Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
Regulamentando políticas públicas em reprodução assistida para casais soroconcordantes homoafetivos
Antônio de Freitas Freire; Lethícia Geovânia Bezerra de Brito; Ricardo Jorge de Araújo;
Antônio de Freitas Freire; Lethícia Geovânia Bezerra de Brito; Ricardo Jorge de Araújo; Rosângela Viana Zuza Medeiros
Regulamentando políticas públicas em reprodução assistida para casais soroconcordantes homoafetivos
Revista Bioética, vol. 27, núm. 4, pp. 756-763, 2019
Conselho Federal de Medicina
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Tecnologias reprodutivas permitem que casais soroconcordantes homoafetivos tenham filhos biológicos saudáveis, já que, se aplicadas adequadamente, impedem a transmissão vertical do vírus da imunodeficiência humana. Diante do avanço das ciências naturais e das consequências sociais que o acompanham, a ciência jurídica deve progredir para lidar com essas novas realidades. Com base nisso, a pesquisa propõe-se a investigar a obrigação estatal de regulamentar políticas públicas que contemplem técnicas de reprodução assistida, visto que a integralidade do direito à saúde e ao planejamento familiar deve abarcar o grupo-objeto deste estudo. Utilizou-se método dedutivo e técnicas de revisão literária, com enfoque na legislação brasileira vigente, em monografias do biodireito e resoluções do Conselho Federal de Medicina sobre o tema.

Palavras chave: Soropositividade para HIVSoropositividade para HIV,Técnicas reprodutivasTécnicas reprodutivas,Política públicaPolítica pública.

Carátula del artículo

PESQUISA

Regulamentando políticas públicas em reprodução assistida para casais soroconcordantes homoafetivos

Antônio de Freitas Freire
Universidade Potiguar, Brasil
Lethícia Geovânia Bezerra de Brito
Universidade Potiguar, Brasil
Ricardo Jorge de Araújo
Universidade Potiguar, Brasil
Rosângela Viana Zuza Medeiros
Universidade de Coimbra, Portugal
Revista Bioética, vol. 27, núm. 4, pp. 756-763, 2019
Conselho Federal de Medicina

Recepção: 17 Dezembro 2018

Revised document received: 29 Maio 2019

Aprovação: 30 Maio 2019

Este artigo discute o acesso de casais homoafetivos soroconcordantes (ambos com o vírus da imunodeficiência humana – HIV/aids) às políticas públicas de reprodução assistida. As novas tecnologias reprodutivas possibilitaram que casais inférteis tivessem filhos biológicos, bem como a prevenção da transmissão vertical do HIV, ou seja, dos pais à prole. Essas técnicas auxiliam a concepção, sendo utilizadas principalmente em casos de infertilidade (dificuldade de engravidar), esterilidade (incapacidade de conceber) e para evitar o contágio de doenças, seja vertical ou horizontal (entre parceiros).

A Convenção Internacional sobre População e Desenvolvimento de 1994 (Convenção do Cairo) 1 foi marco para os direitos sexuais e reprodutivos. A partir dela passou-se a entender que o indivíduo tem autonomia sobre seu aparelho reprodutivo. Contudo, as novas tecnologias reprodutivas levantaram algumas questões sobre essa autonomia e o papel do Estado, ou seja, caberia ao poder público meramente garantir essa liberdade apenas impedindo que terceiros a violem, ou deveria elaborar e implementar políticas públicas, saindo da inércia garantista?

Para este estudo foi adotado o método dedutivo, com revisão literária da doutrina, jurisprudência e legislação concernentes aos direitos sexuais e reprodutivos, além do direito à saúde do grupo aqui em foco, casais homoafetivos soroconcordantes, assim como resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) que tratem do assunto.

Nesta pesquisa não foram considerados os sorodiscordantes, o que acrescentaria a transmissão horizontal à problemática, tema que não convergiria com os propósitos deste trabalho. Além disso, o estudo limitou-se a casais homoafetivos, não apenas por serem grupo vulnerável, mas também por sofrerem estigmatização em relação ao HIV.

