Resumo: A reforma determinada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em medicina estabeleceu como eixo do modelo didático-assistencial a atenção primária à saúde. Contudo, a escolha pela especialização pode ser influenciada por fatores individuais, culturais e socioeconômicos. O objetivo deste estudo foi avaliar os aspectos que motivam estudantes na escolha da carreira e o impacto da reforma curricular nesta decisão. Trata-se de pesquisa transversal, descritiva e quantitativa, com aplicação de questionários pela internet a 1.006 alunos de medicina das cinco regiões do Brasil. Concluiu-se que houve pouco interesse por medicina de família e comunidade (1,5%; n=15), ginecologia e obstetrícia (3,1%; n=31) e pediatria (4,7%; n=47). A afinidade pela área foi o principal fator nessa escolha, sendo considerada “muito importante” por 91,1% (n=916) dos discentes, seguida pelo estilo de vida pretendido (56,8% n=571).
Palavras chave: MedicinaMedicina,CurrículoCurrículo,Atenção primária à saúdeAtenção primária à saúde.
PESQUISA
Reforma curricular e intenção profissional de especialização médica
Recepção: 4 Abril 2018
Revised document received: 20 Maio 2019
Aprovação: 7 Junho 2019
Com quase 300 escolas de medicina, o Brasil tornou-se o país com a maior quantidade de cursos médicos no mundo, formando anualmente milhares de profissionais que podem se especializar em uma das quase 60 opções reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) 1 , 2. Contudo, há considerável disparidade de distribuição dos profissionais nessas especialidades, como demonstra a preferência dos graduandos pelas áreas de dermatologia, anestesiologia e radiologia, em contraponto ao baixo interesse por medicina da família e infectologia 1 , 3.
A escolha da especialidade médica é complexa e está sujeita a fatores culturais, sociais e psíquicos dos estudantes, sendo também influenciada pela busca de maior qualidade de vida, por experiências durante o curso e pelo desejo de prestígio social e econômico 1 , 3 , 4. A definição precoce da área de atuação médica implica, muitas vezes, embaraço da formação como generalista, fragilizando o conhecimento em áreas básicas, como clínica geral, pediatria, ginecologia e obstetrícia. Consequentemente, o estudante de medicina concebe a profissão de forma fragmentária e descontínua, por vezes excessivamente segmentada em diferentes nichos 1 , 4 , 5.
Mesmo em transição, com maior enfoque em atenção primária e prática médica generalista, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda carrega muito de seu passado hospitalocêntrico e dependente de especialistas. Isso impele muitos estudantes a escolher uma especialidade durante a graduação 6 - 8 e, por consequência, é causa considerável do interesse de mais de 80% dos recém-formados em ingressar em programa de residência médica 1. Uma vez que os conhecimentos e habilidades adquiridos na graduação não bastam para garantir prática segura, é aconselhável que todos os médicos façam residência na área em que desejam atuar, inclusive medicina de família e comunidade, que já dispõe deste programa.
O aluno recém-chegado ao curso de medicina traz expectativas decorrentes, por exemplo, do status que acompanha a profissão. Provavelmente essa concepção se associa aos rendimentos financeiros dos médicos, mais altos em comparação à renda média dos demais brasileiros 3. Contudo, conhecendo melhor a rotina de determinadas especialidades, ou devido a mudanças pessoais ao longo do tempo, os estudantes optam por trocar a área de atuação 8 , 9.
Para formar novos recursos humanos, o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde buscaram mudar a prevalência dessas características, criando as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) 10 do curso de graduação em medicina, emitidas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). As DCN visaram a capacitação do médico nos diferentes níveis de atenção, especialmente primário e secundário, fomentando a aptidão desses profissionais para promover, recuperar e reabilitar a saúde, a fim de prevenir agravos.
