Resumo: Este artigo analisa os discursos enunciadores da bioética na área médica do Paraná entre 1970 e 2005, identificando autores e sentidos atribuídos ao termo. Trata-se de pesquisa historiográfica sobre a revista Arquivos, publicada pelo Conselho Regional de Medicina do Paraná desde 1983, e a Revista Médica do Paraná, publicada pela Associação Médica do Paraná desde 1931. O corpus documental foi analisado a partir da perspectiva da história cultural. A bioética foi mencionada pela primeira vez na revista Arquivos em 1988, em artigo sobre morte cerebral, e depois na Revista Médica do Paraná, em 1996, em artigo sobre princípios da bioética, ambos escritos por médicos e professores. Os periódicos são dispositivos educacionais, pois divulgam ideário ético e bioético da classe médica que pode reverberar na sociedade e mudar comportamentos. A bioética enunciada nas fontes mostra proximidade com o principialismo e a ética médica.
Palavras-chave: Bioética, Publicação periódica, Discurso.
Resumen
Discursos sobre la bioética en los periódicos del área médica de Paraná (1970-2005): En este artículo, se analizan cuáles son los discursos enunciados de la bioética en el área médica de Paraná entre 1970 y 2005, identificándose los autores y el sentido atribuido al término. Es una investigación historiográfica sobre la revista Arquivos, publicada por el Consejo Regional de Medicina de Paraná desde 1983, y la Revista Médica do Paraná, publicada por la Asociación Médica de Paraná desde 1931. El corpus documental se analizó desde la perspectiva de la historia cultural. La bioética fue mencionada por primera vez en la revista Arquivos en 1988, en un artículo sobre la muerte cerebral, y en la Revista Médica do Paraná, en 1996, en un artículo sobre los principios de la bioética, ambos escritos por médicos y profesores. Los periódicos son dispositivos educativos, ya que divulgan un ideario ético y bioético de la clase médica que puede reverberar en la sociedad y cambiar comportamientos. La bioética enunciada en las fuentes muestra la cercanía con el principialismo y la ética médica.
Palabras clave: Bioética, Publicación periódica, Discurso.
Abstract
Discussions on bioethics in medical journals of Paraná, Brazil (1970–2005): This article analyzes the discourses that enunciate bioethics in the medical field of Paraná between 1970 and 2005, identifying authors and meanings attributed to the term. This is a historiographical research on Arquivos journal, published by the Paraná Regional Medical Council since 1983, and Revista Médica do Paraná, published by the Medical Association of Paraná since 1931. The documentary corpus was analyzed from the perspective of cultural history. Bioethics was first mentioned in the journal Arquivos in 1988, in an article on brain death, and later in Revista Médica do Paraná, in 1996, in an article on the principles of bioethics, in an article on the principles of bioethics, both written by physicians and professors. Journals are educational devices, as they disseminate ethical and bioethical ideas of the medical class that have the potential to reverberate within the society and change behaviors. The bioethics listed in the sources is closely aligned with principlism and medical ethics.
Keywords: Bioethics, Periodical, Address.
PESQUISA
Discursos sobre bioética nos periódicos da área médica do Paraná (1970-2005)
Recepção: 18 Março 2019
Revised document received: 10 Julho 2019
Aprovação: 17 Julho 2019
A partir de abordagem historiográfica, este artigo analisa os primeiros discursos e autores que anunciaram a bioética na área médica do Paraná. O recorte temporal, de 1970 a 2005, foi delimitado pela apresentação do termo “bioética” no livro “Bioethics: bridge to the future”, publicado por Potter 1 em 1971, e pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) 2. Na pesquisa historiográfica, as fontes são matéria-prima da investigação 3, e neste caso trazem vestígios que permitem conhecer o ideário ético e bioético que a classe médica pretendeu disseminar no Brasil, em particular na sociedade paranaense 4.
