Resumo:
O sigilo médico é um dos princípios basilares da medicina, e espera-se que o profissional da área sempre resguarde o que lhe é relatado ou descoberto. Este estudo objetiva avaliar o conhecimento dos estudantes de medicina de uma universidade privada de Salvador/BA sobre o sigilo na relação médico-paciente. Trata-se de estudo transversal, descritivo e observacional realizado entre agosto e novembro de 2017 com 305 alunos de medicina do primeiro ao décimo primeiro semestre, por meio de questionário estruturado com situações-problema sobre sigilo profissional, com base no Código de Ética Médica, Capítulo IX. Foi estabelecido aleatoriamente um grau de conhecimento suficiente e insuficiente para os estudantes. A maioria deles mostrou conhecimento suficiente, e o décimo primeiro semestre obteve mais acertos nos casos-problema propostos no questionário. Portanto, torna-se necessário aprofundar continuamente o estudo da temática de forma transversal, devido a sua importância na relação médico-paciente. Aprovação CEP-Unifacs 2.125.574
Palavras-chave: Confidencialidade, Ética profissional, Códigos de ética, Juramento hipocrático, Educação médica, Estudantes de medicina.
Resumen
Evaluación del conocimiento de medicina acerca de la confidencialidad médica: La confidencialidad médica es uno de los principios basilares de la medicina, y se espera que el profesional de esta área siempre resguarde lo que se le relata y lo que descubre. Este estudio tiene como objetivo evaluar el conocimiento de los estudiantes de medicina de una universidad privada en Salvador, Bahía, Brasil, acerca de la confidencialidad en la relación médico-paciente. Se trata de un estudio transversal, descriptivo y observacional realizado entre agosto y noviembre del 2017 con 305 estudiantes de medicina del primero al undécimo semestres, por medio de un cuestionario estructurado con situaciones problema sobre secreto profesional, basado en el Código de Ética Médica, Capítulo IX Se estableció aleatoriamente un grado de conocimiento suficiente e insuficiente para los estudiantes. La mayoría de los estudiantes demostró conocimiento suficiente, y el undécimo semestre obtuvo más éxito en los casos problema propuestos en el cuestionario. Por lo tanto, se hace necesario profundizar continuamente el estudio del tema de manera transversal, debido a su importancia en la relación médico-paciente.
Palabras clave: Confidencialidad, Ética profesional, Códigos de ética, Juramento hipocrático, Educación médica, Estudiantes de medicina.
Abstract
Assessment of medical students’ knowledge about medical confidentiality: Medical confidentiality is one of the basic principles of medicine, and it is expected that the professional in the field will always protect what is reported or discovered. This study aims to evaluate the knowledge of medical students at a private university in Salvador, Bahia, Brazil, about confidentiality in the doctor-patient relationship. This is a cross-sectional, descriptive and observational study carried out between August and November 2017 with 305 medical students from the first to the eleventh semester, through a structured questionnaire with problem situations on professional secrecy, based on the Code of Medical Ethics, Chapter IX. A sufficient and insufficient degree of knowledge was randomly established for students. Most of the students showed sufficient knowledge, and the eleventh semester obtained more correct answers in the problem cases proposed in the questionnaire. Therefore, it is necessary to continuously deepen the study of the theme in a transversal way, due to its importance in the doctor-patient relationship.
Keywords: Confidentiality, Ethics, professional, Codes of ethics, Hippocratic oath, Education, medical, Students, medical.
PESQUISA
Avaliação do conhecimento de estudantes de medicina sobre sigilo médico
Recepção: 8 Outubro 2018
Revised document received: 19 Abril 2019
Aprovação: 20 Novembro 2019
No exercício da medicina é imprescindível garantir o sigilo e a confidencialidade dos dados 1. O profissional deve resguardar o que lhe é relatado pelo paciente e/ou familiares ou descoberto durante o acompanhamento do caso (por meio de anamnese, exame físico, exames complementares ou pelas informações que o paciente não quer compartilhar, mas que são identificadas pelo médico), a fim de garantir relação saudável entre médico e paciente, sendo o primeiro considerado o fiel depositário das informações.
