Resumo: Frequentemente as ideias eugênicas ressurgem, colocando em questão a aceitação do diferente. Travestidas de “melhoramento”, hoje retornam sob a promessa de aperfeiçoamento genético. Nesse contexto, é preciso ressaltar os direitos da pessoa com deficiência, pois embora aparentemente não representem mais um “problema” para a sociedade, o preconceito e a discriminação permanecem. A partir do relato de grupo familiar de imigrantes portugueses que enfrentaram dificuldades para entrar no Brasil em razão da filha deficiente visual, este artigo traça panorama histórico das ideias eugênicas até os dias de hoje. Por fim, reafirma-se a importância de constatar e combater o eugenismo pela reflexão ética.
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Atualização
Pessoas com deficiência: eugenia na imigração do início do século XX
Recepção: 29 Dezembro 2017
Revised document received: 18 Dezembro 2018
Aprovação: 9 Janeiro 2019
Identificou-se neste estudo de caso a situação adversa e as dificuldades enfrentadas por família de imigrantes portugueses para ser aceita no Brasil em virtude da deficiência visual de um dos filhos. Registrando história de segregação e articulações políticas internacionais que teve desfecho positivo, o artigo analisa legislações nacionais entre 1920 e 1950, identificando restrições a imigrantes portadores de deficiências. A partir dos relatos sobre a eugenia no Brasil, podem-se propor encaminhamentos legais para identificar e restringir a discriminação e o preconceito em relação a grupos vulneráveis.
Entre povos nômades, era essencial que indivíduos tivessem condições de cuidar da própria sobrevivência, além de colaborar com o grupo. Aqueles que apresentavam características fora do padrão, como doenças ou anomalias, eram considerados um “peso”, sendo abandonados à própria sorte 1.
[Era comum] o infanticídio das crianças que nasciam cegas [ou mesmo] o abandono dos que haviam perdido a visão na idade adulta 2.
A preocupação em zelar pela segurança e manter a saúde dos integrantes da tribo tornava a sobrevivência de pessoas com deficiência praticamente impossível, uma vez que em ambiente tão desfavorável esses sujeitos eram considerados um fardo 3. Só havia exceções quando algum traço discrepante era associado a características positivas, como na figura do cego capaz de ver o futuro, ou do albino que traz boa sorte, comum em alguns grupos ao longo da história.
Desde a invenção da escrita (4000 a.C.) até a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.), constata-se que a deficiência tornava o indivíduo inferior, sendo entendida, em muitos casos, como um castigo divino e, portanto, levava em si mesmo o estigma do pecado cometido por ele, por seus pais, por seus avós ou por algum ancestral de sua tribo 4.
Na Grécia Antiga, a cidade de Esparta não aceitava seres com anomalias, evitando que a natureza “defeituosa” fosse conhecida por terceiros. Os pais tinham obrigação de apresentar seus descendentes aos magistrados, e as crianças com deficiência eram consideradas subumanas, o que legitimava a eliminação ou o abandono 2,5. Interessavam os filhos “bons”, ou seja, aqueles que pudessem se tornar guerreiros.
Também Platão, ao abordar o planejamento das cidades gregas, propôs que pessoas nascidas “disformes” fossem descartadas, ideia compartilhada por Aristóteles 6. Em Roma, a legislação permitia que pais matassem descendentes defeituosos 1 ou os abandonassem para ser criados por plebeus. É o que se verifica na Lei das Doze Tábuas e em Cícero e Sêneca 3.
Para os hebreus, indivíduos corcundas, cegos ou coxos eram considerados indignos. Acreditava-se que essas pessoas tinham poderes demoníacos, cujos pecados se expressavam no corpo por estigmas e sinais que confirmavam a presença dos maus espíritos 7. Essa atribuição das imperfeições a causas sobrenaturais aparece também na Idade Média, quando nascidos com alguma deficiência eram considerados possuídos por demônios e afastados do convívio social em orfanatos, manicômios e prisões. Nesse período, a religião, detentora do conhecimento, considerava a deficiência castigo divino aos pais, ou apenas forma de as pessoas ditas “normais” praticarem o bem e a caridade 1. Já os supersticiosos vislumbravam nesses indivíduos poderes especiais de bruxaria ou feitiçaria 3.
