PESQUISA

Edentulismo total em idosos: envelhecimento ou desigualdade social?

Luciana Colares Maia
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
Simone de Melo Costa
Unimontes, Brasil
Daniella Reis Barbosa Martelli
Unimontes, Brasil
Antônio Prates Caldeira
Unimontes, Brasil

Edentulismo total em idosos: envelhecimento ou desigualdade social?

Revista Bioética, vol. 28, núm. 1, pp. 173-1781, 2020

Conselho Federal de Medicina

Recepção: 18 Agosto 2018

Revised document received: 19 Fevereiro 2019

Aprovação: 5 Novembro 2019

Financiamento

Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais

Número do contrato: APQ-02965-17

Financiamento

Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais

Número do contrato: CDS – BIP-00128-18

Descrição completa: Este estudo recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) pelos processos nº APQ-02965-17 e CDS – BIP-00128-18.

Resumo: Este estudo estimou a prevalência autorreferida de edentulismo total em idosos de 60 anos ou mais em município de Minas Gerais cadastrados na Estratégia Saúde da Família, identificando fatores socioeconômicos associados. Os dados foram coletados no domicílio dos participantes, aplicando-se questionário que abarcava aspectos sociodemográficos, econômicos e de saúde geral e bucal. A estatística utilizou a variável dependente “edentulismo total”, com nível de significância de 5%. Participaram 1.750 idosos – 63,4% mulheres, 11,5% analfabetos e 27,8% com renda familiar abaixo do salário mínimo. O edentulismo total foi de 46,4%, com maior prevalência em mulheres, entrevistados com idade ≥80 anos, solteiros/viúvos/divorciados, analfabetos e idosos que não procuraram serviço odontológico nos últimos seis meses (p<0,05). A renda familiar foi menor para os edêntulos (p=0,001), e constatou-se alta prevalência dessa condição associada a fatores socioeconômicos, demonstrando iniquidade em saúde bucal e necessidade de proteção do Estado. Aprovação CEP-Unimontes 1.628.652

Palavras-chave: Idoso, Perda de dente, Fatores socioeconômicos, Disparidades nos níveis de saúde, Saúde bucal, Atenção primária à saúde.

Resumen

Aspectos epidemiológicos y deontológicos de la mortalidad en el tránsito en Roraima: Este estudio objetivó evaluar la mortalidad en el tránsito en Roraima bajo los aspectos de la epidemiología y deontología. La investigación longitudinal y descriptiva comparó datos del Instituto Médico Legal de Roraima, del Sistema de Vigilancia de Violencias y de Accidentes y del Sistema de Información sobre Mortalidad. La mayoría de las víctimas fueron hombres (85,2%), pardos (81,5%), residentes en área urbana (81,5%), solteros (66,7%), en el grupo de edad 15-34 años (54,9%). Las lesiones más frecuentes fueron contusión (96,2%) y fractura (75,5%). Las partes afectadas fueron cabeza (69,8%), miembros inferiores (66%) y cara (54,7%). La principal mortis causa fue trauma en la cabeza (43,4%). La comparación entre los datos obtenidos permitió cuantificar la subnotificación de mortalidad en el tránsito en Roraima. Es fundamental la reflexión constante con el fin de establecer parámetros éticos a los profesionales, y se recomienda integrar organismos de la salud pública con el Instituto Médico Legal, para crear un banco de datos orientado a subsidiar políticas adaptadas a la realidad local.

Palabras clave: Anciano, Pérdida de diente, Factores socioeconómicos, Disparidades en el estado de salud, Salud bucal, Atención primaria de salud.

