparecia quase ao final da Classificação Internacional de Doenças (CID), sob o código Z59.5 (…): extrema pobreza14. Em muitos casos, essa condição social aponta situações graves em que a própria opressão e o autoritarismo do Estado contribuem para o surgimento de patologias.
A inexistência de condições mínimas de sobrevivência e de higiene, aliada à ineficiência do Estado em relação à saúde, propicia enfermidades que trazem consequências sociais. Propõem-se, em contraposição, aspectos que podem se converter em promotores de saúde. Dessa forma, só se pode falar em saúde diante da liberdade e prosperidade social – contextos, hoje, controlados pelas disposições econômicas.
Uma vez que o direcionamento social se apresenta pelo viés econômico, que acaba segregando, excluindo os indivíduos e, consequentemente, impedindo a geração de saúde e promovendo a doença, a luta pela mudança cabe a todos os membros dessa sociedade que, incomodados com a situação, no ápice de sua participação política, denunciam as condições que impedem a vida digna e seu ciclo. Pois se a medicina deseja atingir seus objetivos completamente, deve entrar completamente na vida política e indicar todos os obstáculos que impedem a consumação normal do ciclo de vida15. Daí a importância de saber ler os determinantes sociais que promovem a doença, para assim estabelecer ações diretas e contundentes.
Berlinguer analisa aspectos importantes para chegar aos determinantes sociais da enfermidade, como os avanços industriais e tecnológicos. Em muitos casos, a falsa sensação de que esse desenvolvimento favorece a qualidade de vida esconde consequências práticas no campo da saúde, que se convertem em promotores de doenças. Entre outros, podemos citar horas excessivas de trabalho, comida insuficiente e inadequada, a exploração feroz de mulheres e crianças, casas insalubres e a ausência de qualquer forma de educação15. E ainda pobreza nas suas diversas manifestações, injustiças, (…) insegurança na nutrição, marginalização e discriminação social, proteção insuficiente da primeira infância, discriminação contra as mulheres, (…) deterioração urbana, falta de água potável, violência generalizada, lacunas e disparidade nos sistemas de segurança social16.
Manter as condições que provocam ainda mais enfermidades gera o que Berlinguer 17chama de “genocídio pacífico”. Essa situação acaba sendo agravada pela falta ou ineficiência de fiscalização e pela inércia do Estado, e só se modifica quando a sociedade passa a se organizar e a reivindicar melhorias nas condições de trabalho e vida. A partir de então, da conquista de benefícios sociais, da ampliação dos direitos, da universalização do acesso à saúde, pode-se pensar em avanços na qualidade de vida e, consequentemente, em mais dignidade e autoestima para a população.
Berlinguer sustenta, como complemento às ações contra os determinantes sociais da doença, que é preciso cuidar dos determinantes sociais da saúde, principalmente a proteção e o enriquecimento de ativos globais comuns, como a água, o ambiente e o conhecimento, que são indivisíveis, insubstituíveis e muitas vezes não reprodutíveis18. Esses são bens comuns, não estatais, que pertencem ao povo.
Outra proposta importante é transformar condições de saúde a partir de 11 providências: 1) participação do público e sua influência na sociedade; 2) seguridade econômica e social; 3) condições favoráveis durante a infância e adolescência; 4) vida profissional saudável; 5) meio ambiente e produtos saudáveis e seguros; 6) sistema de saúde que promova boa saúde; 7) proteção efetiva contra doenças infecciosas; 8) sexo seguro e saúde reprodutiva; 9) mais exercício físico; 10) hábitos saudáveis de nutrição e alimentos seguros; 11) menos uso de álcool e tabaco e liberação de drogas19.
Vale ressaltar que todas as ações propostas por Berlinguer voltam-se à dimensão global e consideram a saúde como um bem. Ele adianta que a cooperação internacional é fundamental para superar injustiças e desigualdade, tendo em vista a boa saúde global como parte integrante dos direitos de cidadania e (…) garantida como um “bem global público”20.
A proposta de Berlinguer para a saúde pública parte do pressuposto de que a medicina social não tem capacidade suficiente de análise e atuação. Isso porque não há como separar, no ideário do professor italiano, saúde e política. Então toda ação em prol da saúde é política; fazer política é pensar em saúde. Assim, mais do que simples consideração prática, a saúde é processo comum de interesse de toda a sociedade e, portanto, questão coletiva.
Para compreender como a saúde coletiva está diretamente ligada às questões sociais, às questões comuns, Berlinguer analisa alguns aspectos centrais da vida em sociedade e suas consequências. Ao pensar essa realidade, traz à tona conceito que se tornou essencial para o contexto brasileiro: a consciência sanitária, definida como um direito da pessoa e um interesse da comunidade. Mas, como esse direito é sufocado e este interesse é descuidado, a consciência sanitária é a ação individual e coletiva para alcançar esse objetivo21.
Ao colocar a saúde como direito, as propostas para sua manutenção recaem sobre o mundo político. Não há, portanto, como propor saúde sem passar pela política. Da mesma maneira, se é necessário discutir saúde como política, e sendo esta essencialmente participação popular, a saúde passa a ser objeto de interesse social. Ressalte-se ainda que as ações (e as inércias) relacionadas à saúde trarão consequências para todos os indivíduos da comunidade, ou seja, nunca será fato isolado.