Na perspectiva da integralidade da assistência, o médico deve, independentemente de suas escolhas, ser dotado de habilidades que permitam a interação multiprofissional em benefício da comunidade 5. Daí a preocupação e a política governamental quanto à tendência de escolha do aluno: ele ainda prioriza a busca pela especialidade médica ou dá continuidade à carreira generalista, correspondendo à demanda atual do sistema de saúde brasileiro 8?
Compreender o processo de escolha da carreira pelos estudantes é tema relevante em educação médica, uma vez que permite desenvolver medidas para sustentar o equilíbrio de distribuição dos profissionais nas especialidades 6. Além disso, colabora com o perfil curricular e a demanda por cursos de pós-graduação, bem como possibilita acompanhar subjetivamente a intenção dos estudantes de seguir carreira generalista, um projeto governamental.
No contexto de alta demanda por médicos generalistas em diversas regiões do Brasil, surge a Lei 12.871/2013 11. O texto institui o Programa Mais Médicos e propõe mudanças em diferentes eixos, mas principalmente nas vagas de residência médica, passando a exigir atuação em medicina geral de família e comunidade para ingresso na maioria dos programas. A lei também aborda novos parâmetros na formação de médicos, com a implantação das DCN pelo CNE 12 - 14. Portanto, estes pontos acabam influenciando também o dia a dia do estudante de medicina e sua decisão sobre qual carreira seguir.
Este artigo visa avaliar os fatores que influenciam a escolha da especialidade por estudantes de medicina e o impacto da reforma curricular nesta decisão. Busca-se analisar o grau de satisfação dos discentes com a reforma do currículo médico e conhecer sua intenção profissional de optar por especialidade.
O delineamento do estudo é transversal e descritivo, com características quantitativas. Trata-se de pesquisa aplicada, original, realizada com alunos do primeiro ao último ano de cursos de medicina no Brasil, divididos por regiões geográficas de abrangência. Os dados foram colhidos entre setembro e dezembro de 2017.
O número amostral foi calculado pelo intervalo de confiança para prevalências com a seguinte equação: n=z2 . p^ . (1–p^ )/(E2). Considerou-se prevalência de 37% de alunos que ainda não haviam se decidido pela especialização médica, conforme Corsi e colaboradores 7; erro de 3%, acrescido de 1% para possíveis perdas por digitação, totalizando 1.005 indivíduos. Em seguida, esse número foi proporcionalmente dividido pela quantidade de escolas de medicina por região geográfica.
O critério de inclusão foi estar matriculado em curso de medicina das faculdades ou universidades pesquisadas, públicas ou particulares, mediante concordância com o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Fizeram parte da pesquisa as instituições cujos canais de comunicação estavam disponíveis após a procura e que aceitaram participar voluntariamente.
Para levantar as informações utilizou-se questionário estruturado, composto por 19 perguntas sobre dados sociodemográficos, perspectivas de futuro profissional e questões individuais, culturais e econômicas, respondidas com base nas experiências vividas pelos discentes. Os questionários foram enviados por e-mail e WhatsApp para alunos das faculdades de medicina públicas e privadas nas cinco regiões do país (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste). Repetiu-se três vezes o envio, com intervalo de um mês, para aumentar a probabilidade de visualização e resposta.
Recorreu-se à plataforma online SurveyMonkey, que exige identificação do Protocolo de Internet (IP) do computador ou do dispositivo celular. Isso impediu que uma pessoa respondesse mais de uma vez o mesmo questionário. Ao acessar a SurveyMonkey, cada aluno leu o TCLE e assinalou que estava de acordo com o documento para que as perguntas pudessem ser respondidas. Os dados obtidos foram tabelados pela própria plataforma, para posterior análise dos pesquisadores. Os questionários com respostas incompletas não compõem os dados analisados neste trabalho, não havendo, portanto, perda amostral.