Assim, para tecer entendimento sobre a regulamentação de políticas públicas de reprodução assistida para esse grupo, o artigo se propõe a costurar direitos fundamentais, normatizações relevantes ao objeto e conhecimentos sobre reprodução humana assistida (RHA), esta última em observância à interdisciplinaridade que a temática exige.

Direitos fundamentais inerentes à saúde reprodutiva

Os direitos fundamentais, enquanto positivação de direitos humanos nos países, estendem-se a todos os seres humanos e não apenas aos cidadãos ou contribuintes. Visam o bem-estar geral da sociedade, sem qualquer tipo de seletividade quanto a quem seja sujeito de direitos. Portanto, é imprescindível recorrer à Carta Magna como fundamento maior para respaldar o acesso de grupos vulneráveis, como casais soroconcordantes homoafetivos, às tecnologias reprodutivas. Ressalta-se que a novidade dessas tecnologias não é empecilho, visto que os direitos fundamentais estão em constante evolução justamente para se adequar às novas realidades.

Nessa discussão merece destaque o direito à saúde, haja vista sua intimidade com o próprio direito à vida, uma vez que a falta do primeiro compromete a preservação do segundo, como apontam Sarlet e Figueiredo 2. Essa relação é essencial, pois, sendo uma das principais garantias do indivíduo, a vida dificilmente pode ser relativizada. Portanto, a inflexibilidade do direito à vida acaba por inviabilizar o direito à saúde.

Este último é difícil de conceituar, visto que a própria ideia de saúde é pouco mensurável. Segundo Ribeiro Filho 3, quanto maiores os patamares de bem-estar atingidos, maiores podem ser as exigências de serviços sanitários feitas aos poderes públicos. Ou seja, a ideia de saúde não é estática, mas sempre conceito em expansão.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu protocolo de constituição, define saúde como estado de completo bem-estar físico, mental e social, (…) [que] não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade4. Para complementar, vale dizer que o direito à saúde abrange todas as situações da vida humana em que o bem-estar do indivíduo deve ser garantido 3. No Brasil, nos termos do artigo 196 da Constituição Federal (CF) de 1988 5, essa garantia é dever do Estado.

Ainda de acordo com Sarlet e Figueiredo 2, os direitos fundamentais têm duas classificações: uma negativa, que envolve a defesa da saúde, e outra positiva, ou seja, a prestação de serviços e aplicação de políticas públicas. Embora o dever estatal nesse âmbito inclua ambas as definições, quando se trata do acesso de casais homoafetivos soroconcordantes à reprodução assistida, fica nítida a necessidade de debater a face positiva.

Ainda considerando o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, este direito é universal e igualitário, o que não significa que o modo de o garantir deve ser igual para todas as pessoas, principalmente em um país desigual como o Brasil 2. Nesse contexto, deve-se buscar a igualdade material, ou seja, dar tratamento desigual aos desiguais. Cabe, portanto, considerar o direito à saúde junto com o direito à igualdade, não sendo o primeiro dispensado a apenas uma parcela da população.

Nesse sentido, Marmelstein 6 aponta a discriminação negativa, isto é, o dever de não segregar o diferente, e a discriminação positiva, o compromisso de igualizar. Dessa forma, cabe ao Estado promover medidas compensatórias que garantam igualdade de condições entre grupos menos favorecidos e os demais cidadãos. Isso remete à discriminação positiva, visando a igualdade material.

A Constituição da OMS também trata da isonomia no acesso à saúde, definindo-a da seguinte forma: gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social4. Portanto, na perspectiva isonômica, a saúde deve ser garantida tanto nacional como internacionalmente.

Por ser tema abrangente, para falar de direito à saúde é mais adequado fazer recorte específico – no contexto deste artigo, o direito à saúde reprodutiva a partir de técnicas assistidas. Essas técnicas foram definidas pelo Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento1 e reafirmam os conceitos da Constituição da OMS: a saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico mental e social (…) em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos7. Assim, evitar a transmissão hereditária do HIV é parte do direito à saúde reprodutiva, respeitando-se a isonomia neste processo.

Os direitos reprodutivos baseiam-se na liberdade de todo casal ou indivíduo decidir responsavelmente quando e quantas vezes quer ter filhos, obtendo informações e meios de fazê-lo gozando do mais alto padrão de saúde sexual e reprodutiva. O Relatório da Conferência do Cairo 1também contempla o planejamento familiar, deixando implícito que, para isso, mulheres e homens devem ter acesso a métodos eficientes, seguros e aceitáveis que permitam gerar prole sadia.

