Resumo: Ao longo das últimas décadas, o conceito de família passou por muitas mudanças, divorciando-se do modelo nuclear tradicional. Embora a Constituição Federal tenha avançado quanto ao reconhecimento de novos núcleos familiares, ainda se omite na união homoafetiva, privando-a em termos de garantias e direitos. O objetivo deste artigo foi apontar a inexistência de preparação de estudantes e profissionais para lidar com casais homoafetivos e suas famílias. Trata-se de revisão narrativa respaldada por obras doutrinárias, legislação nacional pertinente, jurisprudência e documentos eletrônicos, como leis e normativas, que serviram de base para a elaboração do artigo científico. Com os avanços da sociedade e algumas recentes resoluções, hoje a união homoafetiva pode gozar de direitos semelhantes aos de casais heterossexuais quanto à reprodução medicamente assistida.
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Pesquisa
Planejamento para famílias homoafetivas: releitura da saúde pública brasileira
Recepção: 4 Fevereiro 2018
Revised document received: 8 Janeiro 2019
Aprovação: 17 Janeiro 2019
Ao longo das últimas décadas, o conceito de família passou por grandes mudanças, afastando-se dos modelos tradicionais mais conhecidos – patriarcais, matrimoniais e hierarquizados – que por muito tempo visaram a procriação e o patrimônio físico. Hoje temos famílias mais plurais, distanciadas desse padrão geralmente composto por pai, mãe e filhos biológicos 1,2.
Considerando o ambiente familiar espaço fundamental para o desenvolvimento da personalidade e potencialidades, sendo a sexualidade um desses componentes, conclui-se que orientações sexuais, sejam homoafetivas ou não, devem estar no mesmo patamar no que se refere às garantias constitucionais. Dessa forma, o Estado, entendido aqui como responsável pelo ser humano, deve ampliar seu poder de proteção às uniões homoafetivas enquanto entidades familiares 1, uma vez que seu papel é garantir, por meio de políticas públicas, direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal (CF) de 1988 3. Por conta disso, deve assegurar o acesso de toda a população aos métodos de planejamento familiar e às técnicas de reprodução assistida e de contracepção 4.
O planejamento familiar é descrito como um direito da mulher, do homem e dos casais, e está amparado na Carta Magna 3, em seu artigo 226, § 7º, com base na Lei 9.263/1996 5. Portanto, é preciso providenciar tanto meios educacionais quanto tecnológicos, por meio de ações dos profissionais que integram os centros de saúde que cuidam da concepção e anticoncepção humana 3-7.
Apesar do crescente número de casais homoafetivos, a atenção básica à saúde sexual e reprodutiva do Ministério da Saúde 8 não se posiciona quanto ao planejamento familiar para homossexuais, ainda que este público utilize a reprodução medicamentosa assistida para ter filhos 1,2. Tendo isso em vista, este estudo justifica-se pela lacuna nas políticas públicas de saúde para casais homossexuais em relação à concepção humana, e fomenta reflexões acerca do planejamento familiar dessas pessoas.
Trata-se de revisão narrativa, vista por alguns autores 9 como recurso apropriado para discutir determinado assunto a partir de pontos de vista teóricos ou contextuais. O levantamento baseou-se em documentos eletrônicos referentes a obras doutrinárias, na legislação brasileira vigente da época e na jurisprudência.
Foi feita a busca nas bases de dados PubMed e SciELO, com os seguinte descritores: “family planning”, “family relations” e “homosexual”. Como resultado, foram encontrados 42 artigos na PubMed e 81 na SciELO apenas com o descritor “family planning”. Quanto aos critérios de inclusão, foram utilizados apenas artigos completos disponíveis gratuitamente online, dos últimos dez anos (2008 a 2018), e nos idiomas português e inglês. Artigos duplicados em mais de uma base de dados foram contabilizados apenas uma vez.
Dessa forma, foram incluídos 55 artigos e foi feita a leitura dos títulos e resumos, resultando em cinco artigos na PubMed e três na SciELO. Esses artigos foram selecionados porque tratavam de temáticas comuns ao presente artigo: reprodução assistida, arranjos familiares na população homoafetiva e planejamento familiar por essa clientela.
Também foram utilizadas outras fontes, como documentos ministeriais sobre planejamento familiar, e livros sobre legislação, como o Código Civil, a Constituição Federal e resoluções do Conselho Federal de Medicina para tratar dos aspectos ético-legais da reprodução assistida. Considerando que a interpretação baseou-se na investigação crítica desses dois temas no âmbito de casais homossexuais, a análise de conteúdo seguiu as seguintes etapas definidas por Bardin 10: pré-análise; exploração do material ou codificação; tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
Na pré-análise, foram escolhidos documentos e formulados os objetivos que embasariam a interpretação final. Na exploração do material ou codificação, os dados foram analisados de forma específica para descrever características relacionadas ao conteúdo no texto. Na etapa de tratamento dos resultados, inferência e interpretação, apresentamos as informações geradas pela análise 10.