As fontes documentais são a Revista Médica do Paraná5, publicada pela Associação Médica do Paraná (AMP) desde 1931, e a Arquivos6, revista do Conselho Regional de Medicina do estado (CRM/PR), editada a partir de 1983, que permitem compreender a trajetória do discurso ético e das práticas médicas. Revisitar acervos é investigar memórias selecionadas pelas instituições e o modo como se posicionaram diante de questões éticas e sociais de seu tempo 7. Segundo a perspectiva analítica, periódicos não podem ser considerados imparciais, pois refletem o discurso institucional e respectivas intenções. Além disso, servem como instrumentos educativos, pois à medida que são lidos produzem saberes e mudanças de comportamento 8.
Os procedimentos da pesquisa historiográfica mostram como sujeitos e instituições que representam a classe médica do Paraná conceberam seus modos de discutir questões éticas. O olhar histórico sobre a produção dos discursos institucionais revela práticas e artes do fazer médico e ético 9 em dado período 10. Visitar acervos de instituições é manusear sua história, memória que se materializou nos discursos apresentados à sociedade por meio dos periódicos. Entende-se “discurso” como representação da realidade, culturalmente construída e formadora de sujeitos falantes em determinado contexto 11,12.
A história cultural 3,7,9,10 orienta a análise do corpus desta pesquisa. As fontes documentais mostraram a produção institucional de uma narrativa sobre ética e bioética no Paraná 8,11,12, e seus autores são sujeitos com autoridade reconhecida na elaboração de discursos de verdade 13-15.
O termo “bio-ethik” foi delineado em 1927 por Paul Max Fritz Jahr, no contexto imperativo de respeito a todos os seres vivos 16,17. Nos anos 1920 ganharam força as teses sanitaristas e eugênicas para melhores condições da população em diversos países. No Brasil, especificamente no Paraná, a eugenia positiva teve grande aceitação dos médicos; junto com propostas do movimento sanitarista, pregava-se a formulação de políticas nacionais de saúde, embasando ações médico-governamentais que tinham como meta formar o cidadão brasileiro 18,19.
Nas décadas seguintes o mundo conheceria muitas atrocidades e violações dos direitos humanos, especialmente aquelas relacionadas à Segunda Guerra Mundial. Como resposta aos atos de barbárie, foi aprovado o Código de Nüremberg20 em 1947. Um ano depois proclamou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) 21, que estabeleceu a dignidade como fundamento da vida humana, e em 1964 a Associação Médica Mundial aprovou a Declaração de Helsinki22, que apresentava parâmetros éticos na pesquisa envolvendo pessoas 23.
Nos anos 1970, Potter 1 apresentou o neologismo “bioética” como campo de estudo interdisciplinar – forma de enfatizar dois componentes para atingir nova sabedoria, ou seja, conhecimento biológico e valores humanos, usando a metáfora da ponte entre ciências humanas e saberes biotecnológicos. Sua proposta conceitual teve pouca repercussão naquele decênio, em ambas as áreas.
Entretanto, o termo foi redefinido como atinente à ética na clínica médica, adotado por André Hellegers e seus colegas do Kennedy Institute of Ethics no sentido de refletir sobre implicações éticas dos novos conhecimentos das biociências 24. Em 1978 foi divulgado o Relatório Belmont25 como reação aos escândalos causados pelos experimentos da medicina envolvendo seres humanos nos Estados Unidos (EUA). Assim, a bioética foi associada à ética nas pesquisas biomédicas, prevalecendo a concepção principialista, isto é, fundamentada em quatro princípios: beneficência, não maleficência, autonomia e justiça 24,26.
O conceito de bioética não é monolítico e diz respeito ao estudo sistemático, plural, interdisciplinar, envolvendo questões morais teóricas e práticas levantadas pela medicina e pelas ciências da vida, enquanto aplicadas aos seres humanos e sua relação com a biosfera27. Em 2005, esse campo foi reconhecido na DUBDH 2 como atinente aos direitos humanos.