Segundo Heloisa Helena Barboza, citada por Moás e colaboradores 8, antigamente se atribuía ao direito de procriar apenas conotação negativa, associada à liberdade de decidir não ter filhos mediante métodos de controle de fecundidade. Atualmente, a ideia adquiriu também sentido positivo, remetendo à liberdade de escolher como procriar, sendo a Conferência do Cairo 1 um dos marcos para a valorização dessa faceta positiva.

Lemos e Chagas 9 entendem que direitos reprodutivos não são necessariamente absolutos, visto que seu exercício pode afetar a vida e a intimidade daquele que será concebido. Esta pessoa não pode ser simples objeto de realização dos desejos, pois tem uma finalidade em si. Apesar disso, não se pode impedir a reprodução de casais soroconcordantes com o argumento de risco à saúde da criança, nem mesmo apontar a adoção como alternativa para satisfazer a paternidade ou maternidade biológica.

No mesmo sentido, Paiva e colaboradores 10 ressaltam a obrigação ética e constitucional de promover os direitos reprodutivos de pessoas vivendo com HIV, cuja liberdade de ter filhos é legítima, apesar da estigmatização da doença até mesmo entre profissionais de saúde. Na prática, essa garantia passa por políticas públicas, como o Programa de Reprodução Assistida para Soropositivos, implementado pelo governo de São Paulo em 2010, e o Programa Estadual DSTAids-SP. Segundo Maria Clara Gianna, coordenadora deste último, o objetivo seria propiciar uma concepção segura, sem riscos de infecção do(a) parceiro(a) soronegativo no caso dos casais sorodiscordantes ou sem riscos de re-infecção para casais onde ambos sejam soropositivos para o HIV11.

Constata-se que a aplicação de políticas públicas de RHA para casais soroconcordantes homoafetivos, enquanto discriminação positiva destinada a compensar desigualdades, concretiza também o aspecto positivo dos direitos reprodutivos, permitindo que os membros deste grupo tenham filhos. Assim, seus direitos de reprodução não ficariam restritos à possibilidade de decidir somente não procriar, mas sempre tendo em vista prevenir a transmissão vertical do HIV. Isto posto, na próxima seção encontram-se algumas reflexões mais aprofundadas sobre as técnicas de RHA que podem garantir estes direitos.

Técnicas de reprodução assistida

Diante da carência legislativa sobre RHA no Brasil, o CFM publicou a Resolução 2.168/2017 12, que aborda princípios e requisitos para essas técnicas no sistema de saúde nacional. A deliberação define esses métodos como auxiliares na solução dos problemas de reprodução humana, facilitando a procriação de casais hétero e homoafetivos, bem como de pessoas solteiras, resguardado o direito médico à objeção de consciência. Para se submeterem a esses procedimentos, as pessoas devem ser julgadas capazes e estar de inteiro acordo e devidamente esclarecidas, seguindo o princípio do consentimento informado.

Esta pesquisa destaca as técnicas de RHA destinadas a casais homoafetivos soroconcordantes que desejam constituir família, pois a presença do vírus demanda maior atenção para prevenir a transmissão por contato sanguíneo, horizontal ou verticalmente (durante a gestão, parto e amamentação). Dentre essas técnicas destacam-se a inseminação intrauterina (IIU), a fertilização in vitro (FIV) e a injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI).

Dada a responsabilidade dos pais e do Estado de garantir a saúde do bebê, evitando a transmissão vertical e assegurando-lhe o direito à vida e à saúde, conforme o artigo 227 da CF/88 5, antes de aplicar a tecnologia citada é preciso proceder à lavagem de espermatozoides. Segundo Vaz 13, esse método é dividido nas seguintes etapas: coleta, centrifugação, lavagem e filtragem do sêmen, quando o parceiro é soropositivo. Isso permite isolar gametas masculinos não infectados pelo líquido seminal, onde o vírus se instala.