O direito ao planejamento familiar deve ser de livre decisão de todo casal, independentemente de sua formação, devendo o Estado prover recursos educacionais ou científicos para que esse direito seja plenamente exercido 4. Porém, a natureza jurídica que envolve fatores relacionados ao planejamento familiar tem sido amplamente debatida, considerando o fato de ser direito fundamental ou não. Incluir a reprodução no direito de cidadania permite que todas as pessoas, indistintamente, sejam alcançadas por tal prerrogativa, um direito humano essencialmente universal em relação a sua titularidade 10.
Outro aspecto controverso relaciona-se ao conceito e à extensão do direito reprodutivo, que precisa ser protegido por ser fundamental. Sua violação acarreta sofrimento grave e fere o núcleo essencial de autonomia dos cidadãos 11. Se o planejamento familiar está amparado pela legislação brasileira, o mesmo não ocorre com a reprodução assistida. Devido à inexistência de termos jurídicos no país acerca da aplicação dessas técnicas de reprodução, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou a prática dos profissionais por meio da Resolução CFM 2.168/2017 12. No entanto, a iniciativa do CFM não supre a necessidade de estabelecer parâmetros para orientar a aplicação dessas técnicas e assegurar esse direito a todos os cidadãos.
Diante dos avanços, não apenas nas relações institucionais, mas também em relação à legislação quando se trata dos aspectos familiares, a Lei 9.263/1996, que regulamenta o artigo 226, § 7º, da CF ao abordar o planejamento familiar, garante direitos iguais para qualquer pessoa natural e livre na formação de seu conjunto familiar, independentemente do modo como o organize 4,5.
Lôbo 13, por exemplo, aponta diversas mudanças nas relações familiares entre 1960 e 1970. Estudadas por variadas áreas do conhecimento, desde a psicologia até a engenharia genética, essas transformações na sociedade romperam com antigos padrões. Na época ainda vigoravam normas definidas pelo direito de família, que se propunham a preservar o modelo centrado no patriarcalismo. No entanto, a proposta da CF 3 provocou evolução lenta e gradual nos costumes, refletindo-se nas relações de parentesco no Brasil, que antes tinham cunho legal voltado apenas à família tradicional, embora já admitissem o divórcio.
O planejamento familiar, como referido na CF 3, baseia-se nos princípios que regem a dignidade humana e a paternidade responsável, sendo papel do Estado fornecer todos os recursos cabíveis para que a norma se operacionalize. No artigo 226, a Constituição define “família” como entidade instituída mediante casamento ou união estável, biológica ou adotiva, ampliando o conceito para qualquer tipo de relação de afetividade com características de família 3,14.
Até a mudança do Código Civil em 2002 15, às mulheres eram vetados direitos e prerrogativas assegurados pela Constituição de 1988 3, devido ao fato de a norma infraconstitucional vigente ser de 1916. Assim, o Código Civil 15 contrariava a Constituição e não garantia a isonomia de direitos às mulheres.
Nesse cenário, a socioafetividade surge associada à parentalidade e a alguns aspectos biológicos. Diante disso, o artigo 1.593/2002 do Código Civil definiu que o parentesco podia ser natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem16. Ainda nesse rol inscreveram-se a adoção, o parentesco socioafetivo ou por técnicas de reprodução assistida 2,15.
As famílias socioafetivas são entendidas como aquelas em que existem laços afetivos e solidariedade entre os membros; relações em que os responsáveis são provedores integrais da educação e proteção de qualquer criança, independentemente do vínculo biológico ou jurídico. Por conta disso, abriram-se precedentes necessários para que casais homossexuais em relação estável pudessem lutar para ter suas famílias e filhos por parentesco sanguíneo, e não apenas afetivo 17.
O planejamento familiar é descrito pelo Ministério da Saúde no manual técnico “Assistência em planejamento familiar” 6 como medida que busca democratizar os meios de acesso à concepção ou anticoncepção nos serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados, com o objetivo de garantir a todos os direitos reprodutivos previstos na Carta Magna: ter filhos ou não 4.
Apesar de esse direito ser garantido por políticas públicas no Sistema Único de Saúde (SUS), que podem orientar o planejamento familiar de casais homoafetivos, ainda persiste a dicotomia entre o que é assegurado pela legislação e o que se põe em prática. Essa discrepância entre teoria e prática se torna evidente nas orientações do próprio manual do SUS quando se refere à assistência ao planejamento familiar, especificamente no caso dos métodos contraceptivos e de reprodução, que muitas vezes não citam casais homoafetivos 1.
Tendo como base o planejamento familiar citado pela CF 3, muito tem sido discutido juridicamente quando se trata do tópico reprodução, tendo em vista que os direitos devem ser definidos e protegidos sem distinções para todas as pessoas, considerando sua universalidade 11. Desse modo, qualquer cidadão tem esse direito; mesmo sem a prática sexual, pode gerar filhos mediante técnicas de reprodução assistida em diferentes arranjos familiares 11.