Em meio às várias deficiências consideradas castigo divino, destaca-se aqui a cegueira, justamente por ter inspirado este artigo. Na Bíblia, ela aparece como algo negativo, relacionado à escuridão, ao pecado, no polo oposto à luz, Deus. Portanto, essa deficiência era vista como pecado, falta de fé 8, e, assim como outros estigmas, alimentava o preconceito e limitava as oportunidades dos indivíduos. Perpetuava-se a ideia de que o cego era “peso” a ser carregado pelas pessoas “normais”, apesar de ações pontuais, desenvolvidas ao longo da história, na tentativa de ajudar tal população.
Na Idade Antiga, a incidência da cegueira era alta em regiões desérticas em virtude do calor e da poeira. O Egito, pelas características de seu território, era considerado um país de cegos. Na China, a música era forma de deficientes visuais proverem sua subsistência, desenvolvendo para isso o ouvido e a memória. Em Roma, muitos meninos cegos eram escravizados, e as meninas levadas à prostituição 8.
Durante a Idade Média, na Inglaterra, uma lei previa que pobres, incapazes e cegos fossem amparados pelo governo 8. Mas, ao mesmo tempo que a legislação procurava incutir alguma humanidade no trato com deficientes, eles passavam a ser vistos como “despesa” extra para a sociedade. Já na França, em 1260, surge o primeiro centro para cuidados e tratamento de cegos, com o objetivo de atender 300 soldados que tiveram os olhos arrancados pelos sarracenos durante as Cruzadas 3.
No Brasil, 600 anos mais tarde, por meio do Decreto Imperial 1.428/1854, Dom Pedro II cria o Instituto dos Meninos Cegos para tirar crianças com essa deficiência das ruas e auxiliá-las 6, assumindo o cuidado como responsabilidade do Estado. Na Inglaterra, em 1859, Darwin publica suas conclusões sobre o evolucionismo, afirmando que, no mundo animal, só sobrevivem aqueles que têm a capacidade de se adaptar por serem biologicamente superiores. Mesmo que inicialmente consideradas controversas, suas teses tiveram aceitação ao longo dos anos, passando a ser utilizadas de forma acrítica em outras áreas. Surgiu então o darwinismo social, que apresentava os burgueses como os mais capazes, os mais fortes, os mais inteligentes e os mais ricos9. Dessa maneira, os seres tidos por fracos ou com alguma deficiência eram alvo de extermínio social, de forma gradativa, diante das próprias condições e demandas sociais10.
O ambiente na Inglaterra oitocentista era propício para o surgimento dessas ideias. A Revolução Industrial atraía multidões para as cidades e, ao mesmo tempo que precisava dessa mão de obra para suas fábricas, a burguesia temia a degradação física e moral da sociedade. Os operários ingleses, homens, mulheres e crianças, tinham jornadas de trabalho exaustivas e viviam em cortiços com péssimas condições de higiene, disseminando epidemias e sofrendo preconceito. Enquanto isso, políticas de higiene pública e a imposição de disciplina guiavam a reurbanização defendida pelos adeptos da “seleção social”. Essas medidas buscavam prevenir a degradação física dos trabalhadores11e, assim, evitar prejuízos que acarretariam a diminuição do lucro da burguesia.
De acordo com a teoria eugênica, cada indivíduo nasce com a vida determinada pela hereditariedade, que o classifica em categorias inferiores ou superiores. Dessa forma, as condições do cotidiano são pré-determinadas pela biologia, excluindo-se a possibilidade de mobilidade social. Diante disso, para que o ideal eugênico fosse efetivado, seria necessário que fosse estimulada a procriação entre os considerados “tipos eugênicos superiores” e coibida a procriação dos outros12. Defendia-se, portanto, o uso de métodos como a esterilização, a segregação, a concessão de licenças para a realização de casamentos e a adoção de leis de imigração restritiva9.
Nos Estados Unidos, em 1917, a legislação eugênica baseava-se em três pilares: esterilização compulsória de “inadequados”, prevenção de casamentos não eugênicos e controle da imigração 13 a fim de evitar a entrada de indivíduos indesejáveis. Na Alemanha de 1933, com os nazistas no poder, duas medidas eugênicas disseminadas em outros locais foram instituídas: melhoria da raça ariana e proibição da mistura com raças inferiores. Institucionalizou-se a esterilização compulsória de portadores de doenças consideradas hereditárias: debilidade mental congênita, esquizofrenia, mania, depressão, epilepsia, doença de Huntington, cegueira, surdez e malformações físicas severas 14.