Para casais heterossexuais sorodiscordantes nos quais o homem é soropositivo, após a lavagem de esperma, procede-se à FIV, que, segundo Souza e Alves 14, visa a manipulação em laboratório de ambos os gametas (espermatozoides e óvulos), procurando obter embriões de boa qualidade. Cumprida a etapa masculina, os óvulos são captados por punção guiada via ultrassom transvaginal e fertilizados com o esperma já lavado. De três a cinco dias após a FIV, os embriões são transferidos para o útero.

Já na ICSI, o esperma é avaliado com microscópio potente, o que permite escolher os gametas com mais motilidade e morfologia normal. Após a análise, a ICSI consiste em injetar o espermatozoide diretamente no óvulo, em procedimento feito em laboratório por embriologista, segundo relatam Souza e Alves 14.

Para casais heterossexuais em que somente a mulher é soropositiva, a IIU é normalmente mais recomendada, uma vez que é considerada de baixa complexidade. Nesta técnica, o sêmen, colhido e preparado em laboratório, é introduzido no útero, com auxílio de cateter específico 14. Outro método indicado para esses casais é a ICSI, que evita transmissão por contato, visto ser procedimento realizado por injeção direta do espermatozoide no óvulo, seguida do diagnóstico pré-implantacional que seleciona embriões saudáveis, conforme explicam Corrêa e Loyola 15.

Vale salientar que, para todas essas técnicas de casais sorodiscordantes, ainda é necessário acompanhamento médico, com remédios antirretrovirais, parto cesáreo e, em casos de mulheres soropositivas, buscar alternativas para amamentação, pois o leite materno contém o vírus.

Para casais soroconcordantes homoafetivos femininos, existem duas possibilidades: a IIU, também chamada inseminação artificial, e a FIV; ambas precisam de sêmen doado. Nesse método, uma das parceiras fecunda com o espermatozoide apenas o seu óvulo ou o da outra também – a chamada gestação compartilhada pela Resolução CFM 2.168/2017 12. É importante lembrar que, segundo a Resolução, a idade máxima para as mulheres utilizarem essa técnica é 50 anos, pois as dificuldades aumentam com a idade.

Quando casais soroconcordantes homoafetivos masculinos desejam ter filhos biológicos, a presença de uma terceira pessoa vai além da doação de gametas: é necessária a gestação de substituição, ou seja, a utilização temporária de útero, popularmente conhecida como “barriga de aluguel”. A Resolução CFM 2.168/2017, em seu item VII, inciso 1, deixa claro que as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros12, podendo ser mãe, irmã, tia ou prima, desde que respeitada a idade de até 50 anos.

Nestes casos, a FIV ou a IIU é feita na doadora de útero com o sêmen de um dos parceiros, após lavagem de esperma em laboratório. Vale salientar que a doação temporária do útero não pode ter caráter lucrativo ou comercial 16. Para evitar transmissão horizontal e vertical na aplicação das técnicas reprodutivas, é necessária a lavagem de esperma, quando o soropositivo no casal for homem, e a IIU, quando for mulher. Além de manter a terapia antirretroviral durante a gestação, deve-se tomar os devidos cuidados médicos no parto e impedir a amamentação, já que a transmissão vertical poderá ocorrer nesses três últimos estágios.

Um processo pouco utilizado, mas que aos poucos vem ganhando destaque nos estudos da biomedicina brasileira, é a terapia gênica. Segundo Paiva, esse procedimento consiste em introduzir material genético terapêutico em uma célula [para substituir ou silenciar] genes defeituosos, utilizando técnicas de DNA recombinante e de edição de genoma17. O autor ainda explica que os vetores protegem e transportam o material genético para dentro da célula ; o vetor ideal é selecionado de acordo com o objetivo terapêutico, sendo possível escolher entre vetores virais e não virais17.

Apesar de ter sido pensada para evitar doenças hereditárias monogênicas, nos estudos atuais essa terapia é mais usada para o tratamento de doenças adquiridas, como câncer e infecção por HIV 18. A técnica germinativa, parte da terapia gênica, tem chamado a atenção de pessoas que vivem com HIV e desejam ter filhos, pois propõe fundamentalmente a transformação definitiva da expressão gênica para fins terapêuticos.