O sigilo médico é um dos princípios basilares na medicina e advém do juramento de Hipócrates, um dos direcionamentos de condutas éticas e morais mais importantes da profissão 2-4. Está respaldado em vários documentos que normatizam a conduta médica, especialmente no Código de Ética Médica (CEM) 5, que foi atualizado recentemente quanto a questões como inovações tecnológicas, comunicacionais e sociais, mas sem muitas alterações no Capítulo IX, referente ao sigilo profissional 6. Também é reafirmado na Constituição Federal brasileira 7, no Código Penal 8, no Código de Processo Penal 9, no Código de Processo Civil 10 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 11.
O médico tem o dever legal e ético de garantir a confidencialidade em qualquer situação e, conforme o artigo 73 do Capítulo IX do CEM, é vedado revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente12, recomendação mantida no novo código 6. Caso descumpra essas normas, o profissional fica sujeito a sanções administrativas e jurídicas do Conselho Regional de Medicina e Código Civil e/ou Penal.
O conhecimento do CEM e das normas jurídicas do país que norteiam o compromisso do médico com a ética, os valores morais e a prática humanista da medicina deve iniciar na graduação, quando os estudantes entram em contato com diversas situações específicas da profissão 13-15. As escolas de medicina devem oferecer formação pautada em preceitos da ética médica nas disciplinas de forma geral a fim de contemplar debates e percepções amplas sobre o tema. Além disso, já que o estudante de medicina não é regido pelo CEM, é importante que o seja por um código de ética unificado 16, o que pode facilitar a tomada de decisões éticas durante a graduação 17.
Considerando a importância do sigilo profissional, este estudo objetiva avaliar o conhecimento dos discentes de medicina de uma universidade privada de Salvador/BA sobre essa questão na relação médico-paciente. Nessa perspectiva, identificar o nível de conhecimento sobre o tema pode melhorar o ensino e tornar a atuação acadêmica e profissional mais ética e humanista.
Trata-se de estudo transversal, descritivo e observacional realizado na Universidade Salvador (Unifacs) entre agosto e novembro de 2017. A amostra foi não probabilística e randomizada por semestre, distribuída em oito turmas com 384 estudantes. Foram pesquisados 305 estudantes de medicina, do primeiro ao sexto ano, de um total de 922 alunos regularmente matriculados. O terceiro, quinto, nono e décimo segundo semestres não participaram do estudo por não terem turmas matriculadas durante a coleta de dados. Os critérios de exclusão foram recusa em assinar o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) ou entregar o questionário sem respostas, e não estar presente em sala de aula no momento da aplicação do instrumento.
O questionário foi estruturado com perguntas sobre dados sociodemográficos (idade, sexo e semestre), se os estudantes já haviam lido o CEM e o juramento de Hipócrates e se já haviam cursado a disciplina Ética e Profissionalismo. Além disso constavam dez casos-problema, descrevendo situações cotidianas relacionadas ao sigilo profissional, para as quais os estudantes responderam “sim” ou “não”, de acordo com os ditames do Capítulo IX do CEM, conforme a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 1.931 5.
Os estudantes foram convidados em sala de aula a participar da pesquisa. Após a explicação das pesquisadoras sobre o objetivo do estudo, o TCLE foi entregue aos discentes, lido, assinado e devolvido. Em seguida, os alunos receberam o questionário, que foi respondido de forma anônima e depositado em urnas específicas, para evitar identificação.
Para analisar os dados, os questionários foram separados por semestre e o caso-problema 3 foi desconsiderado por permitir dupla interpretação. Nenhum questionário foi excluído da pesquisa. O grau de conhecimento dos estudantes foi classificado como “insuficiente” e “suficiente”, caso em que houve acerto de 70% das nove questões válidas do questionário (seis ou mais questões), conforme padronização aleatória.
Os dados foram tabulados e analisados estatisticamente nos programas Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 22.0 e no R Project 3.4.1 “Single Candie”, e os gráficos foram gerados no Microsoft Excel 2013. As variáveis qualitativas foram apresentadas em valores absolutos e proporções, e a variável numérica em valor de média e desvio-padrão. Os testes não paramétricos de Mann-Whitney, Kruskal-Wallis e Nemenyi foram utilizados para comparar as variáveis qualitativas, estipuladas pela mediana de acertos dentro do grupo que mostrou conhecimento suficiente. Foi considerado o intervalo de confiança de 95% e índice estatisticamente significante valores de p menor ou igual a 0,05. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifacs e respeitou os preceitos éticos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde 466/2012 18, que norteia as pesquisas com seres humanos.
Como apresentado na Tabela 1, o questionário foi respondido por 197 (64,6%) estudantes do sexo feminino, e a idade variou de 17 a 36 anos, com média de 22,8 anos e desvio-padrão de 3,7 anos, sendo maior a concentração entre 17 e 20 anos. A maioria – 46 alunos (15,1%) – era do sétimo e a minoria – 25 (8,2%) – do oitavo semestre. Em relação ao contato dos discentes com referências que orientam sobre ética médica e sigilo profissional, 157 (51,5%) referiram ter lido o CEM, 229 (75,1%) o juramento de Hipócrates e 189 (62%) já tinham cursado a disciplina Ética e Profissionalismo, oferecida no quinto semestre do curso.

Dos estudantes que cursaram a disciplina Ética e Profissionalismo, 119 (63%) e 140 (74%) leram o CEM e o juramento de Hipócrates, respectivamente. Daqueles que não cursaram, 38 (32,8%) e 89 (76,7%) leram os referidos documentos, respectivamente. Quando analisado o conhecimento sobre o sigilo médico, com base nas respostas dos casos-problema, 154 (50,5%) estudantes obtiveram grau de conhecimento suficiente e 151 (49,5%), conhecimento insuficiente.
Dos discentes que obtiveram grau de conhecimento suficiente, 82 (52,2%) leram o CEM e 71 (48,3%) não o tinham lido; 119 (52%) leram o juramento de Hipócrates e 33 (44,6%) não o leram; e 103 (54,5%) cursaram a disciplina Ética e Profissionalismo, enquanto 51 (44%) ainda não a tinham cursado.
Dos participantes com grau de conhecimento insuficiente, a maioria afirmou não ter lido os documentos nem cursado a disciplina. Pelo teste de Mann-Whitney, não houve diferença estatisticamente significativa entre o grau de conhecimento suficiente dos estudantes que leram o CEM (p=0.652) e o juramento de Hipócrates (p=0.443) e cursaram a disciplina Ética e Profissionalismo (p=0.079), quando comparados aos que não os leram ou não cursaram a disciplina.
O conhecimento suficiente dos estudantes oscilou entre os semestres, sendo maior no décimo primeiro (73,8%) e menor no sétimo (17,4%). Quanto ao conhecimento insuficiente, predominou no primeiro ao oitavo semestre, com pequenas oscilações, e declínio no décimo e no décimo primeiro semestres, como mostra o Gráfico 1.

Confrontando-se a proporção de respostas suficientes entre os semestres, encontrou-se pelo teste de Kruskal-Wallis o valor de p=0,02, comprovando que há um ou mais semestres com conhecimento suficiente diferente dos demais. Pelo teste de Nemenyi, os semestres foram analisados par a par, e o p foi inferior a 0,05, revelando significância estatística apenas nas comparações entre o décimo primeiro semestre e outros três: o primeiro (p=0,046), o segundo (p=0,0196) e o sétimo (p=0,0052).
Quanto aos casos-problema, o Gráfico 2 mostra que o caso 10, referente ao estudante que publica foto do prontuário de paciente nas redes sociais, foi o que teve mais respostas corretas, 304 (99,7%). Por outro lado, o caso 4, sobre médico que participa de congresso e expõe o caso clínico com detalhes identificáveis do enfermo, ainda que com autorização prévia, foi respondido incorretamente por 264 (86,6%) estudantes.

A análise dos dados revela que predominam estudantes jovens e do sexo feminino, resultado compatível com a realidade atual dos cursos de medicina, isto é, a juvenilização e feminização da profissão nos últimos anos 19-21.
O significativo número de alunos que não leu o CEM pode ter sido influenciado por alguns fatores, como falta de entendimento adequado da ética médica investida na graduação, problemas na estrutura curricular, maior interesse dos estudantes por tópicos das ciências exatas e biológicas, bem como o fato de o estudante não estar submetido a esse código (o que ocorre apenas após a formação) 22,23. Por isso, vale reforçar a importância da implantação do Código de Ética do Estudante de Medicina (CEEM) em todas as graduações médicas para aumentar o interesse pela ética, além de estimular o exercício da cidadania e a humanização da profissão 24.
O estudante deve compreender que mesmo durante a graduação precisa obedecer a determinadas regras estabelecidas pelo CEM, pois se encontra sob a tutela de supervisor médico e pode ser responsabilizado pela quebra do sigilo, podendo responder no âmbito moral, jurídico e administrativo 25,26.
Ter lido o CEM e o juramento de Hipócrates e ter cursado a disciplina Ética e Profissionalismo favoreceu a aquisição de conhecimento suficiente sobre confidencialidade. Entretanto, a ausência de significância estatística ao comparar essas variáveis e as respostas corretas pode levar à ideia de que o conhecimento sobre o tema está também relacionado a experiências, valores prévios e outras leituras sobre o assunto durante a graduação. Além disso, deve-se considerar que o juramento é abordado desde o início na universidade pesquisada e o sigilo médico pode ser ressaltado em qualquer momento da graduação 27,28.
O ensino dos princípios éticos ajuda o aluno e futuro profissional a analisar e resolver dilemas na graduação e na vida profissional ao lidar com diversas situações, pacientes, colegas e com a sociedade em geral. Além disso, os discentes também reaplicam o exemplo prático dos professores, em relação à técnica e à ética 22,29.
A maioria dos estudantes que cursou Ética e Profissionalismo afirmou ter lido o CEM e o juramento de Hipócrates, o que demonstra a preocupação com os princípios éticos desde o início da graduação. Para Menezes e colaboradores 17, disciplinas que abordam temas relacionados à ética médica podem incentivar a relação entre profissionais, pacientes e familiares a ser mais respeitosa e o resguardo do sigilo, indispensáveis à assistência em saúde. Também é muito importante para o aprendizado que as escolas médicas e os Conselhos de Medicina promovam cursos e debates sobre o assunto.
Neste estudo, o conhecimento suficiente demonstrado pelos estudantes também pode ter relação com a abordagem da ética médica em algumas disciplinas desde o primeiro semestre na universidade pesquisada. Esse resultado contrasta com o estudo de Figueira e colaboradores 30, no qual perguntas relacionadas ao sigilo médico tiveram menor índice de acertos entre os estudantes.
A pequena diferença entre os índices de conhecimento suficiente e insuficiente pode ser justificada pela falta de interesse dos estudantes na temática ou de experiências práticas sobre o sigilo. Outra hipótese seria a abordagem inadequada durante as discussões em sala. Alguns autores 31,32 ainda ressaltam o fato de que disciplinas utilitaristas despertam mais fascínio do que as humanistas entre os alunos de medicina, pela possibilidade de instrumentalizar práticas futuras e de obter maior ganho com honorários médicos. Por isso, a abordagem transversal da ética médica com criatividade, diálogo e reflexão crítica durante toda a graduação pode desenvolver no estudante caráter ético e humanístico 33-35.
O índice de conhecimento insuficiente encontrado é esperado nos semestres iniciais do curso, uma vez que os estudantes ainda não tiveram contato com a disciplina específica e tiveram pouca experiência com pacientes. Entretanto, o sétimo e o oitavo semestres poderiam ter se saído melhor no questionário, pois já tinham cursado a disciplina Ética e Profissionalismo e mais atividades práticas. Além disso, o oitavo semestre está prestes a começar o internato, o que pressupõe maior repertório sobre ética e discernimento na tomada de decisões 36.
A diferença estatística entre o décimo primeiro e o primeiro semestre, o segundo e o sétimo sugere que, com o avançar do curso, o estudante adquira mais maturidade e interesse por temas relacionados ao sigilo ou que haja impacto da grade curricular na formação e ocorra mudança de valores pessoais durante a graduação 37. Pelo fato de estar cursando o internato, o décimo primeiro semestre provavelmente está mais instruído quanto ao sigilo médico, pois teve contato com mais enfermos e situações éticas 38, principalmente no ambiente hospitalar.
Quanto aos casos-problema, serão discutidos os três que tiveram menos acertos, a fim de reforçar os pontos que necessitam ser aprimorados: exposição de caso clínico em congresso, com detalhes identificáveis da história clínica, fotos e autorização prévia do paciente (caso 4); inserção da Classificação Internacional de Doenças (CID) em solicitação de guias de exames de paciente assegurado por plano de saúde privado (caso 6); e liberação pelo médico assistente de prontuário do enfermo já falecido à família que solicita informações sobre o parente (caso 8).
O desconhecimento do caso 4 pode estar ligado ao anseio que esses discentes têm em aprender com situações reais e exemplificar o cotidiano da prática clínica. Além disso, por estarem acostumados à exposição de casos clínicos em redes sociais, podem considerar aceitável essa divulgação em evento científico, sem exceções 39.
O artigo 75 do CEM não permite ao médico fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente12. O novo CEM reforçou a questão ao acrescentar que é proibido exibir imagens que tornem os pacientes reconhecíveis 6.
Mesmo com o consentimento da pessoa, a proibição visa manter a dignidade do indivíduo para evitar que seja tratado como mera figura ilustrativa, sem respeito à condição física e emocional gerada pela doença. Cabe ressaltar que o desrespeito a essa norma sobre o sigilo tende a aumentar os processos contra a classe 40,41.
A quantidade de respostas incorretas no caso 6 pode ser relacionada à ausência de ensino teórico e prático sobre a CID nas guias de solicitações médicas. Outra hipótese é que os estudantes podem já ter recebido guias com a especificação da CID e pensado ser o correto. Embora os planos de saúde contratem médicos auditores para controlar e avaliar os recursos e procedimentos adotados no ato médico, a fim de melhorar a qualidade dos serviços prestados, a inserção da CID nas guias vai contra os princípios da ética médica, mesmo com a justificativa de coibir fraudes, pois os dados são visualizados por outras pessoas além dos médicos 41-44. O assunto tem sido discutido nos tribunais 43,45 e tanto médicos quanto estudantes devem se atualizar acerca das decisões legais referentes ao tema.
Apesar de as Resoluções CFM 1.642/2002 46 e 1.819/2007 47 tratarem especificamente do assunto e de o artigo 73 do CEM respaldar o médico caso não tenha quebrado o sigilo durante o exercício de sua profissão 5,6, ainda há muitas controvérsias e dúvidas sobre a CID em atendimentos, consultas e guias de exames, principalmente para seguradoras de saúde 48, o que pode interferir no entendimento e na transmissão do conteúdo para os alunos.
O grande número de respostas incorretas no caso 8 pode ter ocorrido porque os estudantes talvez tenham considerado o direito à inviolabilidade da intimidade do paciente falecido e que parentes próximos poderiam estar ferindo esse princípio ao terem acesso ao prontuário. Portanto, o resultado denota provável falta de orientação adequada sobre o sigilo profissional.
Nesse caso, prevalece o artigo 73 do CEM 5,6 e a Recomendação CFM 3/2014, que preconiza o fornecimento, quando solicitados pelo cônjuge/companheiro sobrevivente do paciente morto, e sucessivamente pelos sucessores legítimos do paciente em linha reta, ou colaterais até o quarto grau, os prontuários médicos do paciente falecido49. O artigo 88 do CEM, referente a documentos médicos, foi alterado no novo código e passou a permitir o acesso do paciente ao prontuário ou, na sua ausência, do seu representante legal 6.
Vale também discutir frequente situação de quebra de sigilo não abordada nos casos propostos neste estudo: quando o médico informa os familiares do paciente sobre o diagnóstico, prognóstico e tratamento da doença, antes mesmo de comunicá-lo. Isso é comum em relação a idosos, mesmo que lúcidos, e pacientes com doenças oncológicas 50. Alguns autores 51,52 ressaltam que essa atitude representa visão paternalista do médico, ou seja, pressupõe-se que o sofrimento do paciente vai aumentar se souber da real situação e, por isso, seria mais fácil que outras pessoas tomassem decisões pela sua saúde. Esse conflito ético desrespeita os artigos 73, 85 e 88 do CEM 5,6.
A informação sobre o diagnóstico deve ser priorizada ao paciente, exceto se ele não o desejar, tendo em vista a dignidade e autodeterminação da pessoa, e a privacidade das informações. Se for consentido pelo paciente, os acompanhantes serão informados, e esse processo deve ser registrado em prontuário. Caso seja incapaz, cabe a seu responsável legal tomar decisões ou autorizar a informação a outras pessoas 41,50,53,54. O tratamento deve ser discutido de acordo com o “grau de verdade” suportável pelo enfermo, levando em conta as características psicológicas e socioculturais, o estágio da doença e se há apoio familiar 51,53,55.
A confidencialidade dos dados favorece o paciente e, ao mesmo tempo, os interesses de familiares, médicos e sociedade 56. Segundo Brouardel, a obrigação do segredo não é facultativa, é absoluta57, sendo imprescindível que o profissional respeite o que lhe é revelado ou descoberto durante o contato com o enfermo.