A perspectiva eugenista marcou fortemente a produção científica nos séculos XIX e XX, refletindo-se na legislação de vários países e na compreensão da própria sociedade sobre as diferenças entre as pessoas. Em muitos casos, a deficiência física acabou se tornando entrave ao livre exercício dos direitos humanos, como ilustra o relato que serve de base a este trabalho, colhido em entrevista aberta com família de imigrantes portugueses em 20 de janeiro de 2015 em Curitiba, capital do Paraná.
Após terem sido informadas sobre os objetivos da pesquisa, as entrevistadas concordaram em contar fatos de sua história de vida concernentes ao tema do estudo. Com aproximadamente nove horas de duração, a conversa foi gravada em áudio e transcrita, como preveem as técnicas de trabalho de campo. Para preservar o anonimato, daqui em diante as participantes serão nomeadas por meio de siglas.
Como ocorreu com muitos imigrantes, a sra. MGLS, cega de nascença e a mais nova de uma família de sete irmãos, foi impedida de migrar de Portugal para o Brasil na década de 1950. Seus pais viviam na freguesia da Lomba, pertencente à cidade da Guarda, da província da Beira Alta. O pai AS e a mãe MJL, nascidos respectivamente em 1906 e 1909, casaram-se em 1934. Viviam da plantação de frutas e legumes e da criação de animais, aos cuidados da sra. MJL, e de uma pequena venda de alimentos e bebidas, aos cuidados do sr. AS.
Em virtude de diversos problemas gerados pela escassez de alimentos e a crise na economia portuguesa, dificuldades trazidas pela grande guerra e pela ditadura salazarista, o casal resolveu mudar de país em busca de melhores condições de vida. À época decidiram, com medo de abandonar o pouco que tinham em Portugal, que seria melhor o patriarca ir para o Brasil a fim de se adaptar ao novo país, criando condições mais favoráveis para a vinda do restante da família.
Em 1953, o sr. AS imigrou apoiado por incentivos governamentais para a fixação em Curitiba, a fim de trabalhar em uma distribuidora de alimentos. Utilizou uma carta de chamada escrita por parentes já fixados no Brasil, trazendo consigo o filho mais velho e deixando a esposa e todo o resto de sua prole. Mal sabia o sr. AS que deixara no ventre de sua esposa outra criança, que nasceria com deficiência física, a cegueira.
Após a chegada do sr. AS ao Brasil e o nascimento da filha mais nova, iniciou-se a saga da família. Conseguir dinheiro para a vinda da esposa e dos filhos foi tarefa difícil. Eles só não imaginavam que, além das dificuldades financeiras, teriam que superar leis que impediam a entrada de imigrantes com deficiência visual no país. Enquanto o sr. AS permanecia no Brasil para ajudar a prole que ficara do outro lado do Atlântico, a sra. MJL, com seis filhos para criar, trabalhava em sua aldeia esperando que políticas brasileiras permitissem novamente a união da família. A separação durou 8 anos.
A reaproximação só se deu por intermédio de um professor da Universidade Federal do Paraná a quem o sr. AS prestava serviços, e que conhecia pessoalmente a primeira-dama da República. Comovido com a história, o catedrático encaminhou pedido pessoal a Sarah Kubitschek, que intercedeu em favor da família. Para a sra. MGLS, a intercessão se deu pelo fato de a senhora Kubitschek desenvolver ações voltadas a pessoas com deficiência.
Os anos de separação e luta constante pela vinda de todos ao Brasil foram tempos de privação, sobressaltos, tristeza e angústia. A família teve que se adaptar a essa situação adversa, que, enquanto durou, provocou temores e infelicidade em todos os envolvidos, pais e filhos. Apesar de não ter as consequências desastrosas das teorias raciais em outras circunstâncias e países, o exemplo mostra de maneira tangível como a perspectiva eugênica interferiu na vida de uma família em pleno século XX.
No Brasil, a eugenia passou a ser maciçamente divulgada e institucionalizada a partir do início do século XX. No entanto, já na segunda metade do século XIX, dois viajantes haviam trazido as primeiras sementes das ideias de melhoramento e degenerescência do ser humano. Ambos produziram prognóstico segundo o qual seria impossível a construção de uma nação civilizada nos trópicos com base na população mestiça que habitava o país15.
O primeiro visitante foi o suíço Agassiz, que veio ao Brasil em 1865 em expedição científica e turística a fim de buscar provas para sua teoria, contrária ao evolucionismo de Darwin. Para Agassiz, cor de pele, tipo de cabelo, fisionomia e outros traços relacionados à aparência, como altura e compleição física, eram características raciais – falácia que serviria de suporte para tentar provar que cada raça humana era espécie distinta. O suíço ficou estarrecido com a enorme miscigenação entre brancos, negros e índios que encontrou por aqui, chegando a afirmar que essa mistura indiscriminada produzia mestiços fracos, tanto física como mentalmente, nos quais se perdiam as melhores qualidades das três raças 16.