Em tempos mais recentes, na América Latina, o corpo teórico-prático da bioética passou a discutir também a conjuntura socioeconômica, abrangendo as muitas desigualdades sociais, a falta de acesso a serviços de saúde e a luta por uma sociedade mais justa e equânime. Assim, são muito importantes as contribuições teóricas da bioética de proteção, da bioética de intervenção 28-31 e da teoria dos referenciais nesse campo 32, pois abarcam direitos humanos em aspectos sociais, ambientais e de convivência, inter e transdisciplinarmente, considerando a complexidade das questões éticas atuais.
Diante de novos impasses éticos nas pesquisas que envolvem seres humanos, o Comitê Internacional de Bioética elaborou e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura proclamou a já citada DUBDH 2 e a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos33. Estes documentos supranacionais fixam padrões universais sobre direitos, liberdade, ética e dignidade humana no espírito do pluralismo universal 34. A DUBDH trata de questões éticas em estudos com seres humanos, considerando dimensões sociais, legais e ambientais.
Ao abordar o fazer científico no Brasil, deve-se considerar o papel do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que fiscaliza, acompanha e monitora políticas públicas de saúde e diretrizes de estudos com seres humanos 35. Na década de 1990, o CNS criou a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e aprovou a Resolução CNS 196/1996 36, revogada pela Resolução CNS 466/2012 37, com diretrizes e normas para esse tipo de pesquisa.
A Resolução CNS 466/2012 37 reafirma o respeito à dignidade humana presente na DUDH 21, na Declaração de Helsinki22, na DUBDH 2 e em outros documentos da Organização das Nações Unidas. Incorpora os referenciais da bioética – autonomia, não maleficência, beneficência, justiça (equidade) –, que asseguram os direitos e deveres de todos os participantes de estudos, as responsabilidades da comunidade científica e do Estado, entre outros 27,36. Portanto, estes documentos oficiais 13,38 balizam a ética na pesquisa e na prática médica.
Escrever a história dos enunciados sobre bioética, a partir de revistas publicadas por instituições representativas da classe médica no Paraná, é tarefa desafiadora. A operação historiográfica, engendrada por investigações, revelou discursos enunciadores da bioética no estado. Vale destacar que a pesquisa historiográfica não busca estabelecer regras gerais, mas entender contextos, reinterpretar fatos e situações do passado e produzir narrativas com critérios de veracidade e plausibilidade. Penetrar nos registros e manusear tais documentos é buscar vestígios da história da medicina e da bioética no Paraná 4,10.
Além de representarem a classe médica paranaense, as fontes documentais desta pesquisa foram selecionadas por sua credibilidade social 5,6. A análise do corpus é orientada pela história cultural, que se consolida a partir dos anos 1990 3,4,7,10. Cabe ao pesquisador indagar as fontes em busca de vestígios que revelem o objeto investigado, assim como cotejá-las com outros documentos para determinar a veracidade dos fatos encontrados 3,4.
Os resultados revelam os sentidos dos discursos, lugares de fala e autoridade dos sujeitos na afirmação de princípios de verdade. A importância do poder médico presente nesta pesquisa é discutida por Foucault na perspectiva da posição social dos sujeitos 12, manifestando-se na criação de mecanismos de controle e vigilância 11,13. As produções discursivas das instituições 9 evidenciam seu posicionamento perante questões sociais e éticas do seu tempo e o modo como construíram memórias 4.
Este estudo seguiu três etapas: 1) definição temática, questionamentos e procura de fontes teóricas e empíricas; 2) escolha de descritores (Gráficos 1 e 2) para buscas em acervos institucionais, físicos ou online, e início da leitura sistemática de todos os exemplares publicados no período delimitado – artigos que traziam o termo “bioética” ou indícios de referenciais desse campo foram copiados e organizados em tabelas com autoria, data e assunto –; e 3) cotejo de resultados com outros documentos sobre normativas de pesquisa envolvendo seres humanos, atribuindo sentidos aos achados pela análise teórica ancorada na história cultural 3,7.
A AMP não dispunha de exemplares da Revista Médica do Paraná, por isso foi necessário recorrer à Biblioteca Pública do Paraná e à Biblioteca do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná. A revista começou a ser publicada em 1931 e está em circulação até hoje, mudando várias vezes a diagramação da capa, do miolo, a forma de apresentar os artigos, assim como o conteúdo. O CRM/PR disponibiliza a revista Arquivos, lançada no ano de 1983, em sua página institucional online. Em ambas, os autores são médicos, pesquisadores e professores universitários, ou seja, sujeitos cujos saberes ultrapassam consultórios e hospitais, adentrando salas de aula e a sociedade paranaense.
Embora o recorte temporal seja de 1970 a 2005, considerou-se importante trazer referências históricas da Revista Médica do Paraná, desde o início de sua publicação. Nos anos 1930 e 1940, a revista veiculou artigos de viés higienista, com predominância da educação sanitária (Gráfico 1). Naquele período havia engajamento dos médicos no projeto social eugênico, que fazia parte do projeto de formação da nação brasileira 39. Este foi o lugar de fala a partir do qual a classe médica construiu seu discurso 11.

Pesquisas e experimentos médicos envolvendo seres humanos durante a Segunda Guerra Mundial, assim como a DUDH 21 ou o Código de Nüremberg20, não foram divulgados na Revista Médica do Paraná. Considerando que o dito e o não dito são elementos do dispositivo educativo 11,12, esta ausência permite supor o distanciamento da instituição de questões relativas à ética propostas por entidades supranacionais. Paradoxalmente, o tema dignidade e direitos humanos começa a ser publicado, não de forma explícita 9, mas compondo o teor dos artigos, revelando sensibilidade a ser construída no ideário médico.
A partir de 1953, a Revista Médica do Paraná mudou seu perfil. Entre os assuntos passaram a prevalecer as técnicas e a ética do exercício profissional, especialmente o Código de Ética Médica 40, revelando mudança no ideário. Questões de educação sanitária tornaram-se mais raras, o que demonstra um novo fazer com a incorporação da ética médica 9. Observou-se a ausência de discussões éticas, sociais e políticas no período de 1964 a 1985, ante casos de violação dos direitos humanos no Brasil.
Situações sociais e médicas envolvendo crianças, jovens ou idosos e equipes multidisciplinares tornam-se assunto a partir da década de 1970. Essa mudança no teor dos textos mostra a aproximação entre o profissional e os problemas em voga no país 9,11,12, indicando proposições éticas aceitáveis pela classe médica e pela sociedade. O Gráfico 1 mostra que os temas mais divulgados foram dignidade humana, códigos de ética e responsabilidade médica. Até os anos 1950 prevalecia o debate sobre educação social e sanitária, e posteriormente foram incorporadas discussões éticas relacionadas aos direitos humanos.
A primeira menção ao termo “bioética” na Revista Médica do Paraná data de 1996, em artigo assinado por William Saad Hossne 41, médico e professor. Ele foi um dos autores da Resolução CNS 196/1996, cofundador da Sociedade Brasileira de Bioética e coordenador da Conep entre 1996 e 2007, representando a autoridade de fala em medicina e bioética. Seu artigo foi publicado 25 anos após a ética médica ser associada à bioética resultante da perspectiva endossada por Hellegers nos Estados Unidos. Este lapso temporal demonstra que a bioética chegou à classe médica do Paraná com a Resolução CNS 196/1996.
No artigo, Hossne 41 apresentou as bases da teoria principialista (autonomia, beneficência, não maleficência e justiça) 24 para a relação médico- -paciente e discorreu sobre a responsabilidade da instituição e o sigilo profissional. Sobre pesquisas com seres humanos, propôs a formação de comissões de ética hospitalar e apontou a necessidade de documentos normativos por parte do Estado.
A AMP mostrou-se à sociedade paranaense por intermédio da Revista Médica do Paraná, inicialmente com discurso de ação social do médico, mediante sanitarismo com viés higienista, e depois com a incorporação do discurso técnico e ético sobre procedimentos e conduta médica. Isso demonstra que as instituições ocupam lugar de fala específico e apresentam discurso marcado por reconhecimento social 12,39.
O escopo da segunda fonte – a revista Arquivos, do CRM-PR, lançada em 1983 – sempre foi ética profissional. O periódico publicou temas de ética em pesquisa envolvendo seres humanos e decisões médicas, direitos humanos e outros problemas sociais emergentes (Gráfico 2). Com artigos assinados por médicos brasileiros e estrangeiros, a Arquivos tem importante lugar de fala social, pois representa essa classe profissional por meio do CRM-PR, que externa a preocupação com os assuntos elencados.

Como mostra o Gráfico 2, os temas mais abordados na Arquivos foram direitos humanos, dignidade e pesquisa envolvendo seres humanos, o que demostra o ideário ético da instituição, revelando seu protagonismo nestas discussões e no aspecto educativo para a classe médica.
A primeira menção ao termo “bioética” foi em 1988, no artigo “Morte encefálica: meditações”, de Lincoln Brazil e Silva 42, médico formado pela Universidade de São Paulo e especialista em neurofisiologia clínica. O autor abordou a dificuldade de definir a morte encefálica e o direito a um fim digno. Mencionou também aspectos sociais, legais, culturais, científicos e éticos do conceito de óbito e demonstrou preocupação em estabelecer fundamento médico e jurídico para confirmar a morte. Questionou ainda a possibilidade de instituir-se a morte seletiva, com matizes no racismo, ou mesmo a legalização da morte em estabelecimentos hospitalares. Silva menciona a palavra “bioética” duas vezes, relacionada aos dilemas éticos de conceituar a morte, e assume a necessidade de um instrumento normativo que traga segurança aos profissionais.
Na Arquivos, além do termo “bioética”, questões éticas emergentes e direitos humanos tiveram espaço desde 1988. Isto reflete o momento político do país, marcado pela redemocratização e pela nova Constituição Federal 43. Assim, a revista mostrou a articulação necessária para que os médicos dialogassem com a sociedade e considerassem seus pacientes como sujeitos de direitos. A eugenia foi discutida em 1984 44, em artigo sobre pré-natal para gestantes com risco de gerar “crianças com defeitos graves”, mas se nota cautela com a seleção genética ao apontar a necessidade de princípios éticos para não incorrer em erros passados.
Nesse periódico, a discussão da ética em pesquisa com seres humanos antecedeu o debate sobre bioética. A Declaração de Helsinki22 e a regulamentação de estudos com humanos foram tema de dois artigos de 1986 45,46, que abordam de forma semelhante a necessidade de normas para salvaguardar a dignidade, a privacidade e o bem-estar do paciente. Ambos trazem indícios sobre o estabelecimento de parâmetros éticos nesse contexto, e remetem à pergunta nos termos de Foucault 11: quem detém poder para esta regulamentação? É competência do Estado criar normativas e fiscalizar parâmetros éticos da pesquisa científica.
Apesar das especificidades dos periódicos analisados, ambos publicaram temas convergentes, com significados similares. No Quadro 1 estão dispostos conteúdos e sentidos atribuídos a cada assunto. Observam-se semelhanças e diferenças no ideário de questões sociais, éticas e bioéticas, mostrando que a ética médica antecedeu temporalmente a bioética nos artigos publicados.

A bioética é apresentada em ambos os periódicos como norteadora da ética na prática médica, salvaguardando os direitos, a autonomia e o bem-estar dos pacientes em respeito à dignidade humana. Também pode ser considerada como mecanismo ético para dirimir impasses ligados aos avanços tecnocientíficos, por sua multi e interdisciplinaridade 18,22.
As instituições dos registros pesquisados têm lugar específico de enunciação47, ou seja, ocupam posições socialmente representativas, de modo que os documentos produzidos e divulgados se revelam instrumentos de poder, de “verdade”, com significação histórica e política 13-15. Os resultados demonstram como as instituições se posicionaram diante da sociedade e apresentaram um “horizonte de expectativa” ao público a que se destinam 48,49. Os discursos chegaram aos médicos por meio dos periódicos e reverberaram na sociedade com a incorporação de conteúdos e princípios, mudando comportamentos e atitudes 8.
Pelos artigos publicados, as instituições mostraram de forma estratégica que os profissionais, no seu fazer cotidiano, precisavam conhecer princípios éticos e diretrizes de pesquisa 9. Esses elementos foram incorporados à atuação profissional, especificamente no Código de Ética e no reconhecimento dos direitos de pacientes, participantes de estudos e sujeitos vulneráveis 24,28. Assim relacionam-se as condições históricas de aparecimento do discurso da bioética, o reconhecimento dos direitos dos sujeitos e as normativas éticas. Isso demonstra que a verdade está centrada em um discurso científico, nas instituições que o produzem e é objeto de debate político 11,12.
Os discursos sobre bioética apresentados à classe médica e à sociedade paranaense foram escritos em dois momentos históricos distintos, mostrando-a como campo teórico e prático, de natureza descritiva e prescritiva, cujo objeto são questões éticas relacionadas à área da saúde, às tecnologias e aos direitos humanos 50.
Esta pesquisa investigou discursos sobre bioética no Paraná entre 1970 e 2005 em dois periódicos da área médica, revelando seus enunciadores. A bioética foi publicada tardiamente no Paraná em comparação com os EUA, sendo vinculada a diretrizes éticas da pesquisa com seres humanos. A revista Arquivos foi a primeira a publicar artigo contendo o termo (em 1988, no contexto brasileiro de redemocratização), associando-o à necessidade de normativas para determinar morte cerebral. A Revista Médica do Paraná, por sua vez, apresentou o tema em 1996, abordando a bioética principialista durante o processo de normatização da pesquisa.
As instituições que publicam essas revistas científicas têm lugar de fala legitimado por sua representação social, divulgando ideário ético e bioético produzido em determinado período. Portanto, as fontes foram ferramentas essenciais na construção teórico-metodológica da pesquisa. Os discursos publicados divulgaram princípios da bioética, desempenhando papel educativo ao disseminá-los para a categoria médica e para a sociedade paranaense.
Os autores dos artigos são médicos e professores universitários e estão em contato com profissionais da área. Falam de um lugar de grande prestígio social, a universidade, e levam inovações teóricas e técnicas ao seu cotidiano. Como docentes, divulgam o conhecimento científico que pode influenciar o comportamento profissional.
O ideário bioético divulgado nos periódicos analisados está associado à ética médica e em pesquisa com seres humanos. Cada revista elegeu uma forma de apresentar o assunto à sociedade, destacando alguns temas que interessavam à classe médica. Ressalta-se o discurso de respeito à dignidade humana e de reconhecimento dos sujeitos de direitos, mesmo que as discussões éticas da prática médica tenham antecedido a enunciação da bioética. Esta pesquisa contribui para construir a história da bioética no Paraná, e os vestígios localizados nos registros permitiram indicar elementos para a produção de uma memória coletiva.
Agradecimentos a Paula Manfredini, estudante do curso de graduação de história da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e de iniciação científica com bolsa da Fundação Araucária, pela contribuição na elaboração dos gráficos.
Liane Maria Bertucci – Doutora – lianebertucci@gmail.com
Valquíria Elita Renk elaborou o projeto de pesquisa, coletou, organizou e analisou os dados. Liane Maria Bertucci discutiu os dados empíricos. Ambas as autoras produziram e revisaram o artigo.
Correspondência: Valquíria Elita Renk – Av. Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, 529, Cristo Rei CEP 82530-205. Curitiba/PR, Brasil.