Abstract

Epidemiological and deontological aspects of traffic mortality in Roraima: This is a longitudinal and descriptive study evaluating epidemiological and deontological aspects of traffic mortality in Roraima by comparing data from the Legal Medical Institute of Roraima, the Violence and Accident Surveillance System and the Mortality Information System. Most of the victims were men (85.2%), brown-skinned (81.5%), living in an urban area (81.5%), single (66.7%), between 15 and 34 years old (54.9%). The most common injuries were contusion (96.2%) and fracture (75.5%). The body parts most affected were the head (69.8%), lower limbs (66%) and face (54.7%). The main cause of death was head trauma (43.4%). The comparison of data evidenced underreporting of traffic mortality in Roraima. Constant reflection is essential to establish ethical parameters for the professionals involved, and the integration between health agencies and the Legal Medical Institute is recommended to create a database to support policies adapted to the local reality

Keywords: Aged, Tooth loss, Socioeconomic factors, Health status disparities, Oral health, Primary health care.

O edentulismo, ou perda dentária, é condição de saúde bucal muito frequente entre pessoas idosas 1, considerada pelo Institute for Health Metrics and Evaluation da Universidade de Washington 2 como a terceira condição bucal com maior incidência global em 2010. Perdas dentárias podem ser explicadas pelo efeito crônico e cumulativo de cárie dentária e doença periodontal, principais doenças bucais 3. Em razão disso, a prevalência de edentulismo tornou-se o índice mais recomendado para avaliar as condições de saúde bucal na população idosa 4.

A partir de levantamentos epidemiológicos realizados no Brasil em 1986, 2003 e 2010, Cardoso e colaboradores5 estimaram as taxas de perda dentária entre idosos para 2020, 2030 e 2040. Presumindo que o problema siga função logística e verificando-se que a proporção de arcadas edêntulas nos idosos sofreu variação de 0,76% ao ano entre 1986 e 2010, estimou-se que, até 2040, 85,96% dessa população terá arcadas desdentadas, o que equivale a 64 milhões de indivíduos 5.

O edentulismo afeta o estado geral de saúde dos idosos e interfere na qualidade de vida, uma vez que a saúde bucal é componente importante do bem-estar geral 6. A perda dentária dificulta a alimentação, diminui a capacidade funcional de fonação, acarreta prejuízos nutricionais, estéticos e psicológicos, reduz a autoestima e prejudica a integração social 7-9. Pesquisa recente constatou que a ausência de dentes exacerba a deficiência cognitiva, que se agrava quando a arcada dentária não é devidamente reabilitada por mais de 15 anos 10, algo comum entre grupos populacionais em desvantagem socioeconômica.

Nessa relação entre edentulismo e desigualdade social, estudos revelam que a população de menor nível socioeconômico tem mais perdas dentárias quando comparada às classes sociais mais abastadas 11,12. A análise espacial do edentulismo entre idosos de 60 anos ou mais em Botucatu (SP) constatou maior risco de incidência nas áreas periféricas do município 4, apesar de a atenção integral à saúde ser direito constitucional de todos os cidadãos brasileiros.

Deve-se ressaltar que, corroborando o direito constitucional, no Brasil instituiu-se no setor público a Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) 13. Ao analisar a PNSB a partir da perspectiva da bioética da proteção, Costa e colaboradores 14 reforçaram a importância de incluir equipe de saúde bucal na Estratégia Saúde da Família (ESF) como parte do papel do Estado de proteger os cidadãos brasileiros. Contudo, a atenção à saúde bucal ainda carece de avanços para garantir a integralidade das ações 14 direcionadas aos idosos, tanto prevenindo perdas dentárias como reabilitando os edêntulos assistidos no âmbito da saúde pública.

Nesse contexto, mensurar o edentulismo entre idosos pode contribuir para planejar ações direcionadas à recuperação de sua saúde bucal. Conjeturando-se que pessoas com menor renda e escolaridade são mais acometidas por edentulismo total, o objetivo deste estudo foi estimar a prevalência autorreferida de edentulismo total entre idosos cadastrados na ESF e identificar fatores socioeconômicos associados.

Método

Este estudo teve delineamento transversal e analítico, conduzido com 1.750 idosos de 60 anos ou mais assistidos pela ESF na região urbana de Montes Claros. Trata-se de município de médio porte no norte de Minas Gerais com aproximadamente 400 mil habitantes, dos quais mais de 80% são atendidos pelas equipes da ESF. Este trabalho faz parte de pesquisa mais ampla sobre matriciamento em saúde do idoso na atenção primária do referido município, em que estudo-piloto foi planejado para adequar o método utilizado.

Os dados foram coletados no domicílio dos participantes em 2017 por pesquisadores treinados, aplicando-se questionário no formato de entrevista. Foram excluídos do estudo idosos incapacitados para responder às perguntas e que não estavam acompanhados por cuidadores/responsáveis no momento da coleta de dados, além de idosos não encontrados nos domicílios após três visitas e agendamento prévio.

Foram obtidos dados sociodemográficos (sexo, idade, estado civil, escolaridade), econômicos (renda familiar mensal), de autopercepção de saúde geral e variáveis relacionadas à saúde bucal dos idosos (ter dentes naturais, dificuldades para engolir, procura por serviço odontológico nos últimos seis meses por problema na boca). A idade foi categorizada por faixa etária em intervalos de cinco anos, e a renda familiar mensal por unidade de salário mínimo da época (R$ 937,00).

Os dados foram analisados por estatística descritiva e analítica. Calcularam-se as frequências absolutas e relativas das variáveis categóricas e os valores mínimos e máximos, médias, desvio-padrão e medianas da idade e renda familiar. Empregou-se teste qui-quadrado de Pearson para análise bivariada de edentulismo total (ausência de todos os dentes naturais) e escolaridade e renda familiar mensal categorizadas.

As medianas de idade e renda familiar mensal foram comparadas entre os grupos de edêntulos e não edêntulos pelo teste U de Mann-Whitney, devido à falta de normalidade nos dados (teste de Kolmogorov-Smirnov; p<0,001). Efetuou-se a regressão de Poisson com variância robusta para obter as razões de prevalência (RP) ajustadas pelo peso de ponderação 15 de amostragem por conglomerado, tanto na análise bivariada como na multivariada. “Edentulismo total” foi estabelecido como variável dependente, e as independentes se relacionavam aos dados sociodemográficos, econômicos, de saúde geral e bucal, todas dicotomizadas. As variáveis independentes associadas ao nível de 20% (p≤0,20) na análise bivariada foram consideradas na análise multivariada, permanecendo no modelo final aquelas com p<0,05. A estatística foi calculada no software IBM SPSS, versão 22.0.

Resultados

A maioria dos 1.750 participantes do estudo era do sexo feminino (63,3%), tinha mais de 65 anos (76,4%), era casada (53,9%), com pelo menos um ano de escolaridade (88,3%) e renda familiar mensal acima de um salário mínimo da época (72,1%). Os participantes apresentaram boa/ótima (70,8%) autopercepção de sua saúde geral. Edentulismo total foi relatado por quase metade dos idosos (46,3%). A maior parte dos entrevistados relatou não ter dificuldade para engolir alimentos (90%), e 85,3% não procuraram o serviço odontológico nos últimos seis meses por problemas na boca (Tabelas 1 e 2).

O percentual de idosos com perda dentária total tendeu a aumentar linearmente com o avanço da idade, sendo 28,8% dos participantes de 60 a 64 anos e 71,4% de 90 a 94 anos edêntulos totais (p<0,001). Os indivíduos com cinco anos ou mais de estudo apresentaram menor percentual de edentulismo total (26,8%) quando comparados com idosos sem escolaridade (66,5%) ou com aqueles que tinham de um a quatro anos de estudo (53,4%) (p<0,001). Idosos com renda familiar mensal equivalente a mais de cinco salários mínimos apresentaram menor percentual (31,9%) de perda total de dentes quando comparados aos anciãos com menor renda (Tabela 1).

Tabela 1
Edentulismo total entre idosos conforme idade, anos de estudo e renda familiar mensal por salário mínimo (Montes Claros/MG, 2017)
Edentulismo total entre idosos conforme idade, anos de estudo e renda familiar mensal por salário mínimo (Montes Claros/MG, 2017)
*Houve perda de respondentes por ausência de registro no questionário. Os valores percentuais foram ajustados.

Entre os edêntulos totais, a idade mediana foi 73 anos, e entre os não edêntulos foi 68 anos (p<0,001). Os edêntulos totais apresentaram menor renda (em média quase R$ 400 a menos que os sem edentulismo total), com diferença significativa (Tabela 3).

Tabela 3
Idade e renda familiar mensal dos idosos com ou sem perda total de dentes e comparação das medianas (Montes Claros/MG, 2017)
Idade e renda familiar mensal dos idosos com ou sem perda total de dentes e comparação das medianas (Montes Claros/MG, 2017)
*p: referente à comparação das medianas pelo teste U de Mann-Whitney.

O edentulismo total foi mais prevalente em participantes do sexo feminino (RP=1,060), com 80 anos ou mais (RP=1,192), solteiros/viúvos/divorciados (RP=1,087), analfabetos (RP=1,174), com autopercepção de saúde geral péssima/ruim (RP=1,062), com dificuldade para engolir alimentos (RP=1,070) e que não procuraram pelo serviço odontológico por problemas na boca nos seis meses que antecederam a pesquisa (RP=1,164), com nível de significância estatística de p<0,05 na análise bivariada. Na análise multivariada mantiveram-se associados à maior prevalência de edentulismo total entrevistados do sexo feminino (RP=1,045), com 80 anos ou mais (RP=1,155), solteiros/viúvos/divorciados (RP=1,036), analfabetos (RP=1,107) e que não procuraram o serviço odontológico por problemas na boca nos seis meses anteriores à pesquisa (RP=1,164), conforme demonstrado na Tabela 2.

Tabela 2
Razão de prevalência de edentulismo total entre idosos conforme perfil sociodemográfico, econômico, de saúde geral e bucal (Montes Claros/MG, 2017)
Razão de prevalência de edentulismo total entre idosos conforme perfil sociodemográfico, econômico, de saúde geral e bucal (Montes Claros/MG, 2017)
IC: intervalo de confiança; p: valor de p na regressão de Poisson. Nota: valores ajustados para o efeito de desenho. *Houve perda de respondentes por ausência de registro no questionário. Os valores percentuais foram ajustados.

Discussão

Este estudo estimou a prevalência autorreferida de perda total de dentes em 1.750 idosos cadastrados na ESF de uma cidade brasileira de porte médio, situada no norte de Minas Gerais. O delineamento metodológico permitiu conhecer o perfil de saúde bucal dos idosos assistidos na atenção primária à saúde pela estimativa da prevalência do edentulismo total e fatores associados. Estudos de base populacional contribuem para entender a relação entre perda dentária total e desigualdade social ao confirmar associação estatística significativa com indicadores socioeconômicos.

Um desses estudos estimou a prevalência autorreferida de edentulismo em 1.451 idosos com idade igual ou superior a 60 anos em Pelotas (RS), constatando sua incidência em 39,3% dos pesquisados 16. Valor maior foi encontrado em pesquisa que avaliou 372 idosos em Botucatu (SP), por meio de exame clínico odontológico (63,17%) 4. No levantamento epidemiológico de saúde bucal realizado em 2010 no Brasil, constatou-se que 53,7% dos idosos das cinco macrorregiões brasileiras, com idade entre 65 e 74 anos, eram completamente edêntulos 17. Estima-se que esse problema crescerá até 2040, apesar da redução da perda dentária observada e prevista entre jovens e adultos 5. Estudos internacionais observaram variada prevalência de edentulismo em diferentes países: 4,4% no sul da China 18, 15% na Índia 19 e 26% nos Estados Unidos 20. Nos países da Europa, observou-se variação de 15 a 78% 20.

Neste estudo, quase metade dos idosos referiu não ter nenhum dente natural. Além do avançar da idade, fatores sociodemográficos e econômicos, assim como o estado conjugal e não procurar por serviço odontológico nos últimos seis meses por problemas na boca, foram associados ao edentulismo total. Houve maior participação de mulheres, o que pode ser explicado, em parte, pela faixa etária dos participantes, pois a expectativa de vida ao nascer no Brasil é maior para o sexo feminino 21. As mulheres tiveram ainda, neste estudo, prevalência 4,5% maior que a dos homens, corroborando outros estudos brasileiros de base populacional 16,17.

A participação de idosos com idade igual ou superior a 90 anos (3,5%) demonstra maior longevidade do que o previsto pela expectativa de vida ao nascer entre brasileiros, que em 2015 era de 71,9 anos para homens e 79,1 anos para mulheres 22. Idosos totalmente edêntulos tinham em média 74 anos de idade, quase cinco anos a mais que a média para os não edêntulos (Tabela 3).

Idosos com 80 anos ou mais apresentaram prevalência 15% maior para o edentulismo total quando comparados aos com idade entre 60 e 79 anos (Tabela 2). Isso pode estar relacionado ao fato de que, segundo reporta a literatura, a perda dentária é considerada consequência natural da vida e do avançar da idade, o que pode influenciar comportamentos inadequados relacionados à prevenção de doenças bucais 16.

O aumento da perda dos dentes com a idade é tendência universal, motivando na sociedade o imaginário do idoso desdentado como reflexo natural da dentição humana. Entretanto, o edentulismo nos grupos mais velhos é expressão do efeito cumulativo de doença bucal ao longo dos anos, sendo a cárie e a doença periodontal dependentes de outros fatores além dos biológicos 4. Portanto, o edentulismo em idade avançada não é consequência apenas do processo de envelhecimento.

Neste estudo, em todas as faixas etárias havia idosos que não se encontravam totalmente edêntulos, apesar da tendência linear crescente do percentual de perda de dentes com o avanço da idade. O controle ou a prevenção de doenças bucais como a cárie ao longo da vida possibilita a manutenção dos elementos dentários entre anciãos, ou seja, permite envelhecer com arcadas dentadas.

Estudo que analisou a problemática da cárie dentária, com base em inquéritos epidemiológicos brasileiros e suporte analítico na bioética da proteção, apontou diferenças de saúde bucal entre os diversos grupos populacionais com rendas familiares discrepantes 23. A associação de dados epidemiológicos e reflexão bioética são forma de proteger indivíduos com mais necessidades em saúde bucal e que vivem em situação de vulnerabilidade social 23, seja qual for a fase da vida em que se encontrem.

Na avaliação do estado conjugal, a maior prevalência de edentulismo total neste estudo foi associada a idosos solteiros, viúvos e divorciados, ocorrendo 3,6% a mais que em idosos casados ou em união estável. Esse resultado sugere que as pessoas que convivem com um(a) companheiro(a) cuidam melhor de seus dentes, possivelmente pela importância da saúde bucal nas relações interpessoais como, no caso, a conjugal.

A ausente ou baixa escolaridade da maioria do grupo estudado (68,2%) pode ser justificada, em parte, pelo pouco acesso à escola na época de sua infância ou adolescência. Constatou-se maior prevalência de edentulismo total entre idosos analfabetos quando comparados aos que possuem pelo menos um ano de escolaridade (p<0,001), e outros estudos apresentaram resultados similares 4,16,17. No Brasil, perdas dentais refletem desigualdades sociais e regionais, o que indica necessidade de oferecer cuidados prioritários aos sujeitos mais vulneráveis 24, na perspectiva da bioética de proteção 25.

A baixa escolaridade e o analfabetismo da maioria dos participantes deste estudo podem estar atrelados também à baixa renda familiar – de até dois salários mínimos mensais para 65,7% deles. A renda familiar mensal maior (de cinco salários mínimos ou mais) associou-se a menor percentual de totalmente edêntulos. Quando categorizada pela mediana de todos os idosos participantes (R$ 1.874,00), a renda não se associou ao edentulismo total na análise multivariada. Entretanto, a média e a mediana da renda familiar mensal foram menores para os edêntulos totais, com diferença significativa na comparação de medianas.

Esse resultado corrobora estudos anteriores, em que a baixa renda familiar foi associada à perda dentária entre idosos 16,17. Neste estudo, os indicadores “renda familiar mensal” e “escolaridade” relacionaram-se com maior percentual de idosos totalmente desdentados. Os indicadores de desigualdade na saúde bucal revelam, acima de tudo, a iniquidade em saúde, o que exige ações de assistência qualificada para preservar o princípio da equidade conforme a vulnerabilidade de determinados grupos populacionais 14.

Não procurar por serviço odontológico nos seis meses anteriores à coleta de dados por problemas na boca foi associado a maior prevalência de edentulismo total entre os idosos. Quanto a isso, cabe discutir a percepção da necessidade de buscar esses serviços entre os desdentados. Outro estudo brasileiro com anciãos verificou que a prevalência de edentulismo entre participantes que consideraram não ser necessário buscar tratamento dentário era 1,27 vez maior em relação aos demais 4.

A perda dentária requer cuidados constantes para avaliar a necessidade de prótese – incluindo reparos, manutenção e avaliação dos tecidos moles para prevenir doenças, como candidíase ou mesmo lesões pré-malignas ou cancerígenas. Nesse sentido, o cuidado com a saúde bucal independe da presença ou não de dentes naturais.

A autopercepção dos idosos quanto a sua saúde geral como péssima ou ruim e a dificuldade para engolir alimentos foram associadas a edentulismo total na análise bivariada (p<0,05), mas não na análise multivariada (p>0,05), sugerindo tratar-se de variáveis de confusão. Sobre a relação entre saúde global e edentulismo, estudo com 5.235 idosos equatorianos com 60 anos de idade ou mais relatou que 77,13% dos participantes avaliaram a saúde geral como regular/ruim, associando essa variável a maiores perdas dentárias 6.

Outra investigação qualitativa, cujo intuito era identificar as representações ideativas de 14 idosos sobre o edentulismo, demonstrou a importância dos elementos dentários para boa saúde global e para as interações sociais dos participantes 26. Nesse caso, a perda dentária foi entendida como decorrente de modelo de atenção odontológica que não valoriza a prevenção da doença 26.

A reorientação do modelo assistencial requer políticas estatais de proteção nas diferentes esferas de governabilidade, da municipal à internacional. Nesse sentido, Martínez e Albuquerque 27 analisaram a Declaração de Liverpool, documento internacional que contempla a necessidade de os Estados fortalecerem ações em saúde bucal até 2020, e indicaram carência de abordagem integral para idosos, com ações preventivas, curativas e reabilitadoras.

No Brasil, apesar de a PNSB 13 normatizar a atenção integral a pessoas com idade mais avançada, estima-se aumento do edentulismo até 2040 5. Portanto, é necessário melhorar a efetividade das ações estatais para que haja menos perdas dentárias nesse grupo. A PNSB 13 assegura cuidados integrais à saúde bucal de todos os cidadãos, tanto individual como coletivamente, independentemente da idade. Para isso, propõe reorientar o processo de trabalho para ações multiprofissionais conjuntas que englobem todo o processo saúde-doença, desde a promoção da saúde até a reabilitação.

Prevê ainda ampliar o acesso a serviços de saúde bucal para idosos como importante fator de manutenção de qualidade de vida. A PNSB recomenda aos profissionais da odontologia realizar atividades educativas e de prevenção de doenças e agendar atendimentos clínicos individualizados com idosos, sem filas ou burocracias. Também propõe expandir e qualificar a atenção à saúde bucal, no âmbito da ESF, com visitas domiciliares aos acamados ou pessoas com mobilidade dificultada, visando identificar riscos e atender a necessidades individuais 13.

Este estudo se limita pela autorreferência de edentulismo total. Apesar de a autoavaliação demonstrar ser bom índice do estado geral de saúde 26, sabe-se que o exame clínico seria o ideal para confirmar o edentulismo autorreferido. Contudo, vieses de informação são considerados pouco prováveis, uma vez que o edentulismo total é condição facilmente percebida e visualizada no dia a dia pelo constante contato com a cavidade bucal, seja pela necessidade de alimentação, fonação ou higiene bucal.

Deve-se destacar também a limitação inerente de considerar apenas edentulismo total, e não a ausência da maioria dos dentes, como ponto de corte para categorizar idosos como edêntulos. Estudo anterior com este mesmo ponto de corte 4 reconheceu que muitos dos anciãos colocados na categoria de edentulismo parcial podem sofrer com problemas semelhantes aos do total.

Considerações finais

Este estudo constatou alta prevalência de edentulismo total autorreferido associado a fatores socioeconômicos, o que comprova a desigualdade em saúde bucal entre idosos. O alto percentual de edêntulos totais mostra a magnitude do problema de perdas dentárias, que deve ser considerado questão de saúde pública por acometer quase metade dos indivíduos pesquisados.

O edentulismo total se apresentou como condição frequente entre os idosos, mas não foi comum a todos os indivíduos. Portanto, a perda de todos os dentes não pode ser naturalizada apenas como consequência da idade cronológica e do envelhecimento biológico, mesmo que se associe à maior idade. A menor renda familiar mensal e a baixa escolaridade também foram fatores relacionados à maior prevalência de edentulismo total entre pessoas de idade avançada.

Desigualdades em saúde bucal poderiam ser minimizadas com melhor disposição de recursos e organização de serviços odontológicos para promover a saúde e resolver demandas reprimidas quanto à necessidade de reabilitação protética dos edêntulos totais. Nesse sentido, este estudo contribui com informações para compreender melhor o edentulismo entre idosos, e seus resultados podem auxiliar o planejamento de ações estatais no âmbito da saúde bucal coletiva.

Os dados demonstram ser necessário que o Estado apoie as políticas e medidas nacionais já implantadas no setor de saúde bucal e também que enfatize medidas preventivas para evitar o edentulismo total entre idosos, além de planejar a reabilitação protética das perdas dentárias como forma de proteger pessoas em situação de vulnerabilidade social.

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Notas

Este estudo recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) pelos processos nº APQ-02965-17 e CDS – BIP-00128-18.

Autor notes

Participação dos autores

Luciana Colares Maia, Simone de Melo Costa e Antônio Prates Caldeira participaram de todas as etapas do estudo. Daniella Reis Barbosa Martelli contribuiu na análise e discussão dos dados e na revisão final do manuscrito.

Luciana Colares Maia – Doutora – luciana_colares@yahoo.com.br

Simone de Melo Costa – PhD – smelocosta@gmail.com

Daniella Reis Barbosa Martelli – PhD – daniellareismartelli@yahoo.com.br

Antônio Prates Caldeira – Doutor – antonio.caldeira@unimontes.br

Correspondência. Simone de Melo Costa – Universidade Estadual de Montes Claros. Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Campus Universitário Professor Darcy Ribeiro. Av. Prof. Rui Braga, s/n, prédio 6, sala 109, Vila Mauricéia CEP 39408-354. Montes Claros/MG, Brasil.

Declaração de interesses

Declaram não haver conflito de interesse.
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