Resumo: Esta revisão integrativa da literatura tem por objetivo identificar os principais conflitos entre paciente em cuidados de fim de vida, familiares e equipe de saúde sob a ótica da ética principialista. A partir de pesquisa em bases de dados, chegou-se à amostra final de 12 publicações que, após avaliada pela técnica de análise de conteúdo, revelou três categorias temáticas: condutas profissionais – respeito à autonomia do paciente e ao princípio da beneficência; princípios bioéticos no contexto dos cuidados de fim de vida; e dilemas bioéticos nesse mesmo cenário. Autonomia e beneficência são fatores preponderantes nos cuidados de fim de vida, ratificando a ideia de que o paciente é o ator principal e necessita de assistência humanizada e digna. Além disso, constataram-se fragilidades no processo de educação e comunicação, e na relação entre equipe, enfermo e familiares.
Palavras-chave: Ética, Equipe de assistência ao paciente, Relações profissional-família, Participação do paciente, Cuidados paliativos na terminalidade da vida.
Resumen
Conflictos bioéticos en los cuidados al final de la vida: Esta revisión integrativa de la literatura tiene como objetivo identificar los principales conflictos entre el paciente con cuidados al final de la vida, los familiares y el equipo de salud, bajo la óptica de la ética principialista. A partir de una investigación en bases de datos, se llegó a una presentación final de 12 publicaciones, que después de ser avaliada por la Técnica de Análisis de Contenido, permitió emerger tres categorías temáticas: respeto a la autonomía del paciente y el principio de la beneficencia; principios bioéticos en el contexto de los cuidados al final de la vida; dilemas bioéticos en el mismo contexto. Se concluye que la autonomía y la beneficencia se destacan en la dinámica de los cuidados de al final de la vida, ratificando la idea de que el paciente es el actor principal, debiendo ser oído, como también ser atendido en sus necesidades, para proporcionar un buen cuidado humanizado y digno. Además de los dilemas bioéticos, se revelan debilidades en el proceso de educación y comunicación en la relación equipo, paciente, familia.
Palabras clave: Ética, Grupo de atención al paciente, Relaciones profesional-familia, Participación del paciente, Cuidados paliativos al final de la vida.
Abstract
Bioethical conflicts in end of life care: This integrative review of the literature aims to identify the main conflicts between patients in palliative care, family and healthcare team from the point of view of the principialist ethics. A search was performed on databases, generating a final sample of 12 publications that, after being evaluated by the content analysis technique, enabled the emergence of three thematic categories: professional conduct – respect for the patient’s autonomy and the principle of beneficence; bioethical principles in the context of end of life care; and bioethical dilemmas in this context. We concluded that autonomy and beneficence stand out in the palliative care, ratifying the idea that the patient is the main actor and needs a humanized and comprehensive health care. In addition, we found some weaknesses in the process of education and communication in the healthcare team, patient and family relationship.
Keywords: Ethics, Patient care team, Professional-family relations, Patient participation, Hospice Care.
PESQUISA
Conflitos bioéticos nos cuidados de fim de vida
Recepção: 17 Abril 2019
Revised document received: 17 Outubro 2019
Aprovação: 19 Outubro 2019
A bioética envolve reflexões sobre atitudes autônomas, como a tomada de decisão sem coação de valores, com base no exercício da liberdade, livre de constrangimentos ou preconceitos e com respeito às divergências. Na vida cotidiana, baseia-se em quatro princípios – autonomia, beneficência, não maleficência e justiça –, que buscam estabelecer novo contrato social entre sociedade, cientistas, profissionais da saúde e governos. Neste contexto a bioética fundamenta o resgate dos direitos civis e da qualidade de vida 1.
Em prol da dignidade humana no processo de morrer, na morte e no luto dos familiares, espera-se dos profissionais de saúde práticas pautadas nos princípios bioéticos para que sejam garantidos os cuidados de fim de vida 1. Esses cuidados se sustentam na assistência ativa e integral, prestada a pacientes com doença grave, progressiva e irreversível que não respondem a tratamentos curativos, buscando controlar a dor e outros sintomas, tendo em vista a prevenção precoce e o alívio do sofrimento nas dimensões física, emocional, social e espiritual 2. Trata-se de perspectiva centrada no enfermo e na família, que rompe o paradigma da atenção biologicista (direcionada exclusivamente para a doença) por compreender que nada é mais humano do que ajudar a aliviar o sofrimento da pessoa em cuidados paliativos e seus familiares 3-4.
Diante dessas considerações, surgem questionamentos sobre a tomada de decisões dos profissionais de saúde e as adversidades envolvidas nesse contexto. Em busca de possíveis respostas a essa inquietação, buscou-se identificar os principais conflitos entre paciente em cuidados de fim de vida, familiares e equipe de saúde sob a ótica da ética principialista.
Trata-se de estudo de revisão integrativa, do tipo exploratório e descritivo, que seguiu as seguintes etapas: definição do objeto e formulação da questão norteadora – “quais são os principais conflitos entre paciente em cuidados de fim de vida, familiares e equipe de saúde sob a ótica da ética principialista?” –; pesquisa nas bases de dados e delimitação dos critérios de inclusão; categorização dos estudos; avaliação; interpretação; e apresentação da síntese do conhecimento 5.
A partir da estratégia Pico (significando Paciente, Intervenção ou área de interesse, Comparação, Outcomes ou resultados) e da questão norteadora, os artigos foram selecionados com base nos seguintes parâmetros: pacientes em cuidados de fim de vida, conflitos bioéticos (área de interesse), sem comparações e ética principialista como desfecho. Os procedimentos utilizados na busca em bases de dados e os critérios de exclusão constam no fluxograma (Figura 1), como recomendado pelo Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (Prisma) 6.

O levantamento bibliográfico foi realizado no portal da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), entre junho e julho de 2018, incluindo as bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), Scientific Electronic Library Online (SciELO), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline) e o Índice Bibliográfico Español en Ciencias de la Salud (Ibecs).
Os descritores selecionados foram os termos do Medical Subject Headings, também presentes nos Descritores em Ciências da Saúde: “equipe de assistência ao paciente/patient care team”; “família/family”; “bioética/bioethics”; “assistência ao paciente/patient care”; e “cuidados paliativos na terminalidade da vida/hospice care”. O cruzamento dos descritores foi feito de forma não controlada para se ter maior abrangência de estudos sobre o tema: “equipe de assistência ao paciente” and “família” and “bioética” and “assistência ao paciente” and “cuidados paliativos na terminalidade da vida”, na Lilacs, SciELO e Ibecs, no portal da BVS, e “patient care team” and “family” and “bioethics” and “patient care” and “hospice care” no Medline.
Os critérios de inclusão para os estudos foram artigos completos que abordassem conflitos éticos nas relações entre doentes terminais em cuidados de fim de vida, família e equipe no ambiente hospitalar com base na ética principialista, publicados entre janeiro de 2014 e dezembro de 2017, nos idiomas português, espanhol e inglês. Foram excluídos resumos, editoriais, artigos duplicados, artigos de revisão (integrativa ou sistemática), relato de experiência, estudos de caso, cartas ao editor, anais de eventos científicos, teses e dissertações. O recorte temporal (2014-2017) teve o objetivo de obter referências mais atualizadas sobre a temática em questão. Após aplicar esses critérios, a amostra final compreendeu 12 artigos, lidos na íntegra e analisados com base no objetivo proposto (Figura 1).
Para coletar informações, foi elaborado um instrumento com os seguintes itens: características (título do artigo, autor, periódico, país), tipo, amostra, objetivos e resultados (principais achados e contribuições) dos estudos analisados. Por último, a análise crítica e síntese dos manuscritos que compuseram o corpus da pesquisa foram apresentados em três categorias.
A amostra foi composta por 12 artigos, sendo 2016 e Brasil o ano e o país com maior representatividade, com metade das publicações, predominando a abordagem qualitativa. A qualidade da produção intelectual das revistas, segundo o Qualis Periódicos, variou entre A1 e B2. Quanto aos participantes das pesquisas, os artigos estavam divididos da seguinte forma: sete envolviam equipe multiprofissional, familiares, cuidadores e pacientes, três apenas médicos e dois somente enfermeiros (Tabela 1).

Para estruturar a discussão, os resultados foram esquematizados em três tópicos: 1) condutas profissionais – respeito à autonomia do paciente e o princípio da beneficência; 2) princípios bioéticos no contexto dos cuidados de fim de vida; 3) dilemas bioéticos nesse mesmo cenário.
O princípio da beneficência estabelece que devemos fazer o bem ao outro, independentemente de desejá-lo ou não, dando espaço para que as pessoas possam tomar suas próprias decisões. Desta relação podem surgir dilemas bioéticos, como o conflito entre respeitar a liberdade dos pacientes (autonomia) e fazer o que é melhor para eles (beneficência). O equilíbrio nesta relação seria a chave para elucidar o processo de tomada de decisão. No entanto, as decisões dos pacientes e o desejo de participar ou não do tratamento também são variáveis influenciadas pelo meio cultural, social e familiar no qual se encontram inseridos, pela relação paciente-profissional e pela criação de ambiente acolhedor.
Entre as estratégias para minimizar esses conflitos, pode-se mencionar a boa comunicação entre profissionais, paciente e família; respeito à autonomia, preferências e desejos do enfermo, sem interferir no princípio da beneficência e garantindo a dignidade durante a prestação dos cuidados; e vínculos entre profissionais e pacientes para um cuidado mais humanizado e holístico 7,13. Além disso, de acordo com a ética principialista, as fragilidades e ambiguidades individuais dos pacientes não podem ser motivo para interferências e desrespeito à sua autonomia e ao seu direito de tomar decisões.
No ambiente hospitalar, paciente, familiares e profissionais de saúde precisam manter comunicação eficiente e saudável, de forma que a família possa assumir as preferências e recomendações do enfermo quando este não estiver mais em condições de deliberar por si próprio. Cabe à equipe questionar e confirmar as decisões manifestadas anteriormente pela pessoa em cuidados de fim de vida. Ao restringirem sua atuação à simples supervisão formal, os profissionais entram em contradição com os princípios da autonomia e beneficência em sua prática profissional 6.
O processo de morrer e a morte são experiências vividas de forma singular por cada ser humano. Por outro lado, para os profissionais de saúde, essas questões tornam-se parte de seu cotidiano pela frequência com que ocorrem em seu ambiente de trabalho. Trata-se de tema que deveria ser debatido não somente nessa área, mas na sociedade em geral, uma vez que a morte está vinculada a questões como aceitação, medo, incertezas, revelações e principalmente ao luto antecipatório da família, que muitas vezes pode amenizar o sofrimento 14.
Nesse contexto, o profissional de saúde deve discutir sobre as decisões nos cuidados de fim de vida com a equipe e familiares/cuidadores, respeitando a dignidade e autonomia do paciente, para minimizar o sofrimento 14. Embora muitos profissionais de saúde compreendam bem os conceitos de eutanásia, distanásia e ortotanásia, por vezes a equipe médica acaba prolongando o tratamento 17, colocando o bem-estar do enfermo em segundo plano, uma vez que sua morte é frequentemente vista como fracasso por parte da equipe de saúde.
A eutanásia ainda gera muitos debates por envolver perspectivas éticas, morais e religiosas 17. Apesar de ser considerada crime no Brasil e na maior parte do mundo, muitas vezes é apontada como solução ideal para erradicar o sofrimento ou como forma deliberada de acelerar a morte. Nos países onde a eutanásia é legalizada, leva-se em conta o princípio da autonomia do paciente como norteador para a decisão de acelerar a morte, ou seja, ele é quem tem o poder de decidir sobre a questão 17.
No Brasil, o artigo 5º da Constituição Federal 19 preconiza o direito à vida e criminaliza a prática da eutanásia. No entanto, a ortotanásia, que também enfatiza a autonomia do paciente para que tenha morte mais natural e sem sofrimento, vem ganhando espaço na assistência multiprofissional, principalmente no campo da enfermagem 16. Dessa forma, os princípios bioéticos contribuem para orientar a ética médica, respaldando ações humanizadas na assistência paliativa e garantindo a dignidade de pacientes terminais 20,21.