A falta de respeito à autonomia e privacidade do paciente ainda é motivo de muitos processos judiciais. Segundo o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo 58, entre 2012 e 2016 foram registrados 379 processos éticos por quebra de sigilo no estado, mas sem nenhuma cassação de registro profissional. Por isso cabe também às entidades de classe e escolas de medicina orientarem adequadamente os graduandos sobre o dever de assegurar a privacidade dos enfermos em quaisquer circunstâncias.
Este estudo mostrou predomínio de jovens discentes do sexo feminino, que mostraram ter conhecimento suficiente sobre sigilo médico em relação a quem obteve conhecimento insuficiente – entretanto, a diferença foi pequena entre os dois grupos. Dos estudantes com conhecimento suficiente, a maioria leu o CEM, o juramento de Hipócrates e cursou a disciplina Ética e Profissionalismo. No entanto, a ausência de significância estatística entre essas variáveis revela que experiências, valores dos estudantes e outras leituras realizadas sobre ética médica e/ou confidencialidade profissional durante a graduação também influenciaram nesse resultado.
Os dados encontrados para o décimo primeiro e o primeiro, o segundo e o sétimo semestres mostram que o mais avançado tem aspectos que favorecem a compreensão sobre o tema, como o contato com mais pacientes e situações éticas, principalmente no internato. A variação no índice de respostas corretas aos casos-problema denota que os estudantes não têm conhecimento adequado sobre o sigilo.
Sugere-se aprofundar continuamente a temática de forma transversal e dinâmica, pois se trata de pilar essencial na relação médico-paciente. É necessário refletir coletivamente sobre questões como o sigilo na graduação em medicina, para se formar médicos mais éticos. Além disso, deve ser estimulada a leitura do CEM e do juramento de Hipócrates, documentos importantes para orientar os discentes em relação aos princípios da ética médica.
Questionário
Idade: _______
Sexo: ( ) F ( ) M
Semestre: _____
Já leu o Código de Ética Médica?
( ) Sim ( ) Não
Já leu o juramento de Hipócrates?
( ) Sim ( ) Não
Já cursou a disciplina Ética e Profissionalismo?
( ) Sim ( ) Não
Leia as situações na coluna à direita e marque a alternativa correta, considerando seu conhecimento sobre o Capítulo IX – sigilo profissional, do Código de Ética Médica.
Gabarito comentado do questionário
Idade: _______
Sexo: ( ) F ( ) M
Semestre: _____
Já leu o Código de Ética Médica?
( ) Sim ( ) Não
Já leu o juramento de Hipócrates?
( ) Sim ( ) Não
Já cursou a disciplina Ética e Profissionalismo?
( ) Sim ( ) Não
Leia as situações na coluna à direita e marque a alternativa correta, considerando seu conhecimento sobre o Capítulo IX – sigilo profissional, do Código de Ética Médica.
1. Médica é convocada a depor sobre seu paciente psiquiátrico, que em um surto psicótico comete ação homicida. Ela testemunha ao juiz que não pode revelar informações sobre a condição do paciente, afirmando que está respaldada pelo Código de Ética Médica.
Resposta: Sim. Mediante investigação da suspeita de crime, o médico não pode revelar segredo, mesmo quando depor em juízo como testemunha, ou expor o paciente a processo criminal, delatando informações que lhe foram confidenciadas, como determina o artigo 73 do CEM 1,2. O Poder Judiciário não pode punir, processar ou prender o profissional alegando crime de desobediência, porque não há dolo quando da omissão de fatos relacionados a sua profissão 3,4.
2. Médico atendeu paciente de 19 anos, que deu entrada em emergência com suspeita de aborto, e denunciou o crime à autoridade policial.
Resposta: Não. O médico não deve comunicar à autoridade policial crime pelo qual a paciente possa ser processada, que inclui o aborto, conforme o artigo 73 do CEM 1,2. O Ministério da Saúde recomenda que, diante de caso de abortamento inseguro, o médico aja eticamente, sem fazer juízo de valor, pois os profissionais de saúde devem acolher e garantir a sobrevivência da mulher, sem causar transtornos ou constrangimentos 5.
3. Médica recebe no consultório paciente menor de idade portador de sífilis, que não quer contar à família sobre sua condição. Mesmo assim, a profissional relata o caso à família.
O caso foi considerado incompleto por não especificar a idade do “menor” e também não referir o grau de desenvolvimento cognitivo. Por isso, durante a análise dos dados optou-se por desconsiderá-lo do estudo, excluindo a resposta desta questão da análise estatística. A decisão foi tomada considerando os aspectos discutidos abaixo.
O artigo 74 do CEM veda ao médico revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente6. O novo CEM substitui na redação desse artigo a expressão “menor de idade” por “criança e adolescente”, deixando claro que existem especificidades de acordo com as faixas etárias, a fim de evitar dúvidas 2.
Uma pessoa “menor de idade” é considerada na faixa etária de 0 a 18 anos incompletos e, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera que criança é a pessoa com até 12 anos incompletos e adolescente de 12 a 18 anos. Em casos excepcionais, e quando disposto na lei, o ECA é aplicável até os 21 anos 7.
A criança é considerada juridicamente incapaz e tem a autonomia limitada pelo seu desenvolvimento cognitivo incompleto. Por isso, precisa estar acompanhada dos responsáveis legais durante consulta médica, embora seja positivo envolvê-la no processo decisório, fornecendo informações adequadas ao seu grau de compreensão 8. Já o adolescente é considerado capaz para avaliar seus problemas e encontrar meios para solucioná-los e tem o direito de ser atendido sem a presença dos pais ou responsáveis legais na consulta, sendo reconhecidas sua autonomia e individualidade. Em situações consideradas de risco (como gravidez, cirurgias, abuso de drogas, risco à vida ou à saúde de terceiros, entre outras) é preciso a participação e o consentimento do adulto responsável; porém, o adolescente deve ser informado dos motivos dessa decisão 9-11.
Além disso, pacientes muito jovens somente terão sua autonomia mitigada quando tiverem a função cognitiva afetada parcial ou absolutamente 12, o que influencia no processo de tomada de decisões e na necessidade de acompanhamento durante o ato da consulta.
4. Médico participa de congresso e expõe o caso clínico de paciente seu, exibindo detalhes identificáveis da história clínica e fotos, com autorização prévia dele.
Resposta: Não. O artigo 75 do CEM veda ao médico fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente6. O novo CEM reforçou a importância de preservar o enfermo ao acrescentar que não é permitido exibir imagens que tornem os pacientes reconhecíveis 2. Mesmo com o consentimento da pessoa, a proibição visa manter sua dignidade evitando que seja tratada como mera figura ilustrativa, sem respeito à condição física e emocional causada pela doença 13.
5. Médico cobrou seus honorários judicialmente e, na ação, não informou todos os dados referentes à condição de saúde do paciente.
Resposta: Sim. De acordo com o artigo 79 do CEM é vedado ao médico deixar de guardar o sigilo profissional na cobrança de honorários por meio judicial ou extrajudicial6. Tal cobrança é lícita e ética, e o sigilo dos dados deve ser mantido.
6. Paciente assegurado por plano de saúde privado comparece à consulta médica e o médico solicita vários exames e emite uma guia para tal, constando a identificação do paciente e a Classificação Internacional de Doenças (CID) da sua patologia.
Resposta: Não. Apesar de as Resoluções CFM 1.642/2002 14 e 1.819/2007 15 tratarem especificamente do tema e de o artigo 73 do CEM respaldar o médico na manutenção do sigilo durante o exercício de sua profissão 1,2, ainda há dúvidas sobre a colocação da CID em atendimentos, consultas e em guias de exames, principalmente para seguradoras de saúde 16. Embora os planos de saúde contratem médicos auditores para controlar e avaliar os recursos e procedimentos adotados no ato médico, e permitir sua resolubilidade e melhoria na qualidade dos serviços prestados, a aposição da CID nas guias é atentatória à ética médica mesmo com a justificativa de coibir fraudes, pois os dados não são visualizados apenas por profissionais médicos 13,17-19. O assunto tem sido discutido nos tribunais 18,20, e tanto o médico quanto o estudante devem se atualizar acerca das decisões legais referentes ao tema.
7. Trabalhador realiza exame pré-admissional para determinada empresa e o empregador quer saber se o candidato à vaga é portador de aids. O médico envia relatório atestando que não pode expor tal informação.
Resposta: Sim. O artigo 76 do CEM veda ao médico revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade6. Mesmo sendo portadora de HIV, a pessoa é capaz de trabalhar e, quando necessário, pode utilizar precaução universal para proteção de outros trabalhadores (luvas, lavar as mãos, entre outras). Na triagem pré-contratação é antiético que o médico entregue ao empregador resultados de testes no contexto de recrutamento de trabalho para excluir candidatos, quando as condições clínicas não têm relação direta com as atividades que serão realizadas pelo trabalhador 21,22.
8. Família de um paciente já falecido procura o médico assistente e solicita informações sobre consultas antes de sua morte. O profissional então libera o prontuário com todas as informações para os requisitantes.
Resposta: Sim. O médico em questão agiu em conformidade com o artigo 73 do CEM 1,2 e a Recomendação CFM 3/2014, que orienta o fornecimento, quando solicitados pelo cônjuge/companheiro sobrevivente do paciente morto, e sucessivamente pelos sucessores legítimos do paciente em linha reta, ou colaterais até o quarto grau, os prontuários médicos do paciente falecido23. Também o artigo 88 do CEM, referente a documentos médicos, foi alterado no novo código e passou a permitir o acesso ao prontuário pelo paciente ou, em sua ausência, pelo representante legal 3.
9. Ator famoso dá entrada em hospital de referência de São Paulo, trazido por ambulância, em estado de inconsciência, sendo o caso rapidamente notificado por toda a imprensa. Um médico do hospital logo emite boletim informando o diagnóstico do paciente.
Resposta: Não. A emissão de documentos médicos, como os boletins, é regulamentada pelos artigos 73 e 85 do Código de Ética, o qual veda ao médico permitir o manuseio e o conhecimento dos prontuários por pessoas não obrigadas ao sigilo profissional quando sob sua responsabilidade1,24. A emissão de tais documentos é normatizada pela Resolução CFM 1.974/2011 ao referir que quando da emissão de documentos médicos, devem ser elaborados de modo sóbrio, impessoal e verídico, preservando o segredo médico25.
10. Durante discussão de caso clínico entre alunos e professor, o estudante de medicina, empolgado com seu novo campo de prática, tira foto do prontuário de paciente e publica em rede social.
Resposta: Não. O artigo 78 do CEM veda ao médico deixar de orientar seus auxiliares e alunos a respeitar o sigilo profissional e zelar para que seja por eles mantido6. Os docentes são a base para a formação de opinião do estudante a respeito de condutas éticas e técnicas do cotidiano profissional. É dever dos professores médicos orientarem sobre atitudes éticas, embasadas no juramento de Hipócrates e no CEM, inclusive quanto ao uso de redes sociais, de forma adequada ao exercício da medicina. Expor fatos e imagens de pacientes pode constrangê-los moralmente e incorrer em danos para o profissional 26. Cabe ressaltar também a importância de os preceptores divulgarem o Código de Ética do Estudante de Medicina (CEEM) durante a graduação, documento que contempla o respeito ao paciente e o sigilo das informações nos Princípios Fundamentais V e IX e nos artigos 28, 29, 32 e 34 27.
A divulgação do segredo profissional fere o artigo 5º da Constituição Federal 28, e o médico pode ser processado com fundamento no disposto no artigo 154 do Código Penal Brasileiro 29. Em relação às situações expostas em todos os casos propostos, se o profissional agir inadequadamente, pode sofrer sindicância ético-profissional, que vai culminar ou não em sanções por processo ético-profissional (PEP) 30.
Sandy Mayra Motta da Silva – Graduanda – sm.sandymayra@hotmail.com
Nedy Maria Branco Cerqueira Neves – Doutora – nedyneves@terra.com.br
Lucíola Maria Lopes Crisostomo – Doutora – luciola.crisostomo@unifacs.br
Sylvia Márcia Fernandes dos Santos Lima e Sandy Mayra Motta da Silva coletaram e analisaram os dados, delinearam o estudo, escreveram o artigo e o formataram de acordo com as normas da revista. Nedy Maria Branco Cerqueira Neves orientou todas as etapas da pesquisa e realizou a revisão crítica. Lucíola Maria Lopes Crisostomo orientou a metodologia e a análise dos dados da pesquisa.
Correspondência: Sylvia Márcia Fernandes dos Santos Lima – Rua Oswaldo Sento Sé, 23, apt. 203 CEP 41720-370. Salvador/BA, Brasil.