O estudo avaliou 1.006 estudantes de medicina, distribuídos em instituições de nível superior nas cinco regiões brasileiras. Os participantes responderam o questionário por intermédio de um software online até alcançar o número de amostra calculado. A distribuição dos discentes entre os três ciclos de ensino foi: 37,3% (n=375) do ciclo básico (1º ao 4º período); 45,5% (n=458) do clínico (5º ao 8º); e 17,2% (n=173) do internato (9º ao 12º). Do total, 11,3% (n=114) reportaram que sua faculdade se localizava na região Norte; 21% (n=211) no Nordeste; 12,5% (n=126) no Centro-Oeste; 13,9% (n=140) no Sul; e 41,3% (n=415) na região Sudeste. Das instituições envolvidas, 74,2% eram de capital público (n=746) e 25,8% (n=260) eram faculdades privadas.
Ao serem questionados se já haviam decidido sua especialidade antes de ingressar na faculdade, 26,2% (n=264) dos alunos disseram que sim, sendo 39,8% (n=105; p <0,034) do Sudeste e 22% (n=58) do Nordeste. Quando indagados se no atual momento do curso já haviam tomado tal decisão, quase metade respondeu positivamente (48,5%; n=488; p <0,0001). Destes, destacaram-se os alunos do ciclo clínico, com 44,9% (n=219; p <0,0001), comparados com o ciclo básico (30,7%; n=150; p <0,0001) e com o internato (24,4%; n=119, p <0,0001).
Notou-se baixa preferência por ginecologia e obstetrícia (3,1%; n=31), medicina de família e comunidade (1,5%; n=15) e pediatria (4,7%; n=47). Considerando o momento atual do curso, foi perguntado se já haviam excluído alguma das grandes áreas de atuação, e 85,3% responderam que sim (n=858), sendo 47,7% (n=409; p <0001) alunos do 5º ao 8º período. As especialidades mais excluídas foram ginecologia e obstetrícia (20,4%; n=205), medicina de família e comunidade (22,7%; n=228) e cirurgia (20%; n=201).
O critério que mais influenciou a escolha profissional foi “afinidade com a especialidade”, considerado por 91,1% (n=916) dos alunos como “muito importante”, com prevalência entre os do 5º ao 8º período (35,4%; n=324; p <0,0001). O segundo critério mais apontado foi “estilo/qualidade de vida”, com 56,8% das respostas (n=571). Ao avaliar a influência familiar nessa decisão, a maioria (86,1%; n=866) a considerou “não importante” ou “pouco importante”. Em contrapartida, o papel do professor ou orientador foi considerado relevante por grande parte dos discentes (67,5%; n=679), como apresentado na Tabela 1 .
Quanto à importância de determinados temas para o currículo médico, algumas variáveis merecem destaque. A mais relevante foi “qualidade na assistência à saúde”, considerada por 91,3% (n=918) dos estudantes como “importante” ou “muito importante”, seguida de “representação médica na gestão hospitalar” (90,1%; n=906). Por outro lado, o critério de menor impacto foi “empreendedorismo médico”, avaliado como “não importante” ou “pouco importante” (21,9%; n=220), assim como “gestão pública na saúde” (15,9%; n=160).
Ao serem questionados se escolheriam especialidade na atenção primária à saúde, 44,7% (n=450) responderam que sim, sendo 44,2% (n=199; p <0,0001) deles alunos do 1º ao 4º período. Nos três ciclos o motivo principal de resposta negativa foi “afinidade” (37,3%; n=375). Além disso, mais da metade (50,4%; n=507) respondeu que seria profissional de medicina da família se houvesse plano de carreira pública federal ( Tabela 2 ).
A respeito da carga horária de disciplinas relacionadas à atenção primária à saúde, mais da metade dos alunos (54,2%; n=545) respondeu que concorda; destes, 44% (n=240; p <0,001) estavam no ciclo clínico. Por outro lado, a maioria discordou da exigência de dois anos de serviço em medicina de família e comunidade após a graduação (82,5%; n=830), sendo 46,5% (n=386; p <0,0001) alunos do 5º ao 8º período. Entre os que afirmaram ter médicos na família (31,6%; n=318), 23,9% (n=76) relataram influência de parentes.
Esperava-se que as diferenças demográficas entre regiões brasileiras, assim como suas necessidades de cuidados com saúde, permitissem explicar a escolha da especialização e, de forma indireta, as variáveis capazes de reter futuros médicos nos locais de trabalho. Entretanto, esta associação se mostrou baixa. Apenas o Sudeste apresentou prevalências de respostas afirmativas e, mesmo assim, em poucos itens avaliados: ingressantes no curso já com especialidade definida (39,8%); alunos com médicos na família (48,7%); e que se declararam influenciados por parentes na escolha da especialidade (65,8%). Estas variáveis foram estatisticamente significativas ( p <0,05).
A Lei 12.871/2013 11, como já apontado, criou o Programa Mais Médicos, iniciativa do governo federal para enfrentar a falta de profissionais generalistas no interior do Brasil, buscando formar recursos humanos para o SUS e fortalecer a prestação de serviços de atenção básica à saúde no país. Somam-se a isso os novos parâmetros para formação médica, com as DCN implantadas pelo CNE 12 - 14.
A amplitude de reformas suscitou posicionamentos diversos por parte da sociedade civil e de entidades médicas. Por exemplo, a Associação Médica Brasileira (AMB) e o CFM alegaram possível ilegalidade na entrada de médicos estrangeiros no país sem aprovação no Exame Nacional de Revalidação de Diplomas (Revalida), o que viabilizaria o exercício ilegal da profissão 15 , 16.
A ênfase do Mais Médicos na atenção primária é consonante com os princípios da Declaração de Alma-Ata 17, que norteia as políticas internacionais de saúde. Em fins de 2018, médicos brasileiros passaram a ocupar esta função, que se tornou mais uma oportunidade de trabalho. No entanto, ainda aguardam a tão almejada interiorização da medicina – e não apenas dos médicos –, bem como melhores condições de trabalho, salários e qualidade de vida para os brasileiros menos assistidos.
Quanto ao currículo da graduação médica, o artigo 4º da Lei 12.871/2013 11 define que o funcionamento dos cursos é sujeito à implantação das DCN definidas pelo CNE. O avanço técnico-científico, somado à influência flexneriana, estruturou modelo hospitalocêntrico de educação médica e fortaleceu a concepção do processo saúde-doença excessivamente restrita a fatores biológicos 18. Nesse cenário, há muitos anos vêm sendo adotadas estratégias para melhorar a articulação entre instituições de formação e sistema de saúde.
Exemplificam isso as reformas das DCN e de programas governamentais que estimulam mudanças curriculares. Entre estes, destacam-se o Programa de Incentivos às Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (Promed), firmado em 2002; o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), de 2005; o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), de 2010; e o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), de 2011. Em 20 de junho de 2014 foi emitida a Resolução CNE/CES 3 12, que define novas diretrizes para cursos de graduação em medicina no Brasil, apontando os eixos “atenção”, “gestão” e “educação em saúde” como centrais na formação do discente.
No primeiro eixo, espera-se que o graduando considere a multidimensionalidade de cada ser humano, de forma contextualizada, para promover o acesso universal e equitativo à saúde, com atenção integral, humanizada, qualificada e ética, centrada na pessoa sob cuidado, sua família e comunidade. Além disso, espera-se que o graduando preserve a biodiversidade, com vistas à sustentabilidade; articule-se às políticas sanitárias do Brasil, pela promoção da saúde de forma interprofissional; e possua habilidades comunicativas adequadas, verbais e não verbais, para as relações interpessoais inerentes à sua profissão.
O segundo eixo engloba a formação de profissionais capazes de compreender políticas, diretrizes e princípios do SUS e de promover o bem-estar comunitário por meio de ações gerenciais e administrativas. Enfoca sistema sanitário predominantemente público e multiprofissional, cujos pilares são: gestão do cuidado para desenvolver planos terapêuticos individuais e coletivos; valorização da vida, buscando de modo propositivo e resolutivo melhores indicadores de qualidade de vida, morbidade e mortalidade; trabalho em equipe, a fim de integrar diferentes entidades e construir de forma participativa o sistema de saúde; liderança, pautada na horizontalidade das relações pessoais e em valores como empatia e comprometimento, tendo em vista o bem-estar comunitário; comunicação, considerando as novas tecnologias disponíveis.
Convergindo com propostas de outros países 19, a gestão em saúde colabora para currículo médico amplo, abrangendo diversas competências e habilidades para atuação em sistema público de saúde. Contudo, como observado em países de estrutura curricular semelhante 20, muitos temas nesse eixo recebem pouca ou nenhuma ênfase no documento. Se integrados à formação médica, esses elementos poderiam elevar a qualidade administrativa do sistema brasileiro, com recursos humanos ainda mais capacitados em atividades como análise de conjunturas política, social e econômica; vigilância estratégica; gestão financeira e negociação.
Além de aspectos de gestão estratégica, planejamento de carreira, atuação em instituições hospitalares e ferramentas de gestão da qualidade, os estudantes avaliados nesta pesquisa também consideram relevantes para sua formação tópicos de administração e finanças ligadas à carreira; gestão pública em saúde; representação médica; qualidade da assistência; atuação médica na gestão hospitalar e empreendedorismo.
O terceiro eixo do documento postula alguns princípios aos graduandos: corresponsabilização pela própria formação inicial, continuada e em serviço; autonomia intelectual; responsabilidade social; e comprometimento com a formação de futuros profissionais de saúde. Determina-se aprendizado participativo, interprofissional, em contextos diversificados, mediado por profissionais do SUS desde o primeiro ano de curso. Objetiva-se envolver o graduando em pesquisa e extensão e estimulá-lo a dominar outro idioma, possibilitando mobilidade acadêmica e favorecendo o reconhecimento de novos desafios na carreira.
Lindeman defende que a experiência é o livro-texto do adulto aprendiz 21. Alguns especialistas assinalam que o aluno adulto requer desafios e precisa gerir o próprio aprendizado. Essa concepção de educação contempla os princípios da corrente voltada ao ensino de adultos denominada andragogia 22 , 23, os quais são evidenciados nas seguintes diretrizes curriculares: inserir o graduando nos múltiplos contextos de atuação do SUS; incentivar o contato com novos cenários pela mobilidade acadêmica; apontar a importância de pesquisa e extensão durante a formação profissional, favorecendo maior desenvolvimento científico e criticidade; estimular a atualização dos conhecimentos individuais, diante da intensa produção acadêmica na área, e encorajar o domínio de outros idiomas para ampliar as fontes de aprendizado.
O artigo 26 das DCN 12 enfatiza a necessidade de uma prática docente que favoreça o ensino centrado no aluno, tornando-o protagonista do seu processo de aprendizagem. Como aponta Aquino 22, esse fundamento representa pilar alternativo à pedagogia clássica. Perissé 23 assinala igualmente a importância de capacitar professores para exercer a andragogia, a fim de que o tratamento dado aos alunos corresponda ao de pessoas realmente livres e responsáveis.
Isso mostra-se significativo na pesquisa, pois 67,5% (n=679) dos estudantes referiram como “importante” ou “muito importante” a influência do professor na carreira. Contudo, esta referência pode se tornar obstáculo tanto por resistência dos docentes em renovar seus métodos quanto pela dificuldade de formar novos recursos humanos entre os professores.
A nova concepção pedagógica é contemplada também pelo Programa de Formação e Desenvolvimento da Docência em Saúde, mencionado no artigo 34 das DCN 12, que busca englobar ensino ativo e interdisciplinar para transformar as escolas médicas. Porém, mesmo com todas as diretrizes, normas e propostas de ensino voltado ao SUS e ao atendimento primário e secundário da população, implementadas há anos, não se observa maior interesse dos alunos em seguir esta carreira.
A baixa opção por medicina de família e comunidade merece ser reavaliada por gestores da educação e investigada por novas pesquisas nacionais. Nesse sentido, este artigo traz algumas contribuições para essa reflexão. Com o intuito de amenizar a fragmentação do exercício médico nas múltiplas especialidades, hierarquizar a atenção tornou-se objetivo dos gestores de saúde no Brasil nas últimas décadas. No entanto, problemas de infraestrutura e carência de investimento organizacional nas unidades da rede primária têm se mostrado grande obstáculo para atrair profissionais médicos a este campo.
No atual cenário, o especialista em saúde da família está sujeito a excessiva carga de trabalho, remuneração incompatível, baixo status social e profissional, pouca integração com demais níveis de complexidade e dificuldade em delimitar os próprios papéis 3 , 24. Na atenção primária à saúde, este estudo destaca a medicina de família e comunidade pela importância desses profissionais para o funcionamento do sistema público. Porém, a amostra revela baixíssimo interesse pela especialidade ( Tabela 3 ), que foi a menos escolhida, considerada por apenas 1,5% dos participantes, percentual também observado em outro estudo recente 1.
Entre as especialidades médicas avaliadas neste trabalho, a medicina de família e comunidade foi excluída por 22,7% dos respondentes e, em contexto mais amplo, 82,5% não são favoráveis à exigência de dois anos de serviço na área após a graduação. Apesar de 55,3% dos alunos recusarem a opção de especializar-se em atenção primária à saúde ( Tabela 2 ) caso houvesse possibilidade de carreira pública federal, 50,4% a considerariam.
Os dados indicam que o governo precisa incentivar e valorizar mais o exercício profissional na atenção primária, a fim de estimular o futuro médico a escolhê-la, pois as Unidades de Atenção Primária são a porta de entrada do SUS e responsáveis por resolver a maioria dos problemas de saúde da população. Dessa maneira, seria possível descongestionar a atenção secundária, diminuindo custos e eliminando burocracias que fazem pacientes esperar anos por consultas com especialistas para solucionar casos que muitas vezes podem ser tratados na atenção primária.
Embora durante os primeiros períodos da graduação os alunos tenham maior contato com disciplinas sobre atenção primária, organização do SUS e outros temas fundamentais, ao longo de todo o curso e de forma homogênea observa-se baixo interesse em medicina de família. Possível explicação para este desinteresse seria a “baixa afinidade com a especialidade, satisfação pessoal e/ou profissional” ( Tabela 1 ). Em relação à carga horária atualmente destinada à atenção primária, 545 estudantes declararam-se favoráveis, sendo que a maioria (44%) cursa do 5º ao 8º período.
Quanto à influência familiar, 68,4% dos estudantes não têm médicos entre seus parentes próximos. A decisão de especialização médica se deve mais às avaliações de desempenho da classe social em que o indivíduo está inserido do que diretamente à profissão de parentes.
Em relação ao serviço público obrigatório, o Projeto de Lei do Senado 168/2012 25, de autoria do senador Cristovam Buarque, propõe que o médico recém-formado em universidade pública ou privada com financiamento público exerça dois anos de sua profissão em municípios com menos de 30 mil habitantes ou em comunidades carentes de regiões metropolitanas.
Este tema é motivo de grande debate no Brasil. Enquanto parte da sociedade é favorável ao “exercício social da medicina”, defendendo a competência do poder público para regulamentar políticas de saúde, muitos argumentam que a ideia contraria o princípio da gratuidade do ensino, previsto na Constituição 26. Grande parte dos estudantes (82,5%; n=830) discorda do serviço público obrigatório, e quase metade deles (46,5%; n=386) estava no 5º ao 8º período, ou seja, já conhecia o funcionamento do SUS.
A baixa adesão a esse projeto por parte dos graduandos é lacuna a ser preenchida em estudos futuros. Entretanto, vale iniciar a discussão destacando que obrigar qualquer categoria profissional a exercer sua atividade em determinado lugar e tempo, mesmo que isso aconteça da melhor forma, é no mínimo cercear a liberdade do indivíduo, sobrepondo sua individualidade e autonomia.
O novo Código de Ética Médica 27, em vigor desde abril de 2019, nos seus Princípios Fundamentais III, VII e VIII, cita a autonomia do médico no exercício da profissão. Em bioética, “autonomia” significa liberdade de decidir tanto o público a quem atender quanto as condições de trabalho, buscando na ética assistencial as bases profissionais. Qualquer obrigação profissional deve ser muito bem avaliada eticamente antes de ser implementada.
Para finalizar, observa-se a eventual limitação desta pesquisa. Por se tratar de estudo nacional, visando abranger maior número de universidades e diversas regiões, aplicou-se o questionário online, o que pode fragilizar a veracidade dos dados enviados pelos participantes.
No Brasil, 26,2% dos estudantes de medicina afirmaram que já haviam escolhido uma especialidade ao entrar no curso, decisão mais prevalente no Sudeste e Nordeste. Ao longo da graduação, na amostra distribuída nas cinco regiões do país, foram mínimas as opções por especialidade nas áreas de ginecologia e obstetrícia, pediatria e medicina de família.
O principal momento dessa escolha foi a fase intermediária do curso, entre o 5º e 8º período. No estágio, a maioria já tinha optado por uma especialidade. “Afinidade” foi o principal fator dessa decisão, seguida de “estilo de vida”, “contato com a especialidade durante a graduação” e “influência de professores”. Nas cinco regiões, a maioria da amostra está satisfeita com a carga horária atual estabelecida para disciplinas de atenção básica à saúde.
Observa-se que 82,5% dos alunos são contra a obrigatoriedade de atuar dois anos em medicina da família antes da residência médica. A maioria considera “importante” ou “muito importante” introduzir regularmente os seguintes tópicos na graduação: administração e finanças ligadas à carreira, gestão pública na saúde, entidades de representação médica, qualidade na assistência, atuação médica na gestão hospitalar e empreendedorismo. Em todas as regiões pesquisadas, a opção pela especialidade em medicina da família foi mínima entre os estudantes ao longo da graduação.
Andressa Carvalho Quinet de Andrade, Jonas Munck de Oliveira, Matheus Bresser, Matheus Magalhães Apolinário e Pedro Murari de Barros conceberam o projeto, realizaram a pesquisa bibliográfica, coletaram os dados e redigiram o artigo. José Antonio Chehuen Neto orientou e revisou o projeto, bem como formatou e revisou o texto. Renato Erothildes Ferreira colaborou com o desenho do estudo, a análise estatística e a interpretação dos dados.
José Antonio Chehuen Neto – Doutor – chehuen.neto@yahoo.com.br
Renato Erothildes Ferreira – Mestre – renato.eferreira@gmail.com
Andressa Carvalho Quinet de Andrade – Graduanda – andressaquinet@hotmail.com
Jonas Munck de Oliveira – Graduando – jonas.munck.jf@gmail.com
Matheus Bresser – Graduando – mbresser@live.com
Matheus Magalhães Apolinário – Graduando – matheus_apolinario@hotmail.com
Pedro Murari de Barros – Graduando – pedromdebarros@gmail.com
Correspondência: José Antonio Chehuen Neto – Av. Presidente Itamar Franco, 1.495/1.001, Centro CEP 36016-320. Juiz de Fora/MG, Brasil.