A abordagem dos cuidados paliativos tem relação direta com os princípios bioéticos da beneficência, não maleficência, autonomia e justiça, pois o tratamento de pacientes com doença sem possibilidade de cura exige do profissional atenção refinada, sensível e humanizada 22. Além do alívio das dores físicas, o apoio espiritual é muito importante para o bem-estar da pessoa sob cuidados paliativos e deve estar presente em todo o processo, integrando ciências biológicas e humanas 11.
Ao tentar amenizar o sofrimento do paciente terminal, o profissional pode se envolver além do esperado. Alguns estudos apontam a necessidade de cautela na forma de proceder nesse contexto para evitar exacerbações e fadiga profissional por compaixão 8. Dependendo do indivíduo, prognóstico e expectativa de vida, a esperança é desejável, sendo a força propulsora da luta pela vida, quando ainda existe a possibilidade de cura.
Entretanto, vale salientar que em algumas situações a esperança pode gerar conflitos entre familiares e pacientes, prolongando o sofrimento humano na tentativa de evitar a morte a qualquer custo, sendo responsabilidade dos profissionais de saúde administrar as expectativas nos cuidados de fim de vida 12. Em contrapartida, ainda são comuns posturas paternalistas de profissionais que preferem ocultar o prognóstico do paciente, impedindo-o de decidir sobre os cuidados que gostaria de receber na fase derradeira da vida 23-24.
Como alternativa, alguns estudos 8-10,15 apontam trabalhos educativos e esclarecimentos sobre a autonomia do doente para favorecer a tomada de decisão. Entretanto, é preciso evitar desviar o foco da tomada de decisão do indivíduo para uma suposta coletividade, dividindo responsabilidades ou simplesmente assumindo a figura do “executor” das vontades da pessoa com doença terminal 9,15. Trata-se de processo de educação permanente, no qual a equipe assume o papel de também orientar o enfermo e sua família, em benefício da prática clínica humanizada 10, tendo em vista os princípios da bioética principialista.
O respeito à autonomia do paciente e sua relação com a beneficência foi questão primordial nos estudos que compuseram o corpus desta pesquisa. Nesse sentido, os dilemas bioéticos relativos aos cuidados de fim de vida revelaram fragilidades na educação e comunicação entre equipe, paciente e familiares.
Os princípios da justiça e não maleficência não foram diretamente abordados nos estudos analisados, mas puderam ser identificados, pois ao compreender o atendimento pautado na beneficência e a definição da não maleficência como “evitar o mal” e “desejar e fazer o melhor pelo paciente/família”, automaticamente se discute a não maleficência.
Foram encontradas apenas duas publicações sobre o assunto envolvendo a equipe de enfermagem 8,17. Portanto, pode-se dizer que há certa escassez de estudos sobre a participação do enfermeiro e de como ele lida com os dilemas bioéticos em suas relações com os familiares do paciente. Tal resultado pode também ser associado às limitações deste artigo.
Mariana do Valle Meira – Especialista – mariana.meira12@gmail.com
Fernanda Moreira Ribeiro Fraga – Especialista – fernandamoreiraribeiro@yahoo.com.br
Carlito Lopes Nascimento Sobrinho – Doutor – lua@uefs.br
Darci de Oliveira Santa Rosa – Doutora – darcisantarosa@gmail.com
Rudval Souza da Silva – Doutor – rudvalsouza@yahoo.com.br
Maria Olivia Sobral Fraga de Medeiros, Mariana do Valle Meira e Rudval Souza da Silva redigiram o manuscrito. Fernanda Moreira Ribeiro Fraga colaborou no levantamento bibliográfico. Carlito Lopes Nascimento Sobrinho e Darci de Oliveira Santa Rosa contribuíram com a revisão final do texto.
Correspondência: Rudval Souza da Silva – Universidade do Estado da Bahia. Colegiado de Enfermagem. Campus VII. Rodovia Lomanto Júnior, BR 407, km 127 CEP 48970-000. Senhor do Bonfim/BA, Brasil.

