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O médico e o doente: paradigma da vulnerabilidade em Emmanuel Levinas
Waldir Souza; Nilo Ribeiro; Isabel Cristina Tavares Facury
Waldir Souza; Nilo Ribeiro; Isabel Cristina Tavares Facury
O médico e o doente: paradigma da vulnerabilidade em Emmanuel Levinas
Revista Bioética, vol. 28, núm. 2, pp. 212-218, 2020
Conselho Federal de Medicina
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Resumo: Os avanços da ciência modificaram a relação médico-doente, revelando a necessidade de novos modos de pensar e agir eticamente, com ênfase no resgate de elementos subjetivos da comunicação. Para fundamentar essa relação, este texto parte do pensamento de Emmanuel Levinas e da bioética, sobretudo em sua linha voltada à biomedicina, ao cuidado e à vulnerabilidade. Propõe-se que o paradigma da bioética passe da autonomia à vulnerabilidade, com foco no doente, cuja fragilidade interpela e exige acolhimento.

Palavras chave: BioéticaBioética,ÉticaÉtica,Vulnerabilidade em saúdeVulnerabilidade em saúde.

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ATUALIZAÇÃO

O médico e o doente: paradigma da vulnerabilidade em Emmanuel Levinas

Waldir Souza
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil
Nilo Ribeiro
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Brasil
Isabel Cristina Tavares Facury
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil
Revista Bioética, vol. 28, núm. 2, pp. 212-218, 2020
Conselho Federal de Medicina

Recepção: 16 Dezembro 2018

Revised document received: 30 Janeiro 2020

Aprovação: 15 Março 2020

Com os avanços nas ciências, a revolução tecnocientífica e o dinamismo da realidade contemporânea, a práxis médica e, consequentemente, a relação médico-doente passaram por profundas transformações. Essas mudanças, fartamente documentadas na literatura, revelaram a necessidade de repensar a atuação dos profissionais. Assistiu-se então ao resgate de elementos subjetivos da comunicação com o doente, opostos a abordagens baseadas exclusivamente em dados objetivos e técnico-científicos.

Segundo Cardoso 1 , o enfermo deseja que sua individualidade seja reconhecida, o que demanda do médico habilidades que vão além dos saberes instrumentais. Portanto, o desafio é efetivar esta relação como um momento de atenção personalizada, [do qual] a informação, que resulta da comunicação [,] é um fundamento2 . Com isso é possível ampliar horizontes em busca de novas posturas.

Nesse contexto, importa mergulhar em realidade eminentemente humana no exato momento de maior fragilidade e vulnerabilidade, isto é, quando o adoecimento é vivenciado pessoalmente, por familiares ou pessoas próximas. Em hospitais, clínicas ou qualquer outro ambiente destinado a cuidados de saúde, há fato latente, mas que não passa despercebido ao observador atento, a quem se mostra com toda a crueza: o doente encontra-se só.

Este artigo reflete, portanto, sobre a relação médico-doente a partir do pensamento do filósofo judeu Emmanuel Levinas, mais especificamente em sua obra Totalidade e infinito3 . Outro ponto de partida será a bioética, que ao longo de seu desenvolvimento se dividiu em ao menos duas vertentes, uma mais global, que reflete sobre a ciência de modo geral, e outra que se ocupa de conflitos éticos suscitados pela utilização de tecnologias na biomedicina. Esta última é a perspectiva aqui adotada.

Recorrendo a Levinas, busca-se reconstruir a subjetividade não mais a partir da centralidade do Eu, mas sim da alteridade. Suas ideias serão neste artigo locus filosófico que fundamenta um novo modo de pensar e agir eticamente, visando apontar para uma bioética que se desloque do paradigma da autonomia para o paradigma da vulnerabilidade.

As bases da ética do cuidado

O Relatório Belmont4 , produzido pela National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, nos Estados Unidos, deu forma a uma concepção particular: a bioética de princípios. Essa vertente principialista se fundamenta em respeito às pessoas, beneficência e justiça para solucionar dilemas éticos em saúde. No entanto, essa corrente sofreu muitas críticas, e alternativas foram propostas, como as que dão maior ênfase a uma ética do cuidado, como a de proteção, a personalista e a deliberativa.

A bioética de proteção, proposta por pesquisadores latino-americanos, considera que o principialismo não permite enfrentar problemas presentes na saúde pública, e por isso propõe princípio adicional, justamente o da proteção 5 . Sua ética é a da responsabilidade social, cujos elementos são a gratuidade, o vínculo e a satisfação das necessidades essenciais do sujeito. A corrente se volta sobretudo a pacientes “vulnerados” 6 , ou seja, incapazes de se proteger, e não aos simplesmente “vulneráveis” (de fato, todos os seres vivos). Por isso, o foco recai particularmente sobre problemas sanitários e indivíduos cuja saúde e bem-estar são prejudicadas por situações de escassez 7 .

Já a corrente personalista, de fundamentação antropológica, preocupa-se com o relativismo decorrente da amplitude do objeto da bioética, afirmando que a primeira questão a ser resolvida diz respeito à essência do ser humano, ligada à dimensão espiritual 8 . Partidário dessa perspectiva, Sgreccia 8 propõe os princípios de defesa da vida física, da totalidade (ou “terapêutico”), da liberdade e responsabilidade, da subsidiariedade e da solidariedade, a fim de buscar uma visão integral da pessoa humana, sem reducionismos ideológicos ou biológicos. O personalismo destaca pelo seu princípio de solidariedade o ser no mundo com os outros9 e a capacidade do eu de estabelecer relação com o tu, pois essa relação impede o individualismo subjetivista e o abandono do doente a suas dores e angústias.

A bioética de deliberação, por sua vez, apresenta sistema hierarquizado de valores em que os princípios de não maleficência e justiça são superiores aos de autonomia e beneficência, porque representam o bem comum 10 . Gracia 11 , fundador dessa corrente, atualmente propõe modelo de decisão centrado em valores, complementar à hierarquia de princípios. Segundo Siqueira 12 , esta perspectiva se afasta da imposição de normas como modelo deontológico e privilegia a relação dialógica entre médico e paciente.

Essas correntes revelam o cuidado como tarefa fundamental da condição humana. Quando cuida, a pessoa realiza sua humanidade; quando é cuidada, alcança sua plenitude. Isso toca o que há de mais profundo, e não é patrimônio de uma profissão, mas dever de todos. O cuidado integral é obrigação moral dos profissionais da saúde – velar pelo bem do doente, adotar postura empática, caminhar ao lado dele, oferecer ajuda discreta e não permitir que se dê conta das dificuldades que cria ao seu redor. Cuidar de alguém é abrir-se à perspectiva do nós 13 .

É preciso disponibilidade, preocupação com o outro e aproximação fraterna, com disposição para servir. O princípio de justiça, que exige a superação de preconceitos, deve presidir o cuidado. Ultrapassar o distanciamento físico e ético, transformando o tu em próximo, é essencial para que a proximidade se expresse em humanidade.

A partir do diálogo e da responsabilidade, o ser humano deseja e procura um sentido para viver humanamente. Essa sede de sentido também é metafísica, e dignifica o ser humano, já que sua plenitude não depende apenas de aspectos biológicos, mas também simbólico-espirituais. Em circunstâncias de máxima vulnerabilidade, essa busca se torna ainda mais intensa.

O sofrimento catalisa o questionamento pelo sentido da vida. O doente sente a necessidade de construir sentido, e para isso se indaga sobre novas possibilidades existenciais. Cuidar de um ser humano que sofre consiste em construir dialógica e responsavelmente o sentido da existência. Isso enseja uma educação voltada para o outro, para o próximo, para o diferente.

As várias faces da relação

Desde Hipócrates, a ética médica gira em torno da ideia de ordem, o que levou à concepção de que a relação médico-doente também deveria seguir esse preceito. Assim, ao longo do tempo, estabeleceu-se o paternalismo, baseado em domínio e submissão. Esse é o logos da ética grega clássica, constante em toda a história da medicina 14 .

Segundo Gracia 14 , em 1803 a obra de Thomas Percival, Medical ethics , deu início à ruptura com o velho paternalismo hipocrático. Inspirado no critério de beneficência do juramento, o autor propunha que o doente tivesse mais autonomia. Na comunicação entre médico e doente, recomendava dizer a verdade, mas, em casos de prognóstico desfavorável, previa que essa comunicação fosse feita somente a familiares.

Nos Estados Unidos, o paternalismo foi gradualmente substituído principalmente pela via judicial, e o princípio de autonomia acabou imposto pela ética jurídica. Inicialmente, as ações versavam sobre negligência médica ou imperícia, e posteriormente se estabeleceu a “agressão técnica”, quando o médico intervém no corpo do doente sem consentimento. O delito e a noção de consentimento foram igualmente sendo especificados por meio de demandas judiciais 14 .

Para Jean Clavreul 15 , o discurso médico afasta elementos como sofrimento, angústia, alterações do sono e do humor por ser incapaz de tratá-los ou interpretá-los de forma cientificamente aceitável. Eliminando qualquer outro discurso, inclusive o do doente, o médico mantém visão totalitária de nada querer saber. Aparecem então todos os elementos de um projeto científico, objetivo e objetivante, em que a enfermidade se separa cada vez mais daquele que sofre com ela, distinguindo-se a doença do doente e a doença do médico16 .

Outrossim, a organização dos serviços, públicos ou privados, impede que o doente conheça seu diagnóstico, e o vocabulário técnico prejudica a relação, impondo distanciamento 17 . A concentração dos médicos em uma unidade procura dissimular a desumanização que instaura. Na lógica desse discurso, humanizar os hospitais parece não ter outro efeito senão o de criar especialistas, e os doentes sentem falta do médico de família, apesar de sua reputação de menor competência e especialização 15 .

O ensino atual, concebido a partir de regras cartesianas, tem visão organicista e parcial da enfermidade, desconsiderando o ser humano em sua totalidade e fragmentando o saber. O modelo brasileiro, particularmente, não tem sido capaz de oferecer educação ampla, comprometida com valores fundamentais. Mas médicos recém-formados não encontrarão doentes isolados do contexto social, e por isso deveriam estar engajados em enfrentar os problemas que a realidade do país impõe. Situações como a de extrema pobreza impedem não apenas que se garanta a assistência, mas um direito ainda mais fundamental: o direito à vida 18 .

Estudo realizado em escolas de medicina do Brasil aponta que as disciplinas de ética ou bioética ocupam menos de 1% da carga horária total do currículo, e seu conteúdo costuma se restringir à deontologia 19 . No entanto, em seu artigo 23, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos20 estabelece que Estados não devem poupar esforços para promover a formação nesse campo.

A educação deve ensejar o dever moral para com o próximo, um dever que assuma caráter pessoal de ligação, segundo o princípio de valorizar o outro por ser outro 21 . Ser capaz de ajudar e reconhecer a diferença é enfrentar a fragilidade e o desaparecimento da justiça na consciência do homem contemporâneo. Esse chamado à prática define nossa subordinação, nossa responsabilidade e dívida para com o outro. Pois é esse o caráter que distingue a justiça: ser uma relação com o próximo, que se realiza, antes de tudo, em ato exterior. Esse ato reclama não só intenção, mas o comprometer-se, com determinação, a se aproximar dos mais vulneráveis.

Vulnerabilidade: um princípio

A história da bioética revela seu fortalecimento, sua aplicação à vida e crescente influência na sociedade, que tem se manifestado em dois níveis: o da reflexão (discurso) e o da ação (prática). O primeiro conduz a uma visão lúcida das questões sem exatamente resolvê-las, e o segundo atua ao propor normas de conduta decorrentes de princípios humanos fundamentais, contribuindo para a tomada de decisões.

A bioética não se limita a direitos e deveres 22 , e os princípios tradicionais (respeito à autonomia, beneficência, não maleficência e justiça) não bastam para aprofundar a reflexão. Outros são necessários, como o da vulnerabilidade, alçado a essa condição pela primeira vez em 1998 na Declaração de Barcelona , como explica Neves 23 . “Vulnerabilidade” deriva de vulnus , “ferida”, e pode ser considerada prioritária porque expressa uma realidade constitutiva e universal do ser humano, ameaçando outros princípios, como autonomia, dignidade e integridade 23 .

A partir da década de 1980, a noção de vulnerabilidade passa a ter sentido mais amplo, decorrente da reflexão de filósofos europeus, posteriormente assimilado pela bioética. Um desses autores, Levinas, considera a vulnerabilidade condição humana universal, apelo a uma relação não violenta entre eu e outro. No face a face, o eu, vulnerável, apresenta-se como resposta não violenta à eleição do outro, que o faz ser. Esta é a condição humana, a subjetividade, apresentada como vulnerabilidade e responsabilidade ética 23 .

A vulnerabilidade não é fator de diferenciação de pessoas e populações, nem pode ser eliminada reforçando a autonomia ou o consentimento 24 . Ela é realidade constitutiva, inalienável e irredutível do humano, a quem se impõe a responsabilidade como norma do agir ético. Assim, como pontua Neves, de (…) qualificadora de alguns grupos e pessoas, a vulnerabilidade passa a [descrever] a realidade comum do homem; de característica contingente e provisória, passa a condição universal e indelével; de fator de diferenciação (…) passa a fator de igualdade entre todos; (…) do âmbito da experimentação humana, passa (…) [ao] plano da assistência clínica e das políticas de saúde; de uma exigência de autonomia e da prática do consentimento informado, passa à solicitação de responsabilidade e de solidariedade25 .

A suscetibilidade a ser ferido instaura o dever de não ferir e fundamenta a ética como relação não violenta, com destaque para a necessidade de cuidar. Esse estatuto traz algo de novo, pois um princípio se impõe à consciência como dever, e a vulnerabilidade passa a formular obrigação moral. Na sua acepção particular, obriga a proteger os mais frágeis – isto é, uma ação positiva –, e em seu sentido universal obriga a reconhecer que todas as pessoas são vulneráveis, exigindo, portanto, uma ação negativa – abster-se de qualquer prejuízo –, além da solicitude para salvaguardar a dignidade humana. É este o sentido de cuidado presente na filosofia de Emmanuel Levinas.

Em busca do infinito levinasiano

No final do século XIX e durante o século XX, autores como Nietzsche, Freud, Heidegger e Foucault questionaram a filosofia moderna e sua ideia de subjetividade, centrada no eu. Segundo Miranda 26 , Levinas identifica essa subjetividade com egoísmo, interesse e permanência em si e incapacidade de reconhecer que o outro não é o alter ego do sujeito.

Dialogando com Husserl, Heidegger, Rosenzweig e Descartes, Levinas constrói as categorias filosóficas desenvolvidas em Totalidade e infinito3 . Nessa obra, não se ocupa em escrever uma nova ética, mas em demonstrar que a ética deve ser o ponto de partida de toda filosofia, denunciando a configuração de mundo que despersonaliza, silencia e comanda. A consciência que esse mundo produz não reconhece a alteridade, só escuta a si mesma e apaga a humanidade, englobando todos os entes em uma existência sem rosto.

A totalidade submete os humanos a uma universalidade impessoal e desumana, e Levinas 3 aponta o problema de se tentar criar o semelhante, gerando uma multidão de “mesmos”. Essa violência é fruto de uma razão solitária que aborda cientificamente o mundo, transformando-o em objeto do conhecimento. E essa autossuficiência, ou mistificação da razão, revela-se filosofia do poder.

Em sua análise fenomenológica, Levinas 3 reconstrói a subjetividade como acolhimento ao outro e desenvolve a noção de infinito para romper com a totalidade. Conceber o outro a partir dessa ideia significa assumi-lo como alteridade, não mais o pensando a partir da centralidade do eu, mas sim do acolhimento e da hospitalidade.

É por meio da linguagem que o próximo aparece ao eu como exterioridade, como absolutamente outro. Para transpor o espaço que os separa é preciso construir uma ponte para a comunicação que permita a troca e o diálogo. É por meio deste diálogo que o doente surge como rosto que reclama responsabilidade incondicional, sem qualquer justificação normativa.

O infinito levinasiano na relação médico-doente

O rosto que padece interpela e, quando o eu é chamado, surge o espaço para a relação ética, que inicia no diálogo inaugurado na apresentação do Outro, através do desvelamento do rosto27 . A responsabilização incondicional por esse outro é proposta por Levinas como caminho para reencontrar o sentido da existência humana, e o presente trabalho busca pensar esse reencontro a partir da relação entre médico e doente.

Segundo Nodari, o núcleo da ética levinasiana é a denúncia do esquecimento do rosto (…), sentido que escapa a todo contexto e funda a própria ética28 . E, para Neves, é Levinas quem primeiro tematiza filosoficamente a vulnerabilidade , definindo-a como subjetividade, isto é, relação com outro, na dependência ao outro que o faz ser29 . O outro se revela na relação que não signifique apenas conhecimento para o médico, mas proximidade e acolhimento.

O eu, fechado em si mesmo, só pode ser conduzido para fora, para além de si mesmo, tornando-se responsável por aquele que se coloca à sua frente, por meio da sensibilidade. Somente nessa abertura é que pode ressurgir um novo eu, um eu-para-o-outro, que motiva a transformação individual e social. Na liberdade pode-se reconstruir a subjetividade, pois é pela sujeição ao outro que o eu não se aliena nem se escraviza, mas se liberta. O humano nasce da saída da dimensão ontológica em direção ao outro, em sentido único e sem retorno a si mesmo. A subjetividade carrega o peso da responsabilidade infinita pelo outro, e a única maneira (…) de confirmar a unicidade e a singularidade da subjetividade é dizer “eis-me aqui”30 .

A proximidade inaugura uma relação em que o outro deixa de ser apenas rosto para irromper como próximo. Nessa ordem, o rosto não é mais rosto, é o próximo, que deve não só ser visto, mas acolhido. Para Ribeiro Júnior 31 , só há sentido em debruçar-se sobre o sofrimento do outro se este aparecer como aquele que se revela na sua dor; caso contrário, há sempre o risco de qualquer discurso se tornar superficial.

Só o outro pode revelar a dimensão e o alcance de sua dor. Portanto, só se pode transcender a indiferença do discurso médico pela epifania do rosto e da proximidade. É preciso romper com a racionalidade construída ao longo da história da medicina. A proximidade almejada anseia pelo olhar, pela carícia, pelo toque, pela escuta, categorias essenciais à prática clínica. Nela, o eu é sempre servidor do próximo, é irmão, acarretando fraternidade 32 .

O pensamento de Levinas, como o de muitos filósofos, é desenvolvido enquanto diálogo com a tradição 33 . Em Totalidade e infinito3 , o autor questiona a ontologia de Heidegger e Husserl, apontando sua insuficiência ante a complexidade da existência e, mais ainda, a relação com a alteridade. Revela-se então a necessidade de acolher, aproximar-se, buscar o infinitamente outro, a relação face a face e a sociabilidade, ou seja, a ética.

O outro se revela e irrompe no rosto, e a partir dessa abertura é que surge efetivamente o sujeito, o doente. Assim, a vulnerabilidade se descortina no horizonte filosófico de Levinas 3 , na proximidade e na assimetria de toda relação, vista não mais como essência do ser que se abre para mostrar, mas pele exposta, na ferida e na ofensa. A subjetividade expressa na vulnerabilidade do eu (médico) suscita o desejo metafísico do outro (doente) e interpela pela proximidade e responsabilidade infinita.

Nessa perspectiva, a relação do médico com o doente deixa de ser relação expressamente dual e inclui terceiros (família, instituição). O profissional é então socialmente responsável por todos os próximos do seu próximo. Nesse nível estão incluídos todos aqueles que orbitam o paciente, tantas vezes negligenciados na prática médica.

A partir da filosofia de Emmanuel Levinas 3 , que contempla o outro em sua infinita alteridade, propõe-se novo modo de ser do médico. É preciso proximidade, disponibilidade e preocupação fraternal com o paciente. Não se pode prescindir do princípio de justiça, que exige superar preconceitos e o distanciamento a fim de que o doente se transforme em próximo, tratado com humanidade. Nesse esforço, o rosto é fundamental, pois mostra o outro em sua absoluta nudez 31 . Desse modo, como proposto por Ribeiro Júnior 31 , a bioética da vulnerabilidade se encontra com o pensamento levinasiano em busca de novas formas de cuidar e agir eticamente. Segundo o autor,

a bondade, portanto, se expressa e se realiza na acolhida concreta de outrem e no combate ao horror do mal. É desse modo, no seio da ambivalência, entre a manifestação da gratuidade do mal e a irrupção da santidade do Rosto, entre a violência da liberdade e a bondade suscitada por outrem no interior do sujeito, que se abre um fecundo espaço para a recuperação da vulnerabilidade como categoria ética fundamental 34 .

A filosofia de Levinas desnuda o anti-humanismo da contemporaneidade, baseado no egoísmo e na satisfação de necessidades individuais. Por meio da subjetividade pensada como ser para o outro, o autor apresenta a abertura ao próximo como vulnerabilidade – ponto central deste artigo –, chamando atenção para a responsabilidade implícita nessa noção. A sensibilidade compreendida dessa maneira cria condições para um conceito ético de sujeito, concebido não a partir de princípios universais, mas do contato sensível que se faz na proximidade. O pensamento de Levinas é, portanto, um convite à mudança, que propõe a busca de sentido pela abertura ao outro.

Considerações finais

Este artigo propôs-se ao exercício de pensar a relação médico-doente a partir de Emmanuel Levinas, que entende a vulnerabilidade como abertura ao outro. Ao se reconhecer como vulnerável, o eu compreende a vulnerabilidade do próximo e a necessidade de cuidar, responsabilizar-se por ele e ser solidário, em vez de explorá-lo por essa condição.

Essa perspectiva revela a subjetividade como suscetibilidade a ser ferido, sensibilidade, desinteresse, proximidade, e implica acolher a alteridade no encontro face a face. Por isso o rosto é tão importante. É ele que clama e exige justiça, denunciando uma sociedade que nega a condição humana e enunciando a descoberta da alteridade, que faz surgir um novo eu, um eu-para-o-outro, para quem o próximo é irmão.

O pensamento de Emmanuel Levinas desnuda a realidade anti-humanista da contemporaneidade. Aproximado à bioética da vulnerabilidade, ele pode ajudar a reconstruir a subjetividade, concebendo-a como acolhimento ao outro e espaço onde a proximidade conduz à justiça, no sentido de pura responsabilidade.

O humano é social por sua própria condição e não subsiste isoladamente, o que exige um modo específico de agir na resposta não violenta de cada um ao outro, uma ação responsável e solidária, instaurando uma ética de fundamentação antropológica25 . Essa visão, alternativa à perspectiva centrada na autonomia individual, recupera a condição simbólica do ser humano e enfatiza emoções, sentimentos e desejos – questões relativas à vida, mas que permanecem à margem da reflexão bioética. Tudo isso deve levar à ajuda mútua a fim de enfrentar as insuficiências da nudez absoluta do outro, reconhecendo essa realidade aparentemente paradoxal que Paulo de Tarso formulou ao dizer quando sou fraco, então é que sou forte35 .

Material suplementar
Referências
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29. Neves MP. Op. cit. p. 163.
30. Nodari PC. Op. cit. p. 218.
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32. Nodari PC. Op. cit.
33. Rodrigues TV. A categoria da alteridade: uma análise da obra Totalidade e Infinito, de Emmanuel Levinas [dissertação] [Internet]. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 2007 [acesso 15 abr 2017]. Disponível: https://bit.ly/3aREln2
34. Ribeiro N Jr. Op. cit. p. 198.
35. Bíblia Sagrada. Versão de Maciel Araújo. São Paulo: Manole; 1995. 2 Coríntios 12:10.
Notas
Declaração de interesses
Declaram não haver conflito de interesse.
Autor notes
Participação dos autores

Todos os autores participaram igualmente da elaboração do trabalho.

Waldir Souza – PhD – waldir.souza@pucpr.br

Nilo Ribeiro Júnior – Livre-docente – prof.ribeironilo@gmail.com

Isabel Cristina Tavares Facury – Mestre – isury3@gmail.com

Correspondência: Isabel Cristina Tavares Facury – Rua Leopoldina, 822, apt. 301 CEP 30330-230. Belo Horizonte/MG, Brasil.

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