O segundo visitante, Gobineau, veio ao Brasil em 1869, como ministro da França. Sua obra mais conhecida é “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”, na qual estabelece relação entre a ascensão e queda de grandes civilizações e questões étnicas. Para ele, uma sociedade de iguais, sem hierarquias, era o grande pesadelo17.
Souza cita trecho de carta de Gobineau à irmã na qual relata que todas as famílias brasileiras possuem sangue negro e índio nas veias; o resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos18. Relata o autor que o francês estava tão convicto da degeneração como consequência da intensa miscigenação, que chegou a afirmar que a sociedade brasileira estaria destinada a se extinguir em aproximadamente duzentos anos.
Em 1897, na Academia Nacional de Medicina, foi realizada conferência chamada “Exame Pré- -Nupcial”. Nela foi proposta lei que tornasse obrigatório tal exame e impedisse casamentos entre tuberculosos e sifilíticos. Embora a legislação não tenha sido efetivamente criada, a conferência demonstra a penetração das ideias eugênicas no Brasil. De acordo com Sodré, citado por Sousa, a ideologia racial da época teria sido absorvida por intelectuais brasileiros por imitação das teorias estrangeiras, refletindo momento em que a intelectualidade nacional não dispunha de amadurecimento para produzir com originalidade e autonomia19.
No início do século XX, o Brasil vivia momento de intenso desenvolvimento urbano e industrial, recebendo grande contingente de imigrantes. Rio de Janeiro e São Paulo eram as cidades que mais sentiam as transformações 20. Nesse tempo, persistia a influência dos visitantes recebidos nos anos finais do Império. De antemão, suas ideias atribuíam à “diversidade étnica” a razão para o pouco desenvolvimento econômico e social do país: os intelectuais questionavam que tipo de nação poderia ser formada a partir da mistura de brancos, negros e índios, com uma população doente, analfabeta e miserável21.
Para “melhorar” a população brasileira e tornar possível o progresso, eugenistas defendiam o controle da imigração, a proibição de casamentos entre “raças” e a esterilização de deficientes, mestiços, tuberculosos e sifilíticos. O cientificismo restringia a liberdade do indivíduo em suas relações sociais: o pensamento eugenista foi autoritário, pois justificou a intromissão e a intervenção do Estado tanto na vida pública quanto na vida privada dos indivíduos22.
Os médicos acabaram se tornando arautos da eugenia no Brasil. O mais conhecido, Renato Kehl, creditava à teoria o poder de solucionar as demandas sociais da época, sem se preocupar em diferenciar problemas decorrentes da pobreza e falta de saneamento daqueles genéticos23. O entusiasmo gerado pelas teorias de Kehl foi tão grande que levou em 1918 à fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo, a primeira associação voltada à eugenia na América Latina. Crítico do que julgava como morosidade da justiça, o autor de “A cura da fealdade” 24 (1917) era favorável à intervenção dos médicos na legislação brasileira.
Em 1929, Miguel Couto, presidente da Academia Nacional de Medicina, fez discurso alarmante no 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, destacando o “perigo de contaminação” decorrente da imigração. O tema de sua regulamentação rendeu acaloradas discussões no evento: defendia-se um controle rígido dos imigrantes que entravam no Brasil sob pena de trazer (…) degenerados de outras nacionalidades, aumentando ainda mais o problema já existente na população brasileira quanto à sua qualidade genética a ser transmitida para as gerações futuras25.
Ainda em 1929 foi lançado o 1º Boletim de Eugenia, sob a direção de Kehl. Pouco mais tarde, em 1931, enquanto o nazismo e o fascismo floresciam na Europa, no Brasil era fundada a Comissão Central Brasileira de Eugenia (CCBE). No país, a valorização de determinada raça em detrimento de outra muitas vezes se confundia com diferenças de classe social, defendendo-se a eugenia como única ciência digna de transformar degenerados em elite nacional. Daí que a teoria tenha servido, por exemplo, aos propósitos de Vargas, que ainda se valeu dos exames pré-nupciais para o mesmo fim 26.
Por meio da CCBE, Kehl se aproximou de Oliveira Vianna, consultor jurídico do governo, e a partir de 1932 integrou grupo designado pelo recém-fundado Ministério do Trabalho para pensar os problemas da imigração no Brasil 27. O médico apresentou anteprojeto para a comissão responsável por elaborar o código que regularia o tema: o texto destacava a proibição de toda imigração “heterogênea” ou “promíscua”, definindo quem eram os imigrantes desejáveis e os indesejáveis. Eram considerados impróprios para a formação racial, social e política do país indivíduos que, pela constituição étnica, física, psíquica ou moral, fossem julgados incompatíveis com a formação eugênica da nacionalidade ou inassimiláveis.
Portanto, a partir de 1930 a política se aproximou do discurso racial predominante. Encaixando-se perfeitamente no projeto de Getúlio Vargas de um Estado nacional forte e organizado28, os ideais eugênicos culminaram em leis que explicam os obstáculos enfrentados pela família objeto deste estudo.
Se até 1910 a imigração era considerada solução para a falta de mão de obra decorrente da abolição da escravatura, nos anos 1920 essa visão mudou drasticamente. Após a Primeira Guerra Mundial, o Brasil passou a seguir a tendência mundial de fortalecimento do nacionalismo e oposição à entrada de estrangeiros, fazendo surgir diversas leis para regulamentar a vinda de imigrantes29.
Nesse cenário foi instituído o Decreto 4.247/1921, que regulava a entrada no território nacional, impedindo de entrar no país todo estrangeiro mutilado, aleijado, cego, louco, mendigo, portador de moléstia incurável ou de moléstia contagiosa grave; toda estrangeira, que procure o país para entregar-se à prostituição; todo estrangeiro de mais de 60 anos30. Pouco mais tarde, o presidente Arthur Bernardes aprovou o Decreto 16.300/1923, o Código Sanitário da União, que em seu título VII, art. 1.409, trata da “Inspeção de imigrantes e de outros passageiros”, evidenciando que foi colocada em prática a restrição à entrada de estrangeiros com determinadas doenças 31.
A falta de interesse por estrangeiros mutilados ou que tivessem lesões que os invalidassem ao trabalho era justificada pelo momento nacional de expansão e desenvolvimento para o trabalho, no qual os imigrantes significavam mão de obra para manter a produtividade agrícola e industrial. Mas a proibição da entrada de doentes mentais, cegos e surdos não se justificava com bases comerciais e de trabalho; nesses casos, os princípios eugênicos seriam a única explicação.
O Decreto 16.300/1923 previa penalização severa a navios que permitissem o embarque com destino ao Brasil de imigrantes considerados indesejáveis. Essa determinação certamente impedia, nos países de origem, a compra de passagens e embarque tanto para estrangeiros que apresentassem condições consideradas impróprias quanto para seus familiares 31. Em 1924 entrou em vigor o Decreto 16.761 32, que proibiu definitivamente a entrada no território brasileiro dos imigrantes descritos no Decreto 4.247/1921 30, se fossem passageiros da segunda ou terceira classe.
Em outubro de 1929 estourou a crise mundial, prejudicando a cafeicultura no país. Os preços internacionais caíram bruscamente, e com a retração do consumo tornou-se impossível compensar essa queda apenas aumentando o volume de vendas. A crise motivou grande desentendimento entre o setor cafeeiro e o governo federal, refletindo na política nacional 33.
A insatisfação também se disseminava entre a burguesia industrial e a população em geral, motivando o surgimento de novo tipo de Estado em 1930. Alianças sustentaram o governo em busca de capitalismo nacional 33, e Vargas acabou menosprezando ações tomadas pelos governos anteriores para restrição e controle dos imigrantes. Com o Decreto 19.482/1930 34, o novo presidente visava equilibrar a necessidade de “trabalhadores adestrados” para a lavoura com o controle da imigração, dando sua própria resposta aos interesses de ordem política, econômica e étnica 35.
O Decreto 19.482/1930 limitava a entrada, no território nacional, de passageiros estrangeiros de terceira classe, e dispunha sobre a localização e amparo de trabalhadores nacionais, por perceber que uma das causas do desemprego se encontra na entrada desordenada de estrangeiros34. As exceções do decreto, estabelecidas no parágrafo único de seu artigo 1º, eram:
Estrangeiros domiciliados no Brasil (…); estrangeiros cuja vinda tiver sido solicitada pelos interventores federais ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, por exclusiva necessidade dos serviços agrícolas ou atendendo aos “bilhetes de chamada” emitidas por parentes a famílias de agricultores com colocação certa; (…) estrangeiros agricultores, constituídos em famílias regulares, ou artífices introduzidos ou chamados por indivíduos, associações, empresas ou companhias, que satisfizerem a todos os requisitos constantes do art. 6º, § 1º, do decreto número 16.761, de 31 de dezembro de 1924, e respectiva portaria de 30 de junho de 1925 34.