Todos esses recursos mencionados buscam oferecer mais qualidade de vida reprodutiva ao cidadão, garantindo também seu direito à saúde e à dignidade humana 8. Para casais soropositivos que desejem ter filhos, a terapia gênica germinativa pode ser a esperança para evitar a transmissão vertical, uma vez que suas células-fim são os gametas, localizados para extração do gene defeituoso. Contudo, existem várias críticas a esse método, e uma delas é a ingerência na reprodução humana, no patrimônio genético, sem contar as possíveis consequências ao DNA, como malformação do embrião, alterações morfológicas e, em alguns casos, morte.

Regulamentação de políticas públicas

É necessário investigar a implementação dessas técnicas de RHA por meio de políticas públicas, tendo em vista os princípios e direitos fundamentais que circundam a problemática, bem como o reconhecimento jurisprudencial da proteção aos grupos vulneráveis. Há que se considerar, nesse contexto, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 19, que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar e garantiu o direito à autoestima e à busca da felicidade para casais do mesmo sexo.

No sistema jurídico brasileiro, assegurar a proteção às minorias e aos grupos vulneráveis qualifica-se, na verdade, como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito 20. Assim, regulamentar políticas em reprodução assistida para casais soroconcordantes homoafetivos concretizaria tais direitos.

Essa possibilidade é reconhecida no artigo 2º da Lei 8.080/1990 (Lei do Sistema Único de Saúde), ao considerar a saúde como direito fundamental de todos, atribuindo ao Estado o dever de prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício mediante formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos21. Portanto, a legislação confere ao poder público papel positivo, sem limitar-se a garantia de acesso universal às suas políticas.

Infertilidade e impossibilidade de formar núcleo familiar saudável, adversidades que acometem pessoas vivendo com HIV, devem ser pensadas como problemas de saúde. O CFM, no preâmbulo da Resolução 2.168/2017 12, já reconhece a infertilidade humana como questão de saúde, uma vez que vem acompanhada de implicações médicas e psicológicas sobre os inférteis e legitima o dever de superá-las. O mesmo documento admite o avanço do conhecimento científico para ultrapassar obstáculos à reprodução humana, e recorre ao julgamento da ADI 4.277 para garantir os mesmos direitos a casais homoafetivos.

Essa perspectiva também já vem sendo discutida administrativamente nas últimas duas décadas. De acordo com Nascimento, em sua tese de doutorado, no Plano Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – Princípios e Diretrizes, apresentado em 2004, a infertilidade e a reprodução assistida são consideradas como uma das lacunas nas políticas de atenção à saúde da mulher22.

Ao reconhecer esses problemas e os direitos reprodutivos dos casais soroconcordantes homoafetivos, que ainda devem ser protegidos pelo princípio da isonomia, surge o dever estatal de concretizar os direitos fundamentais por meio de políticas públicas, como aponta Faro 23. Segundo o pesquisador, o Estado, por meio da Administração Pública, tem o dever de colocar em prática e com eficiência políticas públicas que concretizem direitos, com o uso esperado (correto) dos recursos públicos na melhor relação possível de custo-benefício24.

As discussões sobre programas governamentais que viabilizem direitos reprodutivos datam de mais de duas décadas. O item 7.3 do Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento1, ao considerar direitos de reprodução como garantidos por leis nacionais e internacionais, estabelece que a promoção do exercício responsável desses direitos por todo indivíduo deve ser a base fundamental de políticas e programas de governos e da comunidade na área da saúde reprodutiva7.

A proteção aos indivíduos infectados pelo HIV foi amplamente discutida durante a Conferência e, dentre as ações estabelecidas para os governos, destacam-se: apoiar e desenvolver os devidos mecanismos para ajudar as famílias a cuidar de seus filhos, de dependentes idosos e de membros da família portadores de deficiência, inclusive as resultantes do HIV/aids25 (item 5.11); (…) reconhecer as necessidades concernentes, inter alia , a saúde reprodutiva, inclusive planejamento familiar e saúde sexual, a HIV/AIDS, a informação, educação e comunicação26 (item 6.30).