Essa consciência sanitária permite ver iniquidades sociais e deformações nas relações humanas, principalmente pelas contradições existentes entre lucro privado em saúde e saúde pública 12. Tal fato evidencia a nocividade do capital no que tange à saúde e sua garantia, mas, principalmente, possibilita às classes prejudicadas compreender sua situação e modificar a realidade. Essa consciência permite também entender a epidemiologia da determinação social do processo de saúde e doença, o que poderia sustentar a reforma sanitária, fundamental para a transformação desse cenário. Essa reforma não se perfaz somente com alterações no campo da saúde em si, mas com mudanças culturais, institucionais, profissionais e administrativas no que diz respeito à proteção à saúde.
Para demonstrar sua tese, Berlinguer propõe a análise criteriosa da saúde nas fábricas. Ali, onde tudo é mais intenso e violento, o verdadeiro agente nocivo é o capital, a exploração e os extremos nas condições de trabalho 22. A realidade apresentada nas indústrias não permanece ali enclausurada; os problemas vão contaminar toda a sociedade, pois as condições do ambiente externo influem na saúde do trabalhador. A saúde, dessa forma, passa a ser determinada tanto por fatores internos quanto externos.
Para Berlinguer, portanto, a realidade só será transformada quando houver a participação de toda a população, uma vez que todos são afetados pelo processo saúde-doença. Com esse embasamento, ele sustenta a ideia da reforma sanitária, que não é apenas constituída de normas processuais, de decretos, de mudanças institucionais. Deve ser um processo de participação popular na promoção da saúde, que envolva milhões de cidadãos; deve impor mudanças sociais, ambientais e comportamentais que tornem a existência mais saudável; deve mobilizar dezenas de milhares de conselheiros de regiões, de província, de municípios, de circuncisões, de quadros dos movimentos sindicais, femininos, cooperativos, juvenis e milhares de assessores e de prefeitos; deve transformar a atividade cotidiana de médicos, técnicos e enfermeiros23.
Todo esse movimento reformista certamente vai provocar profunda mudança no contexto social e na realidade de cada indivíduo. Cabe ressaltar que apesar de a saúde se apresentar como fato privado, individual, a enfermidade não pode ser restringida da mesma forma. A doença requer atenção redobrada, principalmente por conta de suas consequências coletivas. Ela supõe igualmente respostas e ações também coletivas, seja no campo da prevenção, do tratamento, da reabilitação ou mesmo da reintegração do doente 22. A reforma sanitária é movimento baseado na responsabilidade comum dos sujeitos sociais.
Propor saúde coletiva é, obrigatoriamente, efetivar a equidade entre pessoas de uma sociedade. Funda-se na lógica da justiça distributiva e cada vez mais está relacionada à garantia do direito à saúde e dos direitos humanos, cuja promoção, apesar de compor discussão epistemológica que remonta aos gregos antigos, é fundamentalmente questão de respeito.
O modelo de saúde pública brasileiro, universal e igualitário, busca mais do que promover saúde – é meio pelo qual se pretende alcançar e manter a dignidade da vida. A proposta se enquadra no combate a modelos que estimulam desigualdades, na busca pela estabilização social por meio do bem-estar social e, fundamentalmente, na defesa da vida.
Isso significa assumir e manter modelo em que a saúde seja considerada direito de todos e interesse da comunidade. Essa dinâmica marca o que Berlinguer chamou de consciência sanitária. Exatamente por esses motivos a saúde não pode ser considerada mero produto a ser negociado ou que tenha valor agregado. Politizar a questão, especificamente a partir dos determinantes da doença, torna-se meio para transformar a realidade social, pois toda enfermidade traz consequências coletivas.
É importante ressaltar, como bem o fez Berlinguer em defesa da reforma sanitária italiana, que a simples proposta de sistema público de saúde não significa total e plena resolução de problemas e dificuldades. Deve-se, a partir dessa conquista, fomentar movimento permanente de renovação e questionamento do modelo adotado. Isso significa dizer que a existência e a manutenção do SUS não dependem única e exclusivamente do governo ou de políticas públicas, mas se assentam sobre a participação social na promoção da saúde. É preciso buscar mudanças e transformações sociais, ambientais e culturais permanentes. Não cabem aqui, portanto, práticas individualistas e que contrariem a essência coletiva do SUS. Em verdade, todo o trabalho é luta constante para que a saúde se sobreponha à doença, para que a coletividade supere o individualismo, a política anule a politicagem, e o humanismo não dê lugar à dominação e à exploração.
Em síntese, garantir a saúde pública possibilita a manutenção da própria sociedade. O desmonte do SUS, como suposta prática de liberdade mercadológica, ou mesmo camuflando tal prática como reforma, além de agredir preceitos, direitos fundamentais dos cidadãos, ameaça a estabilidade social. Mais do que apologia, o alerta que se faz, a partir das análises de Giovanni Berlinguer, é que a falta de um sistema universal de saúde levará à falência social muitas famílias brasileiras. As consequências não serão somente físicas ou pessoais, mas diversas e inimagináveis, uma vez que a saúde (ou a doença) está relacionada a todas as instâncias coletivas.
Ambos os autores contribuíram para a redação do artigo.
Correspondência. Savio Gonçalves dos Santos – Av. Dr. Odilon Fernandes, 205, apt. 1.501 CEP 38017-030. Uberaba/MG, Brasil. Savio Gonçalves dos Santos – Doutorando – oivasavio@gmail.com Gabriele Cornelli – Pós-doutor – cornelli@unb.br