A reprodução humana assistida, ou seja, a manipulação em laboratório de gametas masculinos ou femininos para gerar embriões tornou-se, portanto, método para casais homoafetivos que desejam fazer valer seu direito de procriar 18. Em Portugal, desde 2010 discute-se esse tipo de técnica para casais nessa configuração. No entanto, não foram encontradas soluções viáveis para indivíduos do sexo masculino, pois a “barriga de aluguel” ainda não é assunto totalmente aceito pela sociedade e proibido por lei, exceto em casos nos quais a mulher não tenha útero, tenha doença incapacitante do órgão ou condição clínica que justifique o ato. Ainda assim, não é procedimento permitido para pessoas solteiras nem casais homoafetivos 19,20.
Salienta-se que a reprodução assistida no caso de casais femininos tem certas vantagens legais, visto que a técnica de inseminação é bem mais razoável. No caso dos homens, a solução seria por meio da engenharia genética, com a fecundação in vitro de óvulos colhidos em bancos, por meio de doação anônima, e a gestação sem fins lucrativos do embrião no útero de outra mulher, com parentesco até terceiro grau em relação a um dos envolvidos 2.
Ademais, no planejamento familiar devem ser considerados todos os requisitos inerentes à dignidade humana e à paternidade responsável, tendo por base os princípios legais da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, para que se possa garantir também acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde 11. Nesse conjunto de ações inclui-se o planejamento familiar, descrito na Lei 9.263/1996, que, para não excluir parte da população e cumprir seu papel de assegurar a todos o controle da natalidade no meio familiar, deve facultar aos casais homoafetivos o direito de desfrutar do acesso a técnicas de reprodução assistida 5.
A Resolução CFM 2.168/2017 12, responsável por assegurar os meios para esse tipo de reprodução em casais heterossexuais, também pode ser usada para garantir esses direitos à união homoafetiva. O texto ainda dispõe sobre a idade máxima dos doadores de gametas (50 anos para homens, 35 para mulheres), ressalta o caráter anônimo da doação e o fato de que os receptores não podem ter nenhuma ligação direta (parentesco ou amizade) com os doadores.
Para os casos de “barriga de aluguel”, o parentesco, que antes era de 1º até 4º grau e só envolvia mãe, avó, irmã, tia e prima de um dos envolvidos no processo, agora pode ser também entre filha e sobrinha, mesmo sendo solteiras. Continua sendo processo totalmente solidário, sem nenhuma forma de pagamento em dinheiro para a mulher que recebe os embriões. Além disso, o feto não pode ser manipulado geneticamente para adquirir características dos pais, e estes devem assinar protocolos reconhecidos em cartório para destinar os embriões caso o casal se divorcie durante o processo 12.
Em comparação com resoluções antigas que tratavam do tema, houve avanço quanto à inclusão de questões sociais na avaliação médica para a reprodução assistida. A resolução de 2017 12também facilitou o procedimento para que casais sem problemas reprodutivos comprovados e pacientes oncológicos pudessem congelar gametas, embriões e tecidos germinativos. A doação anônima de gametas também passou a ser válida para as mulheres.
Vale salientar que a resolução mais recente proposta pelo CFM 12 foi editada em conformidade com o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em 2011, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar. Essa compreensão amplia a conotação de família e reconhece a reprodução medicamente assistida como direito de todos. Ao inserir esses processos no rol das práticas éticas e no âmbito da bioética, pode-se intensificar a luta por definição normativa do Ministério da Saúde ou mesmo da legislação federal para proteger e defender a autonomia reprodutiva de casais homossexuais que desejam formar família com a ajuda de técnicas científicas 12.
Portanto, entendemos que a reprodução medicamente assistida evoluiu ao longo das últimas décadas ao incluir casais homoafetivos, que hoje podem ter acesso aos mesmos benefícios, antes exclusivos de heterossexuais, relacionados à geração e proteção da família.
Diante dos dispositivos constitucionais e legais que tratam do planejamento familiar não deveria haver dúvida sobre o reconhecimento do direito do planejamento familiar dos casais homoafetivos no SUS. Entende-se ainda que é necessário discutir o tema no contexto de casais homoafetivos para que se possa construir novos conhecimentos e aprimorar a legislação.
José Lenartte da Silva e Moan Jéfter Fernandes Costa conceberam o artigo e analisaram e interpretaram os dados. Rafaela Carolini de Oliveira Távora e Cecília Nogueira Valença executaram a revisão crítica do conteúdo e aprovaram a versão final a ser publicada. Todos os autores contribuíram para a redação do manuscrito.
Correspondência. Cecília Nogueira Valença – Rua Vila Trairí, s/n, Centro CEP 59200-000. Santa Cruz/RN, Brasil. José Lenartte da Silva – Mestre – lenartte_barca@hotmail.com Moan Jéfter Fernandes Costa – Doutorando – moanjefter@gmail.com – UFRN Rafaela Carolini de Oliveira Távora – Doutora – profenfrafaela@gmail.com Cecília Nogueira Valença – Doutora – cecilia_valenca@yahoo.com.br