O Estado brasileiro já vinha reconhecendo a necessidade de criar serviços eficientes de reprodução assistida ofertados pelo SUS. A Portaria GM/MS 426/2005 27 instituiu no âmbito do SUS a Política Nacional de Atenção Integral em RHA, que efetivaria o direito ao planejamento familiar pelas técnicas de RHA, identificando, conforme seu artigo 2º, inciso II, os determinantes e condicionantes dos principais problemas de infertilidade em casais em sua vida fértil, (…) [desenvolvendo] ações transetoriais de responsabilidade pública27.

No entanto, mesmo com a instituição de política nacional, pouco se avançou. Em 2012, com a Portaria 3.149 28, o Ministério da Saúde novamente se manifestou sobre a problemática, determinando a destinação de recursos financeiros aos estabelecimentos de saúde que realizam esses procedimentos. Utilizou como justificativa, inclusive, a ideia de que as técnicas de reprodução humana assistida contribuem para a diminuição da transmissão horizontal e vertical de doenças infectocontagiosas, genéticas, entre outras28.

Em maio de 2010 o governo de São Paulo lançou o Programa de Reprodução Assistida para Soropositivos, que, com um ano em vigência, atendeu cerca de 100 casais 29. No entanto, desconhece-se quantos desses casais eram de pessoas do mesmo sexo e se algum casal soropositivo homoafetivo foi atendido pelo ambulatório. Portanto, é preciso considerar a inconstitucionalidade de uma restrição (mesmo que não proposital) no acesso a essas tecnologias a casais heterossexuais, excluindo homens ou mulheres solteiros ou indivíduos homossexuais, considerando uma concepção de família que não dá conta da diversidade e pluralismo da nossa cidade , conforme assevera Nascimento 30.

Não se pode negar o avanço dos direitos reprodutivos dos casais soroconcordantes a partir da implementação de um programa desse tipo, porém é preciso expandir essas políticas públicas em âmbito federal, a fim de atender demandas de todas as pessoas que vivem com HIV e que desejam ter filhos biológicos. O Estado deve incentivar essa tendência, bem como a participação de casais homoafetivos, tendo em vista a vulnerabilidade do grupo em questão.

O Estado brasileiro, mesmo que timidamente, entendeu a importância de regulamentar políticas públicas em RHA para casais soropositivos (soroconcordantes ou não). No entanto, ainda precisa colocar em prática essas ações para garantir os direitos dessas pessoas. Ao confrontar-se com os recursos disponíveis para implementar essas ações, o governo brasileiro deve avaliar primeiro a importância e o alcance delas para toda a sociedade. Como ressalta Liana Cirne Lins, citada por Santos, no Brasil o princípio da reserva do possível tem, muitas vezes, exercido função de mero topos retórico destinado à desqualificação a priori dos direitos sociais, visto que é lançado mão à revelia mesmo da verificação da disponibilidade efetiva do livro-caixa do Estado31.

Segundo Fernando Facury Scaff, citado por Santos, a teoria da reserva do possível manifesta conceito econômico que decorre da constatação da existência da escassez dos recursos, públicos ou privados, em face da vastidão das necessidades humanas, sociais, coletivas ou individuais32. Dessa maneira, não pode ser utilizada pelo Estado como fator determinante para efetivar o direito à saúde sem antes, pelo menos, por meio de estudo financeiro e recursos públicos, analisar a real condição estatal de garantir os direitos aqui discutidos.

Políticas públicas de RHA para casais soroconcordantes homoafetivos sanariam as lacunas na efetivação dos direitos à saúde e reprodutivos desse grupo social. Elas são importantes não apenas para garanti-los, mas para reconhecê-los perante toda a sociedade. De acordo com Lobato, as políticas sociais na atualidade requerem, portanto, essa dimensão, que as coloca como garantidoras de bens sociais como direitos reconhecidos pela sociedade, que reclama a intervenção estatal para sua efetivação, mas que as localiza na esfera pública, em oposição à privada e para além do Estado33.

Resta destacar que essas políticas protegeriam inclusive a ordem econômica do direito à saúde. Para além de assegurar os direitos reprodutivos dos casais soroconcordantes homoafetivos, elas podem contribuir para evitar a disseminação do HIV, reduzindo gastos do poder público com retrovirais e todo o aparato médico e psicológico fornecido pelo SUS.