Apenas na falta de brasileiros natos para serviços rigorosamente técnicos, se aprovada pelo governo, poderia ser aberta exceção. Nesse caso, seriam admitidos brasileiros naturalizados em primeiro lugar, e só depois estrangeiros. Por fim, com o Decreto 20.917/1932 36, que revigorou os artigos 1º e 2º da legislação de 1930, tomando também outras providências, acreditava-se que a regulação da imigração estava garantida.
Em 1933, na Assembleia Nacional Constituinte, muitas emendas parlamentares focaram a imigração. Amplamente difundidos à época por médicos e cientistas, os dados que serviam de base às propostas justificavam o preconceito contra grupos étnicos, declarando-os “indesejáveis” 35. Era patente a influência das políticas raciais dos regimes nazista e fascista, bem como da legislação imigratória norte-americana: dessa forma, vários argumentos foram reunidos em favor de uma política de imigração mais seletiva juntamente com um discurso que pregava a defesa do trabalhador nacional37.
Na sessão inaugural da Constituinte, Vargas proferiu discurso dúbio. Defendeu a imigração pela necessidade de mão de obra e de povoar o território, porém afirmou que a entrada de imigrantes não poderia continuar livre 35. Se, no início, o controle da imigração tinha por objetivo proteger o trabalhador nacional, no decorrer da Assembleia foi ficando cada vez mais claro seu viés eugenista.
Acentuaram-se restrições à entrada de imigrantes e políticas de nacionalização. Uma das mais importantes decisões se deu com a Constituição de 1934 38, que no § 6º do artigo 121 passou a definir cotas para a entrada de imigrantes. Ficou ainda definida a proibição de agrupamentos étnicos na tentativa de reduzir a força das diferentes nacionalidades, homogeneizando a população brasileira.
A forma como o controle da imigração foi incluído na Constituição de 1934 ia ao encontro da política nacionalista e populista de Vargas, que argumentava que a presença de estrangeiros era nociva por representar concorrência ao trabalhador brasileiro 39. Contudo, essas leis não agradavam a todos, e setores da elite e intelectuais exigiram uma maior intervenção do Estado e uma seleção mais rigorosa na política imigratória40. Segundo Carneiro 41, o projeto étnico-político do governo Vargas, caracterizado pelo ideal de higienização da raça e inspirado no racismo dos regimes nazifascistas, aderiu ao conceito de homogeneidade racial defendido pelos teóricos eugenistas do final do século anterior.
Nacionalismo exacerbado e xenofobia serviam de elementos catalisadores para o debate, mascarando a intenção de garantir a integração étnica e capacidade física e civil do imigrante38. Aprimorada nos anos 1930 e 1940, intensa campanha de brasilidade ufanista, antiliberal, anticomunista e xenófoba prestou-se a encobrir valores racistas e antissemitas sustentados pela elite política brasileira 41. De acordo com Koifman, citado por Haag, segmentos letrados da sociedade brasileira e muitos homens do governo, incluindo Vargas, acreditavam que o problema do desenvolvimento brasileiro estava relacionado à má formação étnica do povo. Achavam que trazendo “bons” imigrantes, ou seja, brancos que se integrassem à população não branca, o Brasil em 50 anos se transformaria em uma sociedade mais desenvolvida40.
A restrição à imigração definida em 1934 foi endurecida no artigo 151 da Constituição de 1937 42 de forma a garantir a integração étnica. Nesse mesmo sentido, o Decreto-Lei 406/1938 43, além de definir quais seriam os imigrantes impedidos de entrar no país por conta de doenças (Capítulo I, artigo 1º), reforçava as “cotas de entrada” para diferentes nacionalidades (Capítulo III). Por meio dessa legislação, o presidente da República decretava:
Art. 1º Não será permitida a entrada de estrangeiros, de um ou outro sexo:
I – aleijados ou mutilados, inválidos, cegos, surdos-mudos; (…)
III – que apresentem afecção nervosa ou mental de qualquer natureza, verificada na forma do regulamento, alcoolistas ou toxicômanos;
IV – doentes de moléstias infectocontagiosas graves, especialmente tuberculose, tracoma, infecção venérea, lepra e outras referidas nos regulamentos de saúde pública;
V – que apresentem lesões orgânicas com insuficiência funcional 43.