Considerações finais

Este artigo se propôs a pesquisar o papel estatal, por meio de políticas públicas, na garantia dos direitos reprodutivos de casais soropositivos homoafetivos, tendo em vista o princípio da isonomia. A necessidade de regulamentar e implementar políticas de RHA para essa parcela da população mostrou-se atual e relevante, observadas as discussões que já vinham sendo feitas no Brasil (por exemplo, a instituição do Plano Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida no SUS, pelas Portarias MS 426 e 3.149) 27 , 28.

No entanto, apesar da discussão do assunto, pouco tem sido feito. Este trabalho defende a urgência de assegurar o acesso de casais soroconcordantes homoafetivos às políticas públicas de RHA, observando sua condição de grupo socialmente vulnerável e a especial atenção que o Estado deve lhes oferecer, buscando o pleno exercício da isonomia material.

É imprescindível que esse debate seja posto em prática pelo Estado brasileiro, pois as técnicas de reprodução assistida que impedem a transmissão vertical do HIV geralmente são caras, restringindo o acesso de casais hipossuficientes. Outras questões relevantes também deveriam entrar em pauta, como o papel da saúde pública no combate ao HIV e a plena saúde do bebê.

Material suplementar
Referências
. Fundo de População das Nações Unidas. Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento: plataforma de Cairo, 1994 [Internet]. Brasília: UNFPA; 2005 [acesso 21 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/2I9MO6H
. Sarlet IW, Figueiredo MF. Algumas considerações sobre o direito fundamental à proteção e promoção da saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988. Rev Direito Consum [Internet]. 2008 [acesso 16 ago 2018];17(67):125-72. Disponível: https://bit.ly/35BG910
. Ribeiro Filho HD. A terapia gênica como decorrência do direito fundamental à saúde: fundamentos e limites. In: Stancioli BS, Albuquerque L, Freitas RS, coordenadores. XXIV Congresso Nacional do Conpedi: UFMG/Fumec/Dom Helder Câmara: biodireito e direitos dos animais I [Internet]. Florianópolis: Conpedi; 2015 [acesso 19 ago 2018]. p. 296-311. Disponível: https://bit.ly/2ORwu0j
. Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO), 1946 [Internet]. São Paulo: Comissão de Direitos Humanos da USP; [s.d.] [acesso 17 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/1x8itdQ
. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 out 1988 [acesso 17 abr 2019]. Disponível: https://bit.ly/1bIJ9XW
. Marmelstein G. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas; 2008.
. Fundo de População das Nações Unidas. Op. cit. p. 62.
. Moás LC, Vargas EP, Maksud I, Britto R. HIV/aids e reprodução: a perspectiva jurídica em análise. Cad Pesqui [Internet]. 2013 [acesso 18 ago 2018];43(150):948-67. DOI: 10.1590/S0100-15742013000300011
. Lemos MO, Chagas MC. O direito ao planejamento familiar como direito humano fundamental autônomo e absoluto? In: Silva MNA, Engelmann W, coordenadores. Biodireito [Internet]. Florianópolis: Funjab; 2013 [acesso 17 abr 2019]. p. 274-94. Disponível: https://bit.ly/35vEGcN
. Paiva V, Lima TN, Santos N, Ventura-Filipe E, Segurado A. Sem direito de amar? A vontade de ter filhos entre homens (e mulheres) vivendo com HIV. Psicol USP [Internet]. 2002 [acesso 19 ago 2018];13(2):105-33. DOI: 10.1590/S0103-65642002000200007
. Saúde lança programa pioneiro na rede pública de reprodução assistida para soropositivos. Governo do Estado de São Paulo [Internet]. Saúde; 6 maio 2010 [acesso 4 dez 2018]. Disponível: https://bit.ly/33wdVTz
. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.168, de 21 de setembro de 2017. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 10 nov 2017 [acesso 23 ago 2018]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31b5MT6
. Vaz SFP. Técnicas de reprodução humana assistida para pacientes sorodiscordantes, portadores da síndrome da imunodeficiência adquirida (HIV) [Internet]. Goiânia: Pontifícia Universidade Católica de Goiás; [s.d.] [acesso 27 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/31f0Egz