Haag 40 aponta que também em 1938 foi instituído o Decreto 3.010 44, que exigia do solicitante de visto apresentação pessoal ao cônsul a fim de que relatasse se o candidato era branco, negro ou deficiente físico. No mesmo ano foi criado o Conselho de Imigração e Colonização com o objetivo explícito de fiscalizar e selecionar imigrantes 45.
Durante a Segunda Guerra Mundial houve muitas ações eugênicas no país, impondo regras e perseguições aos imigrantes em todas as localidades. Após o fim do conflito, para reabrir a imigração sem abandonar a norma de cotas, instituiu-se o Decreto-Lei 7.967/1945, cujo objetivo era imprimir à política imigratória do Brasil uma orientação racional e definitiva, que atendesse à dupla finalidade de proteger os interesses do trabalhador nacional e de desenvolver a imigração46.
Em 1946 foi aprovado o Decreto-Lei 9.534, fruto de acordo entre os governos federal e do estado de São Paulo para introdução de imigrantes europeus a serem dirigidos para os trabalhos agrícolas e industriais47. Por meio dessa normativa, o governo do estado passou a ter autonomia para buscar e integrar estrangeiros em atividades produtivas. O decreto não cita restrições físicas, mas declara a obrigatoriedade do trabalho, de modo a sugerir que “indesejáveis” continuariam sendo vetados.
Nesse período, passa a vigorar a imigração espontânea, que foi possível graças às “cartas de chamada” de parentes e ofertas de emprego. Formam-se grupos e cooperativas de trabalhadores estrangeiros com vistas sobretudo à colonização agrícola, em processo orientado por convênios entre o governo brasileiro e organismos internacionais.
A imigração foi novamente alvo de regulação na Constituição de 1946, cujo artigo 141 assegurava aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade48. Entretanto, o artigo 162, que subordinava a imigração às exigências do interesse nacional48, abriu longa e acalorada discussão, trazendo à tona preocupações relacionadas não só à qualificação da mão de obra, mas também a certa ideia de “melhoria da raça” baseada no discurso eugênico 49.
Nos debates, continuava a ser dada como evidente a necessidade de restringir indivíduos que apresentassem deficiências físicas, as chamadas “taras”. A visão eugenista permanecia, sustentada, por exemplo, em artigo de Lira Cavalcanti publicado em 1946. No texto, que se dedica aos aspectos psicológicos da imigração do pós-guerra, o médico conclui, segundo Salles, que nunca se tentou solucionar no Brasil o problema da verificação biotipológica do imigrante e de suas qualidades eugênicas50.
Após revogado o Decreto 7.967/1945 46, com a Resolução do Conselho de Imigração e Colonização 1.676/1950 suprimiu-se o regime de cotas para imigrantes portugueses, espanhóis, franceses e italianos 51. A partir de então, o Brasil firmou inúmeros acordos com países europeus e o Japão.
Mesmo depois de mudanças de governo e de ações internacionais de integração para aumentar as migrações entre países, em 1954 a Lei 2.312 estabeleceu normas gerais sobre defesa e proteção da saúde,prevendo no artigo 27 que não será concedida naturalização de estrangeiros sem a audiência do órgão federal de saúde52. O texto ainda estabeleceu medidas para vetar a entrada de indivíduos cujas condições poderiam afetar o bem-estar social da população brasileira, mas sem deixar claro a quem visava proteger e por quais motivos.
Em agosto de 1957, o Decreto 42.122 promulgava a constituição do Comitê Intergovernamental para as Migrações Europeias, adotada em Veneza, a 19 de outubro de 1953 e reforçava o estabelecimento dos emigrantes em condições mais favoráveis para sua rápida integração na vida econômica e social dos países de adoção53. Quatro anos depois, sob a denominação de Código Nacional de Saúde, o Decreto 49.974-A/1961 54 regulamentava a Lei 2.312/1954. Em seu Capítulo VIII, o texto atribuía ao Ministério da Saúde a tarefa de estipular regras para entrada e permanência de estrangeiros no país, declarando que não seria concedida naturalização a indivíduos que não estivessem de acordo com as condições de sanidade definidas e almejadas pela nação brasileira 54.
Em 1962, o Decreto do Conselho de Ministros 967 baixou normas técnicas especiais relativas às condições de sanidade dos estrangeiros que pretendem ingressar ou fixar-se no país55, deliberando que:
Art. 3º Não será permitida a entrada e fixação, em território nacional, de estrangeiro portador de doenças afecções ou deficiências físicas enumeradas no art. 4º destas Normas.
Parágrafo único – As restrições deste artigo serão aplicadas mesmo quando o alienígena seja portador de visto consular em ordem.
Art. 4º Constituem motivo de impedimento de desembarque no país, se o alienígena portador de:
(…)
IV – Defeito físico ou mutilação grave que determine incapacidade superior a 40% de acordo com a discriminação das tabelas oficiais do Ministério do Trabalho 55.
O artigo 6º decretava ainda que o exame médico passava a ser extensivo a toda a família, inclusive nos casos em que apenas seu chefe fosse candidato à imigração 55. A inabilitação de integrante do conjunto familiar por qualquer das doenças listadas no art. 4º consistiria motivo para rejeição total do mesmo (não ficando claro se o mesmo referia-se ao indivíduo ou a todo o grupo). O decreto permitia a entrada de aleijados ou mutilados, inválidos, cegos e surdos-mudos, e os que apresentem lesões orgânicas com insuficiência funcional apenas em caso de estadia temporária no Brasil. Por fim, essa legislação de 1962 foi alterada pelo Decreto 57.299/1965 56, que manteve a rejeição de entrada a deficientes físicos, mas agora a estendendo claramente, por meio de mudança na redação, a toda a família.
Décadas depois, em 2009, foi promulgada no Brasil a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 200757. A convenção resumiu as conquistas de todos esses anos ao reafirmar em seu preâmbulo a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sem deixar de pontuar a necessidade de garantir que todas as pessoas com deficiência os exerçam plenamente, sem discriminação57. Relembrando outros pactos e convenções internacionais, o texto estabelece como princípios gerais o respeito à dignidade humana, à autonomia individual e às diferenças, preconizando a não discriminação e a aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana 57. Portanto, o documento revela a mudança de perspectiva em relação ao deficiente, seja estrangeiro ou nato, do final do século XX até o século XXI.
É evidente que nas últimas décadas houve avanços na assistência de toda a população. No século XX, os direitos humanos foram reconhecidos universalmente, mesmo que em muitos casos ainda não tivessem sido alcançados na prática. Nesse contexto, guardadas as características e peculiaridades culturais de cada nação, a preocupação em discutir necessidades específicas de pessoas com deficiência ganhou força, concretizando-se em ações políticas. Esse processo denota a importância ética de reflexão, debate e divulgação de informações para conscientizar quanto à universalidade dos direitos humanos e à equidade essencial entre todos.
Do exposto pode-se concluir que, apesar da modernização da sociedade e do desenvolvimento econômico, a diversidade natural entre seres humanos é transformada pelos mecanismos de poder em desigualdades. O início do século XXI traz controversas propostas de “melhoramento” humano que, nas entrelinhas, podem não proporcionar benefício, mas ser somente tentativa de eliminar imperfeições, incapacidades, limitações e deficiências. A renovação do impulso eugenista precisa ser percebida, sob pena de que diferenças autênticas e inerentes à vida humana sejam eliminadas.
O Brasil, que acolheu muitos povos e viveu seu momento eugenista, permanece não garantindo a qualidade de vida de seus cidadãos com deficiência. Prova disso são as precárias condições de acesso físico a estruturas públicas e as dificuldades enfrentadas até mesmo em simples deslocamentos. Sobram impedimentos e incompreensões para quem necessita do auxílio de cão-guia, por exemplo, mas faltam vagas no ensino especial. Esses e tantos outros problemas mostram que a sociedade evolui lentamente, permanecendo em dívida com a responsabilidade ética de proteger os mais vulneráveis.
Cilene da Silva Gomes Ribeiro, Patrícia Paula Moio, Marcia Regina Chizini Chemin e Carla Corradi-Perini pesquisaram a temática do artigo e o escreveram. Marcia Regina Chizini Chemin, Carla Corradi-Perini e Etiane Caloy Bovkalovski foram responsáveis pela revisão. Etiane Caloy orientou o trabalho.
Correspondência. Cilene da Silva Gomes Ribeiro – Rua Dona Saza Lattes, 452, sobrado 2, Uberaba CEP 81540-460. Curitiba/PR, Brasil. Cilene da Silva Gomes Ribeiro – Doutora – cilenex@hotmail.com Patrícia Paula Moio – Especialista – patriciapmoio@hotmail.com Etiane Caloy Bovkalovski – Doutora – etianecaloy@hotmail.com Marcia Regina Chizini Chemin – Mestre – maychizini@yahoo.com.br Carla Corradi-Perini – Doutora – carla.corradi@pucpr.br