. Souza KKPC, Alves OF. As principais técnicas de reprodução humana assistida. Saúde Ciênc Ação [Internet]. 2016 [acesso 23 jan 2019];2(1):26-37. Disponível: https://bit.ly/2BggFbz
. Corrêa MCDV, Loyola MA. Tecnologias de reprodução assistida no Brasil: opções para ampliar o acesso. Physis [Internet]. 2015 [acesso 27 ago 2018];25(3):753-77. DOI: 10.1590/S0103-73312015000300005
. Regino FA. O desejo de ter filhos e a construção de gênero nas políticas de saúde: análise da Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida [tese] [Internet]. Recife: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 15 mar 2019]. Disponível: https://bit.ly/32umGNK
. Paiva JCC. Terapia gênica e suas aplicações no tratamento de doenças [trabalho de conclusão de curso] [Internet]. Brasília: Centro Universitário de Brasília; 2017 [acesso 29 ago 2018]. p. 1. Disponível: https://bit.ly/33BSQHE
. Azevêdo ES. Terapia gênica. Bioética [Internet]. 1997 [acesso 27 ago 2018];5(2). Disponível: https://bit.ly/2srZfoA
. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 4.277 [Internet]. 5 maio 2011 [acesso 20 ago 2018]. Disponível: https://bit.ly/2ryLWVJ
. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Op. cit. p. 849-50.
. Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 20 set 1990 [acesso 22 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/2MVvkP9
. Nascimento PFG. Reprodução, desigualdade e políticas públicas de saúde: uma etnografia da construção do “desejo de filhos” [tese] [Internet]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2009 [acesso 15 mar 2019]. p. 45. Disponível: https://bit.ly/2IR5sTh
. Faro JP. Políticas públicas, deveres fundamentais e concretização de direitos. Rev Bras Polit Públicas [Internet]. 2013 [acesso 22 jan 2019];10(1):251-69. p. 254. DOI: 10.5102/rbpp.v3i2.2161
. Faro JP. Op. cit. p. 261.
. Fundo de População das Nações Unidas. Op. cit. p. 56.
. Fundo de População das Nações Unidas. Op. cit. p. 61-2.
. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 426, de 22 de março de 2005. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 22 mar 2005 [acesso 22 jan 2019]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/31f65vZ
. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 3.149, de 28 de dezembro de 2012. Ficam destinados recursos financeiros aos estabelecimentos de saúde que realizam procedimentos de atenção à reprodução humana assistida, no âmbito do SUS, incluindo fertilização in vitro e/ou injeção intracitoplasmática de espermatozoides. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 31 dez 2012 [acesso 22 jan 2019]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2ISuf9f
. Reprodução assistida para soropositivos atende 100 casais em 1 ano. Governo do Estado de São Paulo [Internet]. Secretaria de Estado da Saúde; 2011 [acesso 22 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/2oIRuff
. Nascimento PFG. Op. cit. p. 40.
. Santos CRV. Reserva do possível como uma estratégia jurídica para restringir o direito à saúde: o argumento da “reserva do possível” na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [dissertação] [Internet]. Recife: Universidade Católica de Pernambuco; 2014 [acesso 15 mar 2019]. p. 114. Disponível: https://bit.ly/2MMBvoB
. Santos CRV. Op. cit. p. 114-5.
. Lobato L. Algumas considerações sobre a representação de interesses no processo de formulação de políticas públicas. Rev Adm Pública [Internet]. 1997 [acesso 15 mar 2019];31(1):30-48. p. 45. Disponível: https://bit.ly/35ARwpX
Notas
Autor notes
Participação dos autores

Antônio de Freitas Freire Júnior, Lethícia Geovânia Bezerra de Brito e Ricardo Jorge de Araújo Filho organizaram a pesquisa e redigiram o manuscrito. Rosângela Viana Zuza Medeiros, enquanto orientadora, colaborou na organização do trabalho e revisou o artigo.

Correspondência. Antônio de Freitas Freire Júnior – Rua Alcindo Dias de Oliveira, 1.446 CEP 59633-220. Mossoró/RN, Brasil. juniorfreitasxx@gmail.comlethiciabrito@outlook.comricardojorge9345@gmail.comrvzuza@hotmail.